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Imagens científicas e ensino de ciências: uma experiência docente de construção de representação simbólica a partir do referente real

CALEIDOSCÓPIO

Imagens científicas e ensino de ciências: uma experiência docente de construção de representação simbólica a partir do referente real

Lucia Helena Pralon De Souza

Departamento de Didática da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Rio de Janeiro (RJ) – Brasil

Contato com a autora

As relações humanas se estabelecem através de canais de comunicação e a linguagem é um desses canais. Como todo sistema de significação, a linguagem utiliza um sistema de representações sígnicas verbais, gráficas, icônicas, gestuais ou sonoras que requer uma aprendizagem intencional para sua aquisição. Na escola, espaço formal dessas aprendizagens, as crianças costumam ser estimuladas a se expressarem usando as mais variadas formas de linguagem nos primeiros anos de escolaridade. Gradativamente, porém, a escola vai diminuindo esse estímulo à produção de representações visuais, enquanto a linguagem verbal continua sendo valorizada. Além disso, mesmo nas séries iniciais, onde as crianças são estimuladas a desenhar, o modo como os professores avaliam suas produções é diferente para os textos verbais e imagéticos. As ilustrações não são corrigidas como os textos, elas são vistas apenas como algo que as crianças já podem fazer espontaneamente e não como algo que tenham que aprender (KRESS; VAN LEWEEN, 1996).

Por outro lado, os materiais didáticos tornaram-se mais e melhor ilustrados nas últimas décadas. Entretanto, a "evolução" na visualidade destes materiais parece não ser acompanhada de uma correspondente evolução no uso pedagógico e, muitas vezes, as imagens são consideradas apenas acompanhantes do texto escrito ou auxiliares na aprendizagem dos conteúdos pelo seu papel motivador da leitura. Na verdade, as imagens não são transparentes, isto é, não transmitem um único sentido; têm natureza polissêmica. Além disso, elas são tão capazes de transmitir mensagens, conceitos, ideias e valores quanto o texto escrito.

Podemos falar de uma demanda por alfabetização visual que se justifica a partir do princípio de que as representações visuais, presentes em um dado contexto, se constituem por estruturas composicionais convencionadas por um determinado grupo social num tempo histórico definido. Aquilo que pode ser expresso na linguagem verbal, por meio da escolha entre diferentes classes de palavras e estruturas semânticas, é, na comunicação visual, expresso através da escolha, por exemplo, dos diferentes usos de cores ou de diferentes estruturas composicionais. Essas estruturas realizam sentidos assim como é feito pelas estruturas linguísticas (idem, ibid.). Do mesmo modo que não basta saber ler a palavra para dar sentido a um texto, também nas representações visuais os sentidos possíveis ultrapassam a simples identificação visual de seus componentes. Aprender a ler textos verbais e/ou imagéticos é muito mais do que decodificar signos.

Imagem e representação da realidade

Podemos entender uma imagem, a partir do ponto de vista do criador, como a representação ou interpretação de algo que não está presente e que é capaz de gerar uma série de evocações e sensações no observador; ou do ponto de vista do observador, que é quem lhe atribui ou não os mesmos significados idealizados pelo autor.

As imagens podem representar coisas que existem materialmente na realidade ou que nunca existiram como uma entidade total (APARICI; MATILLA; SANTIAGO, 1992). A partir dessa perspectiva, pode-se verificar o grau de semelhança entre uma imagem e o objeto representado. O grau de realidade com que uma imagem se relaciona com a realidade que representa passa por diferentes níveis, desde a igualdade total (iconicidade máxima) até a abstração total.

Para Barthes (1990), toda representação iconográfica tem seu referente no mundo real. As representações imagéticas podem se aproximar mais ou menos do seu referente real. A fotografia, por exemplo, pode ser considerada como a representação icônica que apresenta o maior grau de iconicidade. Para Silva (2006), a leitura de uma fotografia implica o pressuposto de que o objeto da imagem existe efetivamente fora dela e que foi capturado (quase) fielmente pela câmera: "outras formas de representação são construídas utilizando uma estética que implica certo distanciamento iconográfico em relação ao objeto representado" (p. 78).

O uso de representações com baixo nível de iconicidade (símbolos com pouca relação com o referente) traz problemas para o ensino de ciências. Dentro da sala de aula, convivem alunos que se encontram em diferentes níveis de leitura de representações com diferentes escalas de iconicidade. Essa dificuldade pode ocorrer, por exemplo, porque, na maioria das vezes, eles não percebem o movimento de construção do objeto construído (sua representação) desde a observação do real referente.

Um exemplo disso é o que ocorre no nono ano do ensino fundamental, série em que os professores de ciências costumam introduzir alguns conceitos em Física, usando inúmeros recursos simbólicos convencionados na linguagem científica, sem se darem conta da dificuldade de alguns alunos com essas representações. Considerando tratar-se de um conhecimento compartilhado, um já dito, essa subvalorização dessas dificuldades, certamente, está contribuindo para um processo de exclusão desses jovens. Não devemos esquecer que a linguagem científica, como um gênero de discurso,1 1 . De acordo com Bakhtin (1997), um gênero de discurso é um tipo relativamente estável de enunciados, e o discurso científico é por ele considerado como um gênero secundário do discurso, pois aparece em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída. se constitui de um repertório de símbolos, cujo sentido deve ser compartilhado. Quanto maior for o domínio desse gênero, mais facilidade teremos em empregá-lo de forma usual e adequada nas situações comunicativas em que estivermos inseridos. O ensino de ciências representa uma possibilidade de compartilhamento desse repertório e consequente fluidez em uma nova esfera de atividade humana: a atividade científica.

Em uma atividade desenvolvida com turmas do nono ano do ensino fundamental de uma escola pública do Rio de Janeiro, foi solicitado aos alunos que observassem e depois registrassem o movimento executado pelo professor diante da turma, que consistia em caminhar em linha reta, da direita para a esquerda, indo de um extremo a outro do quadro de giz. A única condição imposta foi que não fizessem registros por escrito (verbais).

A análise posterior desse material2 2 . Apresentada no XV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE, 2010), em artigo com o mesmo título deste texto (PRALON, 2010). produzido pelos alunos evidenciou um alto índice de iconicidade na maioria de suas representações. Poucos alunos utilizaram estruturas representacionais abstratas como símbolos. Essa heterogeneidade nas formas de representação levou-nos a concluir que, dentro de uma mesma sala de aula, convivem alunos que estão em diferentes níveis de capacidade de representação, o que, de acordo com Silva (op. cit., p. 81), "sugere a importância não apenas de trabalhar simultaneamente diferentes imagens, com diferentes relações epistemológicas e icônicas com a realidade, como também de tornar explícita essa diferenciação".

A etapa de representação do movimento possibilitou uma explicitação dos conhecimentos dos alunos, relativos aos elementos simbólicos culturalmente convencionados que já conhecem e que são capazes de utilizar na comunicação de uma ideia. Entretanto, a simples explicitação dessa capacidade não representa uma oportunidade concreta de aprendizado de novos símbolos. Com o objetivo de criar essa oportunidade, a etapa seguinte da atividade consistiu em expor os desenhos criados diante da turma e estimular os alunos a organizá-los sequencialmente, dos mais realistas aos mais abstratos, ou seja, em nível decrescente de iconicidade e crescente de abstração. Desse modo, foi garantido o espaço de visualização da construção desses símbolos desde o seu referente no mundo real.

Acreditamos que atividades como a que acabamos de descrever podem representar uma oportunidade de inclusão para muitos jovens, tornando-os mais aptos a participarem de situações comunicativas na esfera do gênero científico e, em certa medida, até ajudando a desfazer o mito da Física como matéria "muito difícil".

As especificidades das imagens utilizadas no ensino de ciências (símbolos, fórmulas, gráficos, tabelas, imagens microscópicas, cósmicas, entre outros) requerem uma atenção especial por parte dos professores para as possíveis leituras realizadas pelos alunos, que nem sempre coincidem com aquelas desejadas. Uma verdadeira alfabetização científica, desejável no mundo moderno, não pode prescindir de uma alfabetização visual.

Notas

Contato com a autora:

<luciapralon2@yahoo.com.br>

Recebido em 12 de maio de 2013.

Aprovado em 11 de outubro de 2013.

  • APARICI, R.; MATILLA, A.G.; SANTIAGO, M.V. La imagen Madrid: Universidad Nacional de Educación a Distancia, 1992.
  • BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal Trad. de Maria Ermantina G. G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
  • BARTHES, R. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Trad. de Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
  • KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design London: Routledge. 1996.
  • PRALON, L.H. Imagens científicas e ensino de ciências: uma experiência docente de construção de representações simbólicas a partir do referente real. In: ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO (ENDIPE), 15., 2010, Belo Horizonte.
  • SILVA, H.C. Lendo imagens na educação científica: construção e realidade. Pro-Posições, Campinas, v. 17, n. 1 (49), p. 71-83, jan./abr. 2006.
  • 1
    . De acordo com Bakhtin (1997), um gênero de discurso é um tipo relativamente estável de enunciados, e o discurso científico é por ele considerado como um gênero secundário do discurso, pois aparece em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída.
  • 2
    . Apresentada no XV Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE, 2010), em artigo com o mesmo título deste texto (PRALON, 2010).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014
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