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Selfie e dataficação do cotidiano: um olhar etnográfico para as práticas e políticas material-discursivas

Selfie and datafication of everyday life: an ethnographic approach to material-discursive practices and policies

Selfie y datificación de la vida cotidiana: una perspectiva etnográfica para las prácticas y políticas material-discursivas

Resumo:

Tomando como ponto de partida as possibilidades conversacionais vinculadas à prática de selfie, este artigo possui o objetivo de investigar as práticas e as políticas material-discursivas desenvolvidas através do cotidiano de produção e de compartilhamento de autorretratos digitais. A partir de pesquisa etnográfica realizada na cidade de Salvador, BA, Brasil, discutem-se os momentos nos quais o político é diferentemente solicitado em cada prática e situação específica, e como as conversações vão diferindo em cada relação, ambiente digital e arranjo material. A partir das experiências e dos relatos apresentados, argumenta-se por uma compreensão da prática de selfie também enquanto prática material-discursiva, na qual as materialidades digitais que a compõe agem de maneira a transformar experiências e criar possibilidades conversacionais em um ambiente de dataficação do cotidiano.

Palavras-chave:
Selfie; Dataficação; Etnografia

Abstract:

Taking as a starting point the conversational possibilities linked to the practice of selfie, this article aims to investigate the material-discursive practices and policies developed through the daily production and sharing of digital self-portraits. Based on ethnographic research carried out in the city of Salvador, BA, Brazil, it discusses the moments in which the political is differently requested in each specific practice and situation, and how conversations differ in each relationship, digital environment, and material arrangement. Based on the experiences and accounts presented, it is argued for an understanding of the practice of selfie also as a material-discursive practice, in which the digital materialities that compose it act in a way to transform experiences and create conversational possibilities in an environment of daily datafication.

Keywords:
Selfie; Datafication; Ethnography

Resumen:

Tomando como punto de partida las posibilidades de conversación vinculadas a la práctica del autorretrato, este artículo tiene como objetivo investigar las prácticas y políticas material-discursivas desarrolladas a través de la producción cotidiana y el intercambio de autorretratos digitales. A partir de una investigación etnográfica realizada en la ciudad de Salvador, BA, Brasil, se discuten los momentos en que el político es solicitado de manera diferente en cada práctica y situación específica, y cómo las conversaciones difieren en cada relación, entorno digital y disposición material. Sobre la base de las experiencias y los relatos presentados, se argumenta a favor de una comprensión de la práctica de selfie también como una práctica material-discursiva, en la que las materialidades digitales que la componen actúan de manera de transformar las experiencias y crear posibilidades de conversación en un entorno de datificación de lo cotidiano.

Palabras clave:
Selfie; Datificación; Etnografía

Introdução

Eu mostrei uma selfie a Martim, um dos participantes desta pesquisa, compartilhada no modo stories2 2 Trata-se de um modo de compartilhamento no Instagram no qual as imagens ficam temporariamente disponíveis para serem visualizadas por um período de 24 horas. da plataforma digital Instagram, na qual ele aparece de corpo inteiro, refletido no espelho, olhando firme para a câmera e esticando para baixo a camiseta que usava, tornando visível a frase nela escrita: “arte como luta”. No canto inferior da imagem, Martim escreveu, ainda, o seguinte: “Vestindo pra me sentir mais forte”. A selfie foi compartilhada em janeiro de 2019, mas ele a deixou nos destaques de seu perfil, permitindo que ela seja revista. Só quando conversamos, no entanto, eu entendi que aquela publicação se relacionava a um momento muito difícil para ele, e aquela prática de selfie o ajudava a superar a situação e a angústia que estava sentindo:

Eu me lembro que nesse dia eu tava chorando. Foi doido. Eu tava… até me lembrei porque fiquei triste. Eu tava em Barcelona, e foi no dia do exílio de Jean. Eu fiquei muito fodido. Eu e Mario [marido de Martim]. Por tudo, né, por Jean, pelo específico e pelo geral. Pelo Brasil e por Jean, um ativista, pela causa LGBTQI+etcétera. E nesse dia eu vesti essa camisa deliberadamente. Eu tava no festival, tava participando de um festival como artista (Martim, com. pess., 24 jul. 2019).

Martim refere-se ao momento no qual o deputado federal Jean Wyllys decide renunciar ao mandato e se exilar do país, devido às ameaças que estava sofrendo. A informação havia se espalhado, inclusive, através do Instagram, onde Jean também divulgou, eu seu perfil,3 3 Publicação de Jean Wyllys em seu perfil no Instagram. Acessado 15 set. 2020. https://www.instagram.com/p/BtBszQ2ghcM. estar deixando o Brasil. “Eu já tinha postado uma coisa super triste no Facebook, tipo assim ‘tô péssimo, tô arrasado, tô chorando mesmo’. Nem sou essa pessoa que posta quando tá triste. Nunca fiz isso, nesse dia eu fiz. Mexeu com um lugar mais especial assim” (Martim, com. pess., 24 jun. 2019), conta-me. Neste momento eu li em voz alta a frase que ele havia escrito: “vestindo para me sentir mais forte”, enquanto ele fala o final, “mais forte”, junto comigo. Depois, me explicou um pouco mais a situação: “essa camisa foi uma armadura porque eu tinha que trabalhar, e eu fui vestindo ela assim como um jeito de ‘ó, deixa eu me lembrar qual é a minha arma de luta aqui’”. Martim termina a frase deixando os olhos se encherem de lágrimas, e depois complementa, já tentando dar uma risada: “Minha farda de guerra. Uma das, né”.

Nesta situação contada por Martim, assim como eu comecei a observar tanto em meu cotidiano quanto no de outros participantes desta pesquisa, a prática de selfie passa não apenas a funcionar como um tipo de interação através de imagens, mas também como constituinte – e, muitas vezes, protagonista – de processos comunicativos engendrados a partir de práticas e de políticas material-discursivas. Não se trata de algo unicamente associado às selfies ou às plataformas digitais atuais, considerando que alguns autores já identificavam um caráter comunicativo ou interações realizadas através de imagens desde o início do compartilhamento de fotografias digitais na web ou dos primeiros usos do smartphone (Beuscart et al. 2009Beuscart, Jean Samuel, Dominique Cardon, Nicolas Pissard e Christophe Prieur. 2009. Pourquoi partager mes photos de vacances avec des inconnus? Les usages de Flickr. Reseaux 154 (2): 91-129. https://doi.org/10.3917/res.154.0091.
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; Rivière 2006Rivière, Carole Anne. 2006. Téléphone mobile et photographie: les nouvelles formes de sociabilités visuelles au quotidien. Societes 91 (1): 119-34. https://doi.org/10.3917/soc.091.0119.
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; Murray 2008Murray, Susan. 2008. Digital images, photo-sharing, and our shifting notions of everyday aesthetics. Journal of Visual Culture 7 (2): 147–63. https://doi.org/10.1177/1470412908091935.
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); no entanto, a prática de selfie produz novas traduções desse aspecto comunicacional, relacionando-se com diferentes plataformas digitais de forma a configurar uma prática conversacional própria. Como é possível observar no caso de Martim, há uma conversação não apenas permeada por imagens – em lógica de conexão proporcionada pelo uso do smartphone (Gómez Cruz e Meyer 2012Gómez Cruz, Edgar e Eric T. Meyer. 2012. Creation and control in the photographic process: IPhones and the emerging fifth moment of photography. Photographies 5 (2): 203-21. https://doi.org/10.1080/17540763.2012.702123.
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) –, mas principalmente desenvolvida através delas. Ou seja, a selfie se torna nesses casos uma potencialização do que André Gunthert (2014)Gunthert, André. 2014. L'image conversationnelle: les nouveaux usages de la photographie numérique. Études Photographiques 31:54-71. http://journals.openedition.org/etudesphotographiques/3387.
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nomeou como uma “imagem conversacional”. Trata-se, segundo o autor, de um tipo de fotografia, associada às atuais formas de compartilhamento em redes sociais, que produz certas reinvenções do cotidiano através de novas linguagens de produção imagética. Para ele, uma imagem conversacional não existe sem destinatário; e a selfie, portanto, torna-se uma prática diretamente associada a essa lógica comunicacional.

Diferentemente de Gunthert, no entanto, o objetivo deste texto não é localizar a selfie como uma imagem eminentemente conversacional, mas discutir os momentos nos quais certas práticas situadas de selfie constroem esse caráter conversacional através de práticas e de políticas material-discursivas. Para isso, tomo como base uma pesquisa etnográfica diante da prática de selfie, desenvolvida4 4 O trabalho etnográfico que tomo como base para este artigo originou-se a partir de pesquisa de doutorado que tinha como objetivo seguir a experiência relacionada à produção de fotografias digitais chamadas selfies (Pastor 2020). Tomei uma praça na cidade de Salvador como ponto de partida para a investigação, observando as práticas cotidianas e, aos poucos, conhecendo diferentes pessoas que se tornaram personagens etnográficos, com os quais interagi e conversei (presencialmente ou através de redes sociais) entre fevereiro de 2018 e abril de 2020. Para preservar a identidade dos participantes, seus nomes foram trocados e nenhuma foto foi anexada neste trabalho. durante dois anos na cidade de Salvador, e a partir da qual mantive contato e interações com sete pessoas – das quais quatro aparecem neste artigo, incluindo Martim, artista de 40 anos. A partir dos relatos apresentados, argumento por uma compreensão da prática de selfie enquanto uma prática material-discursiva, abrindo possibilidades para considerar diferentes materialidades digitais como conformações performativas que criam possibilidades conversacionais, baseadas em constante produção de dados em meio a uma dataficação (Mayer-Schönberger e Cukier 2013Mayer-Schönberger, Viktor e Kenneth Cukier. 2013. Big data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Kindle. New York: Houghton Mifflin Harcourt.; Dijck, Poell e Waal 2018Dijck, José van, Thomas Poell e Martijn De Waal. 2018. The platform society. New York: Oxford University Press.) e digitalização da vida cotidiana (Lupton 2015Lupton, Deborah. 2015. Digital sociology. London and New York: Routledge.; Lasén 2019Lasén, Amparo. 2019. Lo ordinario digital: digitalización de la vida cotidiana como forma de trabajo. Cuadernos de Relaciones Laborales 37 (2): 313-30. https://doi.org/https://dx.doi.org/10.5209/crla.66040.
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).

Proposição cosmopolítica: pensando diante da prática de selfie

Na publicação compartilhada em sua galeria no Instagram, Martim dividiu o formato quadrado para ocupar, em uma montagem, duas imagens verticais em preto e branco: na esquerda, aparece nu e jovem; na direita, também nu, porém vinte anos mais velho. Nos dois retratos Martim posiciona-se lateralmente, mostrando o corpo da coxa até a cabeça, e vira o rosto para olhar na direção da câmera; apesar das poses semelhantes, na fotografia mais recente ele segura um smartphone com uma das mãos, produzindo ele mesmo a imagem. “Então, essa foi o [nome do espetáculo], que aí abriu a porteira da selfie, do nude”,5 5 “Nude” é o termo comumente utilizado para se referir a retratos pessoais (geralmente digitais e envolvendo redes sociais) com nudez. explica-me, fazendo referência à peça dirigida por ele que estrearia em breve. “Aí vira uma festa”, ele continua, dando risada. Na legenda da publicação, Martim inseriu o texto: “Entrando no jogo com o primeiro e o atual nudes, pois nos próximos dias anunciaremos a estreia de uma nova criação na qual irei desnudar um delicioso grupo de artistas. Aguardem.”, seguido, ainda, de quatro hashtags: “#DesafioDaPuberdade #Nudes #Instaboy #Striptease”. “Foi muito legal essa época assim, eu tive muitos debates com várias pessoas”, diz Martim, fazendo referência a todo o diálogo – e troca de imagens e de experiências – que tanto a peça quando as interações em torno dela acabaram suscitando. Influenciado pelo próprio processo de construção e de divulgação do espetáculo, Martim sentiu-se impelido a experienciar fotografar e exibir seu corpo nu nas redes sociais. Naquele momento, havia se espalhado pelo Instagram um chamado “10 years challenge”, no qual as pessoas começaram a compartilhar retratos seus realizados dez anos antes ao lado de fotografias atuais. “Na verdade”, conta-me Martim, “esse foi um ‘twenty years challenge’, na verdade não foi nem dez, eu era vinte anos [mais novo]” (Martim, com. pess., 24 jun. 2019), explicando que, na primeira imagem, ele tinha dezoito anos, enquanto na segunda, mais recente, estava com trinta e nove.

Após essa publicação, com um retrato nu antigo e um autorretrato nu atual, Martim e sua equipe começaram a dialogar com o público através da temática da nudez, gerando, nos termos trabalhados aqui neste artigo, um processo conversacional através das selfies chamadas usualmente de nudes. Ao mesmo tempo, como forma de divulgação do espetáculo e como uma maneira de cultivar uma reação política à situação geral de intolerância crescente no país, Martim incentivou o compartilhamento de selfies sem roupa. Conta-me:

Foi logo depois do segundo turno das eleições [de 2018]. Então tava todo mundo, me pareceu – e isso é uma leitura muito pessoal, mas também na conversa com os parceiros do projeto – que o [nome do espetáculo] teve uma coisa assim de ser um momento catártico, depois da eleição do atual presidente (Martim, com. pess., 24 jun. 2019).

Mesmo antes do incentivo oficial da equipe, “as pessoas já estavam espontaneamente publicando nudes com a hashtag #nomedoespetáculo”. Desnudar-se, nesse caso, tornou-se uma forma de compartilhar com outras pessoas um enfrentamento político, e dialogar com os artistas que iriam, também, desnudar-se. O interessante é perceber como esse processo de interação desenvolveu-se através do compartilhamento justamente de selfies. Como explica Martim,

foi muito bonito esse movimento das pessoas também entenderem que estava sendo criado um ambiente pra isso, e se sentirem de algum jeito pertencentes aquilo em algum momento. […] eu tive ótimas conversas com pessoas que me mandavam, pra mim só, “Martim, eu não me sinto à vontade de mandar, eu, sei lá, sou mãe de família, os meus filhos são muito pequenos ainda, ou eu sou ligado a algum órgão público, então não me senti confortável, mas eu queria que você recebesse”. Foi muito legal (Martim, com. pess., 24 jun. 2019).

– Foi de certa forma um apoio – eu digo. “Um apoio, total, um suporte”, responde-me Martim. Era uma maneira, portanto, do público dialogar diretamente com o tema do espetáculo (e com Martim), sentindo-se livre – mesmo que no privado – para produzir selfies sem roupa e, a partir delas, produzir interações com o outro. Eram nudes que se constituíam enquanto imagens conversacionais. Ou, ainda, poderia dizer que se tratava de uma prática de selfie que, ao envolver-se politicamente, a partir de um processo comunicacional, estava encorajando e interagindo com os artistas. “E eu achei aquilo muito encorajador, porque a gente tava com medo de ter represália, de ter algum ataque. Imagine, tinha acontecido o segundo turno”, explica-me Martim. Ao conversarmos, e pensando sobre aquele momento, ele disse ainda imaginar que a motivação para aquele tipo de compartilhamento estaria na “experiência de produzir essas autoimagens eróticas no momento em que um nefasto homem da extrema-direita acabara de ser eleito”. E depois complementa: “leio esse engajamento todo como uma resposta de autoliberação ao momento histórico” (Martim, com. pess., 24 jun. 2019). A partir dessas selfies, enviadas por diferentes pessoas, através de diferentes plataformas, Martim participou de conversas e interações, recebendo apoio pela ação de, naquele momento, discutir o corpo nu em cena.

Como pensar a prática de selfie nessa interação entre mobilização conversacional através do político construída em um emaranhado de autorretratos de corpos nus? Esse entrelaçamento inesperado, atualizado nessa prática específica, coloca-me uma questão que, acredito, necessita outra sensibilidade para tratar do político na relação com os “problemas e situações que nos mobilizam” (Stengers 2018Stengers, Isabelle. 2018. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 69: 442. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i69p442-464.
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, 443). É nesse sentido que proponho dialogar com a proposição cosmopolítica sugerida por Isabelle Stengers como uma maneira de fazer pensar diante da prática de selfie – na presença das diversas entidades, humanas e não humanas, que a compõem – acionada enquanto experiência política de resistência. “Política”, nesses termos, não se refere a um direcionamento a um “bom mundo comum”; trata-se, na verdade, “de desacelerar a construção desse mundo comum, de criar um espaço de hesitação a respeito daquilo que fazemos quando dizemos ‘bom’” (Stengers 2018Stengers, Isabelle. 2018. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 69: 442. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i69p442-464.
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, 446). Da mesma maneira, o “cosmos”, nessa relação cosmopolítica, não se pauta por um projeto para englobar um mundo particular, mas por um direcionamento ao desconhecido, a mundos múltiplos que se articulam na diferença. Nos termos de William James (1987)James, William. 1987. A pluralistic universe. In William James Writings 1902-1910, organizado por Bruce Kuklick, 625-820. New York: The Library of America., por exemplo, pode-se traduzir como um mundo in the making. “A proposição cosmopolítica”, escreve Stengers (2018Stengers, Isabelle. 2018. A proposição cosmopolítica. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros 69: 442. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901x.v0i69p442-464.
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, 447), “nada tem a ver com um programa, mas muito mais com a passagem de um pavor, que faz balbuciar as seguranças.” Trata-se de hesitar diante dessa inquietude política – “um nefasto homem da extrema-direita acabara de ser eleito”, lembra Martim –, buscando modos não de retorno ao mundo comum, mas de abrir possibilidades para resistir. Nas palavras de Stengers (1996Stengers, Isabelle. 1996. Cosmopolitiques tome 1: la guerre des sciences. Paris: La Découverte., 22-23):

Se aprender a pensar é aprender a resistir a um porvir que se coloca como evidente, plausível e normal, nós não podemos fazê-lo nem evocando um porvir abstrato, do qual teria sido eliminado tudo que se propõe às nossas condenações, nem nos referindo a uma causa distante, que nós poderíamos e deveríamos imaginar livre de todo compromisso. Resistir ao porvir provável no presente significa apostar que esse presente ainda oferece matéria à resistência, que é preenchido de práticas ainda vivas […].6 6 Todas as traduções apresentadas neste texto são de minha autoria, e as citações originais apresentadas em nota de rodapé. No original: “ Si apprendre à penser, c'est apprendre à résister à un avenir qui se donne comme évident, plausible et normal, nous ne pouvons le faire ni en évoquant un avenir abstrait, dont aurait été balayé tout ce qui s'offre à nos condamnations, ni en nous référant à une cause lointaine, que nous pourrions et devrions imaginer pure de toute compromission. Résister à l'avenir probable dans le présent, c'est faire le pari que ce présent offre encore matière à résistance, qu'il est peuplé de pratiques encore vivantes […].”

Martim fotografando-se vestindo uma camiseta de “arte como luta”, por exemplo, além de toda a experiência de desnude imagético conversacional associado a uma apresentação de artes cênicas, por mais banais que se configurem enquanto práticas, fazem-me pensar nesse aprendizado de resistência a um porvir que, cada vez mais opressivamente, se impõe. O que Martim interpreta como “uma resposta de autoliberação ao momento histórico”, eu poderia, em termos cosmopolíticos, ler como uma possibilidade de encontrar, no presente e na prática, formas de resistir a um porvir que sugere um caminho de apagamento dessa própria prática artística. Ou seja, paradoxalmente Martim se apropria da mesma lógica conversacional das plataformas que foi base digital na eleição da extrema direita para, assim, cultivar práticas cotidianamente atacadas por esse próprio extremismo que, na época, se intensificava e trazia incertezas e pavores. Poderia dizer, portanto, que se trata de um dos modos possíveis cotidianos de resistir a um futuro provável. No caso dessas práticas localizadas, dessa resistência através (estranhamente, talvez) de nudes em processos conversacionais, tentam-se criar “possíveis modos de coexistência” (Stengers 1997Stengers, Isabelle. 1997. La question cosmopolitique. In Cosmopolitiques tome 7: pour en finir avec la tolérance, 69-84. Paris: La Découverte., 74) – no sentido do cosmopolítico como uma noção especulativa. O parâmetro, para esses termos especulativos de Stengers (2002Stengers, Isabelle. 2002. Un engagement pour le possible. Cosmopolitiques 1: 27-36., 30), não está no provável, mas no possível, direcionando-nos à possibilidade de criação – “o que obriga a criar a capacidade de resistir ao provável”.7 7 “ce qui oblige donc á se créer capable de résister au probable”. É interessante observar, portanto, como a prática de selfie, nesses exemplos localizados, desenvolve-se também como criação (através da própria prática) de possibilidades de resistir. Nesses termos, essa abertura para o possível cria práticas – inclusive as de selfie. E essas mesmas práticas exigem uma forma de seguir a experiência que se abre para o possível – ou seja, obrigando-me a hesitar diante das possibilidades de experiência e, assim, desacelerar, questionar e aprender a articular respostas para as formas situadas de relevância (Savransky 2016Savransky, Martin. 2016. The adventure of relevance: an ethics of social inquiry. London: Palgrave Macmillan.) que emergem da prática.

Além das experiências de Martim, deparo-me com questões políticas, em diferentes níveis e relações, que cruzam com a prática cotidiana de selfie de outros personagens – envolvendo em algumas situações, inclusive, momentos políticos que também me afetavam. Quando o ex-presidente Lula, por exemplo, foi solto em novembro de 2019, meu feed do Instagram foi tomado por diversas imagens em comemoração ao acontecimento, incluindo muitas selfies. Dentre elas, vejo alguns autorretratos compartilhados por Teresa, psicóloga de 28 anos. Em dois deles, ela está sorrindo, olhando para a câmera, e, em seu rosto, utilizou um filtro que adicionou a palavra “Lula” em uma das bochechas e, em outra, “Livre”, ambas em letra branca em cima de um fundo vermelho; além disso, ainda escreveu em vermelho, na parte inferior da imagem, “alegria, alegria”. “Foi quando Lula foi solto, e eu queria comemorar, e mostrar pras pessoas que eu tava comemorando” (Teresa, com. pess., 1 mar. 2020), conta-me. Em outra publicação, também no modo stories, Teresa se fotografa em uma mesa de bar junto com um amigo, dessa vez adiciona, em ambos os rostos, um filtro maior, gerando uma grande estrela vermelha com “Lula Livre” escrito no centro; na parte superior da imagem, ela adicionou o seguinte texto: “Lula ladrão, roubou meu coração”.

Em outras situações, é possível perceber como a questão política envolve-se com o dia a dia dos personagens – e como essa relação acaba sendo traduzida em selfies. Em um dia de bastante chuva em Salvador, vejo uma publicação no modo stories de Gabriel, estudante de 17 anos, na qual ele aparece em uma imagem em preto e branco, mostrando parte do rosto em bastante proximidade, com o seguinte escrito inserido em cima de sua testa: “Eu quero matar ACM Neto [prefeito da cidade no período]. 2 horas pra chegar em São Lázaro, o buzu lotado e eu ensopado”. Ele me explica um pouco a situação:

Esse stories eu tirei no contexto daquela chuva que teve muito forte aqui em Salvador, em novembro, se eu não me engano, que alagou parte da cidade. E ficou um trânsito parado, tinha lugar que não passava. E aí eu acabei indo pra faculdade no dia, eu não quis ficar em casa porque eu precisava ir pra matéria, acho, que eu não podia mais faltar, algo assim. E aí eu fui e peguei ônibus e metrô em todo esse contexto de chuva e da cidade alagada. E aí eu levei duas horas pra chegar na faculdade, da minha casa até lá. E aí claro que nesse momento dá uma raiva, e acho que por isso eu fiz meio que essa provocação a ACM Neto. E também por conta do ônibus, da condição que tava com a chuva (Gabriel, com. pess., 1 mar. 2020).

Além da selfie, junto com o texto, funcionar como uma narrativa de parte de seu cotidiano, Gabriel se utiliza do compartilhamento de um autorretrato tanto para aliviar seu estresse com a situação quanto para produzir uma cobrança política – mesmo que, como se pode imaginar, nunca chegue efetivamente à prefeitura.

Já Iara, publicitária de 27 anos, insere mais fortemente em sua rotina fotográfica um ativismo político, especialmente devido a seu trabalho voluntário em uma ONG: em seu caso, em defesa dos animais. Em uma publicação no modo stories, por exemplo, Iara, vestindo uma camisa da associação de proteção aos animais, aparece com o rosto parcialmente cortado pelo enquadramento, enquanto coloca em destaque um gato preto e branco que ela segura junto a seu corpo; no espaço que sobra, ao lado, escreve a palavra “Nutella”, em rosa, e logo abaixo “para adoção”, em branco. Através desta selfie, portanto, Iara tenta encontrar alguma pessoa interessada em dar um lar para Nutella. Como ela me explicou em uma conversa que tivemos, o abrigo para animais onde trabalha costuma ficar lotado, então é importante tanto, como ela diz, “dar dignidade a vida desses animais” nesse ambiente, quanto promover a prática de adoção. Seu engajamento nesse sentido, inclusive, passa também pela prática de selfie e o compartilhamento em seu próprio perfil pessoal, e não apenas nas redes sociais que administra para a ONG. É o caso de outra publicação, feita no modo galeria do Instagram, na qual ela se fotografa abraçada a um cachorro quase de seu tamanho, virando o rosto e rindo enquanto ele lambe sua bochecha. Na legenda, escreveu o seguinte: “Que todos eles possam ter a quem dar lambeijo de bom dia”, seguido de alguns emojis e a hashtag #diamundialdosanimais. “Quem é esse lindo?” – alguém comenta na publicação. E Iara responde: “Chama Thor! Graças a Deus, já foi adotado”, seguido de mais emojis.

Começo a perceber, ao observar e interagir com os personagens, como a possibilidade de uma imagem conversacional – ou esse processo conversacional desenvolvido através do político – relaciona-se também a uma construção que não é apenas imagética, mas também associada a diferentes materialidades digitais que acabam se constituindo como parte de cada prática localizada de selfie. Martim observando, através de uma hashtag, uma experiência coletiva de fotografar-se nu; Teresa utilizando um filtro em seu rosto para comemorar a liberdade de Lula; Gabriel marcando o perfil da prefeitura da cidade em sua publicação para reclamar dos problemas de mobilidade em um dia de chuva; ou Iara fazendo referência ao dia mundial dos animais através de uma selfie e uma hashtag. Todas essas situações remetem a uma imagem conversacional construída a partir de diferentes metatextos, apontando para uma prática de selfie que se conforma, como discutirei nas próximas páginas, também enquanto uma prática material-discursiva.

Práticas material-discursivas e dataficação do cotidiano

Na imagem em preto e branco, compartilhada no modo galeria do Instagram, Martim e Mario aparecem dando um beijo. A cena, do jeito que é enquadrada, coloca em evidência esse momento de intimidade. Os dois estão próximos a um fundo branco, beijando-se lateralmente de maneira a, com os rostos grudados e o contraste do preto e branco, dar a sensação de ver um coração se formando. A bonita imagem é acompanhada, ainda, do seguinte texto: “Hoje é o dia internacional de combate à LGBTfobia, mas a luta é diária. Pois que seja com amor no Brasil, na Espanha, na Rússia, em toda parte. E você não precisa ser LGBT pra erguer junto essa bandeira”, acompanhado das hashtags #InternacionalDayAgainstHomophobia e #kiss4lgbtqrights. Além dessas inserções textuais, Martim acrescenta uma marcação de localização em “Moscow Kremlin”. Ele explica um pouco essa sua publicação:

Essa foto […] Que foi um sucesso. Não foi Moscou, né, não estive em Moscou. Mas foi na época em que a Rússia tava fazendo, ainda faz, mas tava um cerco de grande opressão a nós, às pessoas LGBT, né, gays, bi, trans etc. E aí houve um movimento dessa comunidade de todo mundo colocar o localizador nessa praça em Moscou, pra que toda vez que alguém procurasse essa praça veria essa chuvalhada de beijos. Então foi exatamente nesse momento que foi o dia internacional de combate (Martim, com. pess., 24 jun. 2019).

Mesmo longe, Martim, junto com Mario, marcaram uma presença na praça em Moscou, como forma de participar de um movimento coletivo de resistência política. E essa marcação, com uma geotag, acaba não apenas formulando-se como algo expressivo, de afirmação dessa resistência, mas coloca a selfie do beijo em meio a diversos outros beijos de casais LGBTs. Esse autorretrato, assim, extrapola a própria rede de contatos de Martim, conectando-se a outras selfies – ampliando as possibilidades conversacionais – realizadas em diálogo com uma luta internacional contra a homofobia. As hashtags, segundo ele, funcionaram de maneira conectiva, como uma forma de participar e colaborar com o protesto e o posicionamento político; ou seja, “pra se irmanar, pra você se conectar total a esse movimento” (Martim, com. pess., 24 jun. 2019).

É interessante observar como essa conexão não apenas se constrói a partir da forma expressiva da selfie do beijo – que, por si só, já traz uma imagem forte –, mas também pela incorporação de uma linguagem (e materialidade) associada à plataforma. Não somente o texto associa-se à fotografia através de uma legenda, como também as hashtags e geotags acabam funcionando como um formato metatextual que traz novas possibilidades conversacionais. Trata-se de uma prática de selfie construída não apenas a partir de uma experiência de produção de autorretratos digitais, mas também de produção material e discursiva capaz de se conectar com outras práticas de selfie. Ou seja, não apenas uma conexão inserida em processos de dataficação (Mayer-Schönberger e Cukier 2013Mayer-Schönberger, Viktor e Kenneth Cukier. 2013. Big data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Kindle. New York: Houghton Mifflin Harcourt.; Dijck, Poell e Waal 2018Dijck, José van, Thomas Poell e Martijn De Waal. 2018. The platform society. New York: Oxford University Press.) – processos de transformação de práticas realizadas através de plataformas digitais em dados rastreados e coletados –, mas construída em uma forma de se fotografar, de colocar rostos beijando-se em primeiro plano, que se utiliza da própria lógica de produção de dados da plataforma para produzir um posicionamento político e afetivo. A imagem conversacional forma-se tanto na visualidade da selfie quanto nos dados produzidos a partir dela.

Esse uso intenso do que estou chamando de metatextos (materialidades digitais associadas a uma imagem compartilhada em plataformas, como legendas, hashtags e geotags) já era identificado ao seguir as publicações realizadas na praça que deu início a esta etnografia. No entanto, ao acompanhar a rotina dos personagens foi possível perceber como esses metatextos fazem parte da própria prática de selfie e, ainda, podem guiar e transformar as possibilidades conversacionais atreladas a ela. Começo a perceber, assim, a importância de compreender a prática de selfie também como uma prática material-discursiva – no sentido trabalhado por Karen Barad (2007)Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press..

A discussão proposta por Barad (2007)Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press. ajuda-me, especialmente, a pensar – através da prática de selfie – nas maneiras através das quais materialidades digitais passam a compor a experiência envolvida na produção e no compartilhamento de autorretratos. Tomando como ponto de partida a filosofia-física de Niels Bohr, a autora desenvolve o que ela chama de agential realism, através do qual busca compreender práticas científicas e sociomateriais diversas em termos de uma performatividade pós-humanista. Uma das questões principais para Barad, nesta obra, está na crítica ao representacionismo enquanto modelo metodológico e epistemológico, pautado por uma lógica de reflexibilidade na qual representações refletiriam a realidade natural e social. Dessa forma, ela propõe tomar como metáfora – e como aparato metodológico – não a ideia da reflexibilidade, mas o que se entende em mecânica quântica como difração. Em outros termos, poderia dizer que se trata de um afastamento daquilo que, em uma investigação sobre as práticas, voltar-se-ia para padrões de semelhança, propondo, ao contrário, uma atenção aos padrões de difração – ou seja, “padrões de diferença que produzem uma diferença”8 8 “patterns of difference that make a difference”. (Barad 2007Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press., 72) – e pensá-los enquanto componentes que constituem o mundo.

É neste sentido que a proposta de Barad, neste momento, ajuda-me a compreender certos aspectos da prática de selfie, considerando que a experiência a qual sigo neste trabalho refere-se – inspirando-me no empirismo radical de William James (1912)James, William. 1912. Essays in radical empiricism. New York: Longmans, Green and Co. – a uma experiência como produção de diferença. De maneira um pouco diferente, no entanto, essa mudança de questões de reflexão para questões de difração engloba, para Barad (2007Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press., 135), também uma perspectiva performática na qual o foco sai das matérias de correspondência e descrição da realidade e se direciona a “matérias de práticas, do fazer, e de ações”.9 9 “matters of practices, doing, and actions”. Essa proposta, portanto, compreende a matéria a partir de sua performatividade: “A matéria não é fixa nem dada ou o mero resultado de diferentes processos. A matéria é produzida e produtiva, gerada e generativa. A matéria é agente, não essência fixa ou propriedade das coisas. Materializar-se é se diferenciar […]”10 10 “Matter is neither fixed and given nor the mere end result of different processes. Matter is produced and productive, generated and generative. Matter is agentive, not fixed essence or property of things. Mattering is differentiating […].” (Barad 2007Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press., 137).

Uma dos pontos importantes da proposta de Barad, pensando inclusive no sentido aqui trabalhado de uma prática de selfie envolvida com diferentes materialidades digitais, está não apenas no dinamismo da matéria, mas também em uma compreensão performativa que acarreta pensá-la não em termos de construção linguística, mas como uma “produção discursiva no sentido pós-humanista de que práticas discursivas são elas mesmas (re)configurações materiais do mundo”11 11 “a discursive production in the post humanist sense that discursive practices are themselves material (re)configurings of the world […].” (Barad 2007Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press., 151). Portanto, para a autora, matéria e significado estão emaranhados. Por isso, então, ela tratará de práticas científicas ou sociais como práticas material-discursivas.

Para além das possíveis consequências epistemológicas, interessa-me aqui pensar as práticas situadas de selfie também como práticas material-discursivas12 12 Tomando como base justamente o realismo agencial de Barad (2007), Katie Warfield (2016), de maneira semelhante ao que proponho neste momento, sugere pensar em selfies como emaranhados material-discursivos em rede. No entanto, busco remodelar um pouco essa perspectiva para colocar a ênfase na observação diretamente das práticas material-discursivas, chamando atenção, a partir de Barad (2007), para o dinamismo das diferentes materialidades (especialmente digitais, neste caso) que compõem essas práticas. no sentido de perceber uma performatividade associada a elas que passa, inclusive, pelas materialidades digitais que compõem suas trajetórias de experiência. E essas materialidades digitais, portanto, produzem diferença na experiência. Neste caso, é importante dialogar com “materialidades específicas que os objetos digitais exibem”,13 13 “the specific materialities that digital objects exhibit.” como propõe Paul Dourish (2017Dourish, Paul. 2017. The stuff of bits: an essay on the materialities of information. Cambridge: MIT Press., 13). Assim como ele trata de materialidades da informação (no plural), penso aqui em materialidades digitais (também, portanto, no plural) para tratar dos diferentes aspectos materiais que se mostram relevantes em práticas cotidianas de selfie em meio a um ambiente de plataformas e ações algorítmicas. Seguindo Dourish (2017)Dourish, Paul. 2017. The stuff of bits: an essay on the materialities of information. Cambridge: MIT Press., é importante perceber como softwares e informações digitais possuem uma dimensão material que se constrói em seu processo de uso e de desenvolvimento. Esses arranjos materiais, como ele chama, mostram-se relevantes na experiência de produção informacional. No entanto, diferentemente de Dourish (2017)Dourish, Paul. 2017. The stuff of bits: an essay on the materialities of information. Cambridge: MIT Press., não se busca aqui entendê-los a partir de suas representações; ao contrário, seguindo neste momento Barad (2007)Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press., a proposta é fugir de uma lógica material pautada pela representação, buscando, assim, compreender as práticas material-discursivas através das quais esses arranjos materiais (no caso deste trabalho, as materialidades digitais envolvidas com a produção e compartilhamento de selfies) são parte ativa e performativa.

Quando Martim compartilha uma selfie beijando Mario, suas possibilidades conversacionais e políticas são desenvolvidas não apenas pelo ato do beijo, nem somente pela imagem gerada em preto e branco, mas também pelos rearranjos materiais que são promovidos ao vincular aquela publicação a uma praça em Moscou – através de um metatexto, a geotag específica daquela praça. Ou, ainda, quando diversas ações semelhantes, com outros beijos, conectam-se a partir de uma hahstag que, além de textualmente levantar a força expressiva do dia mundial contra a homofobia, também funciona enquanto materialidade digital que age ampliando as possibilidades conversacionais e políticas daquela prática (material-discursiva). Neste caso, esses dois metatextos – geotag e hashtag – não apenas fazem parte da prática de selfie como se mostram relevantes no sentido de proporcionar, materialmente, uma produção de diferença na prática: transforma de maneira localizada algumas relações material-discursivas na plataforma, ressignificando a localização de uma praça; produz uma conexão entre imagens que serão algoritmicamente distribuídas, de maneira personalizada, pelo Instagram; e desenvolve, portanto, através desses emaranhados de materialidades digitais, um tipo específico de imagem conversacional.

De maneira mais localizada – em termos de expansão em rede da prática material-discursiva –, as selfies chamadas de nudes que Martim encontrava ao acompanhar a hashtag vinculada a seu espetáculo criavam possibilidades de resistência que passavam, também, por um processo de construção e de interação de diferentes materialidades digitais. O apoio aos artistas que iriam, em um momento de ataques políticos às artes, desnudar-se em cena e em rede, desenvolve-se materialmente não apenas nas imagens geradas de diferentes corpos nus, mas também na afirmação coletiva, através de hashtags e legendas, de uma possibilidade de resistência. De maneira semelhante, Teresa utiliza filtros de sobreposição (uma nova camada material-discursiva) a seu próprio autorretrato para produzir uma afirmação política de esquerda; Gabriel produz narrativas de seu cotidiano através de selfies associadas a construções textuais, tornando visíveis suas insatisfações com o poder público; ou, ainda, Iara utiliza o apoio de hashtags para agir politicamente em defesa e proteção dos animais. A performance da selfie, portanto, mostra-se também uma performance material-discursiva realizada conjuntamente com materialidades digitais – como hashtags, legendas, geolocalizações, comentários, curtidas, algoritmos etc. – que afetam os modos de visibilidade na plataforma, geram diferentes tipos de engajamento e constroem, como no caso de Martim, um coletivo de práticas e políticas material-discursivas.

É nesse sentido, por exemplo, que os dados coletados por plataformas como Instagram tornam-se lively data, nos termos trabalhados por Deborah Lupton (2016Lupton, Deborah. 2016. Personal data practices in the age of lively data. In Digital Sociologies, organizado por Jessie Daniels, Karen Gregory e Tressie McMillan Cottom, 339-54. Bristol: Policy Press., 2018Lupton, Deborah. 2018. How do data come to matter? Living and becoming with personal data. Big Data & Society 5 (2). https://doi.org/10.1177/2053951718786314.
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): são configurados e reconfigurados a partir das diversas interações; ao mesmo tempo baseiam-se e afetam constantemente a vida cotidiana. O caráter conversacional dos nudes coletivos provocados por Martim constrói-se a partir também da dinâmica de dados produzidos, coletados e transformados no decorrer de seu próprio processo de experimentação – uma experiência de desnudar-se, portanto, que é política, mas também material-discursiva e dataficada. Trata-se de uma forma de se engajar em uma relação com dados digitais que Lupton (2016)Lupton, Deborah. 2016. Personal data practices in the age of lively data. In Digital Sociologies, organizado por Jessie Daniels, Karen Gregory e Tressie McMillan Cottom, 339-54. Bristol: Policy Press., por exemplo, chama de práticas de dado. Nesse sentido, há momentos nos quais, na relação entre a prática de selfie e o uso de plataformas digitais, não apenas se evidencia um caráter conversacional relacionado às selfies como também ele se constrói a partir de arranjos materiais traduzidos em processos de dataficação (Mayer-Schönberger e Cukier 2013Mayer-Schönberger, Viktor e Kenneth Cukier. 2013. Big data: a revolution that will transform how we live, work, and think. Kindle. New York: Houghton Mifflin Harcourt.; Dijck, Poell e Waal 2018Dijck, José van, Thomas Poell e Martijn De Waal. 2018. The platform society. New York: Oxford University Press.). Como observam também outros autores, essa lógica de dataficação não somente opera como um processo estruturante de coleta de dados, mas também transforma as práticas e as agências vinculadas a ela (Sumartojo et al. 2016Sumartojo, Shanti, Sarah Pink, Deborah Lupton e Christine Heyes LaBond. 2016. The affective intensities of datafied space. Emotion, Space and Society 21: 33-40. https://doi.org/10.1016/j.emospa.2016.10.004.
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), afeta a experiência cotidiana em diferentes espaços dataficados (Kennedy, Poell e Dijck 2015Kennedy, Helen, Thomas Poell e Jose van Dijck. 2015. Data and agency. Big Data & Society 2 (2): 01-07. https://doi.org/10.1177/2053951715621569.
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), e demanda diferentes maneiras de construir narrativas através de cada prática de dado (Dourish e Gómez Cruz 2018Dourish, Paul e Edgar Gómez Cruz. 2018. Datafication and data fiction: narrating data and narrating with data. Big Data & Society 5 (2): 01-10. https://doi.org/10.1177/2053951718784083.
https://doi.org/10.1177/2053951718784083...
) – inclusive etnograficamente, percebendo as práticas de dado como parte das práticas e experiências cotidianas.

Considerações finais

Acompanhar a rotina dos personagens e, aos poucos, descobrir as situações nas quais a prática de selfie se comporta enquanto uma prática conversacional levou-me a adentrar em dois âmbitos aparentemente distintos do cotidiano: as interações e imagens trocadas de forma privada, diretamente entre amigos ou em ambientes controlados; e uma lógica conversacional que se desenvolve de maneira aberta e pública (ou semipública) em redes sociais digitais. A partir da investigação etnográfica desenvolvida, demonstro neste artigo não uma prática de selfie que se constitui simplesmente como assunto ou mecanismo para a interação, mas como prática (material-discursiva) que se caracteriza como a própria produção conversacional.

Argumento, portanto, por uma compreensão da prática de selfie também enquanto prática material-discursiva. As materialidades digitais que a compõem não são unidades representacionais ou meras camadas de informação acrescentadas à imagem, mas conformações performativas a transformar práticas, ativar algoritmos e criar possibilidades conversacionais. Em termos pragmatistas (James 1912James, William. 1912. Essays in radical empiricism. New York: Longmans, Green and Co., 2000James, William. 2000. Pragmatism (1907). In Pragmatism and other writings, organizado por Giles Gunn, 1-132. London: Penguin Books.): as materialidades digitais produzem diferenças práticas. O interessante, no caso daquilo que busquei apresentar neste texto, está também em perceber as diferentes maneiras através das quais essas diferenças são produzidas; ou seja, como, em meio a relações material-discursivas, o político é diferentemente solicitado em cada prática e situação específica – abrindo, ou não, possibilidades de resistência –, ou como as diferentes conversações vão diferindo em cada relação, plataforma e arranjo material.

Como visto, essas práticas conversacionais e material-discursivas, em meio a diferentes plataformas digitais, não apenas produzem e são produzidas por materialidades digitais como também as transformam – incluindo, assim, a própria prática de selfie – em uma prática de produção constante de dados. A partir dos relatos apresentados, foi possível observar alguns aspectos de arranjos e de práticas material-discursivas nas quais materialidades digitais envolvem-se em processos comunicativos. Participar de conversas através de diferentes plataformas, envolvendo selfies e relações material-discursivas, significa produzir dados – também conversacionais, conectados muitas vezes algoritmicamente e capazes de agir performativamente em diferentes interações – em um ambiente de ampla dataficação do cotidiano.

  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do autor antes da publicação.
  • 2
    Trata-se de um modo de compartilhamento no Instagram no qual as imagens ficam temporariamente disponíveis para serem visualizadas por um período de 24 horas.
  • 3
    Publicação de Jean Wyllys em seu perfil no Instagram. Acessado 15 set. 2020. https://www.instagram.com/p/BtBszQ2ghcM.
  • 4
    O trabalho etnográfico que tomo como base para este artigo originou-se a partir de pesquisa de doutorado que tinha como objetivo seguir a experiência relacionada à produção de fotografias digitais chamadas selfies (Pastor 2020Pastor, Leonardo. 2020. Seguindo a experiência: uma etnografia diante da prática de selfie. Tese em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Brasil.). Tomei uma praça na cidade de Salvador como ponto de partida para a investigação, observando as práticas cotidianas e, aos poucos, conhecendo diferentes pessoas que se tornaram personagens etnográficos, com os quais interagi e conversei (presencialmente ou através de redes sociais) entre fevereiro de 2018 e abril de 2020. Para preservar a identidade dos participantes, seus nomes foram trocados e nenhuma foto foi anexada neste trabalho.
  • 5
    “Nude” é o termo comumente utilizado para se referir a retratos pessoais (geralmente digitais e envolvendo redes sociais) com nudez.
  • 6
    Todas as traduções apresentadas neste texto são de minha autoria, e as citações originais apresentadas em nota de rodapé. No original: “ Si apprendre à penser, c'est apprendre à résister à un avenir qui se donne comme évident, plausible et normal, nous ne pouvons le faire ni en évoquant un avenir abstrait, dont aurait été balayé tout ce qui s'offre à nos condamnations, ni en nous référant à une cause lointaine, que nous pourrions et devrions imaginer pure de toute compromission. Résister à l'avenir probable dans le présent, c'est faire le pari que ce présent offre encore matière à résistance, qu'il est peuplé de pratiques encore vivantes […].”
  • 7
    “ce qui oblige donc á se créer capable de résister au probable”.
  • 8
    “patterns of difference that make a difference”.
  • 9
    “matters of practices, doing, and actions”.
  • 10
    “Matter is neither fixed and given nor the mere end result of different processes. Matter is produced and productive, generated and generative. Matter is agentive, not fixed essence or property of things. Mattering is differentiating […].”
  • 11
    “a discursive production in the post humanist sense that discursive practices are themselves material (re)configurings of the world […].”
  • 12
    Tomando como base justamente o realismo agencial de Barad (2007)Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press., Katie Warfield (2016)Warfield, Katie. 2016. Making the cut: an agential realist examination of selfies and touch. Social Media and Society 2 (2): 1-10. https://doi.org/10.1177/2056305116641706.
    https://doi.org/10.1177/2056305116641706...
    , de maneira semelhante ao que proponho neste momento, sugere pensar em selfies como emaranhados material-discursivos em rede. No entanto, busco remodelar um pouco essa perspectiva para colocar a ênfase na observação diretamente das práticas material-discursivas, chamando atenção, a partir de Barad (2007)Barad, Karen. 2007. Meeting the universe halfway: quantum physics and the entanglemenof matter and meaning. Durham & London: Duke University Press., para o dinamismo das diferentes materialidades (especialmente digitais, neste caso) que compõem essas práticas.
  • 13
    “the specific materialities that digital objects exhibit.”

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Out 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2020
  • Aceito
    05 Abr 2021
  • Publicado
    24 Ago 2021
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