Casais dual career e suas inclinações frente a relação trabalho e família: uma visão sobre o cenário brasileiro

Resumo

O objetivo desse trabalho se pauta em explorar a base de dados proveniente da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) a fim de se investigar a maneira como casais sob a ótica da dual career se inclinam diante das demandas da casa e do trabalho. Por meio de uma análise quantitativo-descritiva dos dados secundários da pesquisa buscou-se atualizar o modelo proposto por Berlato (2015), no qual tipologias foram delineadas para os brasileiros a partir de uma amostra de casais dual career ex-estudantes de uma universidade estadual paulista. A partir de uma amostra de 890 indivíduos derivada da PNAD, observou-se a predominância de características tradicionais nas inclinações do casal brasileiro, que apesar do caráter de mudança social que a dual career traz consigo, alguns traços que acentuam as disparidades entre os gêneros no país foram encontrados.

Palavras-chave:
Casal brasileiro; Dual career; Trabalho; Família

Abstract

This study aims to explore the database of the National Household Sample Survey (PNAD) produced by the IBGE (Brazilian Institute of Geography and Statistics) in order to investigate how couples from a dual-career perspective approach the demands of home and work. The study uses a quantitative-descriptive analysis of secondary data to update the model proposed by Berlato (2015), in which typologies were delineated from a sample of dual-career couples who were former students of a state university in São Paulo. From a sample of 890 individuals derived from the PNAD, it was possible to observe the predominance of traditional characteristics among Brazilian couples. Despite the suggestion of social change that comes with the dual-career phenomenon, there are still some features that accentuate gender disparities in the country.

Keywords:
Brazilian couples; Dual career; Work; Family

Resumen

El objetivo de este trabajo es explorar la base de datos proveniente de la Investigación Nacional por Muestra de Domicilios (PNAD) a fin de investigar la manera como parejas bajo la óptica de la dual career se inclinan ante las demandas de la casa y del trabajo. Por medio de un análisis cuantitativo-descriptivo de los datos secundarios de la investigación se buscó actualizar el modelo propuesto por Berlato (2015), en el cual se delinearon tipologías para los brasileños a partir de una muestra de parejas de doble carrera exestudiantes de una universidad estatal de São Paulo. A partir de una muestra de 890 individuos derivada de la PNAD, se observó la predominancia de características tradicionales en las inclinaciones de la pareja brasileña, que a pesar del carácter de cambio social que la doble carrera trae consigo, se encontraron algunos rasgos que acentúan las disparidades entre los géneros en el país.

Palabras clave:
Pareja brasileña; Doble carrera; Trabajo; Familia

INTRODUÇÃO

Dada à ampla discussão que envolve o tema trabalho e família entende-se que reconhecer as principais demandas que entremeiam tal assunto são sempre relevantes, sobretudo quando voltadas ao casal. Isto porque se entende que as variáveis que a envolvem são mutáveis e precisam ser revistas a fim de confirmar ou refutar impressões já obtidas nos estudos. É preciso considerar, hoje, que a reconfiguração familiar sofre contínuo metamorfismo e isso implica numa revisão dos “modos operandi”, inclusive das bases de dados utilizadas pelos pesquisadores. Assim, mesmo com essas limitações, o estudo oferece uma caracterização inédita do casal dual career e suas inclinações entre a casa e o trabalho, que pelo sistema de amostragem utilizado podem circundar toda a população brasileira.

Devido à insuficiência de trabalhos referentes à temática dual career no contexto nacional é significativo trazer um olhar mais amplo sobre a perspectiva brasileira, uma vez que cada país carrega consigo características peculiares as suas condições. Foi nesse esforço que Berlato (2015) tentou traçar o perfil do casal brasileiro dada suas especificidades, encontrando cinco tipos caracterizados segundo suas prioridades com relação as demandas do trabalho e da família. Contudo, os resultados de Berlato (2015) foram produzidos com uma amostra seletiva de indivíduos, fato este, que impede maiores generalizações e justifica a ampliação do escopo de pesquisa. Além disso, uma investigação mais abrangente sobre os tipos de casais representativos no país utilizaria uma base de dados mais geral que incluísse variáveis relacionadas à família e à dual career, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Nesse sentido, o objetivo do presente estudo é usar dados da PNAD para expandir a investigação de como casais de uma perspectiva da dual career no Brasil abordam as demandas da casa e do trabalho.

O uso de uma base de dados secundários como fonte para inferências relacionadas ao tema desse trabalho não é comum, porém não é novidade no cenário internacional (ALLEN e FINKELSTEIN, 2014; MOTTE-BAUMVOL, BONIN e BELTON-CHEVALLIER, 2015; MYSÍKOVÁ, 2014; MINNOTTE, MINNOTTE e THOMPSON, 2016). Todavia, na literatura nacional não há evidências de trabalhos que utilizem esse tipo de dado na investigação do tema da dual career. No Brasil, o que se verifica são alguns levantamentos relacionados a análise da composição familiar, que por sua vez priorizam dados mais informativos que uma análise crítica (BARROS, ALVES e CAVENAGHI, 2008; CAMARANO, MELLO e KANSO, 2009; LEONE, MAIA e BALTAR, 2010).

O uso da PNAD foi crucial para este trabalho devido a diversos fatores: sua validade nacional (contém dados de todos os estados brasileiros); sua composição (por retratar variáveis significativas no que tange a características relacionadas ao trabalho e a família); por sua periodicidade (que em comparação a outras pesquisas nacionais é bastante recorrente por ser anual); ao seu sistema amostral e devido à possibilidade de manipulação de seus microdados de acordo com as necessidades do pesquisador. A PNAD é amplamente utilizada em algumas áreas de conhecimento, como a Economia e as Ciências sociais, mas não é comum no campo da Administração, e especialmente em estudos que tratam da dual career. Mesmo assim, alguns autores tentaram utiliza-la para investigar o relacionamento entre a carreira e a esfera familiar (por exemplo, BRUSCHINI, 2007; BARROS, CARVALHO, FRANCO et al., 2009; POCHMANN e AMORIM, 2009; BONETTI e FONTOURA, 2009; MEDEIROS e SOUZA, 2016; REINDEL e PEREIRA, 2014). Assim, justifica-se a pertinência do objetivo proposto e as possíveis contribuições que tal levantamento trará a comunidade acadêmica, e especialmente aos estudos que versam sobre carreira.

REFERENCIAL TEÓRICO

O objetivo desta seção é situar o leitor quanto ao fenômeno da dual career, esclarecendo suas raízes e identificando tipologias relevantes criadas por pesquisadores que investigam as escolhas e prioridades dos casais.

A carreira do casal e algumas terminologias

Até o advento da teoria feminista, mais especificamente a entrada efetiva das mulheres no mercado de trabalho, o cenário social vigente era assinalado pelo chamado patriarcado. Esse modelo familiar é caracterizado, principalmente, pelo homem provedor (breadwiner) e a mulher dona de casa (housewife), com ou sem filhos (BRUSCHINI, 1990; ABRAMO, 2007).

As implicações desse modelo tradicional são muitas, no entanto, para este estudo, é interessante destacar os efeitos desse tipo de configuração familiar nos estereótipos de gênero, principalmente nos papéis desempenhados por mulheres e homens como parte de um casal. No sentido de que os indivíduos estão cercados por um padrão pré-estabelecido de comportamento, aqueles que não seguem esse padrão estão sujeitos a discriminação (KIMMEL, 2011). Em outras palavras, um casal que não atende ao comportamento padrão costuma, pelo menos incialmente, sofrer pressão social, foi o que aconteceu no início da participação das mulheres no mercado de trabalho, evento que inaugurou a ideia da dual worker- family, em que ambos os cônjuges têm uma ocupação fora de casa (RAPOPORT e RAPOPORT, 1976). Sendo a partir do campo da dual worker- family (RAPOPORT e RAPOPORT, 1976) ou dual-employed couples (STOLTZ-LOIKE, 1992) ou two-career couples (HALL e HALL, 1978) que o conceito de dual career surgiu.

Para Rapoport e Rapoport (1976, p. 9), um dos pioneiros nesse tema, “[...] o termo dual-career family foi cunhado para designar um tipo de estrutura familiar em que ambos os chefes de família, marido e esposa, persigam carreiras ativas e vidas familiares”, variando a presença de filhos (RAPOPORT e RAPOPORT, 1969). Sendo importante ressaltar que para esses autores o conceito de carreira está intimamente relacionado ao alto grau de compromisso e ao desenvolvimento no trabalho.

Com o passar dos anos o termo foi ganhando maior abrangência. Por exemplo, na definição proposta por Hall e Hall (1978) o termo também poderia ser designado a casais homossexuais, não sendo necessário o casamento civil ou religioso, conquanto que os parceiros vivessem juntos na mesma casa. No entanto, mesmo com essa atualização do termo alguns elementos ainda permaneceram iguais ao proposto por Rapoport e Rapoport (1976): o alto grau de compromisso, o desenvolvimento contínuo, e a crença em suas ocupações como aspectos essenciais na caracterização da carreira do casal.

Baseados nessas definições alguns autores buscaram identificar variações no grupo dual career, enfatizando que ele não é homogêneo e que os casais variam em suas percepções sobre a relação entre a família e a esfera de trabalho. Sendo importante entender como os papéis de gênero são compartilhados entre homens e mulheres, pois mesmo quando ambos os cônjuges têm ocupações fora de casa, as mulheres continuam a ser associadas ao domínio doméstico e os homens ao domínio profissional. E essa concepção perdura há muito tempo e ainda está enraizada na sociedade (RAPOPORT e RAPOPORT, 1971; JAITLY, RANA e SHARMA, 2014; MATIAS e FONTAINE, 2015).

Alguns autores seguiram essa linha de raciocínio. Hall e Macdermid (2009) considerou a divisão das tarefas domésticas entre os homens e as mulheres nos EUA e encontraram três perfis: (1) o counterbalanced, no qual há mulher se dedica mais aos afazeres domésticos, mas também trabalha menos fora de casa; (2) o second-shift, no qual a mulher possui uma carreira em tempo integral e realiza a maior parte do trabalho doméstico; e (3) o parallel, no qual o homem e a mulher alocam melhor suas horas gastas entre a casa e o trabalho.

Helms, Walls, Crouter et al. (2010) encontraram quatro perfis de casais para os EUA baseados na questão da atitude de provisão a renda familiar: (1) o main-secondary, em qual um cônjuge é o provedor principal e o outro o provedor secundário; (2) o coprovider, ideia de uma divisão mais equitativa da provisão a renda familiar entre os homens e as mulheres; (3) o ambivalent coprovider, no qual não há um consenso sobre os cônjuges na questão da provisão; e (4) o mismatched, no qual ambos os cônjuges possuem visões diferentes sobre a questão da provisão.

E Allen e Finkelstein (2014), que por meio da idade do casal e da presença ou não de filhos determinaram seis estágios familiares: (1) establishment, com indivíduos menores de 35 anos sem filhos; (2) very young children, com indivíduos que possuem filhos menores de 3 anos; (3) preschool children, com indivíduos que possuem o filho mais jovem entre 3 a 5 anos; (4) elementar schoolchildren, com indivíduos com filhos entre 6 a 12 anos; (5) teenage children, com indivíduos com filhos entre 13 e 18 anos; e (6) empty nest, com indivíduos com mais de 54 anos sem filhos em casa.

No âmbito brasileiro, ao contrário do internacional, são escassos os trabalhos que tratam da temática da dual career, e dadas as particularidades do país é necessário adequar a teoria internacional a essa realidade, pelo menos até os estudos brasileiros ganharem força e se desenvolverem localmente. É nesse contexto, que autores como Berlato (2015) tentaram delinear a forma como o casal brasileiro se encaixaria nessas circunstâncias. Às vistas disso, a partir de uma amostra de 340 participantes, todos ex-alunos de uma universidade pública do país, a autora tentou identificar o perfil do casal brasileiro sob a ótica da dual career, encontrando cinco tipos, todos baseados na forma como os casais gerenciavam seu tempo entre as demandas do trabalho e da família.

Berlato (2015) identificou inicialmente três grandes grupos: dos “familistas”, dos “carreiristas” e dos “acrobatas”. No primeiro caso, ambos os cônjuges se dedicavam mais a família do que a carreira. No segundo caso, ambos se dedicavam mais a carreira do que a família. E no último grupo havia um relativo equilíbrio entre as esferas da casa e da carreira. Em seguida, no segundo estágio da pesquisa, os familistas e os carreiristas foram divididos em dois grupos baseados na variável “sexo”. As mulheres do grupo familista foram classificadas como “familistas coordenados” e os homens como “familistas convencionais” e no grupo dos carreiristas as mulheres foram classificadas como “carreiristas convencionais” e os homens como “carreiristas coordenados”. No fim, cinco categorias foram obtidas: familista coordenado, familista convencional, carreirista coordenado, carreirista convencional e acrobata (BERLATO, 2015).

A relevância do estudo de Berlato (2015) para entender a dinâmica do casal brasileiro é clara, dada a escassez de literatura específica sobre o tema. No entanto, não é possível generalizar esses resultados dado que a amostra está centrada em um grupo muito específico de casais. É por este motivo que o presente estudo visa expandir esses achados, utilizando um banco de dados mais rico (ou seja, os dados da PNAD), a fim de apoiar uma possível atualização do modelo de Berlato.

Sobre os dados da PNAD, eles são nacionais e seu uso na presente pesquisa pode ser considerado como uma contribuição inédita, uma vez que dados desse tipo (microdados) não são usados com frequência em pesquisas sobre a dual career, os acadêmicos geralmente preferem reunir dados primários (por exemplo, LIU, ONG e CHEUNG, 2015; UNGER, SONNENTAG, NIESSE et al., 2015; MATIAS e FONTAINE, 2015; SCHMIDT, AZEVEDO BOLZE, VIEIRA et al., 2015; SCHOOREEL e VERBRUGGEN, 2016; MADALOZZO e BLOFIELD, 2017). São utilizados dados da PNAD, pois eles podem fornecer ao pesquisador uma visão geral do contexto nacional, útil para a identificação de tendências e questões emergentes que possam moldar futuras pesquisas (MYSÍKOVÁ, 2015; MINNOTTE, MINNOTTE e THOMPSON, 2016; AISENBREY e FASANG, 2017).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Seleção da base de dados

A fonte de dados utilizada foi a PNAD, base de dados fornecida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A PNAD consiste em dados secundários, coletados para fornecer aos pesquisadores do país uma base para seus estudos sobre temas como família, renda, trabalho, educação, saúde e fertilidade (Notas Metodológicas da PNAD, 2014).

No contexto internacional, o uso de um banco de dados secundário como fonte de evidência para o fenômeno de dual career não é comum, mas não é novo. Autores incluindo Wheatley (2013), Allen e Finkelstein (2014), Motte-Baumvol, Bonin e Belton-Chevallier (2015), Mysíková (2014) e Minnotte, Minnotte e Thompson (2016) fornecem exemplos dessa abordagem. No contexto nacional, no entanto, não há evidências do uso desse tipo de dados na literatura sobre a dual career.

A PNAD foi escolhida para o presente estudo por sua abrangência (fornece dados de todos os estados brasileiros), sua frequência (diferentemente de outras bases de dados, é atualizada anualmente), suas variáveis (a maioria delas relacionadas ao tema deste estudo), seu sistema de amostragem (que permite generalizar a partir dos resultados baseados nos dados), e a possibilidade de manipular os dados de acordo com as necessidades dos pesquisadores.

Um estudo quantitativo-descritivo foi, portanto, realizado utilizando os dados secundários da PNAD. Como o objetivo foi identificar as características e abordagens dos casais no Brasil, o modelo proposto por Berlato (2015) foi utilizado como ponto de partida. A partir disso, os dados foram usados ​​para especificar uma amostra apropriada e selecionar apenas as variáveis ​​relacionadas ao tema da dual career.

O tratamento dos microdados

Na edição de 2014 (a edição mais recente disponível no período da pesquisa), a PNAD continha dados de 1.100 municípios, divididos em 9.166 setores, totalizando 151.291 unidades familiares ou 362.627 pessoas (PNAD, 2014). Utilizando o software Stata / SE 12.0-64, os microdados foram extraídos e os filtros foram aplicados com o objetivo de selecionar a amostra necessária para este estudo e todas as variáveis relevantes relacionadas ao tema da dual career (Quadro 1).

Quadro 1
Variáveis selecionadas da PNAD 2014

Os dados da PNAD são divididos em dois conjuntos distintos, um composto por informações relativas às pessoas e outro de informações relativas aos domicílios. Os dois conjuntos foram ligados por meio das variáveis “número de controle” e “número de série”, destinadas a identificar os domicílios e seus ocupantes. Por meio desse link, foi possível aplicar o primeiro filtro, restando somente os dados dos domicílios com as pessoas que vivem neles e excluindo os dados sem nenhum morador.

Como o objetivo é a identificação dos casais, foi aplicado um segundo filtro, utilizando a variável “total de residentes” para excluir os domicílios ocupados por um único indivíduo. E utilizando a variável “tipo de família”, foi aplicado um terceiro filtro para reter apenas as configurações familiares constituídas por casais, com ou sem filhos. Nesse ponto, 261.929 casos permaneceram na amostra.

No que diz respeito à variável “tipo de família”, é necessário salientar que não são consideradas as crianças de outros casamentos nem aquelas que não residiam na mesma casa que os pais e isso significa que a amostra inclui apenas crianças residentes do domicílio e provenientes da atual união. Esse cenário foi escolhido para fornecer uma amostra mais homogênea, pois a presença de filhos de um casamento anterior costuma alterar a dinâmica do casal, e porque o modo de vida de um casal em lares sem filhos é semelhante em ambos os casos, em que os filhos já saíram de casa e em lares em que nunca houveram filhos.

Como o fenômeno de dual career é particularmente comum em ambientes urbanos, um quarto filtro usando a variável “código do setor censitário” foi utilizado para excluir os domicílios localizados em áreas rurais (excluindo assim 42.567 casos). Depois disso, um quinto filtro baseado na variável “situação familiar” foi utilizado para selecionar apenas as pessoas classificadas como “pessoa de referência” ou “cônjuge”, limitando assim a amostra aos casais. Para reforçar a presença de casais, aplicou-se um sexto filtro com a variável “Você mora com cônjuge ou companheiro?” e apenas aqueles que responderam “sim” a essa pergunta foram retidos, mas não houve mais exclusões. Neste ponto, a amostra continha 131.108 casos.

Avançando, como um proxy para o desenvolvimento da carreira (considerado como uma característica elementar do casal na dual career), foi necessário usar a variável “nível mais alto de educação alcançado”. Esse critério foi escolhido com base na literatura da dual career (JAITLY, RANA e SHARMA, 2014; BERLATO, 2015; UNGER, SONNENTAG, NIESSE et al., 2015; MCFALL e MURRAY-CLOSE, 2016), na qual a busca por melhores qualificações caracteriza o engajamento dos indivíduos em suas trajetórias profissionais, um contexto que os enquadra na perspectiva da dual career. Assim, um oitavo filtro foi necessário para remover todas as pessoas que não possuíam educação superior, deixando 3.763 casos na amostra.

Como os casais dual career são compostos de duas pessoas que têm carreiras e estão desenvolvendo essas carreiras, foi importante manter na amostra apenas as residências onde ambos os cônjuges eram formados. Casos que não preenchiam essa condição foram, portanto, excluídos. Famílias contendo mais de um casal também foram removidas para manter a homogeneidade da amostra. Após o processo de filtragem, a amostra final consistiu em 890 casos.

A grande redução do tamanho da amostra, de 362.627 casos para apenas 890, é notável. No entanto, o baixo número de casos, que inclui apenas os casais em que ambos os cônjuges têm diploma universitário, está de acordo com os dados relativos à educação da população brasileira em geral. A PNAD (2014) indica que apenas 8,57% dos indivíduos da população atingiram nível superior de escolaridade. O número de pessoas que também são casadas só pode ser menor.

O primeiro passo da análise dos dados envolveu uma discussão descritiva dos casos. Em seguida, para confirmar as relações estabelecidas no primeiro passo, foi realizada uma análise de correspondência, criando mapas perceptivos baseados nas correspondências entre todas as variáveis. A técnica é baseada nas relações observadas nas tabelas de contingência, criando um mapa no qual a proximidade indica o nível de associação entre as categorias. Deve-se observar que a análise de correspondência é aplicável somente quando a relação entre as variáveis ​​na tabela de contingência é verificada pelo teste qui-quadrado (HAIR, BLACK, BABIN et al., 2009).

ANÁLISE DOS DADOS E DISCUSSÃO

Características da amostra

A partir dos dados da PNAD, do ano de 2014, contemplando apenas os casais com curso superior, conforme apresentado anteriormente, a amostra considerada compõe 890 observações. O quadro 2 apresenta as frequências das variáveis de perfil dessa amostra.

Quadro 2
Perfil da amostra

A composição familiar está entre os elementos que chamam a atenção para o perfil dessa amostra. Primeiramente, a predominância de casais sem filhos indica uma tendência a terem menos ou nenhum filho (BARROSO, ALVES e CAVENAGHI, 2008; LEONE, MAIA e BALTAR, 2010). Em segundo lugar, o grande número de casais com filhos menores de 14 anos (40,4%), dado que a idade média da amostra é de 32 anos, pode indicar uma tendência a postergação da maternidade / paternidade.

Outro ponto notável enfatiza a associação do papel de cuidadora e as mulheres, dado que elas são as principais responsáveis ​​por cuidar das tarefas domésticas. Esse fato reflete o que Elias (1994, p. 185) considera como uma restrição na qual o “[...] processo civilizador não segue uma linha reta”. Mesmo que seja possível identificar tendências progressivas, ainda existem barreiras ao progresso social, e o progresso identificado aqui é o caminho mais curto para uma maior igualdade entre os sexos. Assim, mesmo que o fenômeno dual career seja um indicador de mudança social (RAPOPORT e RAPOPORT, 1976), os dados ainda revelam traços do modelo tradicional, em que as mulheres estão vinculadas à esfera doméstica e os homens à esfera pública.

As inclinações do casal brasileiro

Como proxy para classificar os casais segundo o modelo de Berlato (2015) utilizou-se a variável “[...] horas habitualmente trabalhadas por semana em todos os trabalhos na semana de referência”. Tal critério é comumente utilizado para medir o envolvimento do indivíduo com seu trabalho, Wheatley (2013), Unger, Sonnentag, Niessen et al. (2015), e Ferguson, Carlson, Kacmar e Halbesleben (2016), são exemplos recentes de tal uso. No presente trabalho, aqueles que não trabalhavam ou trabalhavam até 20 horas semanais foram classificados como familistas. Aqueles que trabalhavam mais que 20 horas até 40 horas semanais foram classificados como acrobatas. E aqueles que trabalhavam mais de 40 horas semanais foram classificados como carreiristas. Ao se cruzar essas categorias com a variável “sexo” foram obtidos os seguintes resultados (Figura 1).

Figura 1
Classificação dos casais segundo horas trabalhadas

As porcentagens indicam que as maiorias dos casais são acrobatas (46,4%), enquanto uma proporção relativamente parecida se distribui entre os familistas (25,8%) e os carreiristas (27,8%).

As mulheres classificadas como familistas (BERLATO, 2015) compõem o tipo familistas coordenado (20,7%). Nesse grupo, houve predomínio de mulheres brancas (60%), casadas legalmente (67,6%) e que não exerciam nenhuma atividade remunerada (67,6%). O fato da grande maioria delas não trabalhar fora de casa pode explicar parcialmente a pequena porcentagem (23,8%) daquelas classificadas como pessoa de referência do domicílio. Ou ainda a grande maioria (94,1%) daquelas que afirmaram cuidar dos afazeres domésticos, dentre as quais 47,6% dedicavam mais de 20 horas semanais a essas atividades. Dentre as mulheres que declararam realizar atividades remuneradas (32,4%) percebe-se que a maioria (76,7%) possuem rendimentos mensais de até R$1500,00, sendo que 53,3% estavam apenas há um ano ou menos no mesmo emprego. Quando se olha para a renda domiciliar, em termos per capta, observa-se que 74,7% dos domicílios desse grupo apresentaram renda superior a R$1500,00, ou seja, a renda proveniente dessas mulheres não parece ser a única fonte do domicílio.

Com relação aos filhos, grande parte dessas mulheres encontra-se na categoria de casais sem filhos (41,6%) ou com filhos menores de 14 anos (42,7%). É interessante observar a primeira condição apresentada, apenas da maioria dessas mulheres afirmarem não trabalhar, 41,6% delas afirmou não possuir filhos, condição que contradiz a ideia que se tem que as mulheres deixam de trabalhar muitas vezes por conta da maternidade (ANDRADE, 2015).

Os respondentes do sexo masculino classificados como familistas (BERLATO, 2015) são do tipo familista convencional (5,1%). Dentre eles houve predominância de pretos e pardos (75,6%), legalmente casados (51,1%) e que não exerciam atividade remunerada (64,4%). No entanto, ao contrário do que aconteceu no caso das mulheres desse mesmo grupo, 86,7% desses homens eram considerados a pessoa de referência do domicílio. E apesar de 75,6% deles afirmarem que cuidam dos afazeres domésticos, 53% dedicavam no máximo 10 horas a essas atividades, ao passo que as mulheres familistas dedicavam, em sua maioria, mais de 20 horas semanais.

Dentre aqueles que afirmaram trabalhar na semana de referência, 50% estavam naquele emprego há um ano ou menos, 62,5% possuíam rendimentos mensais de no máximo R$1500,00, e 64,4% apresentaram renda domiciliar per capta superior a R$1500,00. Tal constatação indica que a renda individual deles expressa grande peso em seus domicílios, uma vez que comparado às mulheres a proporção de famílias com renda superior a R$1500,00 declinou juntamente com a proporção de renda individual desses homens.

Com relação aos filhos, da mesma forma que as mulheres, a prevalência se deu para aqueles que não os possuía (41,6%). Um fato que levanta a questão do porque da maioria desses homens também não exercer trabalho remunerado e ao mesmo tempo realizarem menos tarefas domésticas que as mulheres.

A análise de correspondência múltipla para o grupo dos familistas indicou que, além do gênero, o que os diferencia é o tempo dedicado aos afazeres domésticos (os coordenados dedicam em sua maioria mais de 20 horas semanais, enquanto os convencionais dedicam no máximo 10 horas semanais) e a posição ocupada na unidade familiar (os convencionais apresentaram maior frequência como pessoa de referência do que os coordenados) (p<0,01 no teste qui-quadrado) (Figura 2).

Figura 2
Análise de correspondência para o grupo dos familistas

Observa-se que no grupo dos familistas, apesar de ambos os gêneros em sua maioria afirmarem não estar trabalhando na semana de referência da pesquisa, a condição do homem como pessoas de referência do domicílio prevaleceu. Além da significância de seus rendimentos individuais na composição da renda familiar. Ou ainda, como foi indicado acima, mesmo que tais homens, no geral, tenham demonstrado realizar tarefas domésticas, as realizavam em menor quantidade que as mulheres. Tal situação remete ao caráter tradicionalista desse grupo, que mesmo em menor escala, o homem ainda é visto como arrimo da família, apesar do desemprego. Ou de outra ótica, a renda das mulheres, nesse grupo, ainda é tida como secundária, como alguns modelos com resquícios tradicionais prescrevem (HILLER e DYHOUSE, 1987).

Posto isso, olhando para o grupo dos carreiristas, o tipo carreirista convencional (11,7%) contempla as mulheres respondentes enquadradas como tal (BERLATO, 2015). A predominância de casos se deu para as mulheres brancas (56,7%) e casadas legalmente (52,9%). E apesar da elevada carga de trabalho (superior a 40 horas semanais) houve predomínio da condição de cônjuge no domicílio (72,1%), além da grande maioria que se dedicava aos afazeres domésticos (97,1%). Constatação que conjuga com o fato desse grupo estar mais inclinado a carreira do que a família, no entanto, como isso se repetiu para as familistas, a presença de casais sem filhos pode ser mais uma tendência geral (BARROS, ALVES e CAVENAGHI, 2008; CAMARANO, MELLO e KANSO, 2009; LEONE, MAIA e BALTAR, 2010) do que algo relacionado às inclinações dos casais entre casa e trabalho.

No que tange a renda, prevalece à faixa de rendimento mensal de até R$1500,00 (64,4%), sendo nesse caso a renda familiar per capta acima de R$3000,00 (60,6%). Da mesma forma que as familistas, a renda individual dessas mulheres em sua maioria era de até R$1500,00, contudo, no segundo caso a renda familiar se mostrou bem mais elevada. Tal constatação salienta como a participação do salário da mulher, mesmo com elevada carga de horário também pode apresentar caráter secundário para o agregado familiar.

Em contrapartida, o tipo carreirista coordenado (16,1%) contempla os respondentes homens enquadrados como carreiristas (BERLATO, 2015). Nesse grupo houve prevalência de pretos e pardos (51,8%), casados legalmente (63%). Ao contrário das mulheres carreiristas, o predomínio de pessoas de referência (75,5%) foi observado. Tal fato reafirma o ocorrido no caso dos familistas, apesar das mulheres carreiristas apresentarem elevada carga de trabalho apenas os homens demonstraram ser em sua maioria as pessoas de referência do domicílio.

Com relação aos filhos, nesse caso a prevalência foi observada para aqueles casais com filhos menores de 14 anos (46,2%), seguido pela faixa dos casais sem filhos (42,7%). O fato desses homens terem apresentado maior presença de filhos, quando comparado as mulheres carreiristas, pode ter se dado em decorrência de outro fato, o de que a maior proporção de pessoas que não se envolviam com os afazeres domésticos (25,9%) estava nessa categoria. Ou seja, mesmo com filhos é possível acreditar que a maior parte das responsabilidades atreladas a eles ficava por conta de suas parceiras.

No tocante da renda, a faixa predominante de rendimento mensal, em comparação as mulheres do mesmo grupo, mostrou-se relativamente maior, entre R$1500,00 e R$3000,00. Sendo a renda domiciliar per capta superior a R$3000,00 (61,5%). Nota-se que os homens carreiristas apresentam rendimentos maiores que os das mulheres carreiristas, mesmo que ambos possuam cargas elevadas de trabalho. Tal apuração condiz, com o que é chamado na literatura de gender gap in earnings (ROOS e GATTA, 1999), ou hiato de rendimentos entre os gêneros. Nessa condição, os homens costumam receber mais que as mulheres mesmo em circunstâncias parecidas.

A análise de correspondência múltipla para os indivíduos carreiristas indicou haver relação entre o perfil carreirista e a condição no domicílio, dedicação aos afazeres domésticos e renda individual (p<0,01). O mapa obtido (Figura 3) indica que as mulheres (carreiristas convencionais) são os cônjuges no domicílio, possuem menor renda e maior dedicação às tarefas da casa em comparação aos carreiristas coordenados, que são as pessoas de referência e dedicam-se menos aos afazeres do lar.

Figura 3
Análise de correspondência para o grupo dos carreiristas

Por fim, o grupo dos acrobatas, que representam a maior parte da amostra (46,4%), demonstrou proporções equilibradas de homens (53,8%) e mulheres (46,2%), assim como condição na unidade familiar (54% são pessoas de referência e 46% são cônjuges).

Neste grupo predominam os brancos (53%), os casamentos legais (65,4%) e domicílios sem filhos (45,5%) ou com filhos menores de 14 anos (40%). A maioria dos acrobatas cuidava dos afazeres domésticos (84,5%), porém com predomínio de cargas de até 10 horas semanais (40,2%). Em relação à renda, há prevalência da faixa de rendimento mensal de até R$1500,00 (45,3%). Seguida pela faixa de renda entre R$1500,00 e R$3000,00 (30,8%). Sendo predominante a renda domiciliar, em termos per capta, acima de R$3000,00 (58,1%).

A análise de correspondência múltipla foi aplicada a fim de se verificar diferenças de comportamento entre os gêneros dentro do grupo dos acrobatas. O teste qui-quadrado indicou relação entre os gêneros apenas para a posição na unidade familiar, renda individual e dedicação aos afazeres domésticos (Figura 4). O acrobata do gênero masculino apresenta como característica ser a pessoa de referência do domicílio e ter dedicação de no máximo 10 horas semanais às atividades da casa. As mulheres do grupo são em maioria os cônjuges e apresentam renda de até R$1500,00 mensais.

Figura 4
Análise de correspondência para o grupo dos acrobatas

Ao se avaliar os grupos conjuntamente pela análise de correspondência múltipla (Figura 5) observa-se que os familistas coordenados destacam-se pela grande dedicação aos afazeres domésticos, os carreiristas coordenados destacam-se por possuir faixas de renda mais elevadas, menor dedicação aos serviços domésticos e serem a pessoa de referência do domicílio, os carreiristas convencionais destacam-se por possuírem faixas de renda menores e dedicação intermediária aos serviços domésticos. Finalmente, os acrobatas apresentam-se como um grupo mais equilibrado em relação às variáveis do estudo.

Figura 5
Análise combinada de todos os grupos

Assim como em Berlato (2015), os acrobatas apresentaram-se em sua maioria, seguidos pelo grupo dos carreiristas e dos familistas, sendo as proporções entre eles muito parecidas com as do modelo original. Agora, no caso dos subgrupos, em Berlato (2015) a predominância estava com os carreiristas coordenados, porém aqui se encontrou prevalência de familistas coordenados. Da mesma forma, com relação ao menor grupo, em Berlato (2015) tal posto ficou por conta dos carreiristas convencionais, ao passo que aqui ele foi ocupado pelos familistas convencionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar das tipificações encontradas dentro da dual career, nota-se que muitas características se repetem dentro dos diversos grupos. Como por exemplo, o fato dos homens representarem a maior parte das pessoas de referência do domicílio, ou da mulher em todos os casos realizar em sua maioria as tarefas domésticas. A partir dos resultados encontrados nota-se que o perfil do casal brasileiro (a partir da base de dados), mesmo sob a ótica da dual career, apresenta diversos traços condizentes com os modelos tradicionais de família. Tal caráter se confirma também nos casos em que as mulheres parecem perseguir suas carreiras, pois quando se observa o papel de seus rendimentos na renda familiar constata-se ainda o caráter secundário que eles assumem diante dos homens.

Dentre os grupos encontrados, os acrobatas foram os que apresentaram o maior equilíbrio entre os gêneros. Ao passo que o grupo dos familistas e dos carreiristas acentuaram algumas disparidades entre homens e mulheres. Como o grupo dos acrobatas exibiu maior frequência é possível inferir que mesmo com algumas características que remetem aos antigos modelos, o caminho para o equilíbrio mostra-se trilhado.

Por fim, apesar das limitações da base de dados utilizada, tais como a ausência de variáveis que tratassem da homoafetividade ou da identificação de quem é casado com quem, os resultados obtidos foram capazes de indicar certas tendências, principalmente no que tange ao relacionamento entre os gêneros sob a ótica da dual career. Com o aperfeiçoamento dessa técnica, a PNAD ainda tem muito a contribuir para a literatura de carreira, principalmente no que tange aos aspectos que permeiam as concepções de cada gênero no tocante ao relacionamento das esferas familiar e laboral.

Às vistas disso, como sugestão para futuras pesquisas indica-se a exploração da base de dados para investigação de como casais, partindo da ótica de cada sexo, percebe o equilíbrio entre as diversas demandas, inclusive sobre a família e o trabalho. Cabe ressaltar que os esforços podem transcender as esferas do trabalho e da família devido ao formato da pesquisa, assim características ligadas à migração, fecundidade, rendimentos, escolaridade, saúde, previdência, entre outros, também podem ser foco de análise e trazer informações relevantes para o contexto social em que se insere o casal o que trabalha atualmente.

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• [Versão traduzida]

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  22 Ago 2019
• Data do Fascículo
  Jul-Sep 2019

Histórico

• Recebido
  15 Fev 2018
• Aceito
  05 Set 2018