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ORNITORRINCO RELOADED: uberização e virações contemporâneas na crise do capital

PLATYPUS RELOADED: uberisation and contemporary gig jobs in the crisis of capital

L’ORNITHORYNQUE RECHARGÉ: l’uberisation et les emplois precaires contemporains dans la crise du capital

Resumos

O presente artigo objetiva contribuir na avaliação crítica do atual arranjo do mundo do trabalho em decomposição decorrente das contradições internas do capital. Assim, investiga-se o processo chamado de uberização com foco nas formas de subsunção do trabalho e de sua exploração no momento contemporâneo da crise de acumulação do capital. Investiga-se as possíveis contribuições das formulações de Karl Marx a partir da tradição da chamada crítica do valor como chave de leitura. Dessa maneira, apresentamos aqui uma crítica das forças produtivas e as formas de dominação em curso. Para tanto, realizamos uma aproximação dessa corrente teórica com os escritos de Chico de Oliveira a fim de oferecer uma interpretação possível para o atual momento da reprodução crítica do capital.

Trabalho; Crise; Forças produtivas; Reprodução


This paper aims to contribute to the critical evaluation of the current arrangement of the world of work in decomposition resulting from the internal contradictions of capital. Thus, the process called uberization is investigated with a focus on the forms of subsumption of labor and its exploitation in the contemporary moment of the crisis of accumulation of capital. We investigate the possible contributions of Karl Marx’s formulations from the tradition of the so-called critique of value as a key reading. In this way, we present here a critique of the productive forces and the forms of domination in course. In order to do so, we bring together this theoretical framework with the writings of Chico de Oliveira in order to offer a possible interpretation of the current moment of the critical reproduction of capital.

Labor; Crisis; Productive forces; Reproduction


Ce document vise à contribuer à l’évaluation critique de l’arrangement actuel du monde du travail en décomposition résultant des contradictions internes du capital. Ainsi, le processus appelé uberisation est étudié en se concentrant sur les formes de subsomption du travail et son exploitation dans le moment contemporain de la crise de l’accumulation du capital. Nous étudions les contributions possibles des formulations de Karl Marx dans la tradition de la soi-disant critique de la valeur comme lecture clé. De cette manière, nous présentons ici une critique des forces productives et des formes de domination en cours. Pour ce faire, nous réunissons ce cadre théorique avec les écrits de Chico de Oliveira afin d’offrir une interprétation possible du moment actuel de la reproduction critique du capital.

Travail; Crise; Forces productives; Reproduction


INTRODUÇÃO

Em 2009, durante a conferência The Web, em Paris, os investidores em tecnologia Garett Camp e Travis Kalanick, enfrentando dificuldades para pegar um táxi, tiveram um estalo: há pessoas desempregadas que possuem carros e há passageiros que pagariam a elas para se deslocar pela cidade. Diante da disseminação dos smartphones, tudo isso poderia ser resolvido muito facilmente. Com alguns poucos toques no seu celular, poderiam alugar um serviço de transporte. No ano seguinte, fundaram a companhia Uber Technologies Inc., que se expandiu rapidamente. Em cinco anos, avaliada em mais de 60 bilhões de dólares, já atuava em 450 cidades de mais de 70 países.

O que a companhia Uber realizava para os transportes individuais (acompanhada depois pela Cabfy, Lyft, Zipcar, Venus, 99, entre outras) começou a se generalizar, criando uma especificidade que passou a ser chamada por seus partidários de sharing economy, ou, simplesmente, economia compartilhada. Valendo-se do poder de conexão que a internet promove e dos hardwares de smartphones cada vez mais sofisticados, os apps estão evoluindo para utilização em vários setores da vida cotidiana. Outras tantas esferas da vida se tornaram alvo das tramas da economia compartilhada: do aluguel de casas e hospedagem (Airbnb) ao empréstimo de guarda-chuvas (Rentbrella); dos aplicativos de delivery (Rappi, Glovo, Loggi) aos de hospedagem de pets (Dog hero); do empréstimo de ferramentas (Toolbox) ao contrato de serviços de guias de turismo locais (Rent a local friend); dos serviços de lava carros (Lavô) ao trabalho temporário de garçons (Clooser) ou de cozinheiros autônomos (Foozi); da lavagem de roupas (Lavemcasa) à faxina (Diaríssima, Parafuzo). Esse fenômeno disseminou nas lojas de aplicativos dos smartphones os apps que possuem a mesma natureza do Uber: uma demanda – de um usuário – encontra a oferta de um indivíduo – que se cadastra como parceiro da companhia e vai prestar o serviço vendido. Como é descrito por Slee (2017)SLEE, T. What is yours is mine: against the sharing economy. New York: OR Books, 2017., o discurso dessa nova forma de negócio, mediada por aplicações instaladas no celular do usuário e do prestador, se baseia na geração de renda para quem precisa, na liberdade dos horários rígidos e na ideologia do self-made man, que se empenha em “melhorar de vida”.

A economia mediada pelos aplicativos, de nossa perspectiva, é uma forma de lidar com o movimento secular e contraditório do capital. No seio da contradição fundamental de desenvolvimento do capital, está uma tendência de expulsão do trabalho vivo dos circuitos produtivos, devido ao emprego da automação e de outros aumentos da produtividade por meio da técnica. Esse fato obriga a um reordenamento das tramas da sociabilidade do capital, uma vez que a generalização do desemprego implica um abalo sísmico nas estruturas de acumulação de capital.

Assim, pretendemos, aqui, colaborar na avaliação crítica do estado atual de coisas: como o processo de uberização integra as tramas da reprodução ampliada do capital num momento de crise? Perseguindo essa questão, pretendemos investigar as possíveis contribuições das formulações de Karl Marx para a compreensão desse fenômeno histórico do presente, partindo dos subsídios teóricos da vertente teórica conhecida como Crítica do Valor [Wertkritik]. Com base em nossa análise das relações de uberização, construímos uma crítica das forças produtivas para pensar as atualizações dos processos de exploração e de subsunção do trabalho ao capital. Os princípios desse processo, em nossa perspectiva, já estavam descritos no relevante texto O ornitorrinco, de Francisco de Oliveira, no qual o autor identifica tendências que hoje se confirmam e se atualizam, o que nos leva a sugerir a ideia a fim de captar esse momento do ornitorrinco reloaded.

O presente artigo espera contribuir para demonstrar a relevância do pensamento marxiano para a compreensão da realidade, desde que entendido como necessário um esforço sistemático para a atualização de seus marcos. Muito embora o núcleo fundamental do capital, isto é, o nexo que busca transformar dinheiro em mais dinheiro por meio da exploração de trabalho, continue o mesmo, as formas como se realizam e se efetivam são bem diferentes das descritas por Marx, e as implicações disso, tanto teóricas como práticas, são muitas.

PRECARIZAÇÃO, VIRAÇÃO E UBERIZAÇÃO NO BRASIL

O mundo do trabalho se transformou. Em diferentes países do mundo, o regime de acumulação flexível (Harvey, 2012HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Ed. Loyola, 2012.) resultou em profundas alterações nos modos de organização do trabalho. Em geral, essas modificações caminharam para uma mesma direção: um mundo do trabalho mais desigual e precarizado – claro, quando ainda há trabalho.

Aqui trataremos de três processos que, embora não sejam exatamente coincidentes, servem para descrever facetas dessas transformações: precarização, viração e uberização. Os três processos, entendidos como complementares ao desenvolvimento das relações capitalistas de produção, conformam o atual mundo do trabalho.

A precarização laboral é um processo tão antigo quanto o próprio trabalho assalariado. As descrições feitas por Engels sobre a situação da classe operária na Inglaterra apresentam elementos que se encaixam no atual conceito de precarização. Com o desenvolvimento do capitalismo em escala planetária, essas relações de precariedade – em geral baseadas num regime de exploração calcado no mais-valor absoluto – foram externalizadas para os países da periferia (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRESPADINI, R. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 131-174.; Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.) com a longa história do colonialismo, do imperialismo e de suas versões constantemente atualizadas (Quijano, 2005). De tal forma, a ideia de precarização deve designar uma forma específica de relação no interior da sociedade capitalista que não deve ser entendida como uma anomalia. Ao contrário, trata-se de um de seus fundamentos.

São vários os importantes estudos sobre a condição da força de trabalho no Brasil (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRESPADINI, R. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 131-174.; Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.; Kowarick, 1979KOWARICK, L. Espoliação Urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.; Pochmann, 2014POCHMANN, M. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo, 2014.; Abílio, 2012ABÍLIO, L. Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de revendedoras de cosméticos. São Paulo: Boitempo, 2012.; Antunes, 2006; 2018; Telles, 2006TELLES, V. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 173-195, 2006.; Martins, 2008MARTINS, J. de S. A aparição do demônio na fábrica: origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário. São Paulo: Editora 34, 2008.). Por diferentes vias, as várias pesquisas colocam sob escrutínio as estratégias de reprodução das classes trabalhadoras precarizadas, as formas de legitimação dessa prática e as formas de acumulação do capital. O resultado disso é, apesar das sucessivas transformações e atualizações, uma economia que se sustentou pela superexploração da força de trabalho constantemente espoliada. A informalidade do trabalho sempre se fez presente e assumiu diversas formas: trabalho sem contrato (muitas vezes análogo à escravidão), uma economia de bicos, trabalhadores temporários, ausência de condições de trabalho, ambulantes autônomos, entre outras (Alves; 2018ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil: perspectivas para a década de 2020. Margem Esquerda, São Paulo, n. 31, p. 35-40, 2018.; Abílio, 2018ABÍLIO, L. Uberização e viração: mulheres periféricas no centro da acumulação capitalista. Margem Esquerda, [S. l], n. 31, p. 54-59, 2018.). Em vista disso, não é nenhuma surpresa perceber que essa viração é algo constitutivo da reprodução ampliada da classe trabalhadora brasileira.

Todavia, a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) à presidência no Brasil renovou a ilusão de superação da subalternidade. Não foram poucos aqueles que viram nesse momento histórico, no qual um ex-torneiro mecânico tornou-se presidente da República, uma promessa de transformação. E, de fato, o governo petista logrou, ainda que de forma tardia, “incorporar uma parcela considerável da classe trabalhadora que ainda se mantinha à margem do acesso ao consumo” (Pochmann, 2014POCHMANN, M. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 71). Para Pochmann (2014POCHMANN, M. O mito da grande classe média: capitalismo e estrutura social. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 43) e também para vários outros, o PT conseguiu tal feito por “abandonar políticas de corte neoliberal e influenciar importantes políticas públicas”.

Além daqueles que interrompem sua análise na superfície do fenômeno, há quem perceba o que se desenrolou na gestão petista do Brasil. Seu modo de governo, baseado na inclusão das camadas mais baixas e excluídas da esfera do consumo – com políticas de redução de impostos, transferência de renda direta, ampliação do crédito, subsídio aos capitais privados –, possui, segundo Menegat (2019)MENEGAT, M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência, 2019., uma natureza específica: trata-se de uma forma eficiente de gestão da barbárie social.

Além do seu caráter securitário, há de se compreender as condições específicas que sustentaram essa possibilidade de política. Conforme a análise de Pitta (2020)PITTA, F. O crescimento e a crise da economia brasileira no século XXI como crise da sociedade do trabalho: bolha das commodities, capital fictício e crítica do valor-dissociação. Sinal de Menos, [S. l.], n. 14, v. 1: p. 38-146, 2020., essa gestão eficiente da barbárie durou tão somente o tempo que foi possível surfar na bolha especulativa das commodities. Uma vez que o boom passou, restou o endividamento triplo dos indivíduos, das empresas e do Estado. Os efeitos da crise de 2008/2009, que se pensou se tratar de uma marolinha, derreteram a bolha, e o país perdeu seu impulso para a política de gestão da barbárie.

Não parece surpreendente que, com o derretimento dessa esfera especulativa, tenha ocorrido a decomposição da classe trabalhadora formalizada, a desconstrução da identidade baseada no trabalho formal e a precarização generalizada dos postos de trabalho. Nesse contexto, ocorreu uma enorme onda de espoliação, endividamento, precarização e outras violências econômicas. Os efeitos se fizeram sentir rapidamente, sobretudo nas camadas mais baixas da pirâmide social. A entrada da economia de aplicativo se espalhou rapidamente, tal qual fogo numa pradaria seca. A conjunção “ótima” da dimensão estrutural da constituição econômica do país como um território de superexploração junto com o estouro da bolha especulativa das commodities fizeram acelerar esse processo.

Também não é nenhuma novidade que, depois de estourada essa crise, tais aplicativos tenham se tornado os “maiores empregadores” do Brasil em 2019, afinal, trata-se de mais uma das tentativas precárias, e, no entanto, constitutivas das classes trabalhadoras na periferia do capitalismo de se reproduzirem materialmente – sobretudo no momento de crise depois da “revolução molecular-digital” (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.).

O momento atual, marcado por um capitalismo em seu momento de crise absoluta (Kurz, 2014KURZ, R. Dinheiro sem valor. Lisboa: Antígona, 2014.), parece dar uma nova extensão à ideia de precarização – ela se torna não apenas o “fundamento escondido” da sociabilidade capitalista, mas o próprio horizonte de expectativas das relações de trabalho, o registro regular da organização do trabalho. O acento aqui está na ideia de um “capitalismo de crise”, conforme a teorização desenvolvida por Robert Kurz. A expressão “capitalismo informacional-digital-financeiro’’ apresentada por Antunes (2019)ANTUNES, R. Proletariado digital, serviços e valor. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida. São Paulo: Boitempo, 2019. p. 15-25. e a ênfase em seu modo de regulação neoliberal (Alves, 2018ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil: perspectivas para a década de 2020. Margem Esquerda, São Paulo, n. 31, p. 35-40, 2018.) não são nada mais do que uma tentativa emergencial e contraditória de lidar com o limite interno e absoluto do capital que mostrou seu núcleo a partir dos anos 1970 (Kurz, 2014KURZ, R. Dinheiro sem valor. Lisboa: Antígona, 2014.; 2018)1 1 Explicarei, ao longo deste texto, o argumento kurziano sobre o limite interno e absoluto do capital em detalhes. .

Hoje a precarização designa uma miríade de situações: trabalhadores terceirizados em relações de trabalho não fixo (contrato de zero hora, trabalhos temporários etc.); relações salariais com baixa remuneração e, não raro, alta carga de tarefas; desempregados que vivem fora da integração salarial formal e, portanto, devem se virar; as mais variadas relações laborais de informalidade; ou trabalhos abaixo da qualificação dos empregados. Em geral, a precarização é marcada por uma série de ausências de segurança (do emprego, no trabalho, de renda e de representação) (Standing, 2013STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.). Esse quadro de precarização acelerou seu ritmo com o desmonte do consenso fordista baseado na ideia de cidadania salarial. Um de seus efeitos foi a dissolução da identidade política e de reconhecimento baseada no trabalho. Esta foi constituída tão solidamente ao longo do século XX, mas, mesmo assim, se desmanchou no ar. É importante notar que as relações de trabalho precarizadas não apenas possuem um efeito objetivo, mas um impacto na subjetivação, fazendo circular afetos de raiva, ressentimento e depressão, uma vez que as pressões são cada vez maiores, a competição cada vez mais intensa e o risco de ser jogado para fora das relações de trabalho (ainda que precárias) constantemente ampliado. O capital configurou uma determinada forma de existência que logrou transformar os indivíduos em sujeitos monetários (Kurz, 1993KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.). Isso significa que a existência dos indivíduos passa necessariamente pela capacidade de se tornarem possuidores de dinheiro para irem ao mercado adquirirem mercadorias. Contudo, aqueles despossuídos de tudo só o podem fazer à medida que vendem sua força de trabalho. O problema de ampliar o desemprego na sociedade é que resulta numa existência desubstancializada, ou seja, produzem-se sujeitos monetários desmonetizados que experimentam uma existência danificada e, com isso, estimula-se a competição.

A ameaça de dissolução de décadas de institucionalização de direitos sociais da cidadania salarial desenvolvida nos países capitalistas avançados ao longo do século XX não surpreendeu quem acompanha o mundo do trabalho nos países periféricos. A situação de derretimento das seguranças sociais, que parecia uma novidade nos países centrais, sobretudo da Europa, que constitui um regime de acumulação baseado na integração positiva dos trabalhadores, nunca deixou de ser a regra na periferia do sistema. Vale ter em conta o que Oliveira (2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., p. 131), em O ornitorrinco, escreve:

O subdesenvolvimento viria a ser, portanto, a forma da exceção permanente do sistema capitalista na sua periferia. Como disse Walter Benjamin, os oprimidos sabem do que se trata. A autoconstrução como exceção da cidade, o trabalho informal como exceção do emprego, o patrimonialismo como exceção da concorrência, a coerção estatal como exceção da acumulação privada.

Flexibilidade total, desobrigação de empresas e empregadores, baixos salários e drástica redução dos direitos: essas características são constitutivas do mercado de trabalho brasileiro, que só pode se estabelecer preservando uma enorme massa estrutural de “inempregáveis” – expressão cunhada pelo presidente-sociólogo Fernando Henrique Cardoso durante o seu segundo mandato. Essa estratégia permite a acumulação de capital nos países periféricos, assentada na superexploração da força de trabalho (Marini, 2005MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: TRESPADINI, R. (org.). Ruy Mauro Marini: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 131-174.).

Para se reproduzirem materialmente, esses “inempregáveis” se valem de todo tipo de expediente e incorporam, para a expansão da modernidade capitalista na periferia do sistema-mundo, práticas propriamente “não modernas e não capitalistas” (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.). As novas formas do trabalho que tornam os rendimentos efêmeros exigem várias e inevitáveis estratégias de viração. De bicos intermitentes à institucionalização coagida ou forçada, de uma ação criminosa arriscada a uma tentativa precária de empreendedorismo. Todas são “saídas de emergência” e, para continuar no jogo, esses indivíduos têm “que se debater para sobreviver”. Não há mais emprego, não há mais segurança, não há mais cidadania. Tudo é viração, o malabarismo constante para continuar no jogo. As relações de trabalho na periferia do capitalismo partem de um grau zero de precariedade que conforma todas as outras como um espectro sempre presente.

Onde o desemprego é uma realidade, as pessoas têm que se virar entre um bico e outro. Ludmila Abílio (2019)ABÍLIO, L. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinano. Revista Psicoperspectivas: Individuo y Sociedade, Valparaíso, v. 18, n. 3, p.1-11, 2019. chamou esse processo de subsunção real da viração. No sentido dado pela autora, viração é a ausência de uma identidade profissional estável, definida e reconhecida. A reprodução material da vida está determinada por instáveis oportunidades de trabalho que garantem a sobrevivência. Na verdade, afirma Abílio (2018ABÍLIO, L. Uberização e viração: mulheres periféricas no centro da acumulação capitalista. Margem Esquerda, [S. l], n. 31, p. 54-59, 2018., p. 57), “a viração é constitutiva do viver da classe trabalhadora brasileira e não é por si uma novidade”.

A partir da segunda década do século XXI, ocorre uma novidade que, dessa vez, inicia-se nos países centrais, mas rapidamente alcança a periferia e reorganiza as relações de viração e informalidade. Essa novidade foi imposta pela nova economia dos aplicativos. Com a chegada das empresas-aplicativos, que fazem um encontro descentralizado da demanda e da oferta através de algoritmos digitais, a realidade antiga da viração é atualizada. Costuma-se chamar essa nova fase de uberização.

Entendemos o termo uberização como uma nova forma de organização, gerenciamento e controle do trabalho que faz convergir formas cada vez mais precárias de trabalho, regimes de trabalho que se encontram às margens da formalidade e que são organizados por formas de gerenciamento algorítmico. Essa definição é tributária direta do trabalho de Abílio (2020a), no qual a autora desenvolve uma importante análise das tendências globais que estabelecem novas formas de organização, gerenciamento e controle do trabalho. A autora ressalta que, dentro desse regime de exploração, há ainda elementos pouco estudados e que seguem longe de uma compreensão crítica, como a gigantesca possibilidade de extração, processamento e administração de dados da multidão de trabalhadores de forma centralizada e monopolizada. A essa definição, podemos adicionar aquela desenvolvida por Ricardo Antunes (2020)ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 11-21., para quem a uberização seria definida por relações de trabalho que são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, passando a assumir a aparência de prestação de serviços, o que resulta na obliteração da percepção das relações de assalariamento que nela se desenvolvem.

Essa nova característica reconfigura o mundo do trabalho. Algo dessa transformação já havia sido antevisto por Chico de Oliveira (2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., p. 136), ao afirmar que o: “conjunto de trabalhadores é transformado em uma soma indeterminada de exército da ativa e da reserva, que se intercambiam não nos ciclos de negócios, mas diariamente.” Ludmila Abílio (2019ABÍLIO, L. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinano. Revista Psicoperspectivas: Individuo y Sociedade, Valparaíso, v. 18, n. 3, p.1-11, 2019.; 2020b) chama isso de trabalhadores just-in-time. A definição se refere ao novo modo de engajamento dos trabalhadores na relação de trabalho: não há formalidade de contratação, mas um novo tipo de terceirização que se apropria da base da viração. Esse tipo de trabalho apresenta-se com uma alta flexibilidade, que é mascarada por um discurso de empreendedorismo. O contingente de trabalhadores mobilizados não é preestabelecido, varia diariamente e, mais ainda, pode crescer indefinidamente sem custos para o capital, mas ampliando o asselvajamento do mercado de trabalho. Trata-se, portanto, de uma intermitência do trabalho, responsável, segundo Antunes, por um dos elementos mais corrosivos da proteção do trabalho. A atual forma de organização e mobilização do trabalho depende, portanto, de “aparecer” o trabalho na forma de uma notificação no smartphone. Quando isso ocorre, os trabalhadores recebem estritamente pelo que fizeram, mas não recebem nada pelo tempo de espera que tiveram. É uma perversa forma de mobilização total, mas intermitente do trabalho, que leva à precarização e a novas formas de dominação do trabalho.

As empresas-aplicativos que promovem o modelo de organização do trabalho como o da uberização se apresentam como meras mediadoras entre a oferta e a procura de um determinado produto ou serviço. Esse discurso as coloca como uma parceira dos trabalhadores. Estes se entendem como “empreendedores de si”, que prestam um serviço, colocando a empresa-aplicativo para “trabalhar para eles”. Assim, a precarização do trabalho ocorre como se disfarçada de “parceria” ou de “empreendedorismo”.

No entanto, o que essa concepção equivocada esconde é que o discurso funciona como uma forma de negar os vínculos empregatícios na troca que se estabelece entre empresa e trabalhadores (e, por conseguinte, da exploração dela decorrente). Os trabalhadores desprotegidos socialmente devem arcar com os riscos e os custos de sua atividade. Ainda, devem administrar incertezas como a da remuneração, das altas cargas de trabalho, além das formas “obscuras” de imposição da métrica de produtividade definida pelos algoritmos. Há de se destacar que, nesse modelo de plataformização2 2 Seguimos aqui a definição de Srnicek (2016), que estabelece as plataformas como infraestruturas digitais que possibilitam a interação entre dois ou mais grupos configurando uma série de dispositivos que permitem a interação entre diferentes grupos. do trabalho, todos os custos da atividade, por exemplo, manutenção, alimentação, seguro, limpeza, ficam a cargo dos próprios funcionários – que se entendem como empreendedores. O que contradiz essa falsa percepção é que existem critérios bem objetivos para a manutenção do emprego: caso os funcionários não cheguem aos critérios estabelecidos de avaliação pelos usuários ou ao número de corridas e entregas exigidas, podem ser desligados permanentemente do aplicativo. Afinal, “as organizações proprietárias das plataformas conseguem obter um trabalho mal remunerado, disposto a longas jornadas de trabalho e desprovido de quaisquer direitos sociais ou trabalhistas” (Zamora; Augustin, Souza, 2021, p. 81).

Livrar-se dos custos do trabalho mantendo os ganhos e o controle sobre a produção: desse modo, as empresas-aplicativo concretizam o auge do modelo de empresa enxuta, com um número ínfimo de empregados e milhares de ditos ‘empreendedores’ conectados (Abílio, 2020b, p. 115).

Essa realidade já havia sido percebida pelo perspicaz olhar de Chico de Oliveira, que, em texto de 2003, de maneira quase premonitória, afirmava como os trabalhadores são transformados numa massa indeterminada de exército da ativa e da reserva, intercambiando-se rapidamente de uma posição à outra não nos ciclos de negócios ou nos momentos de crise, mas diariamente. Afinal, prossegue o autor, “a tendência moderna do capital” – já descrita por Marx e, desde então, cada vez mais desenvolvida – “é a de suprimir o adiantamento de capital: o pagamento dos trabalhadores não será um adiantamento do capital, mas dependerá dos resultados das vendas dos produtos-mercadorias” (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., p. 136). Eis, assim, o mecanismo que sustenta a uberização do trabalho. Ora, tal processo sempre marcou as relações de trabalho; a novidade, porém, tem sido a descoberta da radicalidade e do aprofundamento da precariedade a que esse processo conduz impulsionado pelas empresas-aplicativo e por seus algoritmos de precarização.

A situação resultante é uma nova precariedade salarial (Alves, 2018ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil: perspectivas para a década de 2020. Margem Esquerda, São Paulo, n. 31, p. 35-40, 2018.). A partir da confluência e complementaridade da precarização, da viração e da uberização, é imposta uma precariedade generalizada que resulta num tipo específico de novo proletariado em que até mesmo a servidão é entendida como privilégio (Antunes, 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.). Após décadas de eliminação de direitos, de vitória do neoliberalismo, de dispersão global e de centralização das cadeias produtivas, novas formas de organização e controle do processo de trabalho dão origem a um mundo do trabalho em plena decomposição.

Mas há que se precisar a direção da crise que gera a precarização e a uberização. Não se trata, como um certo grupo de autores parece indicar, de formas e de estratagemas para contornar a crise do capital (Braga, 2012BRAGA, R. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012.; 2017; Standing, 2013STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.; Alves, 2018ALVES, G. O novo (e precário) mundo do trabalho no Brasil: perspectivas para a década de 2020. Margem Esquerda, São Paulo, n. 31, p. 35-40, 2018.; Antunes, 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.; 2019). Para eles, o critério de socialização pelo trabalho formalizado e com direitos continua a valer: a precarização, portanto, seria uma espécie de desvio conjuntural desse critério. Assim, não raro, suas análises recaem na estipulação de um dever-ser do trabalho, que é constantemente recolocado – não pelas relações concretas da sociedade, mas tomando como critério a ideia de um “trabalho emancipado”. Contra essa interpretação, sugerimos o entendimento de que as relações de precarização são uma necessidade intrínseca ao desenvolvimento lógico do capital. Dessa forma, entendo os processos aqui descritos como a atualização da condição de possibilidade do trabalho que ainda existe numa sociedade de crise. Tal como compreendo, a crise absoluta do capital (Kurz, 2014KURZ, R. Dinheiro sem valor. Lisboa: Antígona, 2014.), que se desenrola internamente ao conceito de capital e que se tornou patente ao final do século XX, coloca como questão a decomposição do mundo do trabalho. Isso significa que os mecanismos históricos que cumpriram um papel de compensação da crise – entre eles a superexploração da força de trabalho, por exemplo – a partir da Terceira Revolução Industrial da robótica, da automação e da microeletrônica já não funcionam mais.

O atual arranjo do desenvolvimento das forças produtivas organiza o processo tecnológico-organizacional do trabalho que se desdobra sob a forma de eliminação sumária de postos de trabalho, criando uma enorme massa sobrante, supérflua à acumulação fictícia e deixada sem emprego, sem seguridade e sem perspectivas de futuro.

DESENVOLVIMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS E A DESTRUIÇÃO DO EMPREGO

Independentemente do esforço das pessoas de se espremerem até virar suco, vertendo até a última gota de valor, o capital entrou em um momento no qual os mecanismos de compensação – que até então vinham funcionando – começam a falhar (Kurz, 1993KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.; 2014). Para o desenvolvimento de uma crítica radical e imanente do processo de precarização do trabalho, é necessário compreender que este, entendido como substância do valor, é constantemente negado pelo contraditório processo de acumulação (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013.).

Tendencialmente, é possível observar que as inovações produtivas e tecnológicas caminham para uma reorganização da composição orgânica do capital. Os capitais pressionados, entre outros fatores, pela organização dos trabalhadores e pela lei coercitiva da concorrência passam a organizar a extração de mais-valia por meio de sua forma relativa (em que o tempo relativo ao trabalho para alcançar o custo de reprodução da força de trabalho comprime e, desta forma, aumenta o tempo excedente). Marx (2013)MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013. sabidamente situa nessa forma a verdadeira universalização do capitalismo e vê aí uma das contradições fundamentais desse metabolismo social, que leva à tendência decrescente da taxa de lucro, como postulado em sua obra.

O grande problema é que uma sociedade capitalista organizada com base na mais-valia relativa generaliza o desemprego (Kurz, 2018KURZ, R. Crise do valor de troca. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.). Isso, além do fato – fundamental – de que com o desemprego acontece uma redução do consumo, porque cada vez mais pessoas desempregadas não têm renda para consumir (e aí é criada toda sorte de tentativa de driblar essa situação, como políticas sociais ou o endividamento), tornando possível chegar a uma conclusão: cada vez mais, o desemprego é o próprio devir do trabalho.

No capitalismo tardio, especialmente da década de 1970 até o presente, quando a revolução da microeletrônica, da robótica e a automação da indústria se desenvolvem, a contradição fundamental das relações sociais se estabelece. Algo que Marx (2011MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.; 2013; 2017), já no século XIX, previu como um desenvolvimento lógico da contradição interna do capital. A partir daí, desdobra-se um fenômeno muito específico que, provisoriamente, poderia ser chamado de “dissolução da forma social”. Tal processo de dissolução, ponto de virada do movimento de colapso da modernização, produz uma imensa mudança na experiência do tempo histórico.

A questão central que se desenrolou a partir do final do século XX foi a realização de um problema que Marx percebeu: a ascensão contínua da composição orgânica do capital, que perturba a forma historicamente constituída de mediação social. Essa grande decomposição é irreversível. O capital não pode voltar aos níveis de produtividade já excedidos.

Entretanto, fica evidente, como revelado por Javier Blank (2011)BLANK, J. Para uma crítica radical do capital e das suas forças produtivas. Libertas (UFJF), Juiz de Fora, v. 11, n. 1, p. 1-25, 2011., que o desenvolvimento tecnológico assume um papel destrutivo. O próprio desenvolvimento tecnológico, subsumido à influência da forma-valor, conduz à destruição das formas sociais que o produziram. (Jappe, 2006JAPPE, A. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona. 2006.) Diante desse descolamento da atividade produtiva pelas forças produtivas das formas de mediação social, são liberados, também, os seus potenciais destrutivos (Kurz, 1993KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.).

Considerando esse movimento, Blank (2011)BLANK, J. Para uma crítica radical do capital e das suas forças produtivas. Libertas (UFJF), Juiz de Fora, v. 11, n. 1, p. 1-25, 2011. recupera a periodização do capitalismo produzido por Beinstein (2009)BEINSTEIN, J. En la ruta de la decadencia: havia una crisis prolongada de la civilizacion burguesa. Herramienta, [S. l.], n. 4, p. 1-19, 2009., que entende três grandes momentos do capital: sua juventude, maturidade e senilidade. O primeiro corresponde ao nascedouro do capital, que se generaliza como forma social a partir da Revolução Industrial. Esse processo foi descrito por Karl Marx (2022)MARX, K. Capítulo VI (inédito). São Paulo: Boitempo, 2022. nos termos da subsunção formal e real do trabalho ao capital. Trata-se do período em que a forma-valor se consolidou como princípio de mediação social. O segundo momento corresponde do final do século XIX até o terceiro quarto do século XX. Esse período corresponde à expansão fordista, que se baseou na dinâmica inovadora do capital. Esse processo levou a uma aceleração da demanda que incitava o incremento e a diversificação da produção impulsionados pelas novas técnicas, que permitiam elevar a produtividade e, ao mesmo tempo, aumentar o emprego. Essa iniciativa, contudo, esteve restrita aos países de capitalismo central. Já o terceiro momento corresponde ao capitalismo senil, que descreve o momento de crise do capital. Trata-se de um corpo moribundo, e os meios de reverter a crise já parecem inócuos. Aos três momentos, Blank adiciona um quarto: o capital em colapso, quando da passagem de um corpo moribundo a cadáver ambulante. As forças produtivas do capital se convertem em forças destrutivas (mas não criadoras), uma vez que os meios para continuar a valorização do valor estão bloqueados pelo próprio desenvolvimento das forças produtivas.

A causa da crise é a mesma para todas as partes do sistema mundial produtor de mercadorias: a diminuição histórica da substância de trabalho abstrato, em consequência da alta produtividade alcançada pela mediação da concorrência (Kurz, 1993KURZ, R. O colapso da modernização. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993., p. 220).

Essa formulação remete aos escritos de Marx (2013)MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., que percebeu a necessidade intrínseca do capital de reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário sob pena de sua própria dissolução. É essa racionalidade contraditória que guiou o desenvolvimento dessa forma social crítica até o ponto em que sua contradição se torna incontornável. Tal situação não deveria causar estranheza, uma vez que tal processo foi descrito por Marx (2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., p. 556-557) como o “princípio da grande indústria”, que ocasiona a “dissolução do processo produtivo em seus elementos constitutivos sem consideração para com as mãos humanas” e, dessa maneira, “torna supérfluo o próprio trabalhador e desencadeia um rito sacrificial ininterrupto da classe trabalhadora”.

Para Marx, o desenvolvimento das forças produtivas, impulsionadas pela racionalidade contraditória concorrencial do capital, implicaria a colocação de um limite absoluto ao próprio capital. Marx (2013, p. 508), n’O capital, reconhece que a maquinaria atua como “potência hostil ao trabalhador”. Nesse processo contraditório, o próprio capital ampliaria indefinidamente as massas sobrantes, expelidas dos circuitos produtivos por conta da competição entre os capitais individuais, o que ocasionaria, logo mais à frente, a anemia estrutural de valor. Dessa contradição imanente, Marx anteviu o desenvolvimento de uma crise interna e absoluta dessa forma social. Sua conclusão é que, por conta desse movimento contraditório, haveria um momento de transformação das relações sociais em que a sociabilidade humana dominada pela forma do valor seria, enfim, derrotada. Marx afirma tal ideia em diversas oportunidades:

Nos Grundrisse:

O trabalho excedente das grandes massas deixa de ser a condição do desenvolvimento da riqueza geral, tal como o não trabalho de alguns poucos deixa de ser a condição do desenvolvimento dos poderes gerais do cérebro humano. Por essa razão, desmorona-se a produção baseada no valor de troca, e o processo de produção material imediato acha-se despojado da sua forma mesquinha, miserável e antagônica, ocorrendo então o livre desenvolvimento das individualidades. E assim, não mais a redução do tempo de trabalho necessário para produzir trabalho excedente, mas antes a redução geral do trabalho necessário da sociedade a um mínimo, correspondendo isso a um desenvolvimento artístico, científico, etc. dos indivíduos no tempo finalmente tornado livre, e graças aos meios criados, para todos (Marx, 2011MARX, K. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 696).

Na obra Para uma crítica da economia política:

Em uma certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas estas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social (Marx, 1987MARX, K. Prefácio de Para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1987., p. 30).

No volume terceiro d’O capital:

Um desenvolvimento das forças produtivas capaz de reduzir o número absoluto de trabalhadores, ou seja, em que toda a nação possa efetuar a produção total em um menor intervalo de tempo, provocaria uma revolução, pois inutilizaria a maior parte da população (Marx, 2017MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 3). São Paulo: Boitempo, 2017., p. 274).

Essa parece ser uma ideia-chave no pensamento de Marx. O desenvolvimento das forças produtivas engendraria um momento crítico nas relações sociais de produção que levariam à transformação da reprodução social. Porém, depois de tanto tempo, a crise em questão não parece provocar nenhuma transformação nas formas de reprodução social, por mais decadentes que sejam. Desse modo, a necessidade de um capitalismo de trabalho vivo permanece. Por causa de seu domínio fetichista, esse paradoxo torna o trabalho ainda mais obsoleto. É cada vez menos necessário, mas o sistema precisa cada vez mais dele. A centralidade do trabalho continua existindo, mas ela parece estar invertida. Como observa Paulo Arantes (2014), ela é cada vez mais negativa.

Com uma grande frequência, as teses da perspectiva teórica da Crítica do Valor são rebatidas com dados estatísticos de emprego, seja da Organização Internacional do Trabalho ou de órgãos nacionais, como se fosse possível averiguar o comportamento do volume global de trabalho no mundo3 3 Mesmo assim, vale ser ressaltado. O uso das estatísticas merece uma interpretação crítica. O professor Maurílio Botelho publicou recentemente um vídeo que analisa essa argumentação. Segundo ele, é importante notar as operações estatísticas que envolvem os números oficiais. Por exemplo, a taxa oficial de desemprego dos Estados Unidos é medida por uma variável que considera trabalhadores desempregados que procuraram emprego no último mês, enquanto ignora os chamados trabalhadores desencorajados (que já não procuram emprego) que estão marginalmente vinculadas à força de trabalho e empregados em meio período ou menos. Evidentemente, a diferença da medição é quase o dobro. Estatísticas alternativas do governo apresentam números bem diferentes, cerca de cinco vezes o número oficial. O vídeo em questão pode ser assistido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0B1KR6UWeIM . Contudo, como aponta Norbert Trenkle (2016TRENKLE, N. Die arbeit hängt am Tropf des fiktiven Kapitals. In: TRENKLE, Norbert. Krisis: Kritik der Warengessellschaft. Krisis, 2016.; 2019), em geral essa perspectiva assume o significado de trabalho adotado por esses órgãos e ignora a centralidade do capital fictício na dinâmica da crise da sociedade do trabalho. Ainda que as estatísticas oficiais possam indicar uma sobrevida da forma social baseada no trabalho, é importante destacar, como faz o autor, que essa bolha de empregos só é viabilizada a partir da injeção de enorme quantidade de capital fictício. Evidentemente, não se trata de afirmar a obsolescência da “atividade sensível humana” (Marx, 2010) capaz de transformar elementos para satisfazer suas necessidades, mas, ao contrário, indicar que uma determinada forma de mediação social historicamente determinada, chamada por trabalho, a partir da qual se produz uma riqueza social abstrata, está sendo erodida por conta de seu próprio desenvolvimento interno. Afirmar que a estatística oficial de um ou outro país aponta para um crescimento dos empregos perde de vista exatamente o fato que trabalho deve ser compreendido pela crítica da economia política enquanto um conceito específico: forma de mediação social que produz uma riqueza abstrata. O volume de emprego aumentar não significa que há mais trabalho circulando no mundo – pelo contrário, como demonstra Trenkle (2016TRENKLE, N. Die arbeit hängt am Tropf des fiktiven Kapitals. In: TRENKLE, Norbert. Krisis: Kritik der Warengessellschaft. Krisis, 2016.; 2019): a diminuição da massa de valor e a dependência do sistema econômico mundial no capital fictício são indícios fortes o suficiente para se confirmar que a produção de riqueza abstrata, isto é, a valorização do valor começa a falhar e, por isso, há uma obsolescência do trabalho, neste sentido específico.

SUBSUNÇÃO ALGORÍTMICA DA VIRAÇÃO

Do exposto até aqui, poderíamos pensar, como faz Antunes (2018)ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018., que entramos em uma “nova fase de subsunção real do trabalho ao capital”. Pretendemos, contudo, contribuir para a qualificação dessa nova fase. Aqui, vamos sugerir, inspirados no trabalho de Ludmila Costhek Abílio (2019)ABÍLIO, L. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinano. Revista Psicoperspectivas: Individuo y Sociedade, Valparaíso, v. 18, n. 3, p.1-11, 2019., que esse processo pode ser chamado de subsunção algorítmica da viração.

Como indica Abílio (2019ABÍLIO, L. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinano. Revista Psicoperspectivas: Individuo y Sociedade, Valparaíso, v. 18, n. 3, p.1-11, 2019.; 2020b; 2021), o autogerenciamento subordinado imposto pelas empresas-aplicativos indica uma tendência de destruição das redes de proteção social formadas em torno da categoria emprego que historicamente se constituíram. No lugar dessas redes surgem formas de “gestão individualizada da sobrevivência” (Abílio, 2021ABÍLIO, L. Empreendedorismo, autogerenciamento subordinado ou viração? Uberização e o trabalhador just-in-time na periferia. Contemporânea, [S. l.], v. 11, n. 3, p. 933-955, 2021., p. 953) que seguem inteiramente subordinadas ao panóptico algorítmico.

Seria preciso compreender como a subsunção algorítmica da viração se realiza. A viração, como forma constitutiva do trabalho periférico, passa a novas formas com a presença dos algoritmos, radicalizando o diagnóstico que Chico Oliveira (2003)OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. elaborou.

Uma série de trabalhos exploram o que se chamou de “gestão algorítmica do processo de trabalho” (Woodcock, 2020WOODCOCK, J. O panóptico algorítmico da deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 23-46.). Marx (2022)MARX, K. Capítulo VI (inédito). São Paulo: Boitempo, 2022., em seu Capítulo inédito, ressalta a importância da vigilância e da disciplina do capitalista como forma de garantir a continuidade e a eficiência do processo de trabalho. Apesar disso, foi somente com o fenômeno do taylorismo, entendido como forma de supervisão do trabalho por intermédio da prescrição estatutária de regras, leis e fórmulas para controlar o processo de trabalho que essas forças de vigilância e disciplina se tornaram sustentadas por um discurso científico, técnico e objetivo. Como já é sabido desde Taylor, a mensuração do trabalho desempenha um papel essencial na gestão e organização do processo de trabalho. O que a plataformização do trabalho garante, com o uso dos algoritmos, é um patamar ainda mais intenso de controle do trabalho. Os algoritmos funcionam como uma caixa-preta na qual os próprios usuários desconhecem as fórmulas do controle do trabalho. Por isso Woodcock (2020)WOODCOCK, J. O panóptico algorítmico da deliveroo: mensuração, precariedade e a ilusão do controle. In: ANTUNES, R. (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 23-46. sugere o conceito de panóptico algorítmico para compreender o “modelo arquitetônico” das empresas-aplicativo que realizam a organização e o controle dos processos de trabalho. Esse processo de dataficação e de gestão algorítmica do trabalho se vale de diferentes meios: rastreamento, avaliação, tomada de decisão, falta de transparência (Grohmann, 2020GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: características e alternativas. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 93-111.).

Christophe Dejours (1999)DEJOURS, C. A banalização do sofrimento social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. percebeu como, na imposição imperativa do controle do processo de trabalho, os responsáveis pela vigilância – como gerentes e lideranças – deliberadamente infligiam formas de sofrimento aos trabalhadores. O que o panóptico algorítmico faz, então, é substituir essa vigilância por linhas de programação que impelem cada individuo “colaborador” a infligir o sofrimento a si mesmo em nome do trabalho.

Vale ser destacado que esse processo, assentado em tecnologias inovadoras, não destoa do princípio do movimento contraditório do capital descrito por Karl Marx (2013)MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013. em O capital. Pela implacável lei da concorrência, como já visto, os capitais são obrigados a aumentar a produtividade do trabalho por meio do desenvolvimento técnico das forças produtivas, o que significa a destruição de postos de trabalho. Nas palavras do próprio Marx (2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., p. 708): “Toda a forma de movimento da indústria moderna deriva, portanto, da transformação constante de uma parte da população trabalhadora em mão de obra desempregada ou semiempregada”. O que acontece na contemporaneidade com os aplicativos é uma espécie de atualização desse princípio descrito por Marx.

Marx (2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013.; 2022), tanto n’O capital quanto no Capítulo VI inédito, ao abordar a constituição da “Grande Indústria”, mostra o processo histórico de efetivação da subsunção real do trabalho ao capital, isto é, a maneira especificamente capitalista como o processo de valorização comandou e impôs sua lógica ao processo de trabalho (e ao processo de reprodução social como um todo). Esse processo é posterior ao que Marx chamou de subsunção formal do trabalho ao capital, quando a base pela qual ocorria a apropriação de trabalho excedente manteve o “produtor atuando como empregador de si mesmo” (Marx, 2022, p. 56), ou seja, como possuidor de parte das condições de trabalho. A coerção para a produção de excedente, nesse contexto, efetiva-se por mecanismos que estão fora do processo produtivo. Com a subsunção real do trabalho promovida pela instituição da produção aos moldes da Grande Indústria, o processo de trabalho adquire a forma especificamente capitalista, ou seja, é moldado pelo desenvolvimento tecnológico das “forças produtivas sociais do trabalho” (Marx, 2022MARX, K. Capítulo VI (inédito). São Paulo: Boitempo, 2022., p. 66). É com isso que a escala do capital cresce a tal ponto que intensifica a concorrência e coloca como lei a constante busca pela elevação da produtividade. Portanto, é por meio dessa técnica de extração de mais-valia relativa que ocorre, para Marx, a verdadeira universalização do capital.

Em nossa perspectiva, o argumento construído por Marx para descrever a passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho ao capital é a inspiração para a sugestão do conceito de subsunção algorítmica da viração. Com o desenvolvimento tecnológico imposto pela Grande Indústria, a máquina transforma os operários em meros apêndices de um poder autômato. O que ocorre com um algoritmo como o que encontramos nos apps que hoje proliferam é algo parecido: uma interface agradável esconde um algoritmo que atua como um poder alienado sobre os usuários e colaboradores, que se veem obrigados a se submeter a ele sob pena de não receberem os minguados recursos provenientes de seu trabalho. O que é possível observar é que parece existir nessa forma contemporânea de organização do trabalho, que por ora chamamos de subsunção algorítmica da viração, uma espécie de combinação da subsunção formal e real, elevando-as a um novo patamar de dominação. Por um lado, os trabalhadores continuam como proprietários de parte das condições de trabalho necessárias e atuam como “self employed” (a expressão é do próprio Marx). Por outro, estão sujeitos também ao cálculo imperioso da produtividade elevada imposta pelo desenvolvimento tecnológico. Essa especificidade histórica conforma, portanto, o regime de exploração e controle do trabalho no momento atual.

As forças produtivas são condicionadas pelas relações de produção e, à medida que a compressão dos limites do capitalismo se torna mais clara, resta cada vez mais evidência que a crise estrutural das relações de produção agrava o caráter destrutivo das forças produtivas. Foram as relações sociais de produção do capitalismo em crise que garantiram as condições de possibilidade para que as forças produtivas assumissem a forma crítica dos aplicativos (e não o contrário, como parece ser indicado por certas interpretações).

QUAL É A FORMA DESSA EXPLORAÇÃO? O ORNITORRINCO RELOADED

O diagnóstico do atual momento já é um tanto quanto conhecido. Na síntese de Ricardo Antunes, encontramos os principais elementos:

Em plena era do trabalho informacional que se expande no universo maquinal-digital, vem ocorrendo também um processo marcado pelo aumento do trabalho informal, presente na ampliação dos terceirizados, subcontratados, flexibilizados, em tempo parcial, intermitentes, teletrabalhadores, ampliando o universo do trabalho precarizado (Antunes, 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 91).

Precarização do trabalho, trabalho intermitente, subemprego, informalidade e desemprego. São esses os conceitos que aparecem quando alguém tenta dar conta da realidade do mundo do trabalho em decomposição que encontramos à nossa frente. Todavia, é necessário investir na compreensão por meio de quais caminhos a exploração do trabalho ainda se realiza, mesmo em um mundo cada vez mais anêmico de valor. Em adição, é preciso compreender o papel contraditório do desenvolvimento das forças produtivas que implicam a reprodução de uma dialética entre o formal e informal, entre o atrasado e o moderno.

Nesse sentido, parece ser importante retornar ao capítulo 19 d’O capital, onde Marx (2013)MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013. discute o salário por peça. Essa forma de remunerar o trabalho é uma maneira modificada do salário por tempo. Entretanto, é uma forma especial, pois ela carrega a capacidade de fazer parecer, à primeira vista, que o “preço desse trabalho não é determinado, como no salário por tempo, pela fração valor da força de trabalho/jornada de trabalho de dado número de horas, mas pela capacidade de produção do produtor” (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., p. 621). Marx (2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., p. 623) se empenha em demonstrar que o salário por peça continua sendo determinado pela média do tempo socialmente necessário: “o salário por peça, portanto, não é mais do que uma forma modificada do salário por tempo”.

Nesse formato, porém, há algumas especificidades. Por exemplo, Marx (2013)MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013. lembra que a qualidade do trabalho é controlada pelo produto entregue, que tem que possuir uma qualidade média para que se pague integralmente o preço de cada peça. Desse modo, uma vez que a remuneração do trabalho é feita por peça, tornam-se mais férteis os descontos salariais. Mais ainda, é por meio da imposição do salário por peça que o capitalista tem uma medida plenamente determinada para a intensidade do trabalho e, por consequência, se um determinado trabalhador carece da capacidade média de rendimento e, por isso, não consegue fornecer um mínimo determinado de trabalho diário, é dispensado – o que o leva a engrossar as fileiras do exército industrial de reserva e a rebaixar, ainda mais, os salários pagos. Marx continua lembrando que, nessa forma específica de remuneração, tanto a qualidade quanto a intensidade do trabalho são controladas pela própria forma-salário, tornando supérflua a parte da supervisão do trabalho. Nessa mesma direção, uma vez que os ganhos do trabalhador são percebidos de maneira imediata com a entrega das peças, “é natural que o interesse pessoal do trabalhador seja o de empregar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista a elevação do grau normal de intensidade” (2013, p. 624). Em consequência, o interesse que o trabalhador tem de ampliar seus ganhos parece ser mais efetivo do que o uso da coerção violenta do capataz. O autor continua e percebe que “é igualmente do interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho, pois assim aumenta seu salário diário ou semanal” (2013, p. 625), ampliando, portanto, a mais-valia apropriada pela burguesia por meio do mecanismo da mais-valia absoluta. Desta forma, ele (2013, p. 627) entende que “o salário por peça é a forma de salário mais adequada ao modo de produção capitalista”.

Não é exatamente o que esses aplicativos fazem? A dinâmica do trabalho sob a determinação dos apps implica a adoção do “salário por peça”, que, por sua vez, autoriza e legitima todos os processos descritos por Marx – agora, estando estes mediados por algoritmos complexos que intensificam a exploração. Por exemplo, Filgueiras e Antunes (2020)FILGUEIRAS, V. A.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 59-77. fazem um amplo levantamento sobre as condições de trabalho e exploração colocadas em prática pelas empresas-aplicativo que se valem dessa forma de remuneração do trabalho. Na pesquisa dos autores em Campinas, eles relatam que cerca de 70% dos entregadores de aplicativos só possuem essa ocupação. Um dos interlocutores do estudo relatou que trabalhou sete dias seguidos, ficou on-line por mais de 61h e recebeu apenas R$ 212,00. Os autores apresentam resultados de outras pesquisas, como a realizada pela Aliança Bike com os entregadores de aplicativos na cidade de São Paulo e Salvador. Em São Paulo, trabalham em média 9h24min por dia e recebem R$ 936,00 por mês. Se limitassem os ganhos a uma jornada legal de 44h, receberiam R$ 762,66. Em Salvador, um entregador recebe, em média, R$ 1.100,00 por mês, mas, se ele se restringisse a uma jornada de 44h, receberia apenas R$ 780,64. Citam também a pesquisa de Bombanati, Oliveira e Accorsi (2019 apudFilgueiras; Antunes, 2020FILGUEIRAS, V. A.; ANTUNES, R. Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 59-77.) para o Rio de Janeiro, onde os autores constataram que 77% dos motoristas de aplicativo relatam jornadas de trabalho com mais de 8h, sendo que cerca de 73% dirigem de cinco a sete dias por semana, e 57% contam apenas com o trabalho no aplicativo.

A despeito da estonteante jornada de trabalho, pode-se imaginar que esses trabalhadores, acossados pela permanente necessidade de se debaterem para sobreviver, estariam dispostos a esticar, ainda mais, a jornada que colocam para si mesmos, garantindo, de outro lado, a permanência dessas empresas-aplicativo. É tendo esse contexto em mente que devemos ler a afirmativa de Marx (2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., p. 624): “A exploração dos trabalhadores pelo capital se efetiva, aqui [na forma de remuneração do salário por peça], mediante a exploração do trabalhador pelo trabalhador”. Eis, portanto, a forma mais adequada à acumulação capitalista.

Como assevera Abílio (2020b), o desenvolvimento tecnológico e a degradação do trabalho são dois lados da mesma moeda capitalista. No atual estágio do capitalismo, talvez sejam as empresas-aplicativo uma das principais responsáveis, lembra Scholz (2016)SCHOLZ, T. Uberworked and underpaid: how workers are disrupting the digital economy. Cambridge: Polity, 2016., pela dissolução do emprego direto, criando, dessa maneira, um futuro de baixos salários.

O que acompanhamos sob a alcunha de uberização é, como já vimos, um desenvolvimento das formas propriamente capitalistas, agudizando a contradição central do capital. Quanto mais entregas forem feitas, mais os trabalhadores recebem e, por isso, estão dispostos a ampliar a jornada de trabalho. Mas a remuneração não depende apenas da força de vontade dos Ulisses precários na Odisseia da sobrevivência no capitalismo em crise. Depende, também, da concorrência entre eles. E uma vez que as dinâmicas tecnológicas de outros setores da economia não param de expelir trabalhadores para fora de seus circuitos produtivos, o resultado é a elevação do número dos que vão vender sua força de trabalho pelos aplicativos. Com o aumento da oferta de trabalhadores, o que ocorre é, também, a radical queda nas remunerações destes.

Há de ser destacado, além disso, que, no processo de valorização impulsionado pela racionalidade contraditória do capital, a busca pela elevação da produtividade imposta pela lei da concorrência implica a destruição dos postos de trabalho, gerando uma “população operária supérflua, que não pode se opor a que o capital lhe dite a sua lei” (Marx, 2013MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., p. 497). A consequência disso é que mais pessoas são obrigadas a se sujeitarem às determinações do capital com a aceitação de trabalhos cada vez mais precários. Como já foi dito, essa se tornou a condição dos trabalhos que ainda existem – e continuam sob a mira da elevação da produtividade. Duas referências podem dar a dimensão dessa “racionalidade irracional”: a empresa Uber tem investido massivamente na criação de um serviço de transporte com carros autômatos4 4 Ainda que essa seja a expectativa anunciada em canais de notícias de tecnologia, vale ressaltar que fica em aberto o modelo de gestão da oferta do serviço com carros autômatos. Até onde foi possível pesquisar, a própria empresa não esclarece como será ofertado o serviço caso essa tendência se confirme. . Em agosto de 2020 a empresa de entregas por aplicativo iFood, uma das principais do mercado brasileiro, recebeu autorização para a utilização de drones. Ainda em fase inicial, o drone faz dois percursos reduzidos, como um trajeto de 400 metros entre a praça de alimentação de um shopping e uma estrutura do iFood onde os entregadores esperam os pedidos. A pé, o trajeto leva em média 12min, mas com o drone deve durar apenas dois. Uma segunda rota de voo fará um trajeto de 2,5 quilômetros entre o centro de operações do aplicativo até um condomínio próximo. É esperado que o drone leve quatro minutos para concluir o percurso, o que hoje leva 10min. A lei do valor é implacável. Não há dúvidas que a produtividade é elevada com tais procedimentos técnicos. Ainda que, dado o modelo de funcionamento do aplicativo, os postos de trabalho possam continuar existindo, isto é, os entregadores parceiros possam continuar cadastrados no aplicativo, a oferta de atividade – pela qual, vale lembrar, são remunerados – será ainda mais escassa. Os efeitos disso no conjunto da sociedade ainda estão por serem sentidos, mas é inegável que há uma tendência na direção da automação de processos que hoje são executados por trabalhadores precários de aplicativo.

Assim, a mais-valia absoluta não é uma forma historicamente superada do aumento da mais-valia, afirma Blank (2011)BLANK, J. Para uma crítica radical do capital e das suas forças produtivas. Libertas (UFJF), Juiz de Fora, v. 11, n. 1, p. 1-25, 2011., mas volta a aparecer como uma maneira necessária de manter a anêmica produção de valor, resultando numa exploração cada vez mais brutal.

Chico de Oliveira (2003)OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., de maneira muito acertada, pensa sobre como as formas do trabalho na periferia do capitalismo, ou, mais especificamente, no ornitorrinco brasileiro, estariam se conformando como uma fusão da mais-valia absoluta e relativa. Segundo o autor:

na forma absoluta, o trabalho informal não produz mais do que uma reposição constante, por produto, do que seria o salário; e o capital usa o trabalhador somente quando necessita dele; na forma relativa, é o avanço da produtividade do trabalho nos setores hard da acumulação molecular digital que permite a utilização do trabalho informal (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., p. 136).

Marx (2022MARX, K. Capítulo VI (inédito). São Paulo: Boitempo, 2022., p.93) relaciona a “mais-valia absoluta como a expressão material da subsunção formal do trabalho ao capital” e, por outro lado, “a produção da mais-valia relativa pode ser considerada a subsunção real do trabalho ao capital”. Podemos pensar, portanto, que a subsunção algorítmica da viração se realiza por meio do uso dos aplicativos tecnológicos que se apropriam do trabalho precário em condições bem específicas. Ela é uma espécie de combinação, de fusão do que foi descrito com os nomes de subsunção formal e real.

Tal relação se constitui baseada na concepção de um trabalhador just-in-time, mobilizado on demand pelo capital por meio dos algoritmos para cumprir uma determinada função para uma empresa-aplicativo, condizendo com a análise de Chico de Oliveira (2003)OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. ao perceber que, diante do atual arranjo das forças produtivas do capital, os postos de trabalho já não podem ser fixos. Os contratos de trabalho, as regras do Welfare, os direitos trabalhistas se tornaram obstáculos à realização do valor, pois persistem em fazer dos salários um adiantamento e, portanto, um custo para o capital. Esse arranjo, destaca Chico, é presidido pela enorme produtividade do trabalho, alcançada, conforme já citado, pelo amplo desenvolvimento das forças produtivas:

Se o capital não podia igualar tempo de trabalho a tempo de produção pela existência de uma jornada de trabalho, e pelos direitos dos trabalhadores, então se suprime a jornada de trabalho e com ela os direitos dos trabalhadores, pois já não existe medida de tempo de trabalho sobre o qual se ergueram os direitos do Welfare [...]. No fundo, só a plena validade da mais-valia relativa, isto é, de uma altíssima produtividade do trabalho, é que permite ao capital eliminar a jornada de trabalho como mensuração do valor da força de trabalho, e com isso utilizar o trabalho abstrato dos trabalhadores ‘informais’ como fonte de produção de mais-valor. Este é o lado contemporâneo não-dualista da acumulação de capital na periferia, mas que começa a se projetar também no núcleo desenvolvido (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., p. 137).

O que as empresas-aplicativo fazem com seu panóptico algoritmo é, por fim, conseguir organizar e gerenciar a enorme massa dispersa de trabalhadores informais. Nos toques do celular ou na notificação da chamada de uma corrida estão os traços da subsunção algorítmica da viração. Subsunção não mais apenas formal ou real, mas total5 5 Oliveira (2003, p. 137-138) percebe a criação de um trabalho abstrato virtual: “O trabalho mais pesado, mais primitivo, é também lugar do trabalho abstrato virtual. Sua forma, uma fantasmagoria, um não-lugar, um não-tempo, que é igual a tempo total”. .

Como vimos, o desenvolvimento da força produtiva no capitalismo segue as determinações do movimento cego e contraditório do sujeito automático. Adorno (1986)ADORNO, T. Sociedade industrial ou capitalismo tardio. In: COHN, G. (org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986. p. 62-75. fazia questão de destacar – contra aqueles que acreditavam numa neutralidade tecnológica – que as forças produtivas e seu desenvolvimento estão sempre mediadas pelas relações de produção. Isso não significa acreditar numa mediação harmônica, como se houvesse sempre uma contemporaneidade complementar das relações de produção em relação às forças produtivas. Adorno é fiel ao princípio descrito na Dialética negativa: trata-se, sobretudo, de uma mediação negativa na qual não há reconciliação possível. As forças produtivas se opõem contraditoriamente às relações de produção, ao mesmo tempo que são mediadas por estas. Ora, é exatamente esse paradoxo que parece estar em jogo no atual momento: as forças produtivas desenvolvidas na forma de aplicativos de smartphone e de arquitetura de algoritmos se desenvolvem e se efetivam a partir da mediação das relações de produção. Estas passaram, depois de décadas de elevação da produtividade do trabalho como forma de efetivação da acumulação por meio da mais-valia relativa, por uma dissolução em sua forma que, agora, é reagregada com a “revolução molecular-digital” (Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.) das empresas-aplicativo. Talvez a expressão de Chico faça mais sentido hoje do que quando foi cunhada: o desenvolvimento tecnológico das forças produtivas como uma programação digital aboliu a forma molar da exploração e garantiu sua dispersão molecular, agregada apenas dentro do panóptico algorítmico.

É nesse sentido que devemos entender o trabalho precário mobilizado pelas empresas-aplicativos como a condição necessária para o trabalho que ainda resta aparecer na sociedade. A produção de uma população sobrante aparece, em Marx (2013)MARX, K. O Capital: crítica da economia política (Livro 1). São Paulo: Boitempo, 2013., como o resultado da elevação da produtividade, propiciada pelo uso de tecnologias na produção. Naquele momento, para ele, contudo, a situação de uma população supérflua aparecia como um excedente relativo, já que esse excedente poderia muito bem ser reabsorvido dependendo da “conjuntura”. Hoje o excedente populacional é absoluto: trata-se de uma parcela da população estruturalmente inempregável. Essa população supérflua é o resultado do uso capitalista da máquina e da automação. Ao mesmo tempo, a população sobrante é a condição para o aprofundamento do uso capitalista da tecnologia, uma vez que retroalimenta a possibilidade de alongar a jornada de trabalho, de ampliar a intensidade deste e de aprofundar as formas de controle e gestão do processo de trabalho – mesmo que temporariamente e de maneira parcial e limitada.

Poderíamos dizer, portanto, que o cenário que descrevemos é de um ornitorrinco reloaded. A fusão de mais-valia absoluta e relativa que envolve a atual forma de exploração da força de trabalho por meio dos apps se baseia na reconfiguração da combinação do arcaico e do moderno, do atrasado e do tecnológico, do informal e da economia de ponta. Como afirmam Zamora, Augustin e Souza (2021, p. 81), “com a uberização, pode-se dizer que o arcaico e o moderno não estão em diferentes ramos ou diferentes trabalhadores. O mesmo motorista de aplicativo apresenta essas duas faces”. As tecnologias que formam o panóptico algorítmico das plataformas digitais possuem o papel de catalisadoras das formas de informalização e a própria tecnologia como meio de efetivação. Ou seja, o desenvolvimento tecnológico em diferentes setores da produção cria uma mão de obra sobrante que é obrigada a se sujeitar a essas formas de trabalho precárias que, por sua vez, são mobilizadas sob demanda por uma complexa rede de algoritmos por meio da tecnologia. O desenvolvimento tecnológico, nesse sentido, é, simultaneamente, o que produz o trabalhador informal desprendido das relações trabalhistas formais e o meio de mobilização desses trabalhadores precários. Também é a tecnologia que promove a extensão da jornada de trabalho (seja ela na forma paga – quando o trabalhador “pega” um serviço pelo aplicativo, ou na forma não paga – enquanto o trabalhador espera um chamado pelo aplicativo).

O ornitorrinco reloaded é uma forma específica de organização da força de trabalho baseada na combinação da degradação do trabalho com tecnologias de ponta, como uma tentativa de manter rodando, mesmo que a duras custas, o processo de valorização do valor que se encontra em crise permanente.

Tal qual descrito por Oliveira (2003)OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., o ornitorrinco brasileiro passa por uma transformação. Se nosso pensador viu como o próprio desenvolvimento tecnológico6 6 Aqui é preciso qualificar melhor. Apesar de importante, a tecnologia não é a única responsável por essa degradação. Esse desdobramento só se faz possível na medida em que se acumulou ao longo de décadas diferentes modificações no mundo do trabalho que vão desde as mudanças nas legislações de regulação do trabalho, no papel do Estado, na constituição e disseminação da ideologia neoliberal, entre outros. capitalista propiciou a revolução molecular-digital e se sustentou em larga medida pela atividade informal, hoje o resultado desse processo transformou também a tecnologia e sua miríade de ramos tecnológicos (datificação, geolocalização, algoritmos etc.) em meios de mobilização do trabalho a partir de uma nova forma de exploração – fusão do mais-valor absoluto e relativo, trabalhador just-in-time – e de gerenciamento da atividade de trabalho – subsunção algorítmica da viração. O rebaixamento do valor da força de trabalho é resultado do próprio desenvolvimento tecnológico que produz uma população sobrante, como bem notou Marx, e, assim, recoloca o informal como critério básico da forma do trabalho, como afirmou Chico de Oliveira. Agora, como vimos, a tecnologia, que produziu o excedente populacional e obrigou à informalização, utiliza esse mesmo meio para a mobilização dos sobrantes em formas cada vez mais precárias.

Afirmar uma remodulação da forma da exploração tal qual sugerimos aqui significa reconhecer a constante precarização do trabalho como condição de manifestação do pouco trabalho que ainda resta na sociedade de crise em que vivemos. Mas isso não significa, como gostariam Antunes (2020)ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria 4.0. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 11-21. e Braga (2017)BRAGA, R. A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul Global. São Paulo: Boitempo, 2017., que o “precariado” resultante desse processo constitua uma nova identidade capaz de carregar uma nova consciência de classe em direção a uma transformação social. O que esperam os sociólogos é, ainda, um substituto para o trabalhador industrial que ocupou durante mais tempo do que o necessário as altas expectativas de transformação social dos marxistas. O que acontece com o precariado é que ele já não forma uma classe, tampouco pode ser organizado em torno da categoria “precário”, uma vez que a reprodução da vida material obriga a adoção do invólucro da mercadoria resultando em indivíduos aderentes a uma forma-social como “mônadas viracionistas”, debatendo-se para sobreviver. Esse nível de desagregação social é um dos resultados da revolução molecular-digital, mesmo que à época dos escritos de Chico de Oliveira ainda não estivesse completamente colocada sobre os próprios pés. A degradação do trabalho decorrente da crise é, também, a degradação de uma política de transformação social – sobretudo enquanto esta se vincular a forma social caduca do trabalho. Ainda que o Brasil tenha acompanhado greves selvagens dos entregadores de aplicativo ao longo da pandemia da COVID-19, é importante notar que essas lutas não acumulam num sentido de transformação do metabolismo e da organização da forma da subsunção algorítmica da viração (Neblina, 2022NEBLINA. Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro. São Paulo: Contrabando Editorial, 2022.).

A atualização do momento vigente do capital, seu momento de crise absoluta e interna, obriga a recarregar o ornitorrinco – ornitorrinco reloaded. Como Chico de Oliveira (2003)OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003. notou, esse processo também produziu uma certa perda de musculatura dos movimentos sociais e das disputas políticas transformadoras. Mais ainda, essa forma de mediação social ao estilo ornitorrinco, com o desenvolvimento da crise, torna-se o critério para todo o mundo, inclusive para os países de centro7 7 Descrevi este processo em A condição periférica (Canettieri, 2020) como um processo de “periferização do mundo” onde formas próprias da periferia se estendem por todo o mundo. .

Dessa forma, podemos conceber o papel que as forças produtivas adquirem hoje. Seu processo de desenvolvimento guarda referência apenas com o processo de autovalorização, numa relação contraditória e complexa. A inovação tecnológica está no fundamento da crise do capital pela dessubstancialização do valor. Ao mesmo tempo, a crise intensifica a inovação tecnológica, buscando ampliar a produtividade como forma de superar a crise. Mas, o próprio desenvolvimento tecnológico aprofunda ainda mais essa crise e, com isso, garante as determinações propriamente capitalistas da tecnologia, isto é, seu caráter como força produtiva (e destrutiva)8 8 Sobre isso, é preciso ter em mente a afirmação de Javier Blank (2011, p. 22): “As forças produtivas, uma das abstrações reais do capital, são essa forma histórica específica em que as capacidades humanas se desdobram numa potencialidade oculta e reprimida e numa realidade aparente na sua configuração material”. , de maneira que toda a sociabilidade constituída por essa forma contraditória se encontra numa espiral descendente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O quadro que esboçamos aqui parece, a cada dia que passa, se colocar como a tendência para onde caminha a sociedade. A crise do capital se desenvolve por suas contradições internas e, à medida que avança, implica a destruição do trabalho, significando a dissolução dessa forma social e historicamente determinada, sem, no entanto, haver nada para preencher esse vácuo. O processo descrito de decomposição9 9 Utilizamos o termo decomposição para diferenciar do uso recorrente de “desconstrução do mundo do trabalho”. Este carrega uma certa acepção de que o fenômeno é temporal: o que foi desconstruído pode ser construído novamente, o que vai direcionar a construção de alternativas e preencher o imaginário político, ainda marcado pelo significante do trabalho como condição última e ontológica. Dizer de uma decomposição, por outro lado, designa a impossibilidade de “reviver” o que foi decomposto, e, dessa maneira, em nossa perspectiva, parece abrir outras oportunidades para uma prática política liberta do cadáver do trabalho. do mundo do trabalho gera uma população sobrante e cria as formas de exploração mais intensas do pouco trabalho que ainda resta e, mesmo assim, está sob ameaça. O estado generalizado e permanente de insegurança laboral pressionado pelo desenvolvimento tecnológico força parte da população a aceitar – e até a desejar – a servidão precarizada e violenta desse tipo de trabalho.

Vimos como esse processo é, na verdade, a atualização de formas de reprodução material da vida que estiveram sempre inscritas nas práticas sociais da periferia. A crise do capital, portanto, generalizou as formas que, antes, eram singulares da periferia do capitalismo, levando-nos a crer que a forma-periferia é o futuro do capital (Canettieri, 2020CANETTIERI, T. A condição periférica. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.). Por isso sugerimos pensar um ornitorrinco reloaded, recuperando o seminal texto de Chico de Oliveira no qual o sociólogo descreve a sociedade brasileira como um ornitorrinco: um animal ovíparo com glândulas mamárias, onde o aparente “atrasado” está intrinsecamente conectado ao mais “avançado”. Desse modo, podemos perceber que as formas mais arcaicas de exploração – como um controle total do processo de trabalho, inclusive fora do horário de trabalho, ou a exploração pela remuneração por peça – atualizam a precariedade do trabalho constitutiva da periferia ao se valer de meios tecnológicos de ponta. De tal forma, a dialética entre o arcaico e o moderno ganha um novo sentido. A precariedade laboral informal (sem direitos, desregulamentada, intensa etc.) é a condição do desenvolvimento tecnológico, bem como o desenvolvimento tecnológico produz a precariedade laboral informal – ambos só podem se realizar por meio um do outro.

A partir dessa concepção, formulamos uma crítica do desenvolvimento tecnológico das forças produtivas do capital sem descolá-lo das relações sociais de produção. Dessa maneira, intentamos construir uma concepção crítica da tecnologia como meio que influencia diretamente a expansão e reprodução da precariedade e do qual, por outro lado, a precariedade atual precisa para se reproduzir.

Apesar da intensa produção bibliográfica sobre o assunto, ele ainda é muito recente. Aqui, construímos uma abordagem eminentemente influenciada por Marx, buscando demonstrar o que da obra do pensador alemão pode, ainda, ser relevante para a compreensão da sociedade.

Contudo há muito ainda por ser feito. É imprescindível que invistamos em investigações dos desdobramentos desse cenário. Em nossa perspectiva, é necessário compreender como tais transformações do mundo do trabalho repercutem no Estado e nas formas de regulação do trabalho e do capital, que, mesmo depois de rodadas de neoliberalização, não tornou possível sequer a gestão da barbárie (Menegat, 2019MENEGAT, M. A crítica do capitalismo em tempos de catástrofe: o giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.). Também é preciso entender os efeitos ocasionados por tal processo na esfera da política que, parece-nos, está cada vez mais dominada pelo ressentimento e pela violência – o que parece conduzir o cortejo dos integrados e apocalípticos em direção a um horizonte de expectativas rebaixado (Arantes, 2014). Como diz Chico, os oprimidos sabem do que se trata.

Há de se destacar aqui o que Oliveira (2005OLIVEIRA, F. Quem canta de novo L’Internationale?. In: SANTOS, B. de S. (org.). Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 79-114., p. 165) escreveu em outra ocasião, quando o pensador afirmou que “a precarização impulsionada pelo desmanche globalitário transformou-se numa espécie de movimento de unificação dos subalternos”. Depois de uma década e meia de tal escrito, parece que nosso autor não teve exatidão em sua análise. O cenário social é ainda mais fragmentado, marcado pela competição violenta e pela destruição de laços comunitários e de solidariedade. Ruy Braga (2015)BRAGA, R. A pulsão plebeia: trabalho, precariedade e rebeliões sociais. São Paulo: Editora Alameda, 2015. tem insistido em que o precariado se encontra inquieto. Entretanto, seria otimismo, a nosso ver infundado, acreditar que essa inquietação estaria vinculada necessariamente a um projeto de esquerda ou à construção da emancipação social. O cenário político é marcado por motins dispersos e violentos, mas sem insurgências que indiquem a construção de algo novo, exceto a contínua dissolução da forma de mediação social historicamente constituída. Para a compreensão e transformação do mundo em que nos encontramos, é preciso refletir sobre os desdobramentos políticos do ornitorrinco reloaded.

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    Explicarei, ao longo deste texto, o argumento kurziano sobre o limite interno e absoluto do capital em detalhes.
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    Seguimos aqui a definição de Srnicek (2016)SRNICEK, N. Platform Capitalism. Cambridge: Polity, 2016, que estabelece as plataformas como infraestruturas digitais que possibilitam a interação entre dois ou mais grupos configurando uma série de dispositivos que permitem a interação entre diferentes grupos.
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    Mesmo assim, vale ser ressaltado. O uso das estatísticas merece uma interpretação crítica. O professor Maurílio Botelho publicou recentemente um vídeo que analisa essa argumentação. Segundo ele, é importante notar as operações estatísticas que envolvem os números oficiais. Por exemplo, a taxa oficial de desemprego dos Estados Unidos é medida por uma variável que considera trabalhadores desempregados que procuraram emprego no último mês, enquanto ignora os chamados trabalhadores desencorajados (que já não procuram emprego) que estão marginalmente vinculadas à força de trabalho e empregados em meio período ou menos. Evidentemente, a diferença da medição é quase o dobro. Estatísticas alternativas do governo apresentam números bem diferentes, cerca de cinco vezes o número oficial. O vídeo em questão pode ser assistido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0B1KR6UWeIM
  • 4
    Ainda que essa seja a expectativa anunciada em canais de notícias de tecnologia, vale ressaltar que fica em aberto o modelo de gestão da oferta do serviço com carros autômatos. Até onde foi possível pesquisar, a própria empresa não esclarece como será ofertado o serviço caso essa tendência se confirme.
  • 5
    Oliveira (2003OLIVEIRA, F. Crítica da razão dualista: O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003., p. 137-138) percebe a criação de um trabalho abstrato virtual: “O trabalho mais pesado, mais primitivo, é também lugar do trabalho abstrato virtual. Sua forma, uma fantasmagoria, um não-lugar, um não-tempo, que é igual a tempo total”.
  • 6
    Aqui é preciso qualificar melhor. Apesar de importante, a tecnologia não é a única responsável por essa degradação. Esse desdobramento só se faz possível na medida em que se acumulou ao longo de décadas diferentes modificações no mundo do trabalho que vão desde as mudanças nas legislações de regulação do trabalho, no papel do Estado, na constituição e disseminação da ideologia neoliberal, entre outros.
  • 7
    Descrevi este processo em A condição periférica (Canettieri, 2020CANETTIERI, T. A condição periférica. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.) como um processo de “periferização do mundo” onde formas próprias da periferia se estendem por todo o mundo.
  • 8
    Sobre isso, é preciso ter em mente a afirmação de Javier Blank (2011BLANK, J. Para uma crítica radical do capital e das suas forças produtivas. Libertas (UFJF), Juiz de Fora, v. 11, n. 1, p. 1-25, 2011., p. 22): “As forças produtivas, uma das abstrações reais do capital, são essa forma histórica específica em que as capacidades humanas se desdobram numa potencialidade oculta e reprimida e numa realidade aparente na sua configuração material”.
  • 9
    Utilizamos o termo decomposição para diferenciar do uso recorrente de “desconstrução do mundo do trabalho”. Este carrega uma certa acepção de que o fenômeno é temporal: o que foi desconstruído pode ser construído novamente, o que vai direcionar a construção de alternativas e preencher o imaginário político, ainda marcado pelo significante do trabalho como condição última e ontológica. Dizer de uma decomposição, por outro lado, designa a impossibilidade de “reviver” o que foi decomposto, e, dessa maneira, em nossa perspectiva, parece abrir outras oportunidades para uma prática política liberta do cadáver do trabalho.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2021
  • Aceito
    30 Ago 2023
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