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Citacionismo como erudição acadêmica e como ação estratégica

El citacionismo como erudición académica y acción estratégica

Resumo

A erudição é uma característica representativa para o acadêmico. Ela marca a prosa acadêmica com uma aura de sofisticação e elitização intelectual. Quando a erudição se manifesta na prática do citacionismo, pode constituir-se como uma estratégia de distorção comunicativa instrumentalizada para evitar ou minimizar o debate ou a argumentação mais acurada. Discutir esse problema específico é o objetivo deste ensaio. Para articular essa crítica, consideramos a perspectiva filosófico-sociológica de Habermas, segundo a qual a comunicação constitui um processo de troca de significados intersubjetivos, ao mesmo tempo que se estabelece como um agir estratégico de intervenção no mundo. Nesse sentido, o citacionismo é visto como um importante mecanismo que utiliza especificidades do léxico especializado do mundo acadêmico com o fim de dominação e influência, a despeito da ininteligibilidade derivada deste processo.

Palavras-chave:
Erudição; Comunicação Acadêmica; Citacionismo; Relações de Poder; Teoria da Ação Comunicativa

Resumen

La erudición es una característica importante para el académico, que marca la prosa académica con un aura de sofisticación y elitismo intelectual. Cuando la erudición se manifiesta en la práctica del citacionismo, puede constituir una estrategia de distorsión comunicativa instrumentalizada para evitar o minimizar el debate o la argumentación más certera. Discutir este problema específico es el propósito de este ensayo. Para articular esta crítica, consideramos la perspectiva filosófico-sociológica de Habermas, donde la comunicación constituye un proceso de intercambio de significados intersubjetivos al tiempo que se erige como un acto estratégico de intervención en el mundo. En este sentido, el citacionismo es visto como un uso de las especificidades del léxico especializado del mundo académico que funciona como un importante mecanismo de dominación e influencia, a pesar de la ininteligibilidad derivada de este proceso.

Palabras clave:
Erudición; Comunicación académica; Citacionismo; Relaciones de poder; Teoría de la acción comunicativa

Abstract

Being erudite represents an important characteristic of the academic, causing academic prose to be marked by an aura of sophistication and intellectual elitism. When erudition manifests in the practice of citationism, it can constitute a communicative distortion strategy instrumentalized to avoid or minimize debate or more accurate argumentation. Discussing this specific problem is the purpose of this essay. This criticism is developed by considering Habermas’ philosophical-sociological perspective, in which communication constitutes a process of exchange of intersubjective meanings while establishing itself as a strategic act of intervention in the world. In this sense, citacionism is seen as a usage of the specificities of the specialized lexicon in the academic world, working as an important mechanism of domination and influence despite the unintelligibility derived from this process.

Keywords:
Erudition; Academic Communication; Citationism; Power relations; Theory of Communicative Action

INTRODUÇÃO

A comunicação acadêmica1 1 Como tantos outros termos polissêmicos, ‘Academia’ assume uma ampla gama de significados e possibilidades de especificação. No presente texto, adotamos o sentido no qual o termo especifica a comunidade de pesquisadores e professores que integram o que normalmente se associa ao universo do conhecimento científico e a outros saberes desenvolvidos e difundidos no meio universitário e em outros redutos da prática científica. Seguimos, assim, o entendimento de Bourdieu (2011) e seu estudo sobre esse campo acadêmico-científico. tem sido marcada pelo desafio da inteligibilidade para o mundo não acadêmico, desafio este que dificulta a própria legitimação do saber acadêmico-científico na sociedade de modo geral (Vizeu & Lara, 2022Vizeu, F., & Lara, L. G. A. (2022). A quem serve a Pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 27(2), e210298. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2023210298.por
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). Mais do que um problema linguístico, esse processo abarca uma importante dimensão social, que se confunde com a própria história das Ciências Sociais e suas derivações, marcadas pela tensão entre o interesse político do controle social e a intenção de produção de conhecimento emancipatório (Habermas, 2014Habermas, J. (2014). Conhecimento e Interesse. Editora Unesp.; Horkheimer, 1989Horkheimer, M. (1989). Teoria tradicional e teoria crítica. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, J. Habermas (Eds.), Textos escolhidos(Coleção Os Pensadores, Vol. XLVIII, pp. 31-68). Abril Cultural.). Na área de Estudos de Administração e Organizações, a necessidade por uma maior clareza de sua contribuição social tem sido lembrada como uma questão urgente e necessária (Alperstedt & Andion, 2017Alperstedt, G. D., & Andion, C. (2017). Por uma pesquisa que faça sentido. Revista de Administração de Empresas, 57(6), 626-631. https://doi.org/10.1590/S0034-759020170609). Isso, certamente, passa pela questão de a capacidade do conhecimento produzido nesta área - quanto possível - ser inteligível para o praticante da Administração (Vizeu & Lara, 2022Vizeu, F., & Lara, L. G. A. (2022). A quem serve a Pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 27(2), e210298. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2023210298.por
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).

Um dos traços de boa parte da comunicação acadêmica em diversos subcampos científicos - e, especificamente, na área de Administração - é justamente a erudição discursiva, caracterizada pela forma culta da prosa na expressão do conhecimento formalmente estabelecido e especializado. Conforme já sinalizamos em outra oportunidade (Vizeu & Lara, 2022Vizeu, F., & Lara, L. G. A. (2022). A quem serve a Pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 27(2), e210298. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2023210298.por
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), esse processo condiciona as relações de poder entre os participantes do campo, especialmente professores e alunos, membros seniores e novatos. Na sociedade de modo geral, a origem desse discurso erudito elitista em certos campos da atividade acadêmica dá-se especialmente a partir do século XIX e em consonância com os valores do Iluminismo, quando se passou a considerar como culto e erudito o membro da sociedade burguesa que detém, entre outros saberes, o conhecimento acadêmico-científico. É especialmente por esse motivo que, de certo modo, o meio acadêmico adquiriu prestígio entre as elites, pois o saber acadêmico passou a representar um interessante capital simbólico de diferenciação perante as massas.

Dessa perspectiva, no presente texto, analisamos de forma crítica a erudição acadêmica como instrumento de poder na relação entre os próprios acadêmicos; especialmente na pesquisa em Administração. Especificamente, nosso argumento discorre sobre uma prática singular da prosa acadêmica nesta área, denominada por nós citacionismo. Podendo ser considerado um neologismo, o “citacionismo” é um termo utilizado pela comunidade acadêmica para criticar a prática da citação de forma exaustiva e cerimonial (p. ex., Tuleski, 2012Tuleski, S. C. (2012). A necessária crítica a uma ciência mercantilizada: a quem servem o publicismo, o citacionismo e o lema “publicar ou perecer”? Psicologia em Estudo, 17(1), 1-4. https://www.scielo.br/j/pe/a/J33MrRsr77xvBH6zXZV79Vj/
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; Vizeu & Lara, 2022Vizeu, F., & Lara, L. G. A. (2022). A quem serve a Pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 27(2), e210298. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2023210298.por
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). Importante destacar, desde já, que entendemos por citacionismo não simplesmente o ato de citar - oportunamente, no presente texto, situaremos esse ato comunicativo como uma característica fundamental da prosa acadêmica. O que está sob o crivo de crítica neste ensaio é uma espécie de distorção desse ato, um tipo de recurso retórico que, conforme argumentaremos, pode comprometer a inteligibilidade do debate acadêmico.

Para fundamentar nosso argumento, valemo-nos de premissas do paradigma da Filosofia da Linguagem. Nesta abordagem, a crítica às práticas comunicativas restringe-se à linguagem em uso, aos jogos de linguagem que se estabelecem dentro de comunidades linguísticas especializadas, como é o caso das comunidades comunicativas organizadas em subgrupos do campo científico (Bourdieu, 2011Bourdieu, P.(2011) Homo academicus(2a ed.). Editora da UFSC.). Desse modo, para construir esse percurso, começamos nosso texto apresentando uma breve reflexão sobre o mal-estar da erudição segundo a visão de Schopenhauer, estendida à comunidade acadêmica em nossos dias. Em seguida, considerando a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas, apontamos como a distorção comunicativa na prosa acadêmica serve às relações de poder no campo. Depois, tratamos do objeto central de nossa crítica, o citacionismo, considerando-o como um dos mecanismos de distorção comunicativa na prosa acadêmica. Exemplificamos como isso ocorre por duas formas de citacionismo, ressaltando como essa prática minimiza eventuais problemas no argumento apresentado e acaba por comprometer o debate e a crítica. Em nossas considerações finais, defendemos a retomada da intenção fundamental do ato comunicativo no meio acadêmico da área de Administração, qual seja, a dimensão ilocucionária da fala e a intenção de produzir conhecimento com base no melhor argumento e na disputa livre entre os participantes do debate acadêmico, que deve ser produzido atendendo ao critério de inteligibilidade.

Antes de iniciar a discussão propriamente dita, é preciso fazer uma ressalva. Ao adotar a perspectiva da Filosofia da Linguagem, assumimos que existem diferentes concepções e práticas de linguagem no meio acadêmico-científico. Dito de outra forma, é necessário ter cuidado ao examinar a prática da comunicação acadêmica, considerando as especificidades e diferenças substanciais entre os subcampos e redutos acadêmicos. Assim sendo, nosso texto se limita às circunstâncias aqui apresentadas e vivenciadas em uma subárea específica, o campo de pesquisa da Administração, que é o locus principal de referência do periódico Cadernos EBAPE.BR. Apesar da noção de que as práticas de citacionismo aqui apontadas não são exclusivas desse campo, sua análise criteriosa para além da Administração fugiria ao escopo do presente trabalho.

Cabe ressaltar que este texto não foi escrito de forma tradicional. Não seria coerente que tivéssemos como objeto de análise a prosa acadêmica adotando o mesmo protocolo que criticamos. Assim sendo, procuramos nos libertar dos mecanismos de citacionismo, aqui sob crítica. Todavia isso não significou abandonar a prática da citação, visto que não necessariamente questionamos a lógica da referenciação em si mesma, algo necessário ao debate acadêmico e que será tratado mais à frente.

O MAL-ESTAR DA ERUDIÇÃO

O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), conhecido por sua crítica a Hegel e sua oposição à filosofia moral kantiana, escreve um pequeno texto sobre a escrita, no qual ele tece uma ácida crítica à erudição de sua época. No contexto de expansão da industrialização em toda a Europa, o pensador alemão apresenta uma visão pessimista sobre a erudição, vista por ele mais como uma estratégia econômica de letrados do que como a condição para o saber e o conhecimento verdadeiro. O filósofo sinaliza o problema do discurso intelectual vazio, tomado como um mecanismo de legitimação social e status, configurando uma espécie de ‘pseudo’ formação. De acordo com o autor, a erudição pode ser um empecilho para o verdadeiro saber na medida em que retira a autonomia do pensamento livre. Sobre esse ponto, o filósofo afirma:

Assim como as atividades de ler e aprender, quando em excesso, são prejudiciais ao pensamento próprio, as de escrever e ensinar em demasia também desacostumam os homens da clareza e profundidade do saber e da compreensão, uma vez que não lhes sobra tempo para obtê-los. Com isso, quando expõe alguma ideia, a pessoa precisa preencher com palavras e frases as lacunas de clareza em seu conhecimento. É isso, e não a aridez do assunto, que torna a maioria dos livros tão incrivelmente entediante (Schopenhauer, 2009Schopenhauer, A. (2009). A arte de escrever. L&PM., p. 21).

Esse ceticismo do filósofo em relação à erudição literária dá-se pela sua constatação de que o ofício da docência em seu tempo corrompia-se com o interesse econômico e a erudição do estudante representava somente um recurso simbólico de status e superioridade. Realmente, faz sentido pensar que, em uma época na qual o acesso ao letramento era restrito à elite aristocrática, deter conhecimento geral sobre a cultura humana representasse uma marca de diferenciação social, mesmo que esse conhecimento fosse um simulacro e não efetivamente compreendido. Estudava-se e lia-se mais para demonstrar superioridade do que por amor ao saber. Por esse motivo, Schopenhauer mostrou-se implacável com a ininteligibilidade da escrita dos intelectuais e letrados de sua época. Foi o primeiro filósofo a sinalizar que esse mecanismo comunicativo se tratava de um estratagema cerimonialista, uma forma de enganar a audiência sobre ignorância e desconhecimento a respeito de coisas importantes.

Em paralelo a esse processo simbólico de legitimação cultural pela erudição das elites no período iluminista, emergia um novo campo vinculado aos intelectuais e universitários: o meio acadêmico-científico e a sua organização em disciplinas e saberes especializados e dedicados ao interesse utilitarista da sociedade burguesa e da economia capitalista (Habermas, 2014Habermas, J. (2014). Conhecimento e Interesse. Editora Unesp.). O acadêmico - aqui posto como o intelectual, o professor universitário, o cientista produtor do conhecimento, o filósofo, ou seja, todos aqueles que representam o que Bourdieu chamou de homo academicus - assume como profissão remunerada sua atividade na nova sociedade capitalista e tecnológica. Rapidamente essa comunidade organiza um campo social próprio, com trocas simbólicas, habitus específicos, porém, dependente do sistema econômico capitalista, como todos os outros campos (Bourdieu, 2011Bourdieu, P.(2011) Homo academicus(2a ed.). Editora da UFSC.).

É assim que a comunidade acadêmica entra no jogo da mercantilização de seus outputs e cria mecanismos próprios de produtivismo (Castiel et al., 2007Castiel, L. D., Sanz-Valero, J., & Red MeI-CYTED. (2007). Entre fetichismo e sobrevivência: o artigo científico é uma mercadoria acadêmica? Cadernos de Saúde Pública, 23(12), 3041-3050. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2007001200026), tornando a comunicação formal do conhecimento acadêmico um importante fazer econômico. No subcampo da pesquisa em Administração, essa prática é especialmente percebida pela produção de papers, que se tornaram mercadoria pela lógica de regulação dos programas de pós-graduação na área (Alcadipani, 2017Alcadipani, R. (2017). Periódicos brasileiros em inglês: A mímica do publish or perish “global”. Revista de Administração de Empresas, 57(4), 405-411. https://doi.org/10.1590/s0034-759020170410) e pelos mecanismos corporativistas de editoração e publicação (Torres, 2020Torres, K. R. (2020). Para além da editoração: as relações de poder e a prática editorial em revistas científicas da área de Administração (Dissertação de Mestrado). Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.).

Esse contexto vem sendo associado a uma crise da área, já que produz uma singular relação entre o mundo acadêmico e os espaços não acadêmicos da sociedade, criando um abismo linguístico entre esses dois mundos (Vizeu & Lara, 2022Vizeu, F., & Lara, L. G. A. (2022). A quem serve a Pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 27(2), e210298. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2023210298.por
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). Atualmente, com a crise de legitimação pela qual o meio acadêmico-científico passa em virtude da era da pós-verdade e da negação da Ciência (Ylä-Anttila, 2018Ylä-Anttila, T. (2018). Populist knowledge: ‘Post-truth’ repertoires of contesting epistemic authorities. European Journal of Cultural and Political Sociology, 5(1), 1-33. https://doi.org/ 10.1080/23254823.2017.1414620
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), o insulamento e o hermetismo do discurso acadêmico tornam-se um problema a ser superado, sob pena de comprometer a própria existência de muitas das áreas especializadas da comunidade acadêmica, especialmente no campo da pesquisa em Administração (Vizeu & Lara, 2022Vizeu, F., & Lara, L. G. A. (2022). A quem serve a Pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 27(2), e210298. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2023210298.por
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).

Para entender como o problema da comunicação acadêmica pode ser uma questão intrinsecamente ligada à dinâmica social das relações de poder e trocas simbólicas, recorremos à perspectiva do filósofo alemão Jürgen Habermas, em sua teoria de ação social.

HABERMAS, RACIONALIDADE E ESTRUTURA SOCIAL DA COMUNICAÇÃO

Como teoria densa e articulada em diferentes áreas da Filosofia e das Ciências Sociais, a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas (2012Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo(2 Vols.). Martins Fontes.) desperta nosso interesse por se tratar de corpo teórico que explica o papel do discurso acadêmico no processo histórico de distorção comunicativa promovida pelas instituições da modernidade. Para a finalidade de nosso ensaio, não iremos discorrer sobre todos os pontos desse arcabouço teórico e de seus pressupostos de fundamentação, apenas iremos pontuar os conceitos que nos interessam para apreciar como se dá o processo de distorção na comunicação acadêmica.

Para construir seu edifício teórico, Habermas (2012Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo(2 Vols.). Martins Fontes.) propõe a revalidação da noção de racionalidade tendo por base o paradigma da linguagem, segundo o qual, na interação comunicativa, a racionalidade de um proferimento está na presunção de validade do conteúdo do que foi dito ou lido pelo ouvinte ou leitor. Este é o conceito de pretensões de validade, o qual se expressa, para Habermas, em quatro dimensões ontológicas da vida humana, implicando quatro condições distintas para determinar a racionalidade de um texto ou fala, apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1
Pretensões de validade dos atos de fala

A síntese apresentada no quadro anterior apresenta as diferentes dimensões em que se processa a racionalidade nas interações comunicativas, de acordo com Habermas. Os exemplos apresentados na última coluna ilustram como falas ou textos podem ou não ser considerados pelos ouvintes ou leitores, gerando a possibilidade de questionamento por parte do interlocutor e exigindo que o autor da fala ou texto apresente justificativas. Essa condição determina a dialogicidade da interação comunicativa, promovendo os processos de debate, argumentação, diálogo, crítica, contestação, refutação, réplica, ou seja, toda sorte de interlocução entre dois sujeitos comunicativos para chegar a um entendimento sobre o que é apresentando pela fala ou texto. Por exemplo, na ilustração sobre a “pretensão de verdade”, a afirmação “A taxa de mortalidade infantil no Brasil aumentou no período da pandemia” somente será aceita como verdade pelos interlocutores se todos os elementos factuais e objetivos já forem previamente conhecidos e aceitos, ou forem lógicos e coerentes com outros fatos já conhecidos. Caso haja dúvida quanto à veracidade dos fatos e/ou acontecimentos afirmados, para que a afirmação seja aceita, será necessário que se estabeleça uma nova argumentação para convencer ou esclarecer as dúvidas dos interlocutores. Esse processo, quando conduzido sem manipulação de dados ou argumentos, Habermas chama de comunicação orientada para o entendimento intersubjetivo. Ou seja, quando há divergência de entendimento sobre algo (seja um fato, uma atitude, uma norma ou qualquer outra questão que se refere às verdades humanas), faz-se necessário o diálogo. Por meio deste os interlocutores podem apresentar melhor argumentação e esclarecimento sobre pontos obscuros. Acordo, aqui, significa possibilidade de convergência de entendimentos, possibilidade de conexão entre subjetividades. Em uma palavra: a intersubjetividade.

É importante lembrar que essa “dissonância compreensiva” não ocorre somente na dimensão da linguagem, tendo em conta que uma das intenções da Filosofia da Linguagem é justamente aproximar a linguagem das dimensões ontológicas tratadas pelas Ciências Sociais (Habermas, 2012Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo(2 Vols.). Martins Fontes.). Isto posto, nas relações humanas, a dúvida sobre uma afirmação (fala ou texto) pode ocorrer devido à incoerência entre o dito ou escrito e o percebido ou vivenciado pelo ouvinte ou leitor. Para exemplificar esse ponto, tomemos a dimensão ontológica do mundo subjetivo retratada no Quadro 1. A ordem “Passe a bolsa ou eu juro que vou te matar!” requer que o interlocutor aceite que a intenção subjetiva do assaltante é verdadeira. Ele não considerará a ordem se algo lhe fomentar a dúvida ou incerteza quanto à intenção. Por exemplo, se a vítima não acreditar que o assaltante tenha coragem para o ato ou se duvidar dos meios materiais para concretizá-lo. Nessa ilustração, a vítima poderá questionar: “Essa arma não é de verdade”; ou afirmar: “Você não teria coragem de fazer isso”. Tal situação condicionará o falante a comprovar sua intenção, sob pena de sua ordem não ter efetividade.

Outro exemplo também ilustra essa questão. A afirmação “Todos os presos precisam ter alimentação digna, mesmo os que cometeram crimes hediondos” será recebida pelo interlocutor como válida somente se ele concordar com as premissas normativas implícitas na asserção. Ou seja, a afirmação não será considerada válida se o ouvinte ou leitor não assumir a priori os valores ou as normas que a sustentam como válidas - no caso exemplificado, o direito de todos os seres humanos terem acesso a comida. Ele pode questionar: “Mas e os direitos da vítima?” ou “Ele não merece ser tratado assim pelo que ele fez”. Isso exigirá que o falante recorra a argumentos que justifiquem o porquê da validade de sua afirmação.

Neste raciocínio, esta é a proposta de Habermas (2012Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo(2 Vols.). Martins Fontes.): o debate racional livre é o caminho para o estabelecimento de acordos intersubjetivos, processos democráticos direcionados à tentativa de solucionar disputas, desacordos, divergências, etc., dentro dos limites das referências válidas na comunidade da qual os divergentes fazem parte. Isto posto, não adianta utilizar argumentos centrados em referências que não são válidas ao interlocutor. Por exemplo, ninguém conseguirá convencer um ateu sobre algo valendo-se de argumentos religiosos, mas é possível convencê-lo utilizando argumentos válidos para ambos os interlocutores (isso é ilegal, é inconstitucional, é desumano, etc.). É assim que se dá o entendimento intersubjetivo de Habermas: o acordo em relação a uma divergência pelo diálogo argumentativo válido para os interlocutores. Em última instância, é assim que se dá o debate livre e racional.

É importante notar que o conceito de pretensão de validez indica que o ouvinte ou leitor é quem determina a validade da declaração. Ele é quem atesta se algo dito ou escrito é verdade, sincero, correto ou inteligível, porque essas dimensões fazem parte do seu mundo de vida. Em virtude dessa condição do ato de fala, não conseguimos convencer uma criança a respeito de algo não vivenciado por ela valendo-nos de argumentos suportados pelos fatos ou saberes constituídos por uma vivência que ela não possui. Ou seja, a criança não será capaz de compreender acontecimentos, comportamentos e regras que existem somente no mundo adulto. Por isso, os pais recorrem a duas estratégias comunicativas para convencer as crianças sobre algo: i) traduzem o que entendem para as referências do mundo da criança; ou ii) manipulam o que dizem para que faça sentido ao pequeno interlocutor. No caso da tradução, há ainda um esforço de se manter o entendimento da relação comunicativa, pois a tradução é apenas um recurso de adaptação das verdades do mundo adulto para o contexto de verdades do mundo infantil. Quando um pai [ou mãe] diz para o filho: “Coma os legumes para ficar forte como o Super-homem”, o adulto realmente acredita que comer legumes é algo que lhe dará saúde (verdade no mundo adulto), o que, no universo infantil, pode ser traduzido como a “força de um super-herói”. Mas, quando os pais dizem para a criança “Não seja malcriado senão o bicho-papão vai te levar embora”, eles estão manipulando o universo de ‘verdades’ da criança para garantir seu comportamento, já que sabem que se trata de uma mentira, sabem que ninguém irá levá-la caso não se comporte.

Desse modo, Habermas (2012Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo(2 Vols.). Martins Fontes.) considera que o ato de fala abarca duas diferentes dimensões: a dimensão ilocucionária - digo algo sobre o mundo compartilhado por mim e pelo meu interlocutor - e a dimensão perlocucionária - ao dizer algo sobre o nosso mundo compartilhado, eu produzo um efeito neste mesmo mundo.

Aqui chegamos ao ponto que nos interessa na teoria habermasiana da ação comunicativa para explicar o debate acadêmico. Considerando que o conhecimento acadêmico-científico é construído pela crítica e pelo debate racional argumentativo (Habermas, 2014Habermas, J. (2014). Conhecimento e Interesse. Editora Unesp.; Horkheimer, 1989Horkheimer, M. (1989). Teoria tradicional e teoria crítica. In W. Benjamin, M. Horkheimer, T. Adorno, J. Habermas (Eds.), Textos escolhidos(Coleção Os Pensadores, Vol. XLVIII, pp. 31-68). Abril Cultural.), a interação comunicativa entre os membros dessa comunidade é fundamental. Por isso, os canais formais da comunicação verbal - falada e escrita - assumem uma importância considerável para os membros dessa comunidade. A interação comunicativa ocorre nos congressos e outros eventos científicos, bem como na leitura dos anais destes eventos, dos livros e dos periódicos onde são publicados os textos, fruto do trabalho do pesquisador e intelectual.

Outro ponto importante a ser considerado na interação entre membros dessa comunidade pode ser observado na prosa do texto acadêmico. Neste, uma parte importante é a referenciação de outros textos da comunidade, pois assim se efetua uma conexão com o entendimento legitimado pelos pares para ratificá-lo ou questioná-lo, contribuindo para que o conhecimento acadêmico-científico avance e se renove. Contudo, como as premissas epistemológicas entre as diferentes concepções científicas são diversas e concorrentes, o debate acadêmico acaba sendo limitado pela possibilidade de comensurabilidade paradigmática, ou seja, o debate argumentativo no meio acadêmico depende da convergência das premissas ontoepistemológicas postas na discussão. Essa condição não somente cria uma multiplicidade de perspectivas sobre os mesmos problemas humanos e sociais, retratados por visões que podem mesmo ser significativamente contrárias (Hassard, 1990Hassard, J. (1990). An alternative to paradigm incommensurbility in organization theory. In J. Hassard, & D. Pym (Eds), The Theory and Philosophy of Organizations: Critical Issues and New Perspcetives(pp. 219-230). Routledge.); ela também estabelece que as diferentes concepções acadêmico-científicas organizam, na mesma proporção, diferentes espaços de interação comunicativa.

Aqui surge um novo ponto de reflexão sobre a interação acadêmica. A coexistência dessas diferentes perspectivas somente é garantida porque estas são consideradas pelos membros da comunidade como legitimamente ‘acadêmicas’. Isto significa que tal legitimidade se sustenta mais pelos mecanismos formais de vinculação ao campo do que pela convergência de entendimentos obtida pelo debate estabelecido por diferentes correntes e perspectivas epistemológicas. O que não significa dizer que não existam princípios de cientificidade gerais que devem ser compartilhados e que o processo de construção do conhecimento acadêmico não deva ser respeitado. Contudo a diversidade de entendimentos e perspectivas restringe o debate a redutos específicos, onde tais premissas são compartilhadas, o que permite que os argumentos sejam viáveis.

Podemos ilustrar com um exemplo em que medida a diversidade epistemológica coexiste no campo. Dificilmente um membro da comunidade acadêmica conseguirá publicar um texto cuja referência teórica sejam pressupostos da Astrologia, mesmo que este membro tenha doutorado, seja integrante de alguma sociedade científica e cumpra com todos os requisitos formais da escrita acadêmica. Isso ocorre justamente porque a Astrologia é um campo de conhecimento não legítimo para a comunidade científica. Essa falta de legitimidade não necessariamente justifica-se pela falta de ‘cientificidade’, já que outras perspectivas exógenas ao mundo acadêmico-científico foram inseridas no debate e hoje circulam entre os canais de comunicação acadêmica. Esse é o caso da Psicanálise, uma abordagem que ainda sofre resistência por boa parte de acadêmicos da Psicologia, mas é aceita por eles como perspectiva legítima do pensamento de membros da área, o que lhe permite ‘circular’ nos canais formais de comunicação da comunidade. Interessante destacar que essa incorporação de saberes exógenos ao meio acadêmico-científico também ocorre nas Ciências da Natureza, como a Medicina, que hoje aceita terapêuticas como a Homeopatia e a Acupuntura, antes rechaçadas como ‘terapêuticas não científicas’. Quando membros da comunidade médica passaram a adotar tais terapêuticas exógenas, a comunidade acadêmica desta área viu-se na necessidade de legitimá-las, criando denominações (p. ex., medicinas alternativas) para permitir a aceitação e minimizar a resistência a elas entre alguns de seus membros (Sigolo, 2019Sigolo, R. P. (2019). Homeopatia, medicina alternativa: entre contracultura, Nova Era e oficialização (Brasil, década de 1970). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 26(4), 1317-1335. https://doi.org/10.1590/S0104-59702019000400017
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).

Assim vemos que a estrutura social do campo acadêmico acaba assumindo um papel central na dinâmica da comunicação acadêmica. Bourdieu (2011Bourdieu, P.(2011) Homo academicus(2a ed.). Editora da UFSC.) ressalta esse aspecto ao apresentar seu ensaio sobre os pressupostos da vida acadêmica fundamentado em sua teoria sobre campo social. Ele aponta que capitais sociais desse campo, como os títulos e outras formas simbólicas, criam uma hierarquia entre os membros da comunidade, orientando como transitar e crescer (em status) nesse meio social. Um ponto importante ressaltado por Bourdieu é que a formação dos membros da comunidade acadêmica, no Brasil e na maior parte do mundo, acontece nos programas de mestrado e doutorado. Nestes cursos, os alunos são treinados na linguagem e nos valores acadêmicos, para que, ao se tornarem membros efetivos da comunidade, possam manter o ciclo de reprodução de valores ou linguagem, convertendo-se, assim, em agentes de formação de novos membros. Nessa dinâmica, o sociólogo ressalta duas formas de capital social: o temporal, que é o poder institucionalizado de posição no campo - cargos, títulos, controle de recursos, gestão de processos e organizações acadêmicas, etc. -, e o poder da reputação, um poder simbólico mais ou menos independente do primeiro (mesmo que, na maioria das vezes, integrado).

Na área de Administração, assim como em diversas outras subáreas do campo acadêmico, a reputação é medida particularmente pelo impacto da produção intelectual, principalmente aquela que é fruto de pesquisa. No caso da comunicação acadêmica, a reputação do autor está associada à reputação de seus escritos, o que pode ser medido por mecanismos e indicadores de impacto de artigos, periódicos e autores (Torres, 2020Torres, K. R. (2020). Para além da editoração: as relações de poder e a prática editorial em revistas científicas da área de Administração (Dissertação de Mestrado). Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.). Na reputação do acadêmico, ‘clássico’ é uma interessante noção difundida no meio. Um clássico, para a comunidade acadêmica, é um autor fundamental para o campo acadêmico (Meneghetti et al., 2014Meneghetti, F. K., Guarido, E. R Filho., & Azevêdo, A. (2014). Por que ler os clássicos no ensino e na pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 18(5), 695-709. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141067
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), mesmo que somente para um subcampo; ressaltando que a legitimidade não está associada à aceitação das ideias, mas, sim, à aceitação da presença nos canais de interação. Vamos, novamente, a um exemplo. Karl Marx é um clássico da Sociologia, da Economia e de tantas outras subáreas por conta de seus textos. Suas ideias estão longe de serem aceitas por todos os acadêmicos, mas todos o aceitam como um ‘clássico’ em seus subcampos (talvez, nem tanto, em seus redutos mais específicos). Essa condição permite que os textos deste autor circulem nos canais formais de comunicação acadêmica, mas se limitando ao debate possível, aquele em que não irá ocorrer a ‘incomensurabilidade paradigmática’. Em razão disso, em um mesmo departamento de uma universidade, é possível a convivência de professores marxinianos e outros que se opõem radicalmente às ideias de Marx!

Esse exemplo ilustra uma condição fundamental para o fazer comunicacional acadêmico: é preciso saber das regras sociais do jogo comunicativo. Às vezes, elas são mais importantes do que a aceitação de pressupostos que validam os argumentos utilizados para produzir o debate entre os membros. Sob uma perspectiva sociológica, essas regras seguem os mesmos aspectos de qualquer outro campo social - aspectos simbólicos e culturais, interesses, relações de poder e de dominação, dependência do sistema capitalista, entre tantos outros aspectos de nosso tempo histórico. Por isso, o fazer acadêmico - e, em destaque, a comunicação acadêmica - é uma prática com dimensões culturais, simbólicas, políticas, econômicas, etc., e assume contradições que devem ser explicitadas e devidamente compreendidas. O que apontamos no presente ensaio é que uma dessas contradições é a distorção comunicativa, um processo que Habermas (2012Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo(2 Vols.). Martins Fontes.) associa aos sistemas econômico e político de nosso período histórico. Uma das formas de distorção comunicativa na prática acadêmica é o que aqui denominamos citacionismo. Discorremos, a seguir, sobre como o citacionismo torna-se uma prática de distorção comunicativa problemática ao debate acadêmico.

CITACIONISMO COMO DISTORÇÃO COMUNICATIVA

Segundo a ideia de que a erudição na prosa acadêmica pode assumir uma dimensão utilitária, ou seja, serviria como instrumento para a persuasão nas interações comunicativas entre os acadêmicos, pontuamos como se procede o citacionismo, tomado aqui como uma forma específica de ação estratégica habermasiana nessa prática comunicacional. Seguindo as premissas da teoria de Habermas, podemos considerar que o uso de citações é uma norma da prosa acadêmica que tem por objetivo atender aos critérios de validade das esferas ontológicas do mundo da vida - a verdade, a sinceridade e a retidão. Ou seja, ao se fazer o uso de citação no texto acadêmico, garante-se que as asserções nele contidas - afirmações, constatações, interpretações, análises, justificativas, entre outros recursos argumentativos - sejam sustentadas pela força da legitimação dessa estratégia de escrita. Isso pode ajudar em uma questão específica, qual seja, a necessidade de argumentação ante desacordos de entendimento entre interlocutores envolvidos na comunicação acadêmica. Ou seja, a retórica de legitimação implícita no recurso comunicativo da citação pode minimizar essa necessidade ou mesmo anulá-la, já que a força de legitimação da citação pode atuar como evidência de reputação e/ou convergência de entendimentos, evitando, assim, a necessidade de questionamento em situações de falta de compreensão. Se esse processo é estressado ao ponto de evitar o debate ou dificultar o entendimento, estabelecem-se as contradições do citacionismo, sobre o qual iremos detalhar a seguir.

Citar um autor ou texto pode ser um ato com diferentes funções e formas de empreender. Podemos citar diferentes textos e em diferentes meios - um artigo em periódico, um livro ou capítulo de livro, uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado, dentre tantas e diversificadas formas de escrita praticadas no meio acadêmico. Tal diversidade também é determinada pelos diferentes participantes da comunidade (pesquisadores, professores e alunos do ambiente universitário), que a praticam com diferentes finalidades. Assim, o recurso ao ato de citar pode ser utilizado para atender a diferentes demandas de argumentação: constatar ou refutar uma evidência empírica, confirmar ou negar, explicar ou exemplificar uma interpretação teórica, conceitual e/ou analítica, para apresentar um posicionamento a respeito de uma controvérsia, entre tantas outras possibilidades de uso.

O que é importante destacar, aqui, é que, em todas as funções de suporte argumentativo, existe uma premissa básica no ato de citar. Citamos outros textos escritos e publicados nos canais legítimos da comunidade porque um elemento fundamental do fazer acadêmico é o debate entre os membros e a convergência de entendimento para a consolidação de saberes. Conforme sustentam diferentes analistas da prática científica, o conhecimento acadêmico-científico, mesmo se configurando como difuso e heterogêneo, supõe acumulação e convergência. Se considerarmos que, além dessa presunção de convergência e acumulação, há a necessidade de diálogo, temos dois princípios do fazer acadêmico-científico que tornam o ato de citar ou referenciar um elemento fundamental da prosa acadêmica.

A reflexão sobre as funcionalidades do ato de citar nos faz compreender essa prática como fundamental, como algo que deve ser considerado para além do mero cerimonialismo. Isso porque essa prática é um proceder racional-formal (no sentido weberiano), que, além de corresponder a uma norma padronizada pela comunidade, abarca uma racionalidade que a justifica.

Vejamos qual seria essa justificativa por meio de um exemplo. A afirmação “Conforme propõe Copérnico (1543), a Terra gira em torno do Sol”, quando feita na prosa acadêmica, tem validade em razão de uma espécie de ‘transferência’ de pretensão de validade para o autor citado - ou seja, citar um autor é transferir para ele a pretensão de validade da assertiva. Desse modo, para além dos elementos lógicos do argumento escrito, essa transferência de pretensão de validade é possível porque, quando se trata de um texto legitimado pelos canais de difusão do conhecimento acadêmico, supõe-se que sua força assertiva está no fato de esse manuscrito já circular e ser aceito pelos membros dessa comunidade, mesmo que somente por uma parcela deles. Considerando o universo específico da pesquisa em Administração, no qual os periódicos são o canal prioritário para a produção intelectual (Alcadipani, 2017Alcadipani, R. (2017). Periódicos brasileiros em inglês: A mímica do publish or perish “global”. Revista de Administração de Empresas, 57(4), 405-411. https://doi.org/10.1590/s0034-759020170410; Alperstedt & Andion, 2017Alperstedt, G. D., & Andion, C. (2017). Por uma pesquisa que faça sentido. Revista de Administração de Empresas, 57(6), 626-631. https://doi.org/10.1590/S0034-759020170609), a aceitação da referência citada conta com mais um elemento de racionalidade na sua legitimação: o fato de os artigos publicados em periódicos terem passado pelo crivo da revisão por pares, cumprindo o rito da validade implícita no modus operandi do processo editorial neste subcampo (Torres, 2020Torres, K. R. (2020). Para além da editoração: as relações de poder e a prática editorial em revistas científicas da área de Administração (Dissertação de Mestrado). Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.).

Seja no sentido amplo ou no caso específico mencionado, citar um texto acadêmico legitimado pela comunidade é aceitar que o argumento do texto citado é valido. Por óbvio, este ‘argumento’ já circula no meio e é assimilado pela comunidade em suas práticas de formação, consolidação ou debate. Esse aspecto demonstra a importância dada à qualificação dos canais de publicação. Por isso que, em muitas comunidades acadêmicas, como é o caso da área de Administração, existe uma verdadeira “demonização” de publicações consideradas ‘não acadêmicas’, como certos textos escritos por praticantes ‘sem rigor científico’ e outros estudos popularizados fora do campo (por exemplo, estudos históricos feitos por jornalistas e publicados em canais não acadêmicos). Ainda considerando a área de Administração, é comum livros não terem a mesma validade dos textos publicados em periódicos acadêmicos, justamente porque não há a garantia da adoção de critérios rigorosos da revisão por pares e especialistas (Torres, 2020Torres, K. R. (2020). Para além da editoração: as relações de poder e a prática editorial em revistas científicas da área de Administração (Dissertação de Mestrado). Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba, PR, Brasil.). Um dos argumentos considerados para essa glosa de livros foi o crescimento da lógica de mercantilização dos livros técnico-científicos, o que estimulou um afrouxamento no rigor dos processos editoriais nestes produtos literários.

Feita essa breve reflexão sobre a função do ato de citar ou referenciar na prosa acadêmica, temos condições de avaliar uma espécie de desvirtuamento dessa prática, o citacionismo. Conforme já assinalamos, entendemos por citacionismo o uso estratégico (no sentido habermasiano já apresentado) dessa forma de construção de argumento, que se vale mais dos efeitos da força de legitimação do que do interesse pelo debate em si mesmo. Dito de outro modo, o citacionismo pode ser um recurso retórico que tem por efeito prático evitar e/ou minimizar eventuais dificuldades de argumentação. Por isso consideramos o citacionismo uma forma de distorção comunicativa.

Essa prática é observada, aqui, sob duas formas distintas, mas complementares, de manifestação: i) exaustão de citações; ii) referenciação de clássicos e/ou autores de alta reputação. A primeira forma corresponde à prática de se valer de um enorme número de referências no mesmo argumento e levar ao entendimento de que este é amplamente utilizado pela comunidade. No segundo caso, a citação se vale da grande reputação do autor citado, considerando que sua notoriedade garante a credibilidade do argumento, mesmo que este não seja inteligível ao leitor. Vamos analisar mais detidamente ambos os casos.

Citacionismo pela exaustão de citações

A exaustão de referências pode gerar distorção comunicativa pelo critério da ininteligibilidade causada pelo excesso de informação. Essa forma de distorção comunicativa já foi observada em outros estudos que tratam desse constructo habermasiano. Nesse caso, o volume de dados e de informações impede a contestação e/ou dificulta o entendimento do argumento (p. ex. Vizeu & Bin, 2008Vizeu, F., & Bin, D. (2008). Democracia deliberativa: leitura crítica do caso CDES à luz da teoria do discurso. Revista de Administração Pública, 42(1), 83-108. https://doi.org/10.1590/S0034-76122008000100005
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). No caso do uso de citações, a manipulação do entendimento dá-se por dois aspectos: a presunção de que a asserção é verdadeira porque um grande número de textos citados lhe dá suporte (critério de universalidade do conhecimento); o excesso de referências para um argumento cria a dificuldade de verificação, já que é improvável conhecer em profundidade todos os autores referenciados.

Comecemos pelo segundo caso. Caso você seja alguém bastante versado no assunto, que conheça, de fato, com exatidão todas as referências citadas no texto - isso é possível em muitos casos -, poderá verificar a adequação do argumento apresentado quando há um grande número de referências a ele associado. Ou seja, para se avaliar se o autor citou as referências com propriedade, é necessário um minucioso trabalho de verificação quando todas elas não são conhecidas prévia e detalhadamente.

Desse modo, o leitor ou mesmo o avaliador do texto com grande número de referências citadas no mesmo argumento (e com prováveis referências desconhecidas pelo leitor ou avaliador) tende a assumir a ‘pretensão de validade’ do argumento proferido e da referenciação feita, já que é inviável, no trabalho de avaliação ou leitura, refazer o trabalho do autor. Justamente aí reside a estratégia de distorção comunicativa: como não há como averiguar todas as referências mencionadas, partimos da premissa de que, quando exaustivamente referenciado, o que o autor diz é supostamente validado por outros autores e/ou estudos. Ou seja, o crivo da legitimidade da referenciação acadêmica pela exaustão é dar validade ao que se diz porque outros membros da comunidade acadêmica o disseram do mesmo modo, mesmo sem garantias de que a forma de apropriação dos autores referenciados seja correta ou devida.

Obviamente, a inadequada apropriação do pensamento de autores citados é observada muitas vezes, especialmente em processos de revisão de trabalhos submetidos. No entanto, o que queremos sinalizar aqui é que esse tipo de observação nem sempre é possível diante do excesso de citações utilizadas em certos trabalhos. Um interessante indício dessa situação são as listas de referências em certos artigos publicados na área de Administração: não é incomum encontrar papers com mais de 40% de suas laudas dedicadas a lista de referências!

No caso hipotético de asserção, “Conforme afirmam Copérnico (1543), Galileu (1642), Newton (1727), Einstein (1955) e Hawking (2018), a Terra gira em torno do Sol”, o grande número de citações aumenta a credibilidade, uma vez que se supõe que aquele entendimento é ratificado por muitos outros estudos ou publicações, sendo considerado como um ponto ‘pacífico’. Esse mesmo processo ocorre na argumentação da comunicação jurídica, conhecida como ‘jurisprudência’, na qual um grande conjunto de decisões judiciais feitas na mesma direção aponta uma convergência que, por sua vez, sugere que a interpretação é ‘verdadeira’. Apesar de esse entendimento fazer sentido e, em muitos casos, se confirmar, não é necessariamente uma garantia. Isso porque o citacionismo é seletivo e, da mesma forma que se identificou grande número de autores que convergem, pode haver também uma similar quantidade de publicações que apontam o contrário. Aliás, em situações em que o avaliador de um texto domina o tema e conhece o campo especializado, é muito comum que ele aponte as referências divergentes. Contudo, nem sempre isso acontece. Se considerarmos também a dimensão do setor editorial acadêmico (com milhares de revistas especializadas), aliado à pluralidade de abordagens e perspectivas, são imensas as possibilidades de existirem muitas referências para as mais variadas posições, o que facilita o uso estratégico desse artifício citacional.

Não se questiona aqui se a convergência de entendimentos pela exaustão de citações é um bom critério de validade, mas sim o fato de poder ser utilizada de forma manipuladora ao produzir como efeito a conformidade. Ou seja, mesmo considerando que muitos textos se valem desse viés no ato de citar de forma honesta, trata-se de uma estratégia de persuasão que pode sustentar entendimentos falsos ou inadequados, em que há o risco constante de circulação de argumentos frágeis. Reiteramos que o problema aqui é que não há garantias de que a citação é adequadamente feita - já que a apropriação do pensamento dos autores citados nem sempre pode ser checada pelo avaliador ou leitor -, bem como não se sabe se os textos citados também não se valeram de outras ‘verdades’ não verificadas, apresentadas em suas próprias referências. Esse ciclo de ‘citar textos que citaram outros textos’ na prosa acadêmica pode criar um processo contínuo de reprodução de entendimentos que, por se tratar de afirmações que sustentam sua legitimação prioritariamente pela lógica da universalidade, não necessariamente são argumentos validados pela racionalidade do conhecimento compartilhado e aceitos pelos interlocutores.

Citacionismo pela referenciação de clássicos e/ou autores de alta reputação

Diferentemente da primeira forma de citacionismo por nós mencionada, a força da legitimação, nesse caso, está na envergadura do autor e/ou texto citado e não na exaustão do uso de referências para um argumento. Aqui funciona um mecanismo já apontado pela perspectiva habermasiana do discurso: o constrangimento pré-linguístico advindo da assimetria entre os interlocutores (Felts, 1992Felts, A. A. (1992). Organizational communication. Administration & Society, 23(4), 495-517. https://doi.org/10.1177/009539979202300405; Habermas, 2012Habermas, J. (2012). Teoria do Agir Comunicativo(2 Vols.). Martins Fontes.). O constrangimento pré-linguístico é a condição, em uma interlocução, de assimetria na relação entre os interlocutores, uma vez que não se questionam argumentos por se supor que o seu autor seja uma autoridade. Dito de forma simples, é quando um interlocutor não entende o que se diz a ele(a), mas o aceita porque é dito por alguém que ele considera uma autoridade. Ressaltando que citação é uma espécie de transferência de autoridade argumentativa: citar autores clássicos ou de grande reputação acaba por funcionar do mesmo modo. Assim, a aceitação de um argumento ininteligível ocorre pela percepção da envergadura do autor ou texto citado, uma vez que o leitor ou avaliador, mesmo sem compreender devidamente o argumento posto, aceita o que é dito por não crer ser capaz de questionar o autor (ou texto clássico) ali posto como autor do pensamento ou argumento.

De certo modo, esse processo ocorre estimulado pela postura arrogante, visto que a erudição reflete mais a vaidade do que o amor pela verdade - como há muito tempo sinalizou Schopenhauer (2009Schopenhauer, A. (2009). A arte de escrever. L&PM.). Nesse contexto, o medo de parecer ignorante pela demonstração de dúvida sobre algo silencia o debate. Essa atitude foi mencionada por Felts (1992Felts, A. A. (1992). Organizational communication. Administration & Society, 23(4), 495-517. https://doi.org/10.1177/009539979202300405) ao avaliar que relações assimétricas de poder em contextos de comunicação organizacional induzem à distorção comunicativa, seja na manipulação dos critérios de validade (conforme exemplificado no Quadro 1), seja pela omissão da contestação quando não se compreende o que foi dito. No caso das interações comunicativas do meio acadêmico, a lógica é muito parecida. Assim, a assimetria nas posições dentro do campo acadêmico - definida por títulos, níveis atingidos na carreira, participação em conselhos editoriais, comissões, cargos de gestão acadêmica, além, é claro, da reputação advinda da autoria de textos, estudos, teorias e ideias-, leva à contaminação da comunicação por esse capital social (Bourdieu, 2011Bourdieu, P.(2011) Homo academicus(2a ed.). Editora da UFSC.), dificultando o debate livre e anulando a contestação de ideias e argumentos.

Obviamente, com a crítica a essa forma de citacionismo, não queremos invalidar a importância dos clássicos e da reputação de autores. A consolidação de ideias que elegem um autor como um clássico é fundamental na formação do meio acadêmico, como bem asseveraram Meneghetti et al. (2014Meneghetti, F. K., Guarido, E. R Filho., & Azevêdo, A. (2014). Por que ler os clássicos no ensino e na pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 18(5), 695-709. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141067
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). Aliás, isso não necessariamente invalida o debate e a contestação: quando um leitor ou avaliador se depara com uma referência de reputação que ele conhece bem, passa a debater com o autor do texto que os referencia a acuidade da referenciação, ou seja, avalia a precisão com que foi feita a apropriação do texto citado, observa se não houve algum erro de interpretação, se algum aspecto importante deixou de ser considerado, etc. Há situações nas quais o avaliador - quando conhecedor dos autores clássicos referenciados - pode atuar pedagogicamente, ajudando o autor sob análise a melhorar o argumento, trazendo-o à reflexão desses aspectos não abordados. Nesse cenário, vemos a condição ideal da avaliação do paper acadêmico: o debate entre o autor do texto e o avaliador, tendo por objeto discutir a apropriação do pensamento das referências citadas.

Contudo essa situação ideal deixa de existir quando não há condições de avaliar a propriedade na apropriação dos textos referenciados, como já sinalizamos. Ou seja, o problema é quando não há condições para o debate (por desconhecimento das fontes) e quando não se enunciam tais condições para declinar a avaliação do texto (por vergonha de admitir sua ignorância). Se a referência é considerada um texto ou autor clássico, demonstrar desconhecimento pode ser mais difícil ainda.

O quanto conhecemos os textos clássicos? Sendo um clássico, obviamente conhecemos algo, sua importância para o campo, as linhas gerais de sua teoria e/ou estudo, termos e conceitos centrais; isso ocorre assim, em virtude do caráter universal do clássico na formação acadêmica (Meneghetti et al., 2014Meneghetti, F. K., Guarido, E. R Filho., & Azevêdo, A. (2014). Por que ler os clássicos no ensino e na pesquisa em Administração? Revista de Administração Contemporânea, 18(5), 695-709. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac20141067
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). Contudo não necessariamente somos profundos conhecedores de todos os clássicos com os quais nos deparamos no ofício acadêmico; a especialização do conhecimento nos impõe escolhas, e nem sempre estamos qualificados a debater com profundidade teorias, estudos e abordagens que conhecemos em linhas gerais. Isso não seria um problema se não fosse considerado vergonhoso admitir desconhecer em profundidade o argumento de um texto clássico ou de grande reputação.

A vaidade como traço da personalidade acadêmica nos força a evitar demonstrar desconhecimento. Conhecer referências de forma genérica já nos qualificaria a jogar o jogo das aparências revelado por Schopenhauer (2009Schopenhauer, A. (2009). A arte de escrever. L&PM.). Nesse caso, não se assume a ignorância ou a incompreensão do argumento para não comprometer os egos da erudição acadêmica. Assim percebemos muitos autores assumindo uma prosa que se demonstra erudita, mas pode ser vazia de conteúdo, pode ser comprometida em termos de precisão na apropriação do clássico e de suas ideias. Para que esse ‘verniz’ de erudição funcione, basta ter habilidade em transitar na superficialidade, valendo-se de autores clássicos na retórica, sem necessariamente conhecê-los na profundidade. Da mesma forma, nessa situação os leitores evitam a exposição de sua ignorância: admitir que não houve a compreensão de um argumento supostamente atribuído a um clássico pode ser interpretado como desconhecimento deste, e, por sua vez, ser considerado uma falta no jogo de aparências das relações acadêmicas. O problema é que não se considera que o erro da citação pode estar na maneira de ‘apropriação do clássico’. Em última instância, esse jogo empobrece o debate e a possível correção de interpretações equivocadas dos argumentos dos clássicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A erudição como traço da prosa acadêmica não seria em si mesma um problema, se, obviamente, fosse considerado um sentido mais isento dessa questão. Se fosse vista simplesmente como a instrução e a forma culta de escrita (nesse caso, também é necessário problematizar o significado elitista associado ao termo ‘culto’...), talvez pudéssemos mesmo considerar que a erudição não é problemática por ser pré-requisito dos membros da comunidade acadêmica para sua interlocução; nesse caso, seria uma competência necessária e desenvolvida no processo de formação. Mas, para que isso não fosse problemático, deveríamos reconhecer que a prosa erudita da comunidade acadêmica não seria um obstáculo à comunicação interna dessa comunidade. No caso da erudição presente no citacionismo, vemos que a comunicação entre os membros da comunidade pode, sim, ser comprometida.

Por isso, foi necessário recorrer à análise do processo comunicativo tendo por referência a teoria habermasiana de ação comunicativa, que combina os conceitos de ato comunicativo estratégico e da comunicação sistematicamente distorcida. Com base nesse referencial, observamos que o citacionismo estabelece a falsa ideia de que a ininteligibilidade do texto ou fala é fruto da ignorância de quem não entende, condição esta que induz ao silenciamento do debate argumentativo. Ou seja, quem está acima na hierarquia das posições acadêmicas não se sente à vontade de revelar sua incompreensão para não expor uma suposta ignorância, já que se espera de quem está em um nível superior de formação e/ou saber acadêmico o conhecimento sobre o exposto por alguém que está abaixo na escala das relações acadêmicas. Por sua vez, quem está abaixo aceita sua suposta ignorância e, como fruto de tal condição, não questiona o texto ou fala do colega com mais senioridade acadêmica. Perpetua-se, nesse jogo, o silêncio, interrompe-se o debate necessário ao esclarecimento e à contínua melhoria das teses e entendimentos produzidos no campo acadêmico-científico. Sem debate não há fazer acadêmico, já que o diálogo é um aspecto fundamental para a construção do conhecimento.

Apesar de poder parecer um problema que faz parte da complexidade das relações em um determinado campo social, é preciso salientar que a comunicação sistematicamente distorcida provocada pelo citacionismo contribui para a crise de legitimação da comunidade acadêmica. Essa crise tem vários matizes, mas destacaremos dois pontos: i) a crescente dificuldade por manutenção dos quadros, expressa por diminuição da procura e aumento da evasão dos alunos de pós-graduação e pela desistência da continuidade na formação (alunos de mestrado desistem de cursar doutorado); e ii) o surgimento de verdadeiros feudos nas subáreas acadêmicas, feudos estes que se toleram, mas não interagem entre os diferentes grupos, dificultando o movimento de troca de saberes e a transdisciplinaridade entre áreas especializadas. A consequência já evidente deste quadro é o enfraquecimento da comunidade acadêmica, acusada de ser uma grande Torre de Babel, onde ninguém se entende (no sentido intersubjetivo), mas todos aceitam tal situação, em um verdadeiro pacto de mediocridade, o que inviabiliza um preceito que deveria ser sagrado ao fazer científico: o livre debate e o estabelecimento de convergências para o progresso do conhecimento.

Em nosso ensaio, indicamos duas formas de ocorrência do citacionismo que encerram o debate ou diálogo: uma que denominamos ‘exaustão pela quantidade’ e outra chamada de ‘referência dos clássicos’. Vale notar que estas não são as únicas formas de citação e devem ser tomadas aqui como exemplificações de como a retórica citacionista pode anular o debate. O primeiro caso ocorre pelo uso exaustivo de referências citadas, visto que, devido ao grande número de referências associadas a um argumento, torna-se difícil para o leitor verificar se a menção a todas estas procede de fato ou é tomada de forma genérica para dar credibilidade à asserção. O número excessivo de citações também dificulta a apreciação sobre a correta apropriação das ideias do autor citado, já que muitos podem não ser conhecidos pelo leitor, o que o impede de avaliar propriamente cada texto citado que ele desconhece.

Nesse contexto, vemos um número grande de textos que não são questionados circulando no meio acadêmico (especialmente em congressos e revistas, quando consideramos a área da pesquisa em Administração), em razão do constrangimento pré-linguístico, especialmente com a prática do citacionismo. Desse modo, não há a admissão quanto à incapacidade de acompanhar ou conhecer profundamente todos os textos citados e também não há questionamento sobre a propriedade ou uso de autores e/ou conceitos clássicos (que não se conhece profundamente, mas é reconhecido como um ‘clássico’).

Isto posto, qual seria a saída para o dilema do citacionismo? Evitar a citação? Acatar a reinvindicação dos neófitos de aceitação do texto ‘limpo’ de referências? Mais uma vez, reiteramos a necessidade das referências, já que abarcam um importante fundamento do processo de construção do conhecimento acadêmico, que é a continuidade pela convergência e/ou pela crítica ao entendimento estabelecido. Já a prática do citacionismo como se dá hoje no esteio do produtivismo parece-nos mais cerimonialista. Para atestar essa constatação, vemos que não é incomum um estudante de mestrado ou doutorado ser criticado por trechos longos “sem citação”, o que nos faz indagar se o seu avaliador saberia explicar por que isso é um problema!

Haveria, então, uma saída para o citacionismo? O presente texto não chegou neste ponto, já que pretendeu somente apresentar o problema e seus matizes. Mas, talvez, possamos brevemente sinalizar uma perspectiva para a sua superação. Sendo a comunicação textual a principal prática dos acadêmicos e a crítica e a dúvida os princípios fundamentais da superação do conhecimento dado, é fundamental que a comunidade acadêmica repense sua forma de escrever, para que não se anule o diálogo capaz de produzir novos entendimentos. Ao adotar a mesma lógica das disputas políticas de outros campos sociais especializados, perdemos em alguma medida aquela que deveria ser a essência do nosso fazer: o amor ao conhecimento, a busca por explicações que nos orientem para dar respostas aos principais problemas da sociedade. Não iremos longe sem assumir genuinamente a posição socrática do conhecimento, admitindo que não sabemos quando não entendemos, buscando confrontar nossa ignorância pela argumentação, solicitando a devida explicação do que nos é estranho para que nossos pares nos ajudem a entender melhor, ou para que tenhamos reais condições de refutar as teses e colocações inadequadas que se apresentam em nosso meio. Sem assumir postura humilde da dúvida e do não entendimento do que se nos apresenta de forma ininteligível, não iremos, realmente, conhecer e aprender. Precisamos fomentar o debate honesto e sem arrogância, aprender a questionar o que não entendemos, objetivando a compreensão e a construção de pontes entre diferentes subcampos de estudo e pesquisa.

REFERÊNCIAS

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  • Alperstedt, G. D., & Andion, C. (2017). Por uma pesquisa que faça sentido. Revista de Administração de Empresas, 57(6), 626-631. https://doi.org/10.1590/S0034-759020170609
  • Bourdieu, P.(2011) Homo academicus(2a ed.). Editora da UFSC.
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    » https://doi.org/10.1080/23254823.2017.1414620
  • 1
    Como tantos outros termos polissêmicos, ‘Academia’ assume uma ampla gama de significados e possibilidades de especificação. No presente texto, adotamos o sentido no qual o termo especifica a comunidade de pesquisadores e professores que integram o que normalmente se associa ao universo do conhecimento científico e a outros saberes desenvolvidos e difundidos no meio universitário e em outros redutos da prática científica. Seguimos, assim, o entendimento de Bourdieu (2011) e seu estudo sobre esse campo acadêmico-científico.
  • DISPONIBILIDADE DE DADOS

    Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

PARECERISTAS

  • 7
    Andreia Aparecida Figueira de Mello Silva (Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí / SC - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3710-1265
  • 8
    Francis Kanashiro Meneghetti (Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Curitiba / PR - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0327-2872

RELATÓRIO DE REVISÃO POR PARES

  • 9
    O relatório de revisão por pares está disponível neste URL: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/90536/85321

Editado por

Hélio Arthur Reis Irigaray (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9580-7859
Fabricio Stocker (Fundação Getulio Vargas, Rio de Janeiro / RJ - Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6340-9127

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2023
  • Aceito
    16 Jun 2023
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