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A “CONQUISTA ESPIRITUAL” DOS TUPINAMBÁ: a originalidade teórico-conceitual da aculturação e o regímem de relação assimétrica de Thales de Azevedo

THE “SPIRITUAL CONQUEST” OF THE TUPINAMBÁ: the theoretical-conceptual originality of acculturation and the regime of asymmetric relation of Thales de Azevedo

LA “CONQUETE SPIRITUELLE” DES TUPINAMBA: l’originalité théorique-conceptuelle de l’ acculturation et le régime de relation asymétrique de Thales de Azevedo

Resumos

Thales de Azevedo não é conhecido por sua obra a respeito de povos indígenas. No entanto, Pedro Agostinho já chamou a atenção por essa vertente pouco lembrada da sua obra. Com efeito, os povos indígenas são uma preocupação bem cedo na sua carreira, entrando na sua obra de modo significativo com sua conhecida pesquisa sobre a história de Salvador. Ao conferir o que Thales escreveu em 1958, é interessante constatar como ele já usa criativamente a literatura contemporânea sobre aculturação. Ele usa o conceito de “aculturação” para se referir à fase inicial da conquista. A fase posterior ocorre quando se impõe a dominação do aldeamento, forçado e dominado, propondo a expressão teórica “regímem de relação assimétrica”. A sua discussão teórico-conceitual era muito atual e inovadora na sua época, e claramente prefigura certas posições posteriores como as de Cardoso de Oliveira. Apesar de ser republicado, não parece que encontrou muito eco ou reconhecimento na literatura etnológica e na teoria da fricção interétnica, linha teórica de maior influência.

Thales de Azevedo; Povos indígenas; Aculturação; Regime de Relação Assimétrica; Fricção interétnica


Thales de Azevedo is not known for his work on indigenous peoples. However, Pedro Agostinho already called our attention to this hardly remembered aspect of his work. In actuality, a focus on indigenous peoples entered very early on in his career, especially with his well-known historical study on the city of Salvador. When one examines what he wrote on 1958 his creative use of the contemporary literature on acculturation stands out. The author uses acculturation for the initial phase of the conquest. The subsequent phase of domination and the forced confinement in indigenous villages merits a special theoretic expression, the regime of asymmetric relation. His theoretical-conceptual discussion was very contemporary and innovative, and clearly prefigures certain positions like those by Cardoso de Oliveira. Notwithstanding later republications of the article, it seems to have met with little response or recognition in the ethnological literature and in the theory of interethnic friction, the major theoretical movement on the subject of later years.

Thales de Azevedo; Indigenous peoples; Acculturation; Regime of Asymmetric Relation; Interethnic Friction


Thales de Azevedo n’est pas connu pour ses travaux sur les peuples autochtones. Pourtant, Pedro Agostinho a déjà attiré l’attention sur cet aspect méconnu de son œuvre. En effet, les peuples autochtones ont très tôt été une préoccupation dans sa carrière, en apparaissant dans son travail de manière significative avec ses recherches bien connues sur l’histoire de Salvador. En examinant ce que Thales a écrit en 1958, il est intéressant de voir comment il utilise déjà de manière créative la littérature contemporaine sur l’acculturation. Il utilise le concept d’ “acculturation” pour désigner la phase initiale de conquête. La phase ultérieure se produit lorsque la domination et le confinement forcé dans des villages autochtones sont imposés, proposant l’expression théorique “régime de relation asymétrique”. Sa discussion théorique-conceptuelle était très actuelle et novatrice à l’époque, et préfigure clairement certaines positions ultérieures comme celles de Cardoso de Oliveira. Bien que son article ait été réédité, il ne semble pas avoir trouvé beaucoup d’écho ou de reconnaissance dans la littérature ethnologique et dans la théorie des frictions interethniques, la ligne théorique la plus influente.

Thales de Azevedo; Peuples Autochtones; Acculturation; Régime de Relation Asymétrique; Friction interethnique


In my experience, anthropology is always going somewhere else. Whoever thinks he or she is working on the cutting edge of the discipline is likely to be viewed by adjacent generations as a maverick experimentalist or a fossilized representative of the past. Unfortunately, ignoring or denigrating the work of predecessors and contemporaries as irrelevant to our own interests means we learn neither from our successes or our failures.” (Elisabeth Colson)

INTRODUÇÃO

Em um artigo escrito em 2007, o antropólogo e professor Pedro Agostinho chama a atenção para o fato de Thales de Azevedo, desde o início da sua carreira, ter tido interesse científico pela etnohistória dos povos indígenas, quando, passando pelos estudos históricos sobre a cidade de Salvador, se dedica a analisar as relações entre índios e invasores e os métodos de catequese no início da conquista.1 1 Artigo publicado na coletânea no livro “Projeto UNESCO, 50 Anos Depois”, resultante do Seminário sobre o Projeto Unesco, nos anos 50 de século passado, sendo Thales um dos seus integrantes, representando a UFBA. Em sua conclusão, Pedro Agostinho afirma que as contribuições de Thales, nesse tema, foram marcantes para sua época e de importância duradoura (Agostinho, 2007).

Instigados por este insight de Pedro Agostinho, buscamos refletir sobre o impacto da obra de Thales de Azevedo na antropologia brasileira.2 2 No principal artigo a ser tratado aqui, “Aculturação dirigida: notas sobre a catequese indígena no período colonial brasileiro”, Thales de Azevedo anuncia logo no início do texto que o seu propósito é o de investigar o método de catequese para a obtenção daquilo ele chama, com o uso das aspas, de a “conquista espiritual” (Azevedo. 1959a, p. 78), e que inspirou título de nosso artigo. Contudo, em um breve artigo como este não há qualquer pretensão em propor uma revisão ou levantamento crítico completo sobre a obra de Thales.3 3 Ver a página na internet dedicada a Thales de Azevedo, http://www.thalesdeazevedo.com.br/biografia.htm. Ou, como exemplo de um dos temas caro ao antropólogo, uma avaliação de sua importância e atualidade de seus estudos de catolicismo (Souza Neto, 2017). Dentro de sua grande obra existe, porém, como já apontado, um tema que preocupou o autor desde cedo, publicando sobre isso desde os anos 20, exatamente porque concernia um dos processos mais fundamentais da formação do Brasil. Partindo desde a origem da conquista, sua formação histórica, até o estado então atual da sociedade brasileira, Thales também pesquisa, examina e analisa com cuidado um fator importante nessa realidade concreta: a aculturação dos povos indígenas. Assim como pensada pelo autor, a aculturação se tornou um fenômeno essencial, desde os primórdios do ‘achamento’, passando pela “tomada de posse” por Pedro Alvares em 1500 em nome da soberania portuguesa, até a efervescência dos dias coloniais em que ele empreende esta viagem no tempo e no espaço do que se tornou depois “brasileiro”.

O ponto central do nosso artigo é analisar como o conceito de aculturação foi aproveitado por Thales para pensar esses processos etnohistóricos. Neste movimento analítico, e como sua consequência lógica, procuramos pôr em relevo a contribuição do autor nesta temática para a antropologia brasileira em geral, e para a etnologia indígena em particular; ao mesmo tempo em que nos indagamos como e por que estas contribuições ficaram à margem dos estudos etnológicos, ou simplesmente foram esquecidas. Buscando caminhos para entender estes desdobramos, tomamos como ponto de comparação e de articulação, o impacto dos movimentos intelectuais e políticos de um autor importante no campo da antropologia brasileira: Roberto Cardoso de Oliveira.

Este artigo está dividido em cinco tópicos. No primeiro, contextualizamos a obra e o interesse etnológico de Thales de Azevedo, no contexto da antropologia brasileira de sua época. No segundo e terceiro, analisamos de perto como Thales desenvolve e aplica o conceito de aculturação para entender o processo de formação do Brasil. No quarto, refletimos sobre o impacto ou ausência dessas contribuições do autor, articulando com os primeiros trabalhos de Cardoso de Oliveira e seu conceito de fricção interétnica, com sua consequente influência na etnologia brasileira. Por fim, nas considerações finais, e último tópico, apresentamos nossas inferências sobre a importância da obra de Thales de Azevedo e possíveis invisibilidades produzidas.

Nesse panorama, portanto, seguimos a pista dada por Pedro Agostinho: Thales produz reflexões inovadoras e impactantes para etnologia indígena e na antropologia brasileira, o que torna ainda mais curioso o seu aparente silenciamento. Assim, antecipando nossa conclusão, avançamos que Thales de Azevedo é mais moderno e mais observador do que no geral se parece pensar. Não obstante, até onde pudemos ver, e salvo engano nosso, suas reflexões originais e inovadoras – em especial em relação à reconceituação crítica do conceito de “aculturação” e da criação de “regime de relação assimétrica” – permanecem até hoje bastante esquecidas na etnologia dos povos indígenas.

CONTEXTOS RELEVANTES

Já em 1943, Thales de Azevedo escreve um ensaio de “antropologia social”, sobre os gaúchos, no livro intitulado Gaúchos: notas de Antropologia Social. Inspirado na visita ao lugar de nascimento de sua esposa, Dona Mariá, a quem dedica o ensaio, como também, a sua avó cabocla de Sergipe (ambas passaram uns tempos bem vividos no Rio Grande do Sul), Thales aproveita motivos de afinidade e consanguinidade para uma viagem aos gaúchos, e aproveita para pensar sobre esse Estado do sul e as suas dinâmicas identitárias. Notemos que certamente há um lado inovador nessa pesquisa naquele tempo, em função da proximidade do pesquisador com o seu objeto: um “outro interno” (num jargão atual), que seriam os seus afins e os outros brasileiros (mas, considerados diferenciados dentro da ‘brasilidade’).4 4 Não é por acaso que Gilberto Freyre escreveu a apresentação do livro e, sendo ele um brasilianista nativo, ressalta essa, digamos, ‘comparação infrabrasileira’, que sempre defendeu.

Ao longo do artigo, Thales argumenta que o Rio Grande do Sul compartilhou da formação e do espírito brasileiros e participou intensamente na vida nacional. Disto conclui que os gaúchos são tão brasileiros quanto nós, este ‘nós’ referindo-se a parte do Brasil sobre a qual paira menos dúvida identitária. Assim encerra o ensaio:

[...] forjando as identidades e tecendo a unidade na direção da cultura lusa que é, segundo André Sigfried, o destino da mistura de raças e civilizações em nossa Pátria.

Tomado isoladamente, o Rio Grande do Sul não constitue também um mosaíco, com partes indiferentes e somente justapostas; ao contrário, é, hoje, mais que qualquer das demais províncias antropo-sociais do Brasil, um gigantesco laboratório de aculturação, em que a nossa cultura tradicional e básica, luso-católica, experimenta umas das provas decisivas de sua vitalidade, podendo-se prever, com muita margem de segurança, que se enriquecerá de apreciaveis aquisições espirituais, técnicas e materiais, sem perda dos magníficos valores de que se tésse a trama invisível da sua grande alma (Azevedo, 1943AZEVEDO, Thales de. Gaúchos. Notas de uma antropologia social. Bahia: Ed. do autor impresso na Tipografia Naval, 1943., p. 57; escrita original, grifos dos autores).

Ora, a passagem poderia merecer comentários mais aprofundados. Mas, aqui vale ressaltar os termos em destaque, como identidade, parte justaposta, laboratório, cultura tradicional, e tecer a trama, que evocam conceitos e discursos contemporâneos, enquanto também se observa como se trata de civilizações e de apreciáveis aquisições que vão enriquecer o todo. Esses conceitos já aqui usados antecipam, de certa forma o desenvolvimento ulterior daquele de aculturação em seus estudos etnológicos.

Estas reflexões inovadoras de Thales também estavam em conexão com os acontecimentos e ebulições no campo da antropologia brasileira de sua época. Gilberto Freyre, um interlocutor importante que já tinha incentivado esses estudos do Rio Grande do Sul, desde 1941, ao mesmo tempo em que o reconhecia como pesquisador da “medicina social”, sempre apoiava Thales como um antropólogo baiano e brasileiro, regional, no bom sentido, e nacional.5 5 Matéria em um jornal no Rio de janeiro de 15-x-41 (Azevedo, 1943, p. I). Freyre o incentivou também pessoalmente. Vale lembrar, ainda, que na inauguração da Faculdade de Filosofia na Bahia, no mesmo ano de 1943, a aula magna foi dada por Herskovits, e que no ano em que saiu a primeira edição de “Povoamento da Cidade de Salvador” (em 1949), já se encetava o planejamento do conhecido Projeto de Pesquisa Bahia – Columbia, com Charles Wagley (Azevedo, 1984AZEVEDO, Thales de. As Ciências Sociais na Bahia. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1984., p. 71-74; Wagley, 1970WAGLEY, Charles. Serendipity in Bahia, 1950/70. Universitas, n. 6/7, p. 29-41, 1970.),6 6 Segunda a página web sobre Thales na internet, http://www.thalesdeazevedo.com.br/depoim04.htm, Herskovits comentou sobre esse texto: “Your use of the culture area concept is quite new since I have never seen it employed except for very large regions, almost of a sub-continental order. I am glad that it has proved useful to you in organizing your data”. Ou seja, Thales, desde cedo, não somente reproduz, mas também reflete sobre os conceitos importados para aplicá-los de forma criativa. o que também, de certa maneira, redundou no, mais famoso ainda, Projeto Unesco com Métraux. Desde os anos 30, com a atenção dos pesquisadores voltada mais para a ‘cultura afro’, até a metade os anos 60 com programas de escola de estudos de campo de algumas universidades estadunidenses, de fato sempre houve trocas e visitas internacionais na Bahia, e com Thales em especial, que chegavam a se constituir em programas formais de intercâmbio e pesquisa. Não é de se estranhar, então, que Thales mantivesse uma rede internacional de contatos e trocas, e para a qual começou a aproveitar o acesso que providenciava à literatura antropológica recente, particularmente desde o início dos anos 50. Nessa época, é quando ele desponta realmente como autor e ator importante na antropologia e na antropologia brasileira (Carvalho, 2006).

Dentre deste contexto, vale lembrar que as pesquisas de comunidade na Bahia também se aliaram ao Projeto Unesco, culminando na coletânea de Wagley sobre raça (com Marvin Harris, Hutchinson e Zimmerman), o que renovou esses estudos. Nesse projeto, contudo, os índios entram como decididamente minoritários, e ainda mais como fenômenos históricos do que atuais. Porém, há uma ligação entre estas áreas: Wagley, o parceiro sênior externo inicial na empreitada, anteriormente fez campo e publicou na área de etnologia dos povos indígenas. Também a presença dos caboclos na Amazônia, e sua parte de descendência indígena e filiação parcial à cultura indígena, entram na atenção dedicada ao terceiro polo, o indígena, além da equação polar racializada costumeira entre branco/negro. Por fim, Wagley, com sua experiência em Guatemala, e Harris, com seu livro Patterns of Race in the Americas, escreveram sobre questões mais amplas do que o Brasil (vale lembrar o conceito de social race). E Alfred Métraux, quando veio no Brasil em função do Projeto Unesco, viajou no interior e visitou também Mirandela dos Kiriri, e Águas Belas dos Fulni-ô. Em suma, havia certo nível de interesse e presença dos povos indígenas no ambiente intelectual.

É nesta conjuntura histórica que Thales de Azevedo (1955)AZEVEDO, Thales de. Povoamento da Cidade do Salvador. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955. (Série Brasiliana, 281) produz o livro Povoamento da Cidade de Salvador, premiado no concurso sobre o quarto centenário da cidade de Salvador. Na primeira publicação de 1949 – em continuidade com as suas reflexões anteriores, já consta uma revisão da etnologia dos povos Tupi e das relações entre conquistadores e estes povos indígenas. Nas sucessivas edições, de 1955 e 1969, realiza reflexões mais aprofundadas, que se utiliza da literatura internacional. Entre a segunda e terceira edição, em 1958, Thales produz a versão mais sofisticada, tanto teórica quanto etnográfica, incluindo aqui as relações dos jesuítas com os Tupi, assim como os povos do sertão baiano.7 7 Pedro Agostinho fez um levantamento de todo a produção de Thales e menciona um primeiro estudo sobre os conceitos centrais de “aculturação dirigida” e “método aculturativo de catequese”, de 1957: Uma prioridade historica dos Portugueses. O método aculturativo de catequese.” Não conseguimos acesso a esse texto. Esta versão foi apresentada em um dos dois eventos chaves que ocorreram em 1958: as conferências na Bahia comemorando os cem anos do nascimento de Durkheim (Azevedo, 1959b), e a III Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, em Recife.8 8 Vale anotar que, nessa época, ocorria um seminário regular em antropologia na Faculdade de Filosofia da Bahia, com participação de antropólogos e outros cientistas sociais, tanto nacionais, como internacionais (veja um resumo dessas atividades na introdução de Thales no livro sobre Durkheim, organizado por Azevedo, Souza Sampaio e Machado Neto, em 1959).

A primeira Reunião da Associação Brasileira de Antropologia tinha sido realizada no Rio de Janeiro (a capital na época) em 1953; a segunda em Salvador em 1955, o que em si mostra a importância desses centros nesse período da antropologia nacional (depois se seguiu com Curitiba).9 9 Em 1958 o antropólogo José Loureiro, atuante na ABA, funda o Departamento de Antropologia em Curitiba. Ele publicou um importante artigo nos Anais da III Reunião. Como foi presidente da ABA nessa época, organizou a IV Reunião. Eram poucas pessoas ainda, e todos puderam assistir todas as atividades (sobre essas e outras atividades, Chmyz, 2006). A terceira Reunião, como dito, ocorreu em 1958, em Recife: quase todos os antropólogos da época participaram, um grupo bem seleto e pequeno para as medidas atuais. No ano seguinte saíram publicado os Anais.10 10 Anais, Recife 1959; sem editor especificamente mencionado – os tempos eram outros, e os presidentes da ABA não ‘necessitavam’ organizar e publicar livros financiados pela ABA, em seu nome, para fins de cv Lattes. É nesse livro que saiu o artigo: Azevedo, Thales de. 1959. Aculturação dirigida: Notas sôbre a catequêse indígena no período colonial brasileiro (Anais, 1959ANAIS. Anais da III Reunião Brasileira de Antropologia, 10-13 de fevereiro de 1958. Recife: Imprensa Universitária, 1959.). Como dito, este produto parece ser a pièce de résistance (1959a) do autor sobre a questão indígena, porque aí ele inova ao se referir à vasta literatura jesuítica, livros e especialmente cartas, sobre os primeiros tempos coloniais, para analisar, com o devido cuidado com o filtro missionário, o material etnográfico disponível à luz da literatura da década de 50 sobre o conceito de “aculturação”, em que produz uma reconceituação deste; além de inovar conceitualmente com a introdução da sua ideia-chave de “regime de relação assimétrica”, para pensar as dinâmicas do contato.

A ‘ACULTURAÇÃO’ DIRIGIDA E O MÉTODO ACULTURATIVO DA CATÊQUESE DOS PRIMEIROS TEMPOS COLONIAIS

No início do seu artigo, Thales rememora que já existe literatura sobre o seu tema, mas que os escritos de Gilberto Freyre, Alfred Métraux e Artur Ramos constituem-se como os, até então, mais relevantes. Ele os resume em seus resultados mais significativos para, em seguida, apontar que a revisão do conceito de aculturação permite uma reavaliação e ampliação das análises anteriores. Ou seja, em primeiro lugar, apropria-se criticamente das ideias dos antecessores. Depois, passa a discutir as cartas jesuíticas e a história de como lidar com a conversão dos pagãos, algo que a igreja católica já traçou desde a cristianização do norte da Europa. Thales expõe como já havia uma longa tradição sobre a condução do processo da conversão gradual, com concessões e adaptações determinadas. Nesse sentido, ele explica como os esforços jesuíticos cabem dentro dessa tradição de se considerar a impossibilidade de desarraigar as coisas de uma única vez. Thales discute então como eram as práticas dos jesuítas, em que estes não buscavam impor uma ruptura total e súbita com todas as noções socioculturais e teológicas indígenas anteriores. Ao contrário, como estratégia consciente, admitiam certas práticas divergentes, e tentavam usar a seu favor a re-interpretação de ritos e crenças ou de objetos rituais, permitindo até a personificação de entes sobrenaturais dos índios.11 11 Thales cita o caso de uma festa indígena, com muitos traços indígenas, em que participou um “diabo” (anhanga) que saiu do mato. O que evoca, aliás, em um parêntese prospectivo, a presença contemporânea de entes como os “Praiá” e os “Encantados” nordestinos (e Encantado, é claro, é melhor que diabo, enquanto se filia a outra tradição europeia que não era considerada “religião”). O nome Toré para o ritual pan-nordestino atual, e a presença do nome de “deus Tupã”, são influências de nomes tupi, de longa duração, para cuja adoção os missionários contribuíram decisivamente.

Depois que Thales procura as fontes históricas de inspiração para a atuação missionária, ele investiga o material muito amplo das cartas e tira conclusões sobre as prenoções fortemente arraigadas, preconceitos etnocêntricos europeus, e como os contatos iniciais superficiais criaram idealizações que, posteriormente, se repetiriam e se consolidariam na visão jesuítica como sendo ‘verdades’ (uma espécie de doxa missionária). Ou seja, os estereótipos que se cristalizaram e que se tornaram um fenômeno geral no que tange ao imaginário sobre o índio no Brasil. E mais, um conjunto de preconceitos que se assemelham muito com aqueles que circulam até a atualidade: old stereotypes die hard (Reesink, 2010REESINK, Edwin B. Allegories of wildness. Three Nambikwara ethnohistories of sociocultural and linguistic change and continuity. Amsterdam: Rozenberg Publishers, 2010.). Thales conclui afirmando que os jesuítas nunca ultrapassaram o ponto de idealizações, ou seja, não chegaram a conceber os Tupi além desse filtro de um aglomerado de prenoções. Vale observar que em certos momentos, Thales certamente não se esconde atrás de eufemismos quando se refere às prenoções e ao etnocentrismo. Por outro lado, o autor ressalva que os jesuítas incluíam os índios na humanidade, e os elevavam a um estatuto moral de alta qualidade. O que, como ele destaca, não deixa de ser outra simplificação estereotipada; mas ele analisa claramente como a diferença de avaliação sobre a natureza humana da gente da terra, e suas características como pessoas humanas, contrasta com o selvagem (muitas vezes um subumano, ou mesmo um não-humano) dos colonos, que só procuravam o cativeiro dos naturais da terra para o seu proveito próprio.12 12 É muito recorrente na história, e isso existe até hoje documentado em certas etnografias, em que ser pagão e não batizado é considerado pela população brasileira como uma falta de ser “humano”, ser uma ‘não-pessoa’, ainda estando ao nível do animal (M. Reesink, 2006). Isto prefigurava claramente, para ele, as imagens do “bom selvagem” na Europa.13 13 O que talvez prefigure o “mau selvagem”, que termina por se espelhar no primeiro.

Thales discute as primeiras ações dos missionários, em que estes iam para as aldeias Tupi e ensaiavam formar agentes interculturais com a retirada e educação de meninos bem novos de seus ambientes. Depois de enculturados na fé, estes se tornavam intérpretes e agentes de mecanismo de controle sócio-cultural dos padres (ao contrário dos mamelucos). De todo modo, Thales observa que essa tolerância durava somente na primeira fase da ação para a assimilação. Na segunda fase, que demorou muito pouco a ser instaurada, implementava-se as reduções em que se reuniam deliberadamente segmentos do povo Tupi em aldeias de concentração sob controle dos padres, ou em que se iniciou a junção de aldeias de povos de culturas diferentes. A política nessa fase ainda permaneceu com o emprego de certo gradualismo, mas agora em condições de deslocamento e de controle político, sociocultural, e moral bem mais incidente, e com uma submissão bem maior. Os pajés (medicinas era um termo da época) eram reprimidos desde o início, punidos severamente, não raro proscritos das povoações. Como os Tupi não tinham “religião” (“fé”), denominou-se o xamã de “feiticeiro”.14 14 Note-se, de passagem, que aí se formou uma analogia portuguesa importante para capturar o xamã e suas práticas em uma categoria de acusação que, possivelmente, perdura até hoje. O que implica em dizer que a primeira fase não só consistia de ‘persuasão branda’ – brandura era uma disposição de que os padres apreciavam e se atribuíam a si mesmo –, mas já continha o exercício de, ou pretensão a, alguma repressão e autoritarismo. Em contrapartida, “substituíram-nos, de algum modo, os padres e irmãos da Cia., verdadeiras poçangas, isto é, “medicinas”, para os índios, e canalizaram-se algumas das funções xamanísticas para formas cristãs de apelo ao sobrenatural em situações de doença e doutras crises” (Azevedo, 1959a, p. 86). Não demorou nada, em conclusão, que os jesuítas começaram a entender que na modalidade mais branda a conversão não estava funcionando ao seu contento. Thales até percebe que uma “falha menor” consistia em serem “inconstantes no começado” por lhes faltar “temor e sujeição” (aspas no original; ib., p. 82). Desse modo, já depois de três anos de iniciada a empreitada, e com a ajuda do governo de Mem de Sá, eles conseguem instaurar um “regímem de redução”, separando as aldeias dos colonos e sob as ordens dos missionários. Nóbrega delineia aí as regras que podiam ser implementadas “[...] com o maior rigor, já que, na opinião dos missionários, o gentio não podia ser educado senão “por sujeição”” (ib., p. 87). Como resultado, em 1559, num dos eventos mais notórios de repressão genocidária, sob o comando de Mem de Sá, os indígenas assassinados formaram uma légua ao longo da praia do Cururupe (Campos, 2006CAMPOS, João da Silva. Crônica da capitania de São Jorge dos Ilhéus. 3. ed. Ilhéus: Editus, 2006.).15 15 Hoje em dia os Tupinambá de Olivença organizam marchas em memória dos seus mártires, lembrando entre outros eventos, o massacre do rio Cururupe do século XVI, perpetrado pelo então governador-geral Mem de Sá durante a Batalha dos Nadadores. Ou seja, um regímem de redução é, parafraseando Thales, um ‘regímem de força’, um ‘regímem de dominação’, exercido por sujeição.

Thales conclui que, com o isolamento e a imposição de um regime de força, se criou as condições em que se atacavam exatamente aquelas instituições que constituem “[...] o cerne universal das culturas – sistemas de manutenção, de comunicação e de segurança, que mais resistência oferecem nos processos de mudança cultural, vieram a ser reprimidos como delitos graves [...]”. Sujeição e obediência garantidas com a ameaça das penas impostas pelo Governador, “[...] a mais temida autoridade civil da sociedade dominante” (Azevedo, 1959a, p. 87). Ou seja, a violência potencial do poder militar permitiu à sociedade dominante afetar diretamente os sistemas vitais que garantiam a integridade cultural indígena. Uma afirmação teórica, note-se, sobre a sistematicidade necessária para uma sociedade se recriar enquanto mais ou menos fiel a si mesma. Os efeitos somente poderiam ser desastrosos para os índios, como Thales mostra em detalhes. O autor, além disso, constata as peculiaridades desse processo; por exemplo: os jesuítas como agente da sociedade intrusa, que apresentavam, preponderantemente, um aspecto da cultura exterior, e ainda mais somente por via intelectual, e não apresentavam uma cultura íntegra, mas uma imagem quase apenas verbal (religioso e moral). Em contrapartida, os índios se encontravam sob uma dominação que avançava visando atingir em cheio a sua cultura íntegra, porque “portadores de materiais culturais já sem o seu suporte institucional” (ib., p. 87).

Analisado o material Tupi e suas consequências socioculturais, Thales discute o segundo método, implementado também por outras ordens, e aplicado entre os Tapuia do interior. Por um lado, e experiência jesuíta inspirou, por exemplo, tentando reprimir fortemente as mesmas práticas consideradas mais inaceitáveis (magia, poligamia, antropofagia). Também acomodavam os costumes não imediatamente contraditórios aos seus preceitos ideais. Mas a grande diferença, segundo Thales, seria o fato de que, longe de centros de poder colonial, sem relações fáceis com os vizinhos não-índios, os missionários só detinham uma fraca autoridade para impor sua vontade. Ou seja, em outras palavras, faltou-lhes poder, o poder de exercer uma dominação normalmente fortemente desejada por um missionário. Aqui o autor vai se debruçar basicamente sobre o caso Káriri (Kiriri) em função das publicações existentes sobre esse grupo de aldeias.16 16 Thales explora basicamente o relato de Martin de Nantes. Hoje, dispomos de um acesso mais fácil para as outras publicações sobre a língua Kiriri, da autoria do jesuíta Mamiani (cf. E. Reesink, 2017). A sua autoridade derivava, na interpretação de Thales, da sua identificação, na mente dos índios, como pajés dos brancos. No fim dessa discussão, Thales conclui que os padres se valeram em mais de uma oportunidade daquela analogia. Observe-se que, por essa formulação, do ponto de vista dos índios haveria uma busca e reconhecimento de analogias de sua cultura para com a cultura missionária, em que, levado bem mais adiante, poderíamos ter duas configurações sobrenaturais análogas, postas lado ao lado, e não somente uma substituição ou uma fusão.17 17 Na realidade, esse é um ponto que poderia ser explorado mais e reforçado, já que um jesuíta nas aldeias dos “Quiriris” anotou, depois de um conflito religioso, que o principal dos índios afirmou que “Queremos ser cristãos, mas queremos também conservar os costumes dos nossos antepassados” (veja E. Reesink, 2017).

Nessa época, Thales não tinha grande acesso ao material da documentação colonial sobre o sertão. Hoje sabemos que os povos interioranos na segunda metade do século XVII sofriam de grandes violências e de genocídios, havendo casos em que algum povo buscava deliberadamente a proteção missionária para sobreviver. Ou seja, não se sustenta, como um caso exposto por Thales, como um exemplo de se tratar de uma autonomia criativa. Com efeito, Thales percebeu isso quando, no item teórico que segue, retoma a análise da catequese nas aldeias no sertão como subordinadas, porém, conservando certa “autonomia” e guardando “independência suficiente” para exercer sua própria seleção cultural e incorporar “creadoramente”. Aliás, ele reconhece que sempre praticaram “resistência” às imposições. Desse modo, ele reconheceu uma subordinação relativa, em que o missionário exercia “autoridade relativa”; daí que, seria nossa conclusão, o caso poderia ser analisado como uma questão de aferir o grau de autonomia dentro de um regime de relação assimétrica, numa linha temporal em que os povos indígenas, ou segmentos dos mesmos, almejavam exercer o máximo de autonomia e controle sobre sua vida possível.

ACULTURAÇÃO E REGIME DE RELAÇÃO ASSIMÉTRICA

O conceito de aculturação, ao contrário do senso comum acadêmico atual que se criou, esteve constantemente sob o escrutínio e debate crítico da comunidade antropológica. Em um sentido geral, o conceito de aculturação procurava dar conta dos processos de trocas culturais, quer assimétricos (ou regime de força) e/ou simétricos. Contudo, ao que parece, por ser ao mesmo tempo amplo ou restrito demais, produzia insatisfações entre os pesquisadores.18 18 Por exemplo, nos anos trinta do século passado, foi instaurada uma primeira comissão de antropólogos estadunidenses para uma revisão do conceito.

Não é nossa intenção historiar as insatisfações salvo mencionar um exemplo. A antropóloga estadunidense E. Colson que pesquisou o povo Makah da costa Noroeste dos Estados Unidos. Em sua tese defendida em 1944, e só publicada em 1953, Colson demonstra sua insatisfação com o conceito de aculturação para entender o seu campo, e ela escolha seu conceito principal como sendo o de assimilação. Mais do que esse uso, Colson antecipa algo de muito maior relevância do que somente a parte citada. Isso se detecta facilmente na formulação do problema:19 19 A citação em si interessa aqui por seu caráter inovador e por ser a mesma crítica ao conceito de aculturação e a adoção de “assimilação”. Além disso, a crítica, muito antes do tempo sobre os critérios de etnicidade, parece ter passado basicamente despercebida, ou esquecida, quando da renovação do conceito no fim dos anos 60 tal como na influente proposta por Barth e colegas.

From the previous section it is apparent that the Makah are not distinguished from other peoples by their physical appearance. They are not distinguished as a group by the possession of a common language or a common culture. They are not a people descended from a common group of ancestors. They are not a segregated group, isolated from social contacts with those who are not considered to be members of the tribe. Nevertheless, the Makah themselves are perfectly certain about who are to be considered members of their group (Colson, 1953COLSON, Elizabeth. The Makah Indians: A Study of an Indian Tribe in Modern American Society. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1953., p. 61).20 20 “Da seção anterior fica claro que os Makah não são distinguidos dos outros povos por sua aparência física. Não são distinguidos como um grupo a partir da posse de uma língua ou cultura em comum. Não são um povo que descendem de um grupo de ancestrais em comum. Não são um grupo segregado, isolado de contatos sociais com aqueles que não são considerados membros de sua tribo. Não obstante, os Makah tem perfeita certeza quem deve ser considerado membro do seu grupo.”

O ano de 1953 parece ter sido um ano decisivo para a crítica ao conceito de aculturação. Além da publicação do livro de Colson, Beals publicou um artigo sobre o estado da arte deste conceito, em que recomendou a instauração de uma comissão para a sua reavaliação.21 21 Beals mostrou as dissensões e muitos problemas do conceito tal como a falta de metodologias, de teoria, de consenso sobre o conceito, e a precariedade geral desse campo. Até mesmo aponta que o conceito veio de influência alemã e não da antropologia estadunidense, fato geralmente esquecido quando, cada vez mais, toda a literatura alemã tem sofrido com a barreira linguística e com sua marginalização. De fato, neste mesmo ano uma comissão com este propósito (composta por um pequeno número de antropólogos estadunidenses) foi instaurada no mesmo ano.22 22 Essa foi a segunda comissão criada para esse fim, a primeira tinha sido realizada antes da Segunda Guerra mundial. Ao contrário do que ocorreu com uma primeira comissão, a qual causou certa polêmica com a sua própria criação, a instauração da segunda, em 1953, foi tomada com tranquilidade. Em 1954, a revista American Anthropologist publicou o resultado dessa revisão, a qual se constituiu, até aquela época, na maior autoridade sobre o conceito de aculturação.23 23 Notamos que, na sua avaliação teórica, Beals (1953, p. 628) comenta o conceito de transculturação, afirmando que esse só tinha sido aplicado por alguns latino-americanos e não por estadunidenses. Beals até sugere que este poderia ter um aproveitamento maior, se a noção de aculturação não fosse tão aceita. Esta observação de Beals nos dá uma indicação das ‘fricções acadêmicas’.

Com esta publicação em mãos, Thales faz uma análise meticulosa do seu conteúdo, citando logo a definição de aculturação como a “mudança cultural que é iniciada pela conjunção de dois ou mais sistemas culturais autônomos” (Azevedo, 1959a, p. 91). Nesta análise, ele discute principalmente os aspectos mais importantes do artigo que são inspiradores para seu o argumento. Como sua discussão é longa e não cabe nesse artigo, de forma resumida, procuraremos articulá-lo para salientar a sua originalidade. Assim, seguindo sua argumentação, o autor considera aculturação como um processo em que ocorre uma “seleção de materiais oferecidos por uma cultura à percepção da outra e de mecanismos para integrarem adequadamente aqueles materiais”. Os “mecanismos regulativos” simultâneas orientam “a direção, a intensidade, a amplitude do fluxo inter-cultural para receber e incorporação dos elementos aludidos com um mínimo de perturbação, e de que segunda as circunstâncias resultam fusão, assimilação ou pluralismo estável” (ib., p. 91). Isso produz, idealmente, uma sequência de regularidades: a. transmissão inter-cultural (difusão); b. creatividade cultural; c. desintegração cultural; d. reações adaptativas. Neste sentido, ainda seguindo a comissão, a criatividade cultural se realiza por um mecanismo intra-cultural, não sendo nem passivo nem incolor, mas functional e normal em uma cultura independentemente de incentivos transculturais. Nesse caso, há o processo normal da adoção e da criatividade cultural interna e que implica em conceber a cultura ‘receptora’ como ativa, não passiva, nem sem características próprias; mas, em outras palavras, trata-se de uma instância criativa realizada nos seus próprios termos, do mesmo modo como o ‘movimento perene de mudança interna’ de toda cultura.

Percebemos, portanto, que na sua análise, Thales seleciona suas posições de tal maneira que cria e enfatiza duas modalidades primaciais de relacionamentos de modo específico. A primeira modalidade, nas aldeias dos índios, é a aculturação com autonomia criativa, como descrita no parágrafo anterior. Thales passa, imediatamente, a discutir a modalidade em que os dois lados do processo estão hierarquizados em subordinação e superordinação, e o que ele conceitua ao seu modo: “em regímem de relação assimétrica entre grupos de cultura diversa pode ser transferência, jamais mecânica e passiva, de elementos […] em substituição aos materiais supressos na receptora” (ib., p. 92-3). Embora o texto em que ele se inspira mencione, por exemplo, o poder de “grupo dominante”, e não ignore a dominação ocidental, esse conceito não se encontra ali discutido, sendo esta uma elaboração própria de Thales. A questão, para as “reduções” jesuíticas, se torna outra quando se trata do “método assimilatório, tomado êste no sentido de um fluxo cultural unidirectional que incide de maneira em limitar ao mínimo a capacidade seletiva e adaptativa da cultura subordinada. O intuito dessa análise é, pois, verificar a hipótese de que o processo tem características peculiáres” (ib., p. 92). E, com efeito, isso produz deculturação, quando os padrões culturais são eliminados sem substituição de novas formas funcionais. Desse modo, essa relação gera uma das consequências previstas citadas, a desintegração cultural (ponto c), o que leva ou à resignação da rendição, ou ao movimento revivalista (ponto d).24 24 Thales já chamava a atenção para as chamadas “santidades”, que são a reação revivalista quando a deculturação provocada é seguida de re-enculturação. É interessante perceber que Thales considera a rendição e a revivalismo como ações conscientes – ao contrário de aculturação autônoma –, e como uma re-enculturação interessada pela necessidade de buscar novo equilíbrio e uma nova formulação do sentido da existência. Ou seja, ele prevê o que podemos chamar de uma ‘reflexividade indígena’ no caso da dominação explícita. Esta proposta, como outras proposições, e apesar de sua relevância, também tem sido pouco explorada.

Ora, é nesse ponto, portanto, que ele diverge do texto inspirador ao chamar uma maior atenção ao poder e dominação e criar um conceito novo. O caminho importante e original escolhido e seguido por Thales, inspirado também na análise do material etnográfico à disposição, foi o de subtrair o conteúdo de regime de força (assimetria) do conceito de aculturação, promovendo ao mesmo tempo uma formulação nova para este último e criando um novo conceito (regime de relação assimétrica) para dar conta do conteúdo de regime de força (assimetria). Dessa forma, por um lado, ele coloca o foco sobre a questão de poder e dominação; por outro, ele não só restringe a noção de aculturação, mas ressemantiza o seu sentido, em que implica limitando aculturação à uma situação de autonomia criativa, quando impera simetria entre as partes. Neste sentido, ele literalmente divide o conceito original de aculturação em dois conceitos: aculturação (simetria) e regime de relação assimétrica (assimetria).

Uma estratégia conceitual, portanto, para aumentar a visibilidade da proposta, ao mesmo tempo em que podemos argumentar que a introdução do termo regime dá uma ênfase importante ao caráter político e sistêmico desses processos de dominação. Sem querer especular demais sobre os motivos do autor para essas nominações, há de convir que a alternativa aculturação assimétrica implicaria na necessidade de mudar o seu par para aculturação simétrica.25 25 Dado a atual popularidade de antropologia simétrica, talvez não fosse tão má ideia. No entanto, aplicar um adjetivo à noção continua não parecer uma ideia muito viável, e parece melhor separar os termos de modo diacrítico, por assim dizer, com o deslize já notado. Curiosamente o regime de relação assimétrica antecipa o regime de índio (Carvalho & Reesink, 2018CARVALHO, Maria Rosário; REESINK, Edwin B. Uma etnologia no Nordeste brasileiro: balanço parcial sobre territorialidades e identificações. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais - BIB, v. 87, n. 3, p. 71-104, 2018.), enquanto evoca a possibilidade de outra mutação conceitual em direção oposta à primeira sugerida que, para substituir aculturação, seria criar o regime de relação simétrica. Esta última pareceria uma alternativa mais atraente, pois implicaria em uma possibilidade de trocar o termo original (aculturação) por outra expressão não ‘contaminada’ pela ambiguidade e sobre-uso. No entanto, no tempo de Thales, eliminar o termo ao todo não parece ter sido algo muito viável, dado sua utilização ampla, a extensão de sua aplicação, e até mesmo sua utilidade comprovada.26 26 Como visto em nota anterior, Beals até advoga em favor do conceito de transculturação, mas a esmagadora parte da literatura manteve o conceito de aculturação. Sabe-se que a noção do cubano F. Ortiz só ganharia destaque mais geral décadas depois. Uma das razões desta demora, segundo o próprio Ortiz, é que Herskovits não teria gostado que, na introdução da tradução inglesa da obra de Ortiz, Malinowski tenha preferido esse conceito ao seu favorito, a aculturação (Guimarães, 2019, p. 32-4). Não é de estranhar, então, que Thales siga as pistas oferecidas pelo memorandum.

O IMPACTO OU A AUSÊNCIA DA REFERÊNCIA

Ao analisarmos a posição que Thales de Azevedo ocupava no campo da antropologia brasileira, no período que vai até meados dos anos 70 do século passado, não deixa de ser curioso o fato de uma produção que trata de temas tão atuais e candentes para a época, elaborando uma reflexão rica, tanto etnograficamente quanto teoricamente, tenha caído na obscuridade. E não se pode culpar a falta de publicidade e acesso de sua obra.

Recapitulando: a produção aqui discutida “Aculturação dirigida: Notas sôbre a catequêse indígena no período colonial brasileiro” foi: i- primeiramente apresentada, em 1958, na III RBA (reunião que, como vimos, atraiu a quase totalidade dos antropólogos da época); ii- publicada originalmente, em 1959, nos anais da Reunião (sendo esta, para os padrões da época, uma publicação fundamental e obrigatória); com mais três republicações no mesmo ano de 1959: iii- na coletânea do próprio autor “Ensaios de antropologia social” (1959c; 1959f) e iv- em uma publicação portuguesa “Trabalhos de Antropologia e Etnologia, 17” (1959d) e v- em uma outra publicação portuguesa em livro no Porto (1959e); vi- novamente o artigo foi republicado, em 1976, na coletânea organizada por E. Schaden “Leituras de Etnologia Brasileira” (Azevedo, 1976AZEVEDO, Thales de. Catequese e aculturação. In: SCHADEN, Egon (org.) Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 365-384.) – ressalte-se que, numa época em que se publicava bem pouco, e menos ainda sobre etnologia indígena, compor uma das poucas obras, até então, com um conjunto de textos sobre o tema, concede automaticamente acesso e publicidade, ao mesmo tempo em que demonstra a qualidade do artigo. Sobre esta última publicação, notamos um dos poucos pontos em que o texto parece ter sido modificado.27 27 Lamentavelmente os resumos em inglês, francês e alemão foram retirados. Esses resumos contém a essência do artigo de Thales formulada de uma maneira às vezes bem mais contundente do que no próprio texto. Na verdade, parece ser um pequeno acréscimo para reforçar, e arrematar melhor, o que o autor já expôs: o missionário, pela distância física e social com a sua sociedade de origem, apresentava uma espécie de “cultura jesuítica” (aproveitando uma expressão de Wagley e Harris, em livro que saiu em 1958). Uma cultura que, sublinhe-se, Thales ressalta ser composta de formas e môdelos ideais, com ênfase em seus elementos simbólicos e ideológicos, o que causa uma impressão ao leitor de que – segundo a interpretação do autor – aqueles buscavam criar uma ‘sociedade ideal’ (ou transcendente), como que prefigurando uma República Guarani de data posterior, concebida como sendo muito melhor e cristã do que os costumes de ‘devassidão’ na sociedade colonial circundante (pecaminosa e materialista).28 28 Algo, diga-se de passagem, que coincide com a sua caracterização do tipo de intervenção praticada, alicerçada na concepção de seres humanos de grande qualidade moral, que ele distinguiu antes.

Portanto, diante do exposto, cabe certamente o questionamento e curiosidade para se tentar entender os mecanismos (ou estruturas) postos em marcha que levaram a obra de Thales de Azevedo, em particular a parte discutida aqui, à obscuridade. Avançamos aqui algumas possibilidades, entre as quais, aquela que se enquadra na luta por posições políticas, de visibilidade e de poder dentro do campo acadêmico; e que no caso brasileiro tem conotações institucionais e regionais (Reesink; Campos, 2014REESINK, Mísia Lins; CAMPOS, Roberta. A geopolítica da antropologia no Brasil ou como a província é submetida ao leito de procusto. In: SCOTT, Parry et al. Rumos da antropologia no Brasil e no mundo: geopolíticas disciplinares. Recife: Edufpe, 2014. p. 53-81.; 2017). Para avançarmos na compreensão desses processos, consideramos que Roberto Cardoso de Oliveira é um ator exemplar neste contexto; em especial, porque no nosso entender, este último propõe um modelo explicativo que – implicitamente ou explicitamente – é concorrente ao proposto por Thales de Azevedo.

Segundo suas próprias palavras, Roberto Cardoso de Oliveira iniciou sua carreira na antropologia nos anos cinquenta do século passado, mais precisamente em 1954, na área e estudos de povos indígenas, quando terminará de fazer seu mestrado e doutorado sobre relações interétnicas, tendo em especial como campo de estudo os Terena. Já em 1955, Oliveira esteve na fundação da ABA e entrou na primeira diretoria. Nessa época, ele trabalhava como etnólogo no SPI, a convite de Darcy Ribeiro, seu mentor e orientador.

Entre 1955 e 1958, Oliveira intensificou os seus estudos e produção etnológica. Em 1955, visitou pela primeira vez o campo entre os Terena do Mato Grosso do Sul; em julho de 1956 submeteu um projeto de pesquisa em que resume essa visita e desenha seus propósitos para a continuidade da pesquisa; em dezembro de 1957 publica “Preliminares de uma pesquisa sobre a assimilação dos Terêna”, na Revista de Antropologia; em fevereiro de 1958 apresentaria na III RBA o trabalho “Aspectos demográficos e ecológicos de uma comunidade Terêna”, publicado em setembro do mesmo ano no Boletim do Museu Nacional (e sendo publicado também nos Anais da Reunião, em 1959, em que consta o artigo de Thales); publica ainda em 1958 “Urbanização sem assimilação: estudo dos Terêna destribalizados” (1958), na revista Ciência e Cultura, uma apresentação muito sumária da pesquisa e que ainda toma como ponto de partida a avaliação estadunidense de 1954 (embora já menciona a “identidade étnica” como conceito chave do futuro); no fim deste período, dá início a escrita do manuscrito que vai dar no livro “O Processo de Assimilação dos Terêna” (1960 – republicado em 1976 com o título “Do Índio ao Bugre).

Nestes seus primeiros trabalhos, ele deixa evidente o seu objetivo, que é o de “[...] compreender a interação social, que, de forma sistemática e contínua, vem ocorrendo entre os Terêna e a sociedade nacional, para podermos descobrir, então, os mecanismos sócio-culturais que tem influído direta ou indiretamente no processo menos geral e mais específico que aqui chamamos de assimilação” (Oliveira, 1957OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Preliminares de uma pesquisa sobre a assimilação dos Terêna. Revista de Antropologia, v. 5, n. 2, p. 173-80, 1957., p. 174). Notemos como a atenção se dedica a uma interação social, e não a uma cultura indígena. Também, ele se orienta para a ideia de assimilação somente enquanto uma integração total na sociedade regional. Isso se explica logo por inspiração em uma pesquisa de Darcy Ribeiro, ainda em grande parte inédita naquele momento, a qual mostrava como, ao contrário do senso comum científico daquele tempo, a assimilação nunca ocorre para os povos indígenas. Assimilação aqui se torna o foco enquanto um processo histórico para chegar à atualidade da época, ou seja, expressa uma preocupação sociológica. Portanto, ele postula que pretende fazer uma pesquisa que inexiste “nos trabalhos sobre aculturação”. Além disso, ele utiliza a noção de “fronteira” da sociedade nacional (provavelmente também inspirado em Darcy), fala em “relações interétnicas” para o estudo da atualidade e em “situações de contacto interétnicas”, sendo as situações destacadas em itálico no texto, a serem levantadas nos dados históricos (ib., p. 175).

Alguns pontos que nos importam mencionar aqui. Primeiro, a literatura citada no artigo publicado em dezembro de 1957 é grande, incluindo até obras em alemão, contudo não inclui uma literatura teórica internacional; sobretudo, no que se refere ao conceito de aculturação, cita apenas Darcy Ribeiro e o trabalho de Schaden sobre os Guarani. Segundo, a sua seguinte produção, que consta no programa da III RBA de fevereiro de 1958 (Anais, 1959ANAIS. Anais da III Reunião Brasileira de Antropologia, 10-13 de fevereiro de 1958. Recife: Imprensa Universitária, 1959., p. 8), é uma a curta comunicação que versa sobre aspectos demográficos e ecológicos de uma aldeia de uma “reserva” Terena, discutindo, por exemplo, o censo feito e suas implicações; além disso, promete que a versão mais completa será publicada em um Boletim do Museu Nacional e, com efeito, o manuscrito foi entregue em 25 de março de 1958, após a III RBA. Trata-se, certamente, da mesma comunicação, só que ampliada. No entanto, do modo como está formulado no texto, não se pode confirmar se a comunicação foi apresentada pelo autor na Reunião.

O mais pertinente para a nossa análise são as publicações de Cardoso de Oliveira, entre os anos de 1959 e 1960. Como já dito, há o artigo “Aspectos demográficos e ecológicos de uma comunidade Terêna”, publicado nos Anais da III RBA em 1959, e que nos interessa mencionar agora por ter saído na mesma publicação do artigo de Thales de Azevedo.

A seguir, há o trabalho “Matrimônio e solidariedade tribal terena”, publicado também em 1959 na Revista de Antropologia (Oliveira, 1959OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Matrimônio e solidariedade tribal Têrena. Revista de Antropologia, v. 7, n. 1 e 2, p. 31-48, 1959.), que nos interessa por alguns pontos: primeiro, no texto e nas referências, o autor cita uma série de obras e artigos internacionais, desde Lévi-Strauss a Radcliffe-Brown e Firth. Também discute sociólogos, como T. Parsons e M. Levy, para uma argumentação própria sobre os conceitos de estrutura, estrutura social, modelo, organização social construindo uma abordagem e uma análise estrutural.29 29 É interessante reparar que ele utiliza o livro em alemão de Max Schmidt sobre os Aruak e suas conquistas e subordinação de outros povos. Isto porque este livro caiu quase em esquecimento, até que a sua análise pioneira foi relembrada na Etnologia das Terras Baixas nos últimos anos. Sob o estímulo do colega Peter Schröder, E. Reesink fez uma intervenção sobre a modernidade da abordagem de Schmidt nesse livro numa reunião de antropologia do Norte-Nordeste em Roraima (ABANNE, 2011). O mesmo colega se empenhou em publicar esse livro numa tradução brasileira. O que nos chama excepcionalmente a atenção é que nessa discussão não se incluiu o conceito de aculturação. Só numa nota é que ele cita o artigo de Beals (1953)BEALS, Ralph. Acculturation. In: KROEBER, A. (org.). Anthropology Today. Chicago: University of Chicago Press, 1953. p. 621-41., e somente para afirmar que o conceito pode se referir a um processo ou a um estado, sem citar explicitamente as suas elaboradas críticas ao conceito (Oliveira, 1959OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Matrimônio e solidariedade tribal Têrena. Revista de Antropologia, v. 7, n. 1 e 2, p. 31-48, 1959., p. 45).30 30 No artigo, Beals é citado como 1954, mas no livro de 1960, quando saiu publicado o manuscrito escrito entre fim de 1958 e meados de 1959, a referência é citada corretamente (Beals, 1953). Acresce-se ainda que há uma pequena falha no artigo, porque na bibliografia essa referência não aparece. Sem querer dar demasiada atenção ao esquecimento, afinal deve ser um mero erro de revisão, de certa forma o fato é ilustrativo da não citação de Thales nos escritos depois de 1959.

A mesma falta da menção ao conceito de aculturação se repete quando, em outra nota, cita o título do manuscrito (já pronto, e a ser editado pelo Museu Nacional): “O processo de assimilação dos Terêna”; nesta nota, ele explica que neste trabalho ele analisa como se dá a resistência aos mecanismos de assimilação. Nessa fase, portanto, o seu conceito chave não é aculturação, mas assimilação.31 31 O que, talvez, tenha sido influência de Colson, que elegeu o mesmo caminho conceitual no trabalho citado. No entanto, na nossa leitura, isso não ficou claro no artigo. Assimilação como um processo de integração que leva a uma série de mudanças tal como a perda do modelo da estrutura anterior (reconstruída por ele) e a incorporação econômica e social dos índios, mas que não redunda em dissolução da etnia. Talvez tenha sido exatamente a força e visibilidade do eixo de integração econômico, e a dissolução do modelo societária Terena do Chaco, que reforçou a rejeição ao conceito de aculturação que, no que parece ter sido sua visão, enfatizava a passagem de elementos culturas pelo contato entre culturas. Nessa época, seguindo Darcy, os Terena eram vistos como caso extremo de perda de cultura e de quase assimilação completa.32 32 Do ponto de vista nordestino atual, algo irônico, porque os Terena mantinham sua língua e um xamanismo vivo. O próprio Cardoso de Oliveira (1970) reviu essa opinião quando foi se ocupar do “campesinato indígena”, no fim da década de 60, e orientou o trabalho de Paulo Amorim sobre os Potiguara.

Finalizado em 1959, o manuscrito foi publicado, como dito, com o título “O processo de assimilação dos Têrena” (aqui utilizamos a reedição de 1976, com o título “Do Índio ao Bugre”). A bibliografia se compõe, em grande parte, como as dos artigos já citados, mas há alguns acréscimos importantes; incluindo-se a comissão do estudo exploratória de “aculturação” de 1953, e alguns outros estudos. Cardoso desenvolve aqui um uso do conceito aculturação que ele considera como sendo crítico ao esforço citado e, também, sendo uma redefinição própria. Por outro lado, o que chama atenção no capítulo VII, o arcabouço teórico, é que para o conceito preferencial de assimilação, cita somente sociólogos (1976, p. 113-4) (em especial nota 1, com destaque para Glaser que propõe um contínuo de mudanças que vai até um tipo ideal de re-identificação completa). O conceito de assimilação, enquanto processo sociológico, engloba a aculturação (assim como definido por ele) e, induzido pelo caso etnográfico, inclui também a outra chave interpretativa, a mobilidade.33 33 Às vezes se percebe nos meios antropológicos brasileiros das gerações mais novas a sugestão de que o conceito de aculturação equivale ao de assimilação, a ser descartado de antemão. Ou seja, tudo se passa como se aculturação implicasse automaticamente assimilação e dissolução étnica. De fato, o conceito caiu no ostracismo. Nem para Thales, nem para Cardoso, essa automatismo esteve no horizonte conceitual. O que ressaltam, em contrapartida, é que o conceito precisa de uma complementação conceitual que, embora não ausente na sua origem, explicite melhor a conflitualidade. Não há nenhuma menção a autores brasileiros que especificamente analisem esses conceitos de modo crítico, e a principal referência brasileira é o trabalho de Darcy Ribeiro. Ou seja, observamos a ênfase sobre relações sociais em confronto e uma literatura teórica estrangeira que se mantém tal quais os artigos da mesma época. E a conclusão, mais elaborada e discutida no último capítulo, que segue o teórico, é a mesma: a assimilação não se concluiu, e ele levanta sistematicamente os fatores que estimulam (convergentes), ou que obstruem (divergentes) esse processo.

O livro segue, portanto, a mesma linha dos artigos na demonstração de manejo de teoria recente, estrangeira, e de seu domínio crítico e autônomo; e, à exceção de seu orientador, ignorando a literatura antropológica nacional, ao menos no tocante ao conceito, importante e polêmico à época – como já demonstramos, de aculturação.

A ASCENSÃO DA FRICÇÃO INTERÉTNICA

Ao elaborar a noção de fricção interétnica, teria Roberto Cardoso de Oliveira, nas palavras de seu ex-aluno nos anos de 1960, Roque Laraia (2008LARAIA, Roque. Trajetórias convergentes: Cardoso de Oliveira e Maybury-Lewis. Mana, v. 14, n. 2, p. 547-54, 2008., p. 551), criado uma ruptura com os o que chama de “aculturalistas”, incluindo aí todos os brasileiros anteriores, tal como “Darcy Ribeiro, Galvão, Egon Schaden e Herbert Baldus” (e sem nomear Thales); reforçando a dupla imagem de, por um lado, Cardoso de Oliveira como inovador conceitual, por outro, a de que o conceito de “aculturação” seria, até a ruptura provocada por Cardoso, aplicado de forma acrítica e simplista.34 34 “Foi então que, a partir dessa crítica, Roberto formulou a teoria da fricção interétnica, nome que deu “ao contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizado por seus aspectos ‘competitivos’ e, no mais das vezes, ‘conflituais’, assumindo esse contato proporções ‘totais’, isto é, envolvendo toda a conduta tribal e não tribal que passa a ser moldada pela ‘situação de fricção interétnica’”.” (Laraia, 2008, p. 551). Não obstante, como temos demonstrado, as análises de Thales mostram claramente uma divergência fundamental com a imagem que ficou na memória de um dos primeiros alunos de Cardoso, e, ao que parece, a imagem que se criou sobre o tema na história da antropologia.35 35 Outro exemplo que sinaliza para um espírito de tempo bem mais controverso do suposto, e analisado por Pacheco de Oliveira (2001), é a obra de Eduardo Galvão. Já desde os primeiros anos da década de 50 este antropólogo refletia criticamente sobre o conceito de aculturação e a reavaliação geral estadunidense: para ele, os estudos de aculturação tinham virado quase sinônimo de mudança social, propondo em seu lugar assimilação como conceito chave. Contudo, Cardoso também não o cita em seus trabalhos sobre o tema. Nesse sentido, a questão que surge é de saber se o autor participou da III RBA, em 1958, e qual teria sido a influência de autores como Thales em sua obra.

A participação ou não de Cardoso de Oliveira na Reunião em Recife não se resolve com facilidade. Por um lado, em um livro escrito sobre os 50 anos da ABA, em um artigo comemorativo da Reunião, Motta, Scott & Athias (2006, p. 321) apresentam uma lista de participantes em que consta R. Cardoso de Oliveira. Porém, ele não é mencionado no relato da Reunião de fato, como se lê nos próprios Anais, dando a distinta impressão de que ele não estava fisicamente presente, mas tendo sua contribuição incluída para a publicação. Na lista de assinaturas de participantes parabenizando a organização do evento não consta a sua (Hutzler, 2014, pHUTZLER, Celina Ribeiro (org.). René Ribeiro e a antropologia dos cultos afro-brasileiros. Recife: Edufpe, 2014., p. 203) (nem nas fotos da Reunião ele aparece facilmente distinguível). De todo modo, os Anais saíram em 1959, e Cardoso deve ter visto a coletânea, naquele tempo havia algo como em torno de 40 pessoas participando da RBA, e qualquer produção dos colegas ainda poderia ser lido com facilidade. Ou seja, como um autor com uma contribuição incluída na publicação, é de se supor com boa dose de certeza que ele tenha recebido, visto, e lido os artigos constantes dos Anais.

Com uma de suas primeiras publicações nos Anais, numa época em que a quantidade destas em antropologia e etnologia não inundava a mesa dos antropólogos, conclui-se que a probabilidade de ter visto e lido o artigo de Thales configura-se como extremamente grande. Tal probabilidade desperta a curiosidade em se saber de que maneira esse artigo influiu RCO; afinal, Thales limita aí o conceito de aculturação a uma determinada situação interétnica, e quando se entra na fase de dominação interétnica clara, ele propõe outro conceito. Ou seja: ao invés de uma fase de relativa autonomia de ambos os lados, e a consequente criatividade dentro dos seus próprios contextos socioculturais, passa-se a uma situação de clara dominação caracterizada por ele, como visto, em uma relação sociológica de assimetria que retira essa capacidade de criação por parte do lado dominado. O termo regime escolhido por Thales conota a sistematicidade da dominação exercida, e não destoa da ênfase de Oliveira sobre o caráter sociológico e totalizador da diferença de poder. Em suma, Thales limita o conceito de aculturação a determinada situação de igualdade interétnica e quando se entra na fase de dominação interétnica clara ele propõe outro conceito que imediatamente nomeia a relação de força. O conceito propõe uma relação sociológica assimétrica sistemática, e certamente caberia como uma luva para a relação da sociedade regional com os Terena, mas não figura na literatura referida por Oliveira nem como inspiração.

Logo após a pesquisa com os Terena, finalizada em 1959, Oliveira se engaja em pesquisa de campo com os Tikuna e começa a elaborar a noção de fricção interétnica, aquela que Laraia caracteriza como uma suposta ruptura teórica total com as teorias de então. Adicionamos aqui dois outros pontos salientes. Primeiro, fricção orienta a atenção para a sociologia do conflito, muito corretamente. Além disso, talvez chame uma certa atenção a uma proporção “englobante” do caráter conflituosa em relações interétnicas cotidianas.36 36 Galvão, como João Pacheco de Oliveira (2001) chama a atenção, em 1953 já criticava o conceito de aculturação em termos totalizadores: qualquer intrusão acabava em mudanças totais promovidas. Portanto, a ideia de totalidade também já tinha sido antes expressa no Brasil. Muito embora, essa interpretação não parece ser muito presente nas suas análises. Por outro lado, o conceito tira um pouco o peso sobre o caráter sistêmico do exercício de uma dominação interétnica. Por essa razão temos preferido muitas vezes usar dominação, ao invés de fricção, porque a última parece conotar menos a assimetria envolvida. Em segundo lugar, Oliveira define sua noção como o “equivalente lógico (mas não ontológico)” da “luta de classes” (Oliveira, 1967OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Problemas e hipóteses relativos à fricção interétnica: sugestões para uma metodologia. Revista do Instituto de Ciências Sociais, v. IV, n. 1, p. 41-91, 1967., p. 43). Isso, é claro, combina bem com o indício nos seus primeiros artigos de uma certa influência marxista. Não obstante, o “equivalente” mais evidente de luta de classes, à primeira vista, talvez não fosse a fricção interétnica, mas a luta de etnias.37 37 Ou, atentos a certa moda atual, seria uma luta de ontologias, o que também alerta para o caráter totalizador, e talvez seja mais ampla, ao tempo em que, por outro lado, causa certa deriva na ênfase necessária sobre uma sociologia da luta.

Nesse sentido, o conceito elaborado por Thales de regime de relação assimétrica destaca justamente com mais força a questão da luta de etnias, e, mais do que isto, enfatiza o caráter assimétrico da dominação em jogo. Infelizmente, com exceção de Egon Schaden (cf. Azevedo, 1976AZEVEDO, Thales de. Catequese e aculturação. In: SCHADEN, Egon (org.) Leituras de etnologia brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 365-384.), essa análise de Thales foi sistematicamente ignorada, e nem Cristina Pompa (2003)POMPA, Cristina. Religião como tradução. Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2003. em sua excelente tese Religião como tradução, assim como, Eduardo Viveiros de Castro (2002)CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002., no seu famoso artigo “o mármore e a murta”, cita qualquer trabalho de Thales. É claro que Viveiros de Castro está interessado em uma fase anterior à dominação explícita, decifrando como os Tupi subverteram a lógica da conversão dos jesuítas com a sua própria lógica sociocultural. Uma lógica sociocultural, diga-se de passagem, que criava transformações dentro das suas premissas socioculturais fundamentais e, em razão disso, desapontavam os jesuítas rapidamente o suficiente para justificar seu pedido para a implantação de um regime assimétrico. Vale lembrar que Thales distingue exatamente essas fases como sendo qualitativamente diferentes, porque na fase anterior, inicial, há autonomia e identidade própria, que permite escolher e ter, portanto, o ‘poder suficiente’ para a liberdade de criação sociocultural, a partir de suas premissas fundamentais. A diferença com Viveiros de Castro reside, portanto, no tempo em que se processou essa mudança de regime. Para Thales, a decepção dos jesuítas demorou muito pouco para acontecer. Viveiros de Castro obviamente não ignora a dominação e suas consequências, mas não distingue tão claramente entre essas fases. De fato, logo no segundo governo central, depois de Tomé de Souza, em 1553, a repressão dos índios vizinhos já se instala com toda força. A análise de Thales, consequentemente, trata o caso dos Tupi da Costa como um caso de regime de dominação, enquanto Viveiros procura discernir a criatividade Tupi da fase anterior bem mais breve e parece misturar um pouco as fontes dessas fases quando seu objetivo implica em se concentrar na fase da autonomia. Tal análise, aliás, o induz a constatar a famosa inconstância da alma selvagem (Castro, 2002CASTRO, Eduardo Viveiros de. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.).38 38 O que uma leitura atenta de seu artigo percebe é a eminente e sofisticada demonstração da ‘constância dessa inconstância’, o que levanta a possibilidade que durante esse breve período talvez se pudesse dizer que no caso dos Tupi a ‘murta’ ocultava o ‘mármore’, e a ‘abertura para o outro’ dos indígenas (afirmação geral na literatura etnológica), talvez não seja tão ‘aberta’ antes da coerção colonial, conquistadora e devastadora. A murta parece esconder uma ‘constância’ consistindo duma ‘abertura para o outro’ em seus próprios termos, a inconstância sendo a criatividade dos Tupi autônomos.

Thales, como visto, evidenciou como se estabeleceu rapidamente um regime de relação assimétrica e como esse regime atingiu instituições centrais do modo tupi de ser e destruiu sua capacidade criativa de responder às condições impostas. Continuando a metáfora, esse regime quebrou o mármore Tupi na marra e causou o que poderíamos chamar de ‘anomia étnica’ (muito próximo de Thales). Nisso, ele também antecipa a situação mais corriqueira e generalizada dos povos indígenas em toda a história da conquista até hoje, que é exatamente a falta de poder de decisão sobre seu próprio futuro, por causa das forças dominantes que se exercem a partir da ‘sociedade nacional’. Todos os que exercem poder sobre povos subalternos sempre tem certeza absoluta de agir em prol dos seus protegidos e de sempre lhes fazer o bem e nunca se concede a esses povos o direito de decidir com autonomia.39 39 O grande problema na história brasileira (e continental) é que uma autonomia real, com uma base legítima, real, exclusiva e suficiente de recursos territoriais naturais, com o poder de decisão nas suas próprias mãos, permanece como uma utopia nunca concedida pelo Estado e pela ideologia étnica brasileira. O Brasil, nesse sentido, nunca foi descolonizado mas permanece um Estado infracolonial.

Na verdade, a pesquisa de Roberto Cardoso sobre os Terena de fins de 1958, a meados de 1959, reconhece exatamente esse fato: “ao nível do sistema interétnico fica evidente que é a sociedade nacional que é […] condicionador maior das relações interétnicas […] As condições então vigentes [aldeias com terras totalmente insuficientes; índios como mão-de-obra barata nas grandes fazendas nos seus antigos territórios; migração para a cidade em condições de pessoas fortemente estigmatizadas] foram produzidos pela sociedade nacional, pelo menos por sua face expansionista.” (Oliveira, 1976OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Do Índio ao Bugre. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 7-8).

Thales, contudo, e como temos visto, desdobra esse mesmo ponto de vista com um conceito sociológico próprio, orientador central, que põe mais forçosamente em cena a conquista, a “assimetria étnica” e seus efeitos devastadores. A sua análise aprofunda os efeitos sobre as instituições centrais Tupi e a destruição do seu sentido da vida e, portanto, da capacidade de resposta criativa dos Tupi afetados. Nesse sentido, Oliveira acerta nas suas formulações, mas, de um ponto de vista atual e do ponto de vista da análise de Thales, poderia ter sido mais incisivo no que tange à sociologia da dominação. Vale observar que uma das estudantes de primeira hora de Cardoso de Oliveira, Alcida Ramos (1990RAMOS, Alcida Rita. Ethnology Brazilian Style. Cultural Anthropology v. 5, issue 4, p. 452-72, 1990., p. 463) expressou uma observação semelhante quando observa que, mesmo quando já está na fase da teoria da fricção interétnica, que é vista como mais sociológico e um avanço sobre a obra sobre os Terena:

He claims that the two parties of the contact situation are interdependent, “paradoxical as it may seem.” The problem with this statement is that it may give the impression that it puts the Indians on a rather more favorable footing than they really are. […] In fact, the asymmetry of the relationship is virtually total, for it actually involves a unilateral dependence.40 40 “Ele assevera que os dois lados da situação de contato são interdependentes, “por paradoxal que possa parecer”. O problema com essa afirmação é que pode dar a impressão que coloca os índios numa situação bem mais favorável do que se encontram. (...) De fato, a assimetria da relação é virtualmente total, já que na realidade envolve uma dependência unilateral.”

Ou seja, apesar da inspiração marxista (como também de Florestan Fernandes), e da demonstração cabal dos efeitos nocivos da história da dominação sobre os Terena, Cardoso de Oliveira formulou o conteúdo de dominação de um modo um tanto tímido, mesmo quando avança para a formulação conceitual sociológica mais afinada.41 41 Em resposta a Ramos, Cardoso de Oliveira afirmou que a sua teoria melhorou as anteriores no seguinte aspecto, “In these approaches, the emphasis was on systems in equilibrium and on consensus, whereas the model of interethnic friction highlighted conflict and dissent” (Corrêa, 1991, p. 340) (“Nessas abordagens a ênfase era sobre sistemas em equilíbrio e sobre consenso, enquanto o modelo da fricção interétnica destacava conflito e dissenso”). Uma visão, será claro, não obstante compreensível numa entrevista, um tanto quanto simplificada do passado; e ele só se refere aos britânicos e estadunidenses. Curiosamente, o não marxista Thales de Azevedo desenvolveu um conceito bem mais incisivo e penetrante para dar conta do processo de conquista dos povos indígenas, porém posto em ostracismo, conceito este que responde melhor – ainda hoje – aos questionamentos atuais dos etnólogos contemporâneos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo procuramos evidenciar alguns pontos que consideramos importantes para a antropologia brasileira em geral, e sua história em particular, mesmo que estejamos, desde o princípio, cientes que o espaço de um artigo para isto não permite uma fundamentação rica.

Nossa argumentação, primeiramente, ressalta que o campo da antropologia brasileira, desde seu início e apesar do número restrito de profissionais, sempre foi um campo fecundo para o debate e a diversidade do pensamento acadêmico; e o movimento em torno do conceito de aculturação é um bom exemplo disto. Segundo, disto resulta a evidência de que a presença de pesquisadores criativos e sofisticados, capazes de apresentar soluções originais para questões teóricas e etnográficas, como é o caso de Thales e sua crítica produtiva ao conceito de aculturação, em que propõe uma alternativa a ele com o seu desdobramento em dois conceitos: aculturação e regime de relação assimétrica. Em terceiro lugar, sobressai o fato de que esta efervescência intelectual foi “apagada” da memória coletiva da antropologia brasileira, aqui demonstrado com o processo que levou a obra de Thales ao obscurantismo no campo da etnologia indígena.42 42 Só podemos mencionar de passagem a trajetória posterior do conceito de aculturação. Como disse Peter Gow (2011, p. 527), o conceito de aculturação nos Estados Unidos ficou associado ao “índio fodido” e a algo de ruim. No Brasil, os estudos etnográficos ou etnohistoricas posteriores buscam alternativas não contaminadas. Porém, isso não é inerente ao conceito e suas definições. Gow (2011; 2015) propôs se inspirar no conceito como desenvolvido pela primeira vez por um alemão, há cem anos, quando aplicou aculturação para analisar as relações entre povos indígenas. Gow visa elaborar uma “teoria etnográfica da aculturação” dos povos indígenas (evocando o uso de Thales).

Um quarto ponto que procuramos demonstrar, considerando Roberto Cardoso de Oliveira como agente principal, é que esta efervescência implica também em lutas teóricas, institucionais e geopolítico-acadêmicas dentro do campo da antropologia brasileira (Reesink; Campos, 2014REESINK, Mísia Lins; CAMPOS, Roberta. A geopolítica da antropologia no Brasil ou como a província é submetida ao leito de procusto. In: SCOTT, Parry et al. Rumos da antropologia no Brasil e no mundo: geopolíticas disciplinares. Recife: Edufpe, 2014. p. 53-81.; 2017), em que as reflexões de Thales parecem ter se constituído em competidoras das posições de Cardoso de Oliveira, em que este último se saiu como o expoente teórico par excellence. Neste sentido, parece-nos que o desenvolvimento do conceito de fricção interétnica alcançou dois objetivos para o autor: de um lado, demonstra sua competência no campo da etnologia indígena (uma preocupação sua); de outro, seus esforços de se consolidar como um analista teórico, um antropólogo que ultrapassa a etnografia para desenvolver, criativamente, conceitos novos. Tudo isso não implica em afirmar que a ideia de fricção interétnica esteja desprovida de originalidade e que sua reelaboração conceitual seja irrelevante, ao contrário. Não obstante, vale recordar que na mesma época outros teóricos também pensaram criticamente sobre mudança e relações interétnicas; como o caso de E. Galvão.43 43 Para ilustração: Pacheco de Oliveira (2001) afirma sobre Galvão que esse último efetuou uma “retificação conceitual e correção de rumos”, em que o conceito de assimilação para Galvão encerra “um poder assimétrico de determinação da qualidade e do ritmo da mudança cultural” (ib., p. 212; em itálico no texto). Talvez a saída de Galvão da UnB e sua permanência em Belém causou efeito semelhante de ser alocado na ‘periferia’ numa história cada vez mais feita no ‘centro’ (M. Reesink; Campos, 2014, p. 72). Como a epígrafe de Colson diz, subutilizamos nossos ancestrais intelectuais; e poderíamos citar bem mais exemplos de autores importantes da mesma época.

Em seu artigo, Thales de Azevedo propõe-se empreender a mesma tarefa de pensar teorica e etnograficamente a questão fundamental das relações interétnicas no Brasil. E o faz, comparando com as outras propostas concorrenciais no seu tempo, de um modo mais direto e explícito, até porque trata de realçar as diferenças entre duas situações históricas dissimilares, que põem em relevo a aplicabilidade de dois conceitos relacionados, mas com uma profunda diferença de poder, um poder ‘simétrico’ versus um poder assimétrico. Em resumo, em que pese a sua originalidade e potencial revelador maior da diversidade das condições de força nas relações de dominação, Thales não desfrutou do mesmo impulso institucional e concorrencial que Cardoso de Oliveira desfrutou e a que, na década de 60, se dedicou com muito afinco no Museu Nacional. Talvez por ser uma pessoa intrinsecamente modesta e generosa, Thales nunca buscou se impor no campo acadêmico, ou fundar linhagens.44 44 Castro Faria, numa entrevista sobre a história das ciências sociais no Brasil, repara numa óbvia diferença entre sua própria atuação e propósito acadêmico, comparado com os do colega que convidou para o Museu Nacional. Castro Faria não intentava fundar uma linhagem intelectual, ao contrário de Cardoso de Oliveira, para quem Castro Faria diz que “(...) costuma apontar um erro: (…) ele sempre se preocupou muito em formar discípulos (…) uma preocupação muito grande, e é terrível, porque cria uma dependência. Enquanto estavam trabalhando com ele, ele mesmo dirige o ensino no sentido de formar discípulos” (Trindade, 2012, p. 39).

Retomar aqui os conceitos de Thales não significa apenas prestar uma homenagem (justa) a este pensador. Significa, sobretudo, tirar do obscurantismo os seus conceitos de aculturação e o regime de relação assimétrica, que consideramos ainda hoje pertinentes, e que mereciam uma sorte melhor do que tiveram em função, talvez, por hipótese e a fundamentar melhor, resultante das dinâmicas geopolíticas no campo da antropologia brasileira.

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  • 1
    Artigo publicado na coletânea no livro “Projeto UNESCO, 50 Anos Depois”, resultante do Seminário sobre o Projeto Unesco, nos anos 50 de século passado, sendo Thales um dos seus integrantes, representando a UFBA.
  • 2
    No principal artigo a ser tratado aqui, “Aculturação dirigida: notas sobre a catequese indígena no período colonial brasileiro”, Thales de Azevedo anuncia logo no início do texto que o seu propósito é o de investigar o método de catequese para a obtenção daquilo ele chama, com o uso das aspas, de a “conquista espiritual” (Azevedo. 1959a, p. 78), e que inspirou título de nosso artigo.
  • 3
    Ver a página na internet dedicada a Thales de Azevedo, http://www.thalesdeazevedo.com.br/biografia.htm. Ou, como exemplo de um dos temas caro ao antropólogo, uma avaliação de sua importância e atualidade de seus estudos de catolicismo (Souza Neto, 2017).
  • 4
    Não é por acaso que Gilberto Freyre escreveu a apresentação do livro e, sendo ele um brasilianista nativo, ressalta essa, digamos, ‘comparação infrabrasileira’, que sempre defendeu.
  • 5
    Matéria em um jornal no Rio de janeiro de 15-x-41 (Azevedo, 1943AZEVEDO, Thales de. Gaúchos. Notas de uma antropologia social. Bahia: Ed. do autor impresso na Tipografia Naval, 1943., p. I). Freyre o incentivou também pessoalmente.
  • 6
    Segunda a página web sobre Thales na internet, http://www.thalesdeazevedo.com.br/depoim04.htm, Herskovits comentou sobre esse texto: “Your use of the culture area concept is quite new since I have never seen it employed except for very large regions, almost of a sub-continental order. I am glad that it has proved useful to you in organizing your data”. Ou seja, Thales, desde cedo, não somente reproduz, mas também reflete sobre os conceitos importados para aplicá-los de forma criativa.
  • 7
    Pedro Agostinho fez um levantamento de todo a produção de Thales e menciona um primeiro estudo sobre os conceitos centrais de “aculturação dirigida” e “método aculturativo de catequese”, de 1957: Uma prioridade historica dos Portugueses. O método aculturativo de catequese.” Não conseguimos acesso a esse texto.
  • 8
    Vale anotar que, nessa época, ocorria um seminário regular em antropologia na Faculdade de Filosofia da Bahia, com participação de antropólogos e outros cientistas sociais, tanto nacionais, como internacionais (veja um resumo dessas atividades na introdução de Thales no livro sobre Durkheim, organizado por Azevedo, Souza Sampaio e Machado Neto, em 1959).
  • 9
    Em 1958 o antropólogo José Loureiro, atuante na ABA, funda o Departamento de Antropologia em Curitiba. Ele publicou um importante artigo nos Anais da III Reunião. Como foi presidente da ABA nessa época, organizou a IV Reunião. Eram poucas pessoas ainda, e todos puderam assistir todas as atividades (sobre essas e outras atividades, Chmyz, 2006CHMYZ, Igor. Acompanhando a Associação Brasileira de Antropologia por três décadas. In: GODOI, Emilia Pietrafesa de; ECKERT, Cornelia (org.). Homenagens, Associação Brasileira de Antropologia, 50 anos. Fortaleza: Nova Letra, 2006. p. 185-97.).
  • 10
    Anais, Recife 1959; sem editor especificamente mencionado – os tempos eram outros, e os presidentes da ABA não ‘necessitavam’ organizar e publicar livros financiados pela ABA, em seu nome, para fins de cv Lattes.
  • 11
    Thales cita o caso de uma festa indígena, com muitos traços indígenas, em que participou um “diabo” (anhanga) que saiu do mato. O que evoca, aliás, em um parêntese prospectivo, a presença contemporânea de entes como os “Praiá” e os “Encantados” nordestinos (e Encantado, é claro, é melhor que diabo, enquanto se filia a outra tradição europeia que não era considerada “religião”). O nome Toré para o ritual pan-nordestino atual, e a presença do nome de “deus Tupã”, são influências de nomes tupi, de longa duração, para cuja adoção os missionários contribuíram decisivamente.
  • 12
    É muito recorrente na história, e isso existe até hoje documentado em certas etnografias, em que ser pagão e não batizado é considerado pela população brasileira como uma falta de ser “humano”, ser uma ‘não-pessoa’, ainda estando ao nível do animal (M. Reesink, 2006REESINK, Mísia Lins. Les passages obligatoires. Cosmologie catholique et mort dans le quartier de Casa Amarela, à Recife (Pernambuco – Brésil). Lille: ANRT, 2006.).
  • 13
    O que talvez prefigure o “mau selvagem”, que termina por se espelhar no primeiro.
  • 14
    Note-se, de passagem, que aí se formou uma analogia portuguesa importante para capturar o xamã e suas práticas em uma categoria de acusação que, possivelmente, perdura até hoje.
  • 15
    Hoje em dia os Tupinambá de Olivença organizam marchas em memória dos seus mártires, lembrando entre outros eventos, o massacre do rio Cururupe do século XVI, perpetrado pelo então governador-geral Mem de Sá durante a Batalha dos Nadadores.
  • 16
    Thales explora basicamente o relato de Martin de Nantes. Hoje, dispomos de um acesso mais fácil para as outras publicações sobre a língua Kiriri, da autoria do jesuíta Mamiani (cf. E. Reesink, 2017REESINK, Edwin B. A alparcata do Conselheiro e a maior alegria do mundo. As etnohistorias Kaimbé e Kiriri e as suas participações indígenas em Bello Monte. 2017. Tese Titular - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017.).
  • 17
    Na realidade, esse é um ponto que poderia ser explorado mais e reforçado, já que um jesuíta nas aldeias dos “Quiriris” anotou, depois de um conflito religioso, que o principal dos índios afirmou que “Queremos ser cristãos, mas queremos também conservar os costumes dos nossos antepassados” (veja E. Reesink, 2017REESINK, Edwin B. A alparcata do Conselheiro e a maior alegria do mundo. As etnohistorias Kaimbé e Kiriri e as suas participações indígenas em Bello Monte. 2017. Tese Titular - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017.).
  • 18
    Por exemplo, nos anos trinta do século passado, foi instaurada uma primeira comissão de antropólogos estadunidenses para uma revisão do conceito.
  • 19
    A citação em si interessa aqui por seu caráter inovador e por ser a mesma crítica ao conceito de aculturação e a adoção de “assimilação”. Além disso, a crítica, muito antes do tempo sobre os critérios de etnicidade, parece ter passado basicamente despercebida, ou esquecida, quando da renovação do conceito no fim dos anos 60 tal como na influente proposta por Barth e colegas.
  • 20
    “Da seção anterior fica claro que os Makah não são distinguidos dos outros povos por sua aparência física. Não são distinguidos como um grupo a partir da posse de uma língua ou cultura em comum. Não são um povo que descendem de um grupo de ancestrais em comum. Não são um grupo segregado, isolado de contatos sociais com aqueles que não são considerados membros de sua tribo. Não obstante, os Makah tem perfeita certeza quem deve ser considerado membro do seu grupo.”
  • 21
    Beals mostrou as dissensões e muitos problemas do conceito tal como a falta de metodologias, de teoria, de consenso sobre o conceito, e a precariedade geral desse campo. Até mesmo aponta que o conceito veio de influência alemã e não da antropologia estadunidense, fato geralmente esquecido quando, cada vez mais, toda a literatura alemã tem sofrido com a barreira linguística e com sua marginalização.
  • 22
    Essa foi a segunda comissão criada para esse fim, a primeira tinha sido realizada antes da Segunda Guerra mundial. Ao contrário do que ocorreu com uma primeira comissão, a qual causou certa polêmica com a sua própria criação, a instauração da segunda, em 1953, foi tomada com tranquilidade.
  • 23
    Notamos que, na sua avaliação teórica, Beals (1953BEALS, Ralph. Acculturation. In: KROEBER, A. (org.). Anthropology Today. Chicago: University of Chicago Press, 1953. p. 621-41., p. 628) comenta o conceito de transculturação, afirmando que esse só tinha sido aplicado por alguns latino-americanos e não por estadunidenses. Beals até sugere que este poderia ter um aproveitamento maior, se a noção de aculturação não fosse tão aceita. Esta observação de Beals nos dá uma indicação das ‘fricções acadêmicas’.
  • 24
    Thales já chamava a atenção para as chamadas “santidades”, que são a reação revivalista quando a deculturação provocada é seguida de re-enculturação. É interessante perceber que Thales considera a rendição e a revivalismo como ações conscientes – ao contrário de aculturação autônoma –, e como uma re-enculturação interessada pela necessidade de buscar novo equilíbrio e uma nova formulação do sentido da existência. Ou seja, ele prevê o que podemos chamar de uma ‘reflexividade indígena’ no caso da dominação explícita. Esta proposta, como outras proposições, e apesar de sua relevância, também tem sido pouco explorada.
  • 25
    Dado a atual popularidade de antropologia simétrica, talvez não fosse tão má ideia. No entanto, aplicar um adjetivo à noção continua não parecer uma ideia muito viável, e parece melhor separar os termos de modo diacrítico, por assim dizer, com o deslize já notado.
  • 26
    Como visto em nota anterior, Beals até advoga em favor do conceito de transculturação, mas a esmagadora parte da literatura manteve o conceito de aculturação. Sabe-se que a noção do cubano F. Ortiz só ganharia destaque mais geral décadas depois. Uma das razões desta demora, segundo o próprio Ortiz, é que Herskovits não teria gostado que, na introdução da tradução inglesa da obra de Ortiz, Malinowski tenha preferido esse conceito ao seu favorito, a aculturação (Guimarães, 2019GUIMARÃES, Antonio Sérgio. A democracia racial revisitada. Afro-Ásia, n. 60, p. 9-44, 2019., p. 32-4). Não é de estranhar, então, que Thales siga as pistas oferecidas pelo memorandum.
  • 27
    Lamentavelmente os resumos em inglês, francês e alemão foram retirados. Esses resumos contém a essência do artigo de Thales formulada de uma maneira às vezes bem mais contundente do que no próprio texto.
  • 28
    Algo, diga-se de passagem, que coincide com a sua caracterização do tipo de intervenção praticada, alicerçada na concepção de seres humanos de grande qualidade moral, que ele distinguiu antes.
  • 29
    É interessante reparar que ele utiliza o livro em alemão de Max Schmidt sobre os Aruak e suas conquistas e subordinação de outros povos. Isto porque este livro caiu quase em esquecimento, até que a sua análise pioneira foi relembrada na Etnologia das Terras Baixas nos últimos anos. Sob o estímulo do colega Peter Schröder, E. Reesink fez uma intervenção sobre a modernidade da abordagem de Schmidt nesse livro numa reunião de antropologia do Norte-Nordeste em Roraima (ABANNE, 2011). O mesmo colega se empenhou em publicar esse livro numa tradução brasileira.
  • 30
    No artigo, Beals é citado como 1954, mas no livro de 1960, quando saiu publicado o manuscrito escrito entre fim de 1958 e meados de 1959, a referência é citada corretamente (Beals, 1953BEALS, Ralph. Acculturation. In: KROEBER, A. (org.). Anthropology Today. Chicago: University of Chicago Press, 1953. p. 621-41.). Acresce-se ainda que há uma pequena falha no artigo, porque na bibliografia essa referência não aparece. Sem querer dar demasiada atenção ao esquecimento, afinal deve ser um mero erro de revisão, de certa forma o fato é ilustrativo da não citação de Thales nos escritos depois de 1959.
  • 31
    O que, talvez, tenha sido influência de Colson, que elegeu o mesmo caminho conceitual no trabalho citado. No entanto, na nossa leitura, isso não ficou claro no artigo.
  • 32
    Do ponto de vista nordestino atual, algo irônico, porque os Terena mantinham sua língua e um xamanismo vivo. O próprio Cardoso de Oliveira (1970)OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Por uma sociologia do campesinado indígena no Brasil. Universitas, n. 6/7, p. 433-42, 1970. reviu essa opinião quando foi se ocupar do “campesinato indígena”, no fim da década de 60, e orientou o trabalho de Paulo Amorim sobre os Potiguara.
  • 33
    Às vezes se percebe nos meios antropológicos brasileiros das gerações mais novas a sugestão de que o conceito de aculturação equivale ao de assimilação, a ser descartado de antemão. Ou seja, tudo se passa como se aculturação implicasse automaticamente assimilação e dissolução étnica. De fato, o conceito caiu no ostracismo. Nem para Thales, nem para Cardoso, essa automatismo esteve no horizonte conceitual. O que ressaltam, em contrapartida, é que o conceito precisa de uma complementação conceitual que, embora não ausente na sua origem, explicite melhor a conflitualidade.
  • 34
    Foi então que, a partir dessa crítica, Roberto formulou a teoria da fricção interétnica, nome que deu “ao contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira, caracterizado por seus aspectos ‘competitivos’ e, no mais das vezes, ‘conflituais’, assumindo esse contato proporções ‘totais’, isto é, envolvendo toda a conduta tribal e não tribal que passa a ser moldada pela ‘situação de fricção interétnica’”.” (Laraia, 2008LARAIA, Roque. Trajetórias convergentes: Cardoso de Oliveira e Maybury-Lewis. Mana, v. 14, n. 2, p. 547-54, 2008., p. 551).
  • 35
    Outro exemplo que sinaliza para um espírito de tempo bem mais controverso do suposto, e analisado por Pacheco de Oliveira (2001)OLIVEIRA, João Pacheco de. Galvão e os estudos de aculturação no Brasil: ou “Santo de casa também faz milagre”. In: FAULHABER, P.; TOLEDO, P. M. de (org.) Conhecimento e fronteira, história da Ciência na Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2001. p. 205-11., é a obra de Eduardo Galvão. Já desde os primeiros anos da década de 50 este antropólogo refletia criticamente sobre o conceito de aculturação e a reavaliação geral estadunidense: para ele, os estudos de aculturação tinham virado quase sinônimo de mudança social, propondo em seu lugar assimilação como conceito chave. Contudo, Cardoso também não o cita em seus trabalhos sobre o tema.
  • 36
    Galvão, como João Pacheco de Oliveira (2001)OLIVEIRA, João Pacheco de. Galvão e os estudos de aculturação no Brasil: ou “Santo de casa também faz milagre”. In: FAULHABER, P.; TOLEDO, P. M. de (org.) Conhecimento e fronteira, história da Ciência na Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2001. p. 205-11. chama a atenção, em 1953 já criticava o conceito de aculturação em termos totalizadores: qualquer intrusão acabava em mudanças totais promovidas. Portanto, a ideia de totalidade também já tinha sido antes expressa no Brasil.
  • 37
    Ou, atentos a certa moda atual, seria uma luta de ontologias, o que também alerta para o caráter totalizador, e talvez seja mais ampla, ao tempo em que, por outro lado, causa certa deriva na ênfase necessária sobre uma sociologia da luta.
  • 38
    O que uma leitura atenta de seu artigo percebe é a eminente e sofisticada demonstração da ‘constância dessa inconstância’, o que levanta a possibilidade que durante esse breve período talvez se pudesse dizer que no caso dos Tupi a ‘murta’ ocultava o ‘mármore’, e a ‘abertura para o outro’ dos indígenas (afirmação geral na literatura etnológica), talvez não seja tão ‘aberta’ antes da coerção colonial, conquistadora e devastadora. A murta parece esconder uma ‘constância’ consistindo duma ‘abertura para o outro’ em seus próprios termos, a inconstância sendo a criatividade dos Tupi autônomos.
  • 39
    O grande problema na história brasileira (e continental) é que uma autonomia real, com uma base legítima, real, exclusiva e suficiente de recursos territoriais naturais, com o poder de decisão nas suas próprias mãos, permanece como uma utopia nunca concedida pelo Estado e pela ideologia étnica brasileira. O Brasil, nesse sentido, nunca foi descolonizado mas permanece um Estado infracolonial.
  • 40
    “Ele assevera que os dois lados da situação de contato são interdependentes, “por paradoxal que possa parecer”. O problema com essa afirmação é que pode dar a impressão que coloca os índios numa situação bem mais favorável do que se encontram. (...) De fato, a assimetria da relação é virtualmente total, já que na realidade envolve uma dependência unilateral.”
  • 41
    Em resposta a Ramos, Cardoso de Oliveira afirmou que a sua teoria melhorou as anteriores no seguinte aspecto, “In these approaches, the emphasis was on systems in equilibrium and on consensus, whereas the model of interethnic friction highlighted conflict and dissent” (Corrêa, 1991CORRÊA, Mariza. An interview with Roberto Cardoso de Oliveira. Cultural Anthropology, v. 32, n. 3, p. 335-43, 1991., p. 340) (“Nessas abordagens a ênfase era sobre sistemas em equilíbrio e sobre consenso, enquanto o modelo da fricção interétnica destacava conflito e dissenso”). Uma visão, será claro, não obstante compreensível numa entrevista, um tanto quanto simplificada do passado; e ele só se refere aos britânicos e estadunidenses.
  • 42
    Só podemos mencionar de passagem a trajetória posterior do conceito de aculturação. Como disse Peter Gow (2011GOW, Peter. A aculturação é um objeto legítimo da Antropologia, entrevista com Peter Gow. Revista de Antropologia, v. 54, n. 1, p. 517-539, 2011., p. 527), o conceito de aculturação nos Estados Unidos ficou associado ao “índio fodido” e a algo de ruim. No Brasil, os estudos etnográficos ou etnohistoricas posteriores buscam alternativas não contaminadas. Porém, isso não é inerente ao conceito e suas definições. Gow (2011GOW, Peter. A aculturação é um objeto legítimo da Antropologia, entrevista com Peter Gow. Revista de Antropologia, v. 54, n. 1, p. 517-539, 2011.; 2015) propôs se inspirar no conceito como desenvolvido pela primeira vez por um alemão, há cem anos, quando aplicou aculturação para analisar as relações entre povos indígenas. Gow visa elaborar uma “teoria etnográfica da aculturação” dos povos indígenas (evocando o uso de Thales).
  • 43
    Para ilustração: Pacheco de Oliveira (2001)OLIVEIRA, João Pacheco de. Galvão e os estudos de aculturação no Brasil: ou “Santo de casa também faz milagre”. In: FAULHABER, P.; TOLEDO, P. M. de (org.) Conhecimento e fronteira, história da Ciência na Amazônia. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 2001. p. 205-11. afirma sobre Galvão que esse último efetuou uma “retificação conceitual e correção de rumos”, em que o conceito de assimilação para Galvão encerra “um poder assimétrico de determinação da qualidade e do ritmo da mudança cultural” (ib., p. 212; em itálico no texto). Talvez a saída de Galvão da UnB e sua permanência em Belém causou efeito semelhante de ser alocado na ‘periferia’ numa história cada vez mais feita no ‘centro’ (M. Reesink; Campos, 2014REESINK, Mísia Lins; CAMPOS, Roberta. A geopolítica da antropologia no Brasil ou como a província é submetida ao leito de procusto. In: SCOTT, Parry et al. Rumos da antropologia no Brasil e no mundo: geopolíticas disciplinares. Recife: Edufpe, 2014. p. 53-81., p. 72). Como a epígrafe de Colson diz, subutilizamos nossos ancestrais intelectuais; e poderíamos citar bem mais exemplos de autores importantes da mesma época.
  • 44
    Castro Faria, numa entrevista sobre a história das ciências sociais no Brasil, repara numa óbvia diferença entre sua própria atuação e propósito acadêmico, comparado com os do colega que convidou para o Museu Nacional. Castro Faria não intentava fundar uma linhagem intelectual, ao contrário de Cardoso de Oliveira, para quem Castro Faria diz que “(...) costuma apontar um erro: (…) ele sempre se preocupou muito em formar discípulos (…) uma preocupação muito grande, e é terrível, porque cria uma dependência. Enquanto estavam trabalhando com ele, ele mesmo dirige o ensino no sentido de formar discípulos” (Trindade, 2012TRINDADE, Helgio. Ciências sociais no Brasil. Diálogos com mestres e discípulos. Brasília: Anpocs e Liber livro, 2012., p. 39).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Abr 2020
  • Aceito
    12 Jan 2023
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