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RESPOSTAS JUDICIAIS À TERCEIRIZAÇÃO: debates e tendências recentes

JUDICIAL RESPONSES TO OUTSOURCING: recent debates and trends

LES RÉPONSES JUDICIAIRES À L’EXTERNALISATION: débats récents et tendances

Resumos

O artigo examina as respostas às demandas que envolvem a terceirização no cenário pós-reforma trabalhista. Os julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) – que rechaçou as alegações de inconstitucionalidade da legislação, declarou a licitude da terceirização e superou a distinção entre atividades empresariais acessórias e finalísticas – colocaram um ponto final no debate judicial? Utilizando os procedimentos metodológicos de levantamento jurisprudencial e análise documental, com mapeamento de ações julgadas no último biênio, examinamos os argumentos nos litígios, investigando acerca da modificação em padrões decisórios. A pesquisa conclui que as controvérsias sobre fraudes em terceirização permanecem em disputa na Justiça do Trabalho, submetida ao controle do Supremo, que apresenta posições contraditórias em relação a esse aspecto. Outro achado da pesquisa é que o requisito da “capacidade econômica” está ausente do debate. A emergência de questões fáticas, as fricções entre a Justiça do Trabalho e o Supremo e os argumentos sobre responsabilidade empresarial apontam para a persistência de disputas na arena judiciária mesmo após o novo marco regulatório.

Direito do trabalho; Justiça do Trabalho; reforma trabalhista; terceirização; Precarização


The article examines the responses to the demands involving outsourcing in the post-labor reform scenario. Have the judgments of the Federal Supreme Court (STF) – which rejected the allegations of unconstitutionality of the legislation, declared the lawfulness of outsourcing and overcame the distinction between peripheral and core business activities – put an end to the judicial debate? Using the methodological procedures of jurisprudential survey and documental analysis, with mapping of lawsuits judged in the last two years, we examined the arguments in the litigations, investigating about the modification in decision patterns. The research concludes that the controversies over fraud in outsourcing remain in dispute in the Labor Court, subject to the control of the Supreme Court, which presents contradictory positions in relation to this aspect. Another finding of the research is that the requirement of “economic capacity” is absent from the debate. The emergence of factual issues and the friction between the Labor Court and the STF point to the persistence of disputes in the judicial arena even after the new regulatory framework.

Labour Law; Labour Justice; Labor law reform; Outsourcing; Precariousness


L’article examine les réponses aux demandes légales impliquant l’externalisation dans le scénario post réforme du travail. Les arrêts du Tribunal fédéral – qui ont rejeté les griefs d’inconstitutionnalité, déclaré la légalité de l’externalisation et surmonté la distinction entre activités accessoires et finales – ont-ils mis fin au débat judiciaire? A partir d’une enquête et d’une analyse documentaire, avec une cartographie des actions de travail jugées au cours des deux dernières années, nous avons examiné les motifs des jugements, en enquêtant sur le changement des modèles de décision. La recherche conclut que les controverses sur la fraude en matière d’externalisation et de sous-traitance restent en litige devant le Tribunal du travail, mais sous le contrôle du Tribunal fédéral, qui a eu des positions contradictoires sur ce point. Une autre conclusion de la recherche est que l’exigence de «capacité économique» est absente du débat judiciaire. L’émergence de questions factuelles et les frictions entre le tribunal du travail et le STF indiquent la persistance des litiges dans l’arène judiciaire, même après le nouveau cadre réglementaire.

Droit du travail; Justice du travail; Réforme de la loi du travail; Externalisation; précarisation


INTRODUÇÃO

A terceirização de serviços e a intermediação de mão de obra são fenômenos produtivos que ingressaram no direito brasileiro no início da década de 1970, no apogeu da ditadura empresarial-militar, de modo circunscrito à descentralização de atividades acessórias na Administração Pública e a serviços privados especializados e temporários mediante contratação pela via de empresas de trabalho temporário.

Tendo como regra a bilateralidade das relações contratuais e a correspondência entre a relação fática de emprego com a forma jurídica do contrato de trabalho, as instituições estatais encarregadas de fazer cumprir a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), ao serem chamadas a definir quem era o titular do contrato de trabalho em situações de desvirtuamento da CLT ou opacidade do empregador real, fixaram com clareza que o vínculo se estabelece entre uma pessoa física e o ente (“empresa”) que recebe e dirige a prestação de serviços em seu favor.

Sob a perspectiva da dogmática jurídica, não havia espaço para se admitir quaisquer terceirizações de trabalho interno ou externo à empresa, fossem elas de atividades fim ou meio. Em estudos anteriores (Carelli, 2013CARELLI, Rodrigo de Lacerda. A Terceirização no Século XXI. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília, v. 79, out.-dez., 2013, p. 232-244., 2014bCARELLI, Rodrigo de Lacerda. O Ativismo Judicial do Supremo Tribunal Federal e o Debate sobre a Terceirização. Revista do Tribunal Superior do Trabalho. v. 80, nº 3, jul/set 2014b, p.239-256.; Silva, 2016SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da. A Constitucionalização do Direito e a Terceirização: a incompatibilidade da admissão da terceirização do trabalho humano à luz da Constituição de 1988. In: TEODORO, Maria Cecília et.al.. (Org.). Direito Material e Processual do Trabalho. 1ed.São Paulo: LTr, 2016, p. 15-25., 2018SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da. TERCEIRIZAÇÃO E REFORMA TRABALHISTA NO BRASIL: o debate nas arenas jurisdicionais. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL SOBRE TERCEIRIZAÇÃO LABORAL. Anais [...] Buenos Aires: [S.n.], 2018.) afirmamos claramente a distinção entre (a) terceirização de serviços, (b) triangulação de trabalho temporário especializado, (c) intermediação de mão de obra e (d) terceirização de trabalho. Consoante as regras legais, admitia-se a terceirização de serviços exclusivamente nas atividades acessórias da administração pública, por descentralização e execução indireta (Decreto-Lei nº 200 de 1967) ou vigilância (Lei nº 7.132/84) e a triangulação de trabalho especializado, de modo temporário e com registro e controle ministerial no setor privado (Lei nº 6.019/1974), inexistindo autorização para a marchandage consistente nas práticas empresariais ilícitas de intermediação de mão de obra e de terceirização do trabalho.

No contexto de reconstitucionalização do país e de construção do estado de direito, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) pacificou o entendimento de que diante das práticas empresariais de terceirização de trabalho, a consequência do descumprimento da lei conduzia à declaração do vínculo empregatício, como concretização da bilateralidade prevista na lei geral aplicável (arts. 2º 3º, 442, CLT), excepcionando apenas os casos autorizados nas leis especiais (Súmula 256 TST). Noemia Porto (2013)PORTO, Noêmia. O trabalho como categoria constitucional de inclusão. São Paulo: LTr, 2013. traça uma compreensão de tal jurisprudência como exemplo de uma hermenêutica decisória fundada no “princípio da legalidade estrita”, já que o contrato de trabalho firmado por empresa terceirizada não poderia subsistir, à míngua de lei que admitisse tal possibilidade. Segundo o diagnóstico da autora, ao invocar o contrato-realidade e no contexto dos princípios jurídicos a solução adotada pelo TST, pelo estabelecimento do vínculo de forma direta com a tomadora de serviços, evitava a frustração das conquistas da legislação do trabalho, o comprometimento da liberdade do trabalho e o desequilíbrio da ordem econômica instituída com a integração do trabalhador na vida da empresa (Porto, 2013PORTO, Noêmia. O trabalho como categoria constitucional de inclusão. São Paulo: LTr, 2013.).

Contudo, em conjuntura de hegemonia de ideias políticas liberais e do discurso empresarial de competitividade econômica e modernização produtiva, o primeiro giro hermenêutico radical promovido por um tribunal superior brasileiro conduziria ao início do processo de desconstrução do padrão bilateral da relação de emprego em nosso país.1 1 Referimo-nos à substituição do verbete contido no Enunciado 256 pelo item III da Súmula 331 do TST em 1993, que permitiu a prestação de serviços na atividade-meio, em serviços de asseio e conservação e vigilância, além de criar a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços. Seduzidas pelo argumento de que o Direito do Trabalho deve se adaptar às novas práticas – ilícitas – do mercado decorrentes da globalização e da reestruturação produtiva e pela ideologia da flexibilização, as cortes nacionais assumiram o papel de promover a reforma trabalhista, antecipando-se ao legislador.

O TST foi o primeiro impulsionador do processo de flexibilização do Direito do Trabalho e da reforma trabalhista (Silva, 2008SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da. Relações Coletivas de Trabalho: configurações institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008.), como demonstrado em estudo anterior sobre os processos de reinterpretação, mutação e redirecionamento das normas e instituições do direito coletivo e sindical do trabalho em conjunturas políticas neoliberais. Contudo, mudanças constitucionais e culturais, com reflexos institucionais e geracionais ocorridos entre 2004 e 2014, converteram o órgão de cúpula da Justiça do Trabalho em uma corte permeada por decisões consentâneas com a principiologia do direito constitucional do trabalho. Em contrapartida, o Supremo Tribunal Federal (STF) assume o protagonismo das reformas trabalhistas na nova onda ultraconservadora, promovendo uma mutação no sentido da própria constituição do trabalho, sendo considerado como “artífice central” do longo processo de reforma (Carelli, 2014a; Coutinho, 2021COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Justiça Política do Capital. A desconstrução do Direito do Trabalho, por meio de decisões judiciais. São Paulo: TirantloBlanch, 2021.; Cardoso, 2021CARDOSO, Adalberto. Prefácio. In: DUTRA, Renata; MACHADO, Sidnei (Orgs.) O Supremo e a Reforma Trabalhista: a construção jurisprudencial da Reforma Trabalhista de 2017 pelo Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021, p. 13-21.), na forma de “persona do capital” (Coutinho, 2021COUTINHO, Grijalbo Fernandes. Justiça Política do Capital. A desconstrução do Direito do Trabalho, por meio de decisões judiciais. São Paulo: TirantloBlanch, 2021.), em face da inflexão da jurisprudência que pavimenta o caminho para a reforma de 2017 e cria uma “uma forte tensão com o sentido e o projeto da Constituição de 1988” (Dutra e Machado, 2021DUTRA, Renata; MACHADO, Sidnei (Orgs.) O Supremo e a Reforma Trabalhista: a construção jurisprudencial da Reforma Trabalhista de 2017 pelo Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021., p.27).

Especificamente quanto à terceirização, o Supremo transformou-se em uma arena de reconfiguração do Direito do Trabalho (Artur e Grillo, 2020ARTUR, Karen; GRILLO, Sayonara. Terceirização e arenas de reconfiguração do Direito do Trabalho no Brasil. REI – Revista Estudos Institucionais [S.l.], v. 6, n. 3, p. 1184-1213, dez. 2020. ISSN 2447-5467. Disponível em: <https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/542>. doi:https://doi.org/10.21783/rei.v6i3.542. Acesso em: 28.06. 2021.
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), na qual a racionalidade econômica de naturalização das relações contratuais e do livre mercado prevalece sobre os posicionamentos que buscam valorar o trabalho e a livre iniciativa para enfrentar as desigualdades produzidas pela terceirização indiscriminada. Nesta segunda década do século XXI, é consenso a existência de um novo marco regulador da terceirização, decorrente não só da aprovação das Leis nº 13.429 e nº 13.467/2017, como também da declaração da constitucionalidade da terceirização em atividades finalísticas pelo Supremo Tribunal Federal. A legitimação da ideia da inexorabilidade da terceirização trazida pelos votos vencedores no Supremo reforça os sentidos precarizantes da reforma trabalhista, evidencia mais insegurança e, como afirmam Karen Artur e Sayonara Grillo, por primar pela redução de custos, reforça as desigualdades no trabalho e aprofundar as características de um mercado flexível e desregulado, tais direcionamentos jurisprudenciais e legais “devem ser vistos como ilegítimos por romper acordos sociais, fomentar a exploração e ignorar a voz dos afetados” (Artur; Grillo, 2020ARTUR, Karen; GRILLO, Sayonara. Terceirização e arenas de reconfiguração do Direito do Trabalho no Brasil. REI – Revista Estudos Institucionais [S.l.], v. 6, n. 3, p. 1184-1213, dez. 2020. ISSN 2447-5467. Disponível em: <https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/542>. doi:https://doi.org/10.21783/rei.v6i3.542. Acesso em: 28.06. 2021.
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, p. 1207-1208).

O presente artigo tem como objetivo analisar as respostas judiciais às demandas envolvendo a terceirização de serviços a partir da superação da distinção entre atividades acessórias e finalísticas (meio/fim) por conta do novo marco regulatório. Para tanto realizamos um mapeamento dos argumentos, discussões, polêmicas e questões que afloram no cenário jurídico brasileiro desde a alteração do marco com o objetivo de verificar a ocorrência de novos padrões decisórios ou investigar as tendências jurisprudenciais para o enfoque das controvérsias geradas pela desigualdade e pela precarização do trabalho terceirizado após a superação dos parâmetros normativos e jurisprudenciais construídos a partir da Súmula 331 do TST. O artigo está estruturado em três seções. Na primeira, apresentamos o desenvolvimento do debate sobre a terceirização no Direito do Trabalho e na jurisprudência, com destaque para o duplo papel assumido pela Súmula 331, ora como comporta aberta para a terceirização de atividades acessórias, ora como dique de contenção contra a terceirização em atividades finalísticas. Na segunda parte, estabelece-se o quadro legal a partir das reformas feitas pelo Legislativo e pelo Supremo Tribunal Federal sobre a prestação de serviços a terceiros. A terceira e última seção se volta para o debate atual na arena judicial e examina a ocorrência de modificação nos entendimentos jurisprudenciais consolidados.

A TERCEIRIZAÇÃO NO DIREITO DO TRABALHO: DEBATES PRECEDENTES

Como destacamos, em 1993 o TST deu um giro hermenêutico ao estabelecer a Súmula 331, que não somente consolidou a jurisprudência, como também criou institutos e padrões decisórios ao permitir a terceirização em atividades-meio ou serviços especializados. Tal decisão foi objeto de múltiplas compreensões e abriu as portas para a terceirização do trabalho no país. Como estudos sociológicos demonstram, na década de 1990 os setores empresariais foram profícuos em infringir os estatutos legislativos. A recusa empresarial ao cumprimento dos direitos trabalhistas assegurados pela Constituição deu ensejo ao crescimento exponencial de processos individuais trabalhistas, fenômeno denominado por Adalberto Cardoso como judicialização das relações de classe ou flexibilização no grito, a frio (Cardoso, 2003). A “relação laboral fragmentada” (Redinha, 1995REDINHA, Maria Regina. A relação laboral fragmentada: estudo sobre o trabalho temporário. Coimbra: Coimbra Ed., 1995.) se espraiou no mercado de trabalho brasileiro que, além da dualidade pela constitutiva pela alta e permanente informalidade, passaria a conviver com estratégias empresariais voltadas a testar os limites da contratualidade estabelecida (Artur, 2007ARTUR, Karen. O TST frente à terceirização. São Carlos: EdufsCar/Fapesp, 2007.), que contribui para o crescimento de zonas cinzentas do assalariamento (Carleial; Ferreira, 2017CARLEIAL, Liana Maria da Frota, FERREIRA, Cristiano Vinicius. Le Brésil externalisé: État, marché du travail et inégalités. In:AZAIS, Christian; CARLEIAL, Liana (Orgs.). La «zone grise» du travail.Dynamiques d’emploi et négociation ou Sud et au Nord. Bruxelles: P.I.E. Peter Lang, 2017, p. 41-62.; Silva, 2017SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da. Droit du travail et institution de (nouvelles) inégalités dans le Brésil contemporain. In:AZAIS, Christian; CARLEIAL, Liana (Orgs.). La «zone grise» du travail.Dynamiques d’emploi et négociation ou Sud et au Nord. Bruxelles: P.I.E. Peter Lang, 2017, p. 25-40.).

A Súmula 331 do TST pode ser compreendida tanto como expressão da atividade de reconstrução de concepções contratuais (Artur, 2007ARTUR, Karen. O TST frente à terceirização. São Carlos: EdufsCar/Fapesp, 2007.) como um marco no processo de flexibilização laboral (Silva, 2008SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da. Relações Coletivas de Trabalho: configurações institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo: LTr, 2008.), por ter instaurado uma dicotomia no conceito legal de não eventualidade até então inexistente,2 2 A dicotomia serviços essenciais (principais, vinculados à consecução dos objetivos empresariais) e serviços de apoio, segundo a professora Carmen Camino, constitui-se em “leitura flexível do art 3º da CLT”, por oposição ao “conceito ortodoxo de não-eventualidade”, que abrange tantos serviços naturais e essenciais ao empreendimento, quanto os de apoio, não essenciais, porém rotineiros e necessários para que se atinja a finalidade econômica pretendida (2004, p.236). e, por meio de seu verbete III, ter cindido atividades fins e atividades meio, mecanismo pelo qual tornaram-se improcedentes as demandas de trabalhadores não especializados por vínculo empregatício, que até então eram consideradas procedentes no marco da Súmula anterior.

Como escrevemos em um tempo no qual a defesa da Súmula 331 se tornou um senso comum na prática jurídica de resistência, para não incidir em anacronismo na reconstrução histórica, é importante retomar as balizas do debate da época de sua aprovação em 1993, ocasião em que o “TST consentiu a terceirização em hipótese não prevista em lei, a pretexto de que se justificaria, de lege ferenda”,3 3 A expressão latina de lege ferenda reconhece a inovação de prática reconhecida antes de a lei estar em vigor, que precede o processo legislativo (de lege ferenda, sobre lei a ser criada, durante o processo de elaboração da lei e aplicada antes mesmo da lei estar em vigor) e se opõe às decisões de lege lata, com base em lei preexistente. No léxico da dogmática jurídica, diferencia-se entre a decisão que interpreta a lei (Sum.256/TST) e a que antecipa a lei (Sum. 331 item III/TST). em atenção a uma “insistente demanda de racionalidade empresarial” (Carvalho e Corrêa, 2014CARVALHO, Augusto César Leite de; CORRÊA, Lelio Bentes. Terceirização no âmbito da empresa privada. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 80, nº 3, jul/set 2014, p.36-57., p. 43). A separação entre atividade finalística e acessória consistiu em uma atividade decisionista de criação judicial em prol da flexibilização do direito do trabalho para reconhecer o “fato consumado da subcontratação indiscriminada” principalmente no setor público (Camino, 2004CAMINO, Carmen. Direito Individual do Trabalho. 4ª ed. Porto Alegre: Síntese, 2004., p. 237).

O Direito não é uma mera variável dependente, resultante de relações econômicas, mas prescreve conteúdos, imprime direções e atua sobre a realidade. Em um primeiro momento, a súmula estimulou a terceirização das atividades especializadas, na lógica da descentralização e horizontalização típicas do Toyotismo. Em um segundo momento, a redução de custos salariais pela subtração de contingentes de trabalhadores das categorias profissionais com melhores acordos e convenções coletivas foi um estímulo para que a terceirização se tornasse uma prática corrente de contratação em todos os setores econômicos, em atividades acessórias, ainda que não especializadas.

As práticas ilícitas se normalizaram no léxico do mercado e do direito brasileiro. Como o processo de esquecimento das normas e da linhagem dos precedentes corrobora para a naturalização das exceções e reconstrução da gramática decisória no tempo congelado do neoliberalismo (Ost, 2005OST, François. O tempo do direito. Bauru: Edusc, 2005.), o resgate da historicidade das formas jurídicas é necessário para situar as origens de um processo que desloca o polo empregador para a “empresa terceirizada” e converte a empresa principal e empregadora real em “tomadora de serviços”. Na dinâmica econômica de competição capitalista, o avanço da terceirização, na expressão de Marcio Pochmann, “sobretudo de forma desregulada”, reforçou o movimento de produção e reprodução da desigualdade e rebaixamento das condições laborais (Pochmann, 2014, p. 217). A permissão para terceirização em atividades meio em 1993 abriu as portas para o longo processo de ampliação e espraiamento da subcontratação, intrínseca ao modo de produção toyotista ou pós-fordista. A “rarefação de direitos” é a síntese da terceirização dos últimos trinta anos: um arranjo jurídico em que direitos e garantias, individuais e coletivas, são subtraídas dos trabalhadores ainda que com a preservação da relação de emprego (Delgado e Amorim, 2014DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder. Os limites constitucionais da terceirização. São Paulo: LTr, 2014.). As décadas que se seguiram foram de ampla progressão da terceirização para atividades inerentes ao centro dos negócios das empresas, em franca afronta à própria súmula liberalizante, inclusive em sua forma de mera intermediação de mão de obra subordinada e permanente (Carelli, 2013CARELLI, Rodrigo de Lacerda. A Terceirização no Século XXI. In: Revista do Tribunal Superior do Trabalho. Brasília, v. 79, out.-dez., 2013, p. 232-244.).

O QUADRO NORMATIVO ATUAL A PARTIR DAS REFORMAS TRABALHISTAS

Desde o ano de 1998, o Presidente da República Fernando Henrique Cardoso apresentou ao Congresso Nacional, com pedido de urgência, projeto de lei4 4 Projeto de Lei nº 4.302/1998 que legalizava a terceirização, inclusive na chamada atividade-fim. Em 2003, o Presidente da República Lula da Silva requereu a retirada do projeto apresentado pelo governo anterior, perdendo assim força em seu trâmite. Entretanto, a carga voltou já no ano seguinte pela apresentação de novo projeto de lei5 5 Projeto de Lei nº 4.330/2004 que pretendia a legalização da terceirização em todas as atividades empresariais, tendo, no entanto, encontrado muita resistência para aprovação no Congresso Nacional.

Bloqueada a via legislativa, em surpreendente e atípica decisão, o Supremo Tribunal Federal no ano de 2014 decidiu processar recurso6 6 Agravo Regimental ARE 713.211, posteriormente reunido com o RE 958.252. que questionava condenação de empresa por terceirizar sua atividade-fim, dando-lhe caráter de repercussão geral (Carelli, 2014a). A partir daí, o STF passou a ser o fórum de discussão da questão, promovendo o debate da questão e engajando os interessados por meio figura do amicuscuriae. Com a derrubada da presidenta eleita em 2016, alterou-se completamente a relação de forças no Congresso Nacional, que passou a atuar ao lado do STF na alteração do marco normativo, resultando na aprovação do projeto de 1998 citado acima (Brasil, 2017),7 7 Lei nº 13.429/2017 bem mais extremo e sem previsão de salvaguardas em comparação com o projeto de 2004, que havia passado por ampla negociação em período político favorável. Posteriormente, esses novos dispositivos legais foram complementados por normas inseridas na chamada lei da reforma trabalhista.8 8 Lei nº 13.467/2017

As modificações legais foram introduzidas na Lei nº 6.019, de 1974 (Brasil, 1974), que tratava originalmente somente de empresas de trabalho temporário. Atualmente, essa lei se divide em dois eixos: o fornecimento de mão de obra temporária e a prestação de serviços a terceiros. O primeiro eixo trata de mera intermediação de mão de obra, prevista para casos de necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou de demanda complementar de serviços, e o segundo é conceituado como a transferência pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive a sua atividade principal, que pode ser realizada nas dependências da contratante ou em lugar convencionado no contrato. Para esse segundo modelo, a lei basicamente traz dois requisitos: autonomia na prestação de serviços9 9 Art. 4º-A, § 1º, Lei nº 6.019/1974 e capacidade econômica compatível (Brasil, 1974).10 10 Art. 4º-A, Lei nº 6.019/1974

O quadro normativo, assim, permanece com a distinção entre fornecimento de trabalho e prestação de serviços, sendo o primeiro fenômeno restrito ao trabalho temporário e sujeito a seus requisitos específicos, como o prazo máximo determinado. A falta de autonomia na prestação de serviços, também indicada pela incapacidade econômica, identificaria então o processo como uma mera intermediação de mão de obra permanente, ainda ilícita no ordenamento jurídico.

As gerações de juristas formadas sob a diretriz da Súmula 331 se formaram no binômio “terceirizações legais x ilegais”. Não há nesta exegese uma diferenciação rigorosa entre o que são as relações trilateriais de terceirização de serviço e as relações triangulares de intermediação de mão de obra. Acredita-se que tal olhar possa dificultar o necessário afastamento analítico para distinguir as realidades diferenciadas que a Súmula 331 insiste em denominar como terceirização, ainda que ilícitas. A utilização de pessoal empregado por empresas contratadas como se empregado da tomadora de serviço fosse insere-se no conceito de subcontratação e se constitui no fenômeno sociológico da terceirização laboral (Basualdo; Esponda; Morales, 2014). Contudo, nos termos da dicção da atual lei brasileira, como dissemos, isso não é terceirização de serviços, motivo pelo qual as relações entre as empresas contratante e contratada, a rigor, não poderiam gerar consequências jurídicas para fins de tornar legal o que é fraude à relação de emprego. Isso poderia gerar um paradoxo e poderia manter em vigor parte da Súmula 331.

No entanto, o STF deu uma guinada radical em 2018 ao desconstruir a baliza hermenêutica contida na jurisprudência consolidada pelo TST e afirmar a licitude da “terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.11 11 Brasil, STF, RE 958252, Tema 725. Outra tese aprovada pelo STF foi:

  1. É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada. 2. Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada; e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento das normas trabalhistas, bem como por obrigações previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993.

Após essas decisões, a suprema corte voltou a julgar a questão, entendendo como constitucional a nova legislação sobre a terceirização.12 12 ADPF 324, ADIs 5685, 5686, 5687, 5695 e 5735

As teses fixadas, por demais amplas, abrem possibilidades de discussão muito além do disposto na legislação. Assim, na correlação de forças desde 2014, o quadro normativo da terceirização foi reformulado pelo Poder Legislativo e pelo Judiciário, o que contribuiu para desorganizar ainda mais o mercado de trabalho, crescendo uma zona cinzenta de incertezas e inseguranças. É esse marco regulatório ainda obscuro e disputado que serve de base para o atual debate na arena judicial.

O DEBATE NA ARENA JUDICIAL: DIÁLOGOS E TENDÊNCIAS

Do ponto de vista sociológico, o marco regulador cria um ambiente propício para a ocorrência de fraudes, pulverização dos vínculos contratuais, “pejotização” e rebaixamento das condições de trabalho (Druck; Dutra; Silva, 2019). Do ponto de vista jurídico, estabelece um marco regulador para que a atividade jurisdicional retome sua atividade exegética dos novos arranjos legais e contratuais e aprecie as práticas de subcontratação em demandas trazidas pelos titulares da energia humana de trabalho despendida em prol de empreendimentos principais. A partir do levantamento de ações civis públicas e reclamações trabalhistas propostas e de acórdãos publicados entre 2018 e 2020, examinamos inúmeras modificações nos entendimentos jurisprudenciais consolidados, com a superação da dicotomia meio e fim nos julgamentos trabalhistas. A simples atuação de empregado em atividade finalística da empresa principal não se configura mais como uma presunção em favor do vínculo de emprego. Diante da vinculação dos magistrados aos precedentes do Supremo Tribunal Federal, os julgamentos das pretensões formuladas pelos trabalhadores, sindicatos e Ministério Público do Trabalho em casos de terceirização, bem como na responsabilização das empresas e dos tomadores de serviços tornaram-se mais complexas, menos repetitivas, com necessidade de verificação das provas no processo.

O levantamento das decisões trabalhistas foi realizado no site do Tribunal Superior do Trabalho, selecionando nos “documentos do TST” a opção “acórdãos”. No campo “órgão judicante” utilizamos os filtros “incluir todas as turmas” e “direito do trabalho”, com a pesquisa das palavras-chave “terceirização atividade fim” e exclusão do termo “responsabilidade”. Do universo resultante, delimitamos a pesquisa qualitativa a partir da catalogação de acórdãos representativos, considerando todas as oito turmas do TS e realizamos o estudo de decisões relatadas por todos os ministros e convocados que compunham aquela corte.

Encontramos múltiplas decisões que nos permitem afirmar que a Justiça do Trabalho prossegue reconhecendo o vínculo de emprego diretamente com a empresa principal em casos de terceirização quando se mantém a relação direta de subordinação, habitualidade e onerosidade com a tomadora de serviços.

Entretanto, um elemento novo é agregado: as decisões com repercussão geral e efeito vinculante deslocam para o STF o controle direto de julgamentos realizados em diversas instâncias da Justiça do Trabalho por meio de Reclamações Constitucionais. Assim, as decisões da Justiça do Trabalho que reconhecem o vínculo empregatício na terceirização passam a sofrer revisão quase imediata do STF, formando-se um tipo de supervisão em tempo real da atuação jurisdicional trabalhista.

Pesquisa empírica sobre o efeito vinculante das decisões do Supremo perante os demais órgãos do Poder Judiciário demonstra como o próprio STF admite que os magistrados possam realizar “distinções e deixar de aplicar esses precedentes a determinados casos” (Maués, 2016MAUÉS, Antonio Moreira. O efeito vinculante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: análise das reclamações constitucionais n. 11.000 a 13.000. Revista Direito GV, São Paulo, v. 12 n. 2, p. 441-460, maio/ago. 2016., p.443). Por outro lado, a análise das reclamações feita pelo autor em torno dos limites da responsabilidade da Administração Pública na terceirização indica que cada ministro interpreta de modo particular os acórdãos, as súmulas e as teses de repercussão geral do STF, corroborando para a ampliação do dissenso. Assim como ocorreu nesse caso, é simplório supor que as decisões vinculantes do STF esgotem a controvérsia sobre os limites da terceirização. Ainda que o Brasil tenha adotado em 2015 um sistema de observância de precedentes, os espaços dos possíveis para a atuação da Justiça do Trabalho não decorrem somente das novas regras legais e da interpretação dos standards decisórios sumulados (overruling), mas principalmente pela consistência das distinções realizadas (distinguishing) e do estudo da ratiodecidendi das decisões da Corte.

Nos dois últimos anos, inúmeras empresas ingressaram no STF com reclamações contra turmas e magistrados da Justiça do Trabalho que declararam vínculo direto de trabalhador com empresa principal, sob argumento de violação aos paradigmas adotados no RE 958.252 (Tema 725 de repercussão geral) e na ADPF 324.

Selecionamos, para ilustrar, dois casos em que as respostas da Corte foram distintas.

Em um primeiro caso, o STF não considerou válida a distinção entre intermediação de mão de obra e terceirização de serviços para diferenciar a modalidade de subcontratação no setor financeiro em caso envolvendo correspondentes bancários e crédito consignado oferecidos por Banco à população, por meio de uma Eireli de análise cadastral, e reconhecer o vínculo de emprego direto com a empresa principal, sob o argumento de violação à decisão da corte que reconheceu como lícita toda e qualquer forma de terceirização ou contratação entre empresas.13 13 Decisão monocrática não recorrida, a trabalhadora estava desassistida por advogado no STF (Brasil, STF, Reclamação nº 33936). A Turma também anulou acórdão do TST que reconhecera o vínculo de emprego diretamente com banco diante da ilicitude da terceirização dos serviços de auxiliar de operações de valores intermediados por transportadora de valores (Brasil, STF, Reclamação nº 36.072-MC/MG, Relator o Ministro Alexandre de Moraes, decisão monocrática, DJe 20.9.2019). O vínculo de emprego direto com a empresa principal fora reconhecido pela Justiça do Trabalho em 2018 por estar em dissonância com os parâmetros legais fixados na Lei nº 14.029/2017, que diferencia os contratos de prestação de serviços terceirizados das intermediações de mão de obra por meio do trabalho temporário. O caso demonstra uma validação de uma quarteirização clara, na medida em que a empresa terceirizada é uma pessoa individual (Eireli) que repassou a atividade laboral para a empregada, subtraindo a trabalhadora dos direitos legais e convencionais da categoria bancária.

Por outro lado, em outro caso o STF entendeu que a Justiça do Trabalho pode declarar o vínculo direto com a empresa principal quando há fraude por mera intermediação de mão de obra. É o que ocorre quando empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico buscam burlar os direitos do empregado ao contratá-lo por empresa do mesmo grupo. Em recente decisão colegiada, a 1ª Turma do STF negou reclamação envolvendo as empresas Telemar Norte Leste e Telemont Engenharia de Telecomunicações, para manter decisão do TRT-17 que declarou ilícita terceirização de mão de obra, diante da fraude na contratação, em razão da existência de intermediação de mão de obra e prestação de serviços com subordinação jurídica. O precedente é importante pois sinaliza a correção do reconhecimento do vínculo direto com empresas principais, mesmo que nos setores de energia elétrica e de telecomunicações14 14 Leis nº 8.897/95 e nº 9.472/97 , para reconhecer a equiparação salarial em favor do empregado terceirizado contratado. Com fundamento no contexto fático, com o conjunto probatório sinalizando a ocorrência de fraude, entendeu-se que não há que se falar em ofensa às decisões do STF. Vale relembrar que o caso é a expressão de fenômeno de “filialização”, neologismo utilizado para descrever a fraude com a aparente descentralização no grupo econômico, com a criação de filiais ou empresas às quais são delegadas atividades menos lucrativas ou utilizadas para registrar empregados com regimes convencionais ou normativos desqualificados.15 15 STF, Reclamação 39.466, relator ministro Roberto Barroso. Requerente Telemont Engenharia de Telecomunicações. Terceiros interessados: Telemar Norte Leste S/A e Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região. Agravo interno julgado pela Primeira Turma na sessão virtual de 2.10.2020 a 9.10.2020.

Assim, percebe-se que ao invés de encerrar a questão, as decisões do STF abriram um diálogo entre onze ministros e milhares de órgãos judiciários trabalhistas em todo o país em relação à possibilidade da declaração de fraude pela mera intermediação de mão de obra, estando a questão ainda em disputa.

Além disso, verificou-se a existência de milhares de ações judiciais individuais nas quais a insolvência das empresas prestadoras de serviço se evidencia, e as execuções das condenações judiciais por inadimplemento de verbas como salários, FGTS, horas extras, férias, verbas resilitórias etc, são redirecionadas para a empresa principal contratante a quem compete pagar as quantias devidas aos trabalhadores depois de longo tempo e processo. Apesar disto, constatou-se que, mesmo sendo requisito expresso no novo regramento, a ausência de capacidade econômica não é manejada em favor dos trabalhadores para declarar a ilegalidade da terceirização, mas tão somente evidenciada com a frustração da execução dos créditos para fins de redirecionamento da execução, ou para a figura dos sócios da empresa ou para a empresa principal, tomadora de serviço.

Nos casos estudados observa-se que o conceito jurídico de terceirização está em disputa. A responsabilidade empresarial pelos créditos devidos aos trabalhadores não honrados pelas empresas terceirizadas ocorre tão somente quando há transferência da execução de atividades anteriormente realizadas pela contratante (art. 4º da Lei 6.019/74)? A distinção entre as teses fixadas pelo Supremo abre duas vertentes distintas: a que limita a responsabilidade aos períodos fragmentados de prestação de serviços nos termos da lei e a que amplia a responsabilidade a todas as formas empresariais de divisão de trabalho. As divergências envolvem a responsabilidade a) por danos morais, acidentes e violações ao meio ambiente de trabalho; b) em casos de serviços contratados por plataformas digitais que utilizam a subcontratação; c) na cadeia produtiva por graves violações aos direitos humanos por todos integrantes da rede de produção; d) realizadas por entidades não econômicas ou pessoas jurídicas não empresariais e f) relacionadas aos lapsos e tempos de prestação de serviços conjunto para múltiplas tomadoras de serviços.

Em um contexto de redução substancial de acesso à justiça promovido pela reforma trabalhista e pelo contexto pandêmico, as decisões examinadas apontam a existência de uma multiplicidade de caminhos, em uma arena em disputa e permeada pela facticidade intrínseca a um ramo jurídico orientado pela primazia dos fatos sobre as formas e pelo controle das condutas fraudulentas contidas no livre mercado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa conclui que as controvérsias sobre fraudes em terceirização e intermediação permanecem em disputa na Justiça do Trabalho, mas submetidas ao controle do Supremo Tribunal Federal, que vem tomando decisões contraditórias conforme o Ministro que realiza esse controle pela via da Reclamação Constitucional. Outro achado da pesquisa é que o requisito da “capacidade econômica” está ausente do debate judicial. Além disso, o escopo e as possibilidades de responsabilização solidária e subsidiária da empresa ou ente público principal que subcontrata estão a sofrer redimensionamento.

O desenho institucional do Judiciário brasileiro reserva à jurisdição constitucional concentrada no STF o papel de controlar a supremacia da Constituição, estabelecendo um exame abstrato da compatibilidade de enunciados legislativos e sumulares com as normas constitucionais. Todavia, não compete ao Supremo Tribunal Federal a apreciação de fatos ocorridos no chão da fábrica e nas ruas dos mercados livres ou a legalidade dos contratos pactuados ou impostos às pessoas que trabalham nem de arranjos fraudatórios verificados pela jurisdição ordinária. É na Justiça do Trabalho onde desaguam os conflitos de classe e as reclamações nas quais as pessoas fazem breve síntese dos fatos a serem apreciados à luz das regras trabalhistas. A dinamicidade intrínseca ao mercado de trabalho gera uma emergência de fenômenos e uma nova facticidade que é levada para análise cotidiana, nesta arena em disputa permanente que é a Justiça do Trabalho.

Nos próximos anos, com o delinear do quadro de heterogeneidade das contratações, de regulação mercantil dos contratos de terceirização, de repasse a terceiros e pessoas físicas de serviços terceirizados, de manutenção do enquadramento sindical a partir do vínculo de emprego na categoria profissional e de hiperterceirização (Snircek, 2017SNIRCEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge/Landem: Polity Press, 2017.), o arranjo jurídico da nova terceirização, além de subtrair dos trabalhadores o vínculo de emprego com a empresa principal, corre o risco de subtrair a própria relação de emprego, com as subcontratadas colocando em escanteio o próprio Direito do Trabalho. Cabe às instituições estabelecer as fronteiras e normas do mercado de trabalho, colocando travas, atenuando e remediando a exploração do trabalho vivo.

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  • SNIRCEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge/Landem: Polity Press, 2017.
  • 1
    Referimo-nos à substituição do verbete contido no Enunciado 256 pelo item III da Súmula 331 do TST em 1993, que permitiu a prestação de serviços na atividade-meio, em serviços de asseio e conservação e vigilância, além de criar a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços.
  • 2
    A dicotomia serviços essenciais (principais, vinculados à consecução dos objetivos empresariais) e serviços de apoio, segundo a professora Carmen Camino, constitui-se em “leitura flexível do art 3º da CLT”, por oposição ao “conceito ortodoxo de não-eventualidade”, que abrange tantos serviços naturais e essenciais ao empreendimento, quanto os de apoio, não essenciais, porém rotineiros e necessários para que se atinja a finalidade econômica pretendida (2004, p.236).
  • 3
    A expressão latina de lege ferenda reconhece a inovação de prática reconhecida antes de a lei estar em vigor, que precede o processo legislativo (de lege ferenda, sobre lei a ser criada, durante o processo de elaboração da lei e aplicada antes mesmo da lei estar em vigor) e se opõe às decisões de lege lata, com base em lei preexistente. No léxico da dogmática jurídica, diferencia-se entre a decisão que interpreta a lei (Sum.256/TST) e a que antecipa a lei (Sum. 331 item III/TST).
  • 4
    Projeto de Lei nº 4.302/1998
  • 5
    Projeto de Lei nº 4.330/2004
  • 6
    Agravo Regimental ARE 713.211, posteriormente reunido com o RE 958.252.
  • 7
    Lei nº 13.429/2017
  • 8
    Lei nº 13.467/2017
  • 9
    Art. 4º-A, § 1º, Lei nº 6.019/1974
  • 10
    Art. 4º-A, Lei nº 6.019/1974
  • 11
    Brasil, STF, RE 958252, Tema 725.
  • 12
    ADPF 324, ADIs 5685, 5686, 5687, 5695 e 5735
  • 13
    Decisão monocrática não recorrida, a trabalhadora estava desassistida por advogado no STF (Brasil, STF, Reclamação nº 33936). A Turma também anulou acórdão do TST que reconhecera o vínculo de emprego diretamente com banco diante da ilicitude da terceirização dos serviços de auxiliar de operações de valores intermediados por transportadora de valores (Brasil, STF, Reclamação nº 36.072-MC/MG, Relator o Ministro Alexandre de Moraes, decisão monocrática, DJe 20.9.2019).
  • 14
    Leis nº 8.897/95 e nº 9.472/97
  • 15
    STF, Reclamação 39.466, relator ministro Roberto Barroso. Requerente Telemont Engenharia de Telecomunicações. Terceiros interessados: Telemar Norte Leste S/A e Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região. Agravo interno julgado pela Primeira Turma na sessão virtual de 2.10.2020 a 9.10.2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2021
  • Aceito
    17 Nov 2021
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