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O autoritarismo brasileiro entre Césares e Napoleões

Brazilian authoritarianism among Caesars and Napoleons

El autoritarismo brasileño entre Césares y Napoleones

Resumo:

O objetivo deste artigo consiste em propor uma hipótese explicativa para o autoritarismo contemporâneo no Brasil que leve em conta de modo consequente as especificidades da nossa cultura e história. Para tanto, e para problematizar as propostas interpretativas baseadas em uma reedição brasileira do fascismo italiano, iniciaremos discutindo o problema da repetição na história e a função heurística do passado e da cultura nacional na explicação do presente a partir de Hegel, Marx e Gramsci. Como conclusão, sugerimos interpretar o bolsonarismo como forma política atual da restauração reacionária neoliberal no Brasil.

Palavras-chave:
Autoritarismo; Brasil; Cesarismo; Bonapartismo; Revolução-restauração

Abstract:

The purpose of this article is to propose an explanatory hypothesis for contemporary authoritarianism in Brazil that takes into account the specifics of our culture and history. Therefore, and to problematize the interpretative proposals based on a Brazilian re-edition of Italian fascism, we will start by discussing the problem of repetition in history and the heuristic function of the past and national culture in explaining the present from Hegel, Marx and Gramsci. As a conclusion, we suggest interpreting the bolsonarism as the current political form of neoliberal reactionary restoration in Brazil.

Keywords:
Authoritarianism; Brazil; Caesarism; Bonapartism; Revolution-restoration

Resumen:

El propósito de este artículo es proponer una hipótesis explicativa del autoritarismo contemporáneo en Brasil que toma en cuenta las especificidades de nuestra cultura e historia. Por tanto, y para problematizar las propuestas interpretativas basadas en una reedición brasileña del fascismo italiano, comenzaremos por discutir el problema de la repetición en la historia y la función heurística del pasado y la cultura nacional en la explicación del presente desde Hegel, Marx y Gramsci. Como conclusión, sugerimos interpretar el bolsonarismo como la forma política actual de restauración reaccionaria neoliberal en Brasil.

Palabras clave:
Autoritarismo; Brasil; Cesarismo; Bonapartismo; Revolución-restauración

Introdução

Existe hoje um considerável e importante esforço intelectual dentro e fora da academia para desvendar o fenômeno da emergência no Brasil de um tipo específico de autoritarismo que se caracteriza pela recorrente busca de apoio das massas por meio do amplo recurso à propaganda, empregando especialmente as mídias digitais e as fake news, que tem sido chamado, ainda sem muita precisão, de “bolsonarismo”. O bolsonarismo – assim como o fascismo –, além de ser uma forma de gestão do poder político, demonstra pretender se tornar um movimento de massas sustentado por um discurso pretensamente revolucionário, ou, pelo menos, antiestablishment, 3 3 A reunião ministerial de 22 de abril de 2020 mostra claramente esse discurso por parte de Bolsonaro e de seus ministros. Serviço Público Federal. 2020. Ditec – Instituto Nacional de Criminalística. Laudo No. 1242/2020 - INC/DITEC/PF. Acessado em 22 maio 2020, https://assets.documentcloud.org/documents/6923169/Decis%C3%A3o-de-Celso-de-Mello-que-liberou-v%C3%ADdeo-de.pdf. com forte acento no belicismo e no ataque às instituições democráticas. Em função das evidentes similaridades com formas autoritárias do passado, em especial com o fascismo italiano da primeira metade do século 20, a bibliografia tem recorrido frequentemente a conceitos como neofascismo ou protofascismo para compreender o contexto político e social brasileiro (cf. Boito Jr 2020Boito Junior, Armando. 2020. Por que caracterizar o bolsonarismo como neofascismo. Revista Crítica Marxista 50: 111-119.; Löwy 2020;4 4 Löwy, Michael. 2020. O neofascista Bolsonaro diante da pandemia. Blog da Boitempo. Acessado em 5 fev. 2021, https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o-neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia. Mattos 2019Mattos, Marcelo B. 2019. Mais que uma analogia: análises clássicas sobre o fascismo histórico e o Brasil de Bolsonaro. In O neofascismo no poder (ano I): análises críticas sobre o governo Bolsonaro, organizado por Juliana Fiuza Cislaghi e Felipe Demier, 17-46. Rio de Janeiro: Consequência.; Sena Jr 2019Sena Junior, Carlos Z. 2019. O protofascismo bolsonarista e a universidade pública no Brasil. In O neofascismo no poder (ano I): análises críticas sobre o governo Bolsonaro organizado por Juliana Fiuza Cislaghi e Felipe Demier, 205-222. Rio de Janeiro: Consequência.).

Diante disso, nos perguntamos se de fato seria possível fazer tal interpretação e em caso positivo quais seriam seus fundamentos teóricos e empíricos. Nossa questão aqui não é de simples nomenclatura, mas chamamos atenção para o risco de desenvolver interpretações a partir de meras analogias, sem, com isso, enxergar as especificidades que o fenômeno assume no Brasil. Por outro lado, não se pode negligenciar as aparentes repetições de eventos e personagens entre passado e presente, que conduziram o próprio N. Maquiavel, em carta a F. Guicciardini em maio de 1521, a afirmar a função heurística da história porquanto ela nos faz “reconhecer e rever aquilo que nunca conhecemos nem vimos”. Diz o autor:

Mudam somente as faces dos homens e as cores extrínsecas, contudo, as mesmas coisas retornam; não vemos acidente algum que em outro tempo já não vimos. Mas ao mudar nomes e aspectos, as coisas fazem com que somente os prudentes lhes reconheçam: e, porém, é boa e útil a história, porque te coloca a frente e te faz reconhecer e rever aquilo que nunca conhecemos nem vimos. (Maquiavel apud Zarone 1990Zarone, Giuseppe. 1990. Classe politica e ragione scientifica: Mosca, Croce, Gramsci. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane., 137-138).

É preciso considerar, portanto, que a reflexão sobre fenômenos políticos sempre esteve implicada com as categorias de identidade e diferença, ou, em termos temporais, repetição e inovação. Essa não é, como se vê, propriamente uma invenção dos contemporâneos. A reforma protestante retirou, em certa medida, seus temas e vocabulário do assim chamado “cristianismo primitivo”, a república de Maquiavel nos Discorsi sulla Prima Deca di Tito Livio retirou sua inspiração do vocabulário romano (cf. Machiavelli 1966Machiavelli, Nicola. 1966. Opere. Milano: Ugo Mursia.), e as revoluções inglesa e americana fazem o mesmo com o Antigo Testamento (cf. Marx 1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Na moderna filosofia alemã quem tematizou diretamente esta questão foi F. W. G. Hegel, embora seja a frase de K. Marx (1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra., 25) que tenha conquistado o imaginário mais cotidiano:

Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes fatos e todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.

Destarte, dada a complexidade do problema, mais do que respostas acabadas, essas reflexões suscitam importantes questões de pesquisa: o que se ganha e quais os limites desta “ressureição de mortos”, como Marx a chamou? É possível afirmar que existe repetição na história? Em caso negativo, como compreender aquilo que aparentemente surge como repetição do passado? Em busca de algumas respostas para estas questões, levantamos duas hipóteses: (1) Não são os fenômenos históricos que se repetem, mas, antes, a repetição, ou pelo menos a aparente reedição de um evento histórico que agora se apresenta como inovação, é a própria forma como os analistas absorvem e definem inicialmente o novo na história. O aprofundamento científico, contudo, coincide com o surgimento de novas categorias explicativas; (2) A despeito de não haver repetição na história, o passado e a cultura desempenham uma basilar função heurística na explicação do presente em função de uma “estrutura de repetição”, que torna os eventos aparentemente repetitivos e permite uma “dialética revolução-restauração”.

Ao analisar o problema da repetição histórica, Kojin Karatani (2010Karatani, Kojin. 2010. Revolución y repetición. Theoria. Revista del Colegio de Filosofía 20/21: 11-25. https://doi.org/10.22201/ffyl.16656415p.2010.20-21.792.
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, 11) sugere que o que se repete não são os eventos e sim as estruturas e que essa “estrutura repetitiva” encontra sua base teórica em Marx, primeiramente em O 18 Brumário, mas principalmente em O Capital. Segundo o autor, essa estrutura repetitiva mostrar-se-ia fundamentalmente pela ciclicidade das crises do sistema capitalista. Em outros termos, Marx trouxe a lume uma realidade pouco observada em seu tempo: as crises não são acidentais, mas estruturais e cíclicas. Em outros termos, as crises não desencadeiam necessariamente uma revolução, como muitos marxistas erroneamente as interpretaram,5 5 Especialmente os teóricos da II Internacional. Sobre isso consultar Fresu 2016. mas constituem a própria forma pela qual o sistema se reorganiza (cf. Karatani 2010Karatani, Kojin. 2010. Revolución y repetición. Theoria. Revista del Colegio de Filosofía 20/21: 11-25. https://doi.org/10.22201/ffyl.16656415p.2010.20-21.792.
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, 13) e, deste modo, supera barreiras e estabelece novos limites (cf. Ázara 2012Ázara, Hélio. 2012. O conceito marxiano de “capital como tal”: um estudo a partir do livro primeiro d’O Capital. Tese em Filosofia, Universidade Estadual de Capinas.).6 6 Ainda sobre o conceito de crise em O Capital de K. Marx consultar Grespan (2012).

A existência da “estrutura de repetição” que enseja a dialética revolução-restauração ilumina sensivelmente o problema da aparente reedição do fascismo na atualidade e encontra suas bases teóricas nos autores estudados aqui. Destarte, para fundamentar nossas hipóteses analisaremos brevemente o pensamento filosófico sobre a história desenvolvido por Hegel e, posteriormente, a sua recepção por Marx e Gramsci. A partir disso, discutiremos a repetição histórica no interior das reflexões sobre o cesarismo e sobre o bonapartismo, assim como acerca da dialética histórica “revolução-restauração”. Como conclusão, sugerimos interpretar o bolsonarismo como forma política atual – assim como foi o fascismo no passado – da restauração reacionária neoliberal. O neoliberalismo é entendido aqui a partir dos apontamentos de Wendy Brown (2006Brown, Wendy. 2006. American Nightmare Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. Political Theory 34 (6): 690-714 https://doi.org/10.1177/0090591706293016.
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, 2019Brown, Wendy. 2019. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Politéia.), isto é, como racionalidade convergente com o neoconservadorismo e favorecedor da “produção do cidadão não democrático” (Brown 2006Brown, Wendy. 2006. American Nightmare Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. Political Theory 34 (6): 690-714 https://doi.org/10.1177/0090591706293016.
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, 692).

Hegel: a repetição como confirmação histórica

A exposição sobre o conteúdo da história mundial (Welt Geschichte) encontra na Filosofia do Espírito Objetivo de F. W. G. Hegel seu lugar sistemático próprio, mais precisamente nos parágrafos 341 a 360 da Filosofia do Direito (1998), publicada originalmente em 1820. Embora a conceituação hegeliana nesta obra seja apenas referida em seu traçado fundamental (Grundriss), no Direito já são apresentados os entes “encarregados da tarefa do espírito do mundo”, a saber, “estados, Povos e Indivíduos” (Hegel 1998Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. 1998. Linhas fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em compêndio. Tradução Marcos Lutz Müller. Campinas:Unicamp., § 344) e são, precisamente estes últimos, os “indivíduos históricos mundiais” (Hegel §348), “como subjetividades efetivadoras do substancial” (Hegel §279, anotação) aquelas subjetividades que:

não recebem a honra e a gratidão entre os seus contemporâneos, nem junto à opinião pública da posteridade, mas recebem sim, como subjetividades formais, junto dessa opinião somente, a sua parte como fama imortal. (Hegel 1998Hegel, Georg Wilhelm Friedrich. 1998. Linhas fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em compêndio. Tradução Marcos Lutz Müller. Campinas:Unicamp. §348, grifos no original).

Os exemplos que Hegel certamente tem em vista aqui são César e Napoleão. Em suas Lições sobre Filosofia da História, Hegel aborda o tema da repetição histórica em uma breve passagem que não mereceu muito destaque antes de sua apropriação por Marx. A relação entre César e Napoleão aparece exposta na Terceira Parte da Filosofia da História, que trata do Império Romano, mais precisamente no último parágrafo do capítulo 2, que citamos aqui por sua importância para a discussão que se segue:

Uma revolução do estado só é aceita na opinião dos homens quando se repete. Assim é que Napoleão foi vencido duas vezes, e por duas vezes os Bourbons foram expulsos. Pela repetição, o que de início parecia só ocasional e possível, torna-se realidade e é comprovado. (Hegel 2008, 266, grifos nossos).

Os eventos e as ações dos “encarregados da tarefa do espírito do mundo” não apenas se repetem, tais ações, ao serem “repetidas”, são aceitas “na opinião dos homens”. Além disso, tornam a primeira ação “realidade”, no sentido de efetividade (Wirklichkeit), tornam necessário ou efetivo aquilo que antes era meramente “possível”. Mais do que aproximar os erros de Napoleão àqueles de César, Hegel pensa que Napoleão, ao impor a coesão ao mundo francês pós-revolucionário pela força, mostra que o domínio de César não “era algo de ocasional”, mas que, ao contrário, se confirmava como incontornável a necessidade do “cesarismo” em situações de conflito e crise.

Portanto, para a Filosofia da História há repetição e o personagem que se repete, ao se repetir, se efetiva, se confirma e mostra a “necessidade” da figura inaugural. Veremos como esses elementos estarão presentes na incorporação crítica de Marx desta “lição” histórica.

Marx: a repetição como “farsa”

No prefácio à segunda edição de O 18 Brumário de Luiz Bonaparte, Marx (1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra., 14) faz referência à obra Napoleon le petit, de Victor Hugo, e aponta como limite da obra o fato de que nela “o acontecimento propriamente dito aparece […] como raio caído de um céu azul”, aparece como algo, em suas palavras: “sem paralelo na história do mundo”. Interessante notar que no mesmo prefácio, Marx pretende que sua obra sobre Luís Bonaparte possa contribuir “para afastar o termo […] cesarismo”, reputando tal termo como uma analogia histórica superficial, por não permitir lembrar as diferenças nas relações entre as classes na Roma antiga, de um lado, e na moderna sociedade capitalista, de outro.

Embora Marx não tenha teorizado sobre a história neste breve prefácio, como aliás não voltou a fazer depois de 1848, pode-se depreender desta pequena “peça” da obra marxiana que, em seu ponto de vista, uma diferença entre “condições materiais e econômicas das lutas de classes” impliquem, alterando-as, nas “formas políticas por essas classes produzidas”. Significa que o termo “cesarismo”, dadas as condições particulares nas quais aparece como forma política de dominação em Roma tem pouco ou nada a ensinar às classes modernas, embora não esteja afastada a possibilidade de uma comparação ou verificação de semelhanças.

A referência a Hegel escrita na abertura desta obra foi feita de memória e é relativamente diferente da sentença hegeliana que dirige seu olhar na análise do golpe de estado de Luís Napoleão. Marx diz: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes” (Marx 1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra., 21). É muito provável que Marx não dispusesse em Londres, em 1852, de um exemplar da Filosofia da História. Mas é certo que Marx conhecia a obra (cf. Heinrich 2018Heinrich, Michael. 2018. Marx e o nascimento da sociedade moderna. São Paulo: Boitempo., 366).

Quando se compara as formulações de Hegel e Marx é possível perceber que, em certa medida, os autores estão dizendo coisas diferentes e olhando para lados opostos da história. Para Hegel um acontecimento que se repete confirma o passado, ou o torna efetivo, pela sua repetição. Na formulação hegeliana, Napoleão confirma César, diz o autor: “os nobres homens de Roma julgavam que o domínio de César era algo de ocasional e que toda a situação estaria ligada à sua individualidade” (Hegel 2008, 266). Para Marx a recorrência traz em si uma deterioração do ocorrido, por ele estilizada na alteração de gêneros literários, da tragédia para a farsa. Assim, enquanto a repetição para Hegel efetiva o primeiro acontecimento, para Marx ela o rebaixa à paródia, à caricatura. Não foi a primeira vez em que Marx utilizou essa estilização dos gêneros literários para se referir à história e à repetição de acontecimentos políticos.

Na Crítica da Filosofia do Direito, Introdução de 1843/4, Marx critica o “atraso alemão” no que ele teria de mais espantoso, isto é, os alemães foram contemporâneos da “restauração” antes de terem feito sua “revolução” (cf. Marx 2005Marx, K. 2005. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo, Boitempo., 148). Ao lutar contra a modernização do estado, que se desenvolveu na esteira das revoluções inglesa e francesa, o Antigo Regime, como um personagem trágico que luta contra a inexorável vontade dos deuses, procurou congelar a história e esse foi o seu erro, “um erro histórico, mas não um erro pessoal. Seu declínio, portanto, foi trágico” (Marx 2005Marx, K. 2005. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo, Boitempo., 148). Mas já na passagem de 1843 para 1844, Marx faz seguir o momento da tragédia pelo momento da comédia, que neste caso é encenada pela Alemanha contrarrevolucionária, pois seu “regime” “é um anacronismo”: “o moderno ancien régime é apenas o comediante de uma ordem do mundo cujos heróis reais já estão mortos. A história é sólida e atravessa muitos estados ao conduzir uma formação antiga ao sepulcro. A última fase de uma formação histórico-mundana é a comédia”. Marx acrescenta ao final: “Por que a história assume tal curso? A fim de que humanidade se afaste alegremente de seu passado” (Marx 2005Marx, K. 2005. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo, Boitempo., 148, grifos no original).

Mesmo com um resultado “alegre” a repetição é sempre signo de deterioração, designando mais propriamente uma degeneração, mesmo para os deuses. A oscilação de gêneros literários aponta, no caso específico da Alemanha, para o anacronismo de seu regime, uma “ordem antiga e podre” que é saudada como renovação de um futuro pela atrasada classe política alemã. Independentemente dos dramatis personae, nos atentemos para a noção de degeneração. Na estética hegeliana, como em seu uso por Marx, o que permite uma aproximação entre os gêneros literários e o fazer histórico real é o campo da ação. É o modo como se determina a ação que permite uma analogia com os gêneros teatrais. Há, de um lado, uma ação trágica e, de outro, uma ação cômica.

Em O 18 de Brumário, Marx (1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra., 21) aponta que em períodos revolucionários, ou seja, em períodos de criação do novo, os homens e as classes em luta “conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado”. A princípio o procedimento de “tomar de empréstimo a linguagem do passado” é censurado pelo autor do 18 Brumário. A paródia dos acontecimentos similares do passado parece uma ilusão espontânea, mas equívoca, e que a crítica deveria afastar. Tudo se passa como se o recurso a conceitos e à linguagem do passado expressasse nada mais do que a ausência de um conceito “autoral”, positivo, do presente que, com isso, recai em paródia. A tese de Marx parece ser a de que a história não se repete, mas sim a linguagem com a qual procuramos entender a história, ou em sua metáfora, com a qual ainda a traduzimos.

A comparação crítica de eventos históricos não pode mostrar mais do que diferença marcante. Mas, no entanto, falar do presente com uma linguagem do passado resta como ilusão recorrente, e mais do que isso, útil na medida em que parece que parte da força moral do movimento vem dessa “conjuração de mortos da história do mundo”, uma vez vitorioso o movimento se esquece desse seu uso (cf. Marx 1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra., 21-22).

Sendo a repetição um ente “linguageiro”,7 7 Utilizamos aqui o termo tal como cunhado por Luís Orlandi (2018) em Arrastões na Imanência, cuja significação aponta para algo inexistente concretamente a despeito de sua presença no linguajar. o ponto de vista de Marx parece inequívoco: “a revolução social do século 19 não pode tirar sua poesia do passado, e sim do futuro” (Marx 1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra., 24). Não obstante a isso, a tradição de intérpretes de Marx se apressou para formular o conceito de “bonapartismo” como ferramenta da análise de eventos históricos posteriores. Recorreu-se, assim, a César para explicar Bonaparte, recorre-se ao pequeno Bonaparte para explicar Bismark e, atualmente, recorre-se a Mussolini para explicar Bolsonaro. Resta saber em que medida esse recurso ilumina, em vez de obscurecer, o entendimento dos momentos históricos ligados pela repetição decadente.

Gramsci: a repetição como tradução

A despeito de Marx ter buscado afastar o termo cesarismo do vocabulário político, à época de Gramsci ele circulava juntamente com a expressão “bonapartismo”. O adjetivo “bonapartista” apareceu em francês já em 1798, enquanto o substantivo “bonapartismo” se difundiu primeiro na Inglaterra e depois na França entre 1815-1816, principalmente sob o impulso da derrota de Napoleão Bonaparte e da consequente restauração monárquica. A partir do golpe de Luís Bonaparte em 1851, entretanto, o termo deixa de se referir a Napoleão I e passa a ser referir ao III, o Napoleon le petit (cf. Bongiovanni 2010Bongiovanni, Bruno. 2010. Bonapartismo. In Gli ismi della politica, organizado por Angelo D’Orsi, 51-58. Roma: Viella.), contexto no qual apareceu o 18 de Brumário de Luís Bonaparte de Marx, obra que a partir de então se tornou referência para a difusão do conceito de bonapartismo, ainda que a contragosto de seu autor.

Gramsci, assim, se afasta sobremaneira de Marx ao utilizar o bonapartismo e o cesarismo como conceitos. Nos Quaderni del Carcere, eles aparecem quase sempre associados na definição de uma “‘solução arbitral’ confiada a uma grande personalidade para uma situação histórico-política caracterizada por um equilíbrio de forças e perspectiva catastrófica” (Q. 13, § 27, 1619).8 8 Adotamos o padrão internacional de citação de A. Gramsci nos Quaderni del Cárcere na Edição Crítica organizada por Valentino Gerratana, utilizando a letra “Q” para indica o caderno, seguida do parágrafo e da página de referência. As duas categorias não são, contudo, idênticas. O bonapartismo, segundo Gramsci, possuiria duas características: (1) a existência de uma liderança carismática capaz de equilibrar as forças em luta; e (2) a centralidade do elemento militar (cf. Q. 4, §66, 510; Q. 9, §133, 1.194; Q. 13, § 27, 1.619). O cesarismo, por outro lado, apesar de manter o líder carismático como elemento definidor, teria um caráter especificamente policial, entendendo-se “polícia em sentido ampliado”, isto é, “não apenas serviço estatal destinado à repressão da delinquência, mas do conjunto das forças organizadas pelo estado e privadamente para tutelar o domínio [político e econômico] da classe dirigente” (Liguori 2017Liguori, Guido. 2017. Cesarismo. In Dicionário Gramsciano (1926-1937), organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza, 109-111. São Paulo: Boitempo., 207).

Destarte, enquanto o bonapartismo foi sempre entendido por Gramsci em sentido negativo, ligado a um líder carismático e autoritário, o cesarismo encontra nos Quaderni um “espectro interpretativo mais variado” (Liguori 2017Liguori, Guido. 2017. Cesarismo. In Dicionário Gramsciano (1926-1937), organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza, 109-111. São Paulo: Boitempo., 206), de modo que haveria uma diferenciação entre cesarismo progressivo e regressivo (cf. Q. 9, §133, 1.194), definidos a partir das forças sociais (progressivas ou regressivas) que fossem favorecidas pela intervenção do líder carismático (cf. Liguori 2017Liguori, Guido. 2017. Cesarismo. In Dicionário Gramsciano (1926-1937), organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza, 109-111. São Paulo: Boitempo., 206). A despeito da utilização do cesarismo constituir, como lembrou Marx, uma analogia histórica superficial que passa ao largo das diferenças nas relações de classes na Roma antiga e na moderna sociedade capitalista, o conceito é importante aqui como modo de articulação entre a política e a história. Isto é, nos Cadernos, o cesarismo apresenta conexões complexas e profundas com o conceito de revolução passiva (cf. Antonini 2020Antonini, Francesca. 2020. Cesarismo e rivoluzione passiva. In Rivoluzione passiva: antologia di studi gramsciani, organizado por Massimo Massimo, 283-294. Milano: Unicopli.).

Na obra de Gramsci, o conceito de revolução passiva descreve um modo de modernização a partir do aparelho de estado, efetivado por meio de uma série de reformas moleculares e sem a atuação permanente, organizada e efetiva dos setores populares (cf. Q. 10II, § 41XIV), para o qual a existência de uma personalidade carismática é fundamental, embora não indispensável. Gramsci utilizou esse mesmo conceito para definir fenômenos diferentes, ocorridos em temporalidades diferentes: o Risorgimento – processo de formação do estado unitário italiano, no final do século 19 – e o fascismo no início do século 20 (ambos na Itália), assim como para compreensão do fordismo norte-americano nas primeiras décadas do século 20.

A despeito de todos esses fenômenos políticos consistirem em revoluções passivas, significativas diferenças se impunham entre os séculos 19 e 20, como a diversa composição de classes na Itália dos anos 1920, a crise de hegemonia do primeiro pós-guerra e a nova fase de acumulação capitalista mundial. Por isso, embora Gramsci tenha utilizado o mesmo conceito para todos esses fenômenos políticos, o autor efetuou uma “tradução” entre eles, imprimindo, assim, importantes variações ao conceito de revolução passiva para abranger as especificidades de cada momento histórico. Traduzir aqui significa desenvolver um conceito criado a partir de uma situação histórica particular de modo a recriá-lo nas condições específicas da cultura que o recepciona, tornando-o capaz de iluminar o entendimento sobre essa realidade efetiva e incorporando-se a ela como se fosse sua expressão originária” (cf. Lacorte et al. 2013Lacorte, Rocco, Percival T. da Silva, Maria Julia Paiva de França e Sonia Leitão. 2013. Sobre a ‘tradutibilidade’ de Gramsci e algumas transformações sociais na Itália e no Brasil. Revista virtual Enfil 1 (2):1-16., 256).

Destarte, enquanto o Risorgimento consistia em uma forma específica de revolução burguesa, diversa do modelo clássico francês, o fascismo foi interpretado nos Quaderni del Carcere como uma solução autoritária para uma crise da hegemonia burguesa em um momento de adaptação ao padrão de acumulação fordista. Importante notar nesse último caso em particular, ao utilizar o conceito de revolução passiva, Gramsci evita tornar o próprio fascismo um conceito, já que ele foi um evento histórico particular e, portanto, não generalizável.

Diante disto, poderíamos nos perguntar então sobre a possibilidade de “traduzir” o presente autoritarismo brasileiro como um processo de revolução passiva. Deve-se observar, contudo, que o conceito de revolução passiva está necessariamente vinculado a algum tipo de modernização, ainda que via reformas do próprio capitalismo, mas que acolhem certa parte das exigências das classes subalternas. As revoluções passivas possuem, portanto, necessariamente um elemento progressivo, ainda que combinando com formas coercitivas de gestão do poder. Como já observou Carlos N. Coutinho (2012)Coutinho, Carlos N. 2012. A época neoliberal: revolução passiva ou contra-reforma? Novos Rumos 49 (1): 117-126. https://doi.org/10.36311/0102-5864.2012.v49n1.2383.
https://doi.org/10.36311/0102-5864.2012....
, não seria possível caracterizar os processos históricos sob o neoliberalismo como revoluções passivas na medida em que suas reformas consistem em restaurações “das condições próprias de um capitalismo selvagem”, no qual:

não há espaço para o aprofundamento dos direitos sociais, ainda que limitados, mas estamos diante da tentativa aberta – infelizmente em grande parte bem sucedida – de eliminar tais direitos, de desconstruir e negar as reformas já conquistadas pelas classes subalternas durante a época de revolução passiva iniciada com o americanismo e levada a cabo no Welfare. (Coutinho 2012Coutinho, Carlos N. 2012. A época neoliberal: revolução passiva ou contra-reforma? Novos Rumos 49 (1): 117-126. https://doi.org/10.36311/0102-5864.2012.v49n1.2383.
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, 123).

Ademais, deve-se notar que as restaurações de políticas que aprofundam a exploração do trabalho e retiram direitos são convergentes com a constituição de uma racionalidade neoconservadora experimentada internacionalmente, como tem mostrado Wendy Brown (2006Brown, Wendy. 2006. American Nightmare Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. Political Theory 34 (6): 690-714 https://doi.org/10.1177/0090591706293016.
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; 2019Brown, Wendy. 2019. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Politéia.). Deste modo, a racionalidade amoral e desreguladora do neoliberalismo9 9 De acordo com Brown (2006, 693), “uma racionalidade política é uma forma específica de razão política normativa que organiza a esfera política, as práticas de governança e a cidadania”. Ela “governa o dizível, o inteligível e os critérios de verdade desses domínios. Assim, enquanto a racionalidade política neoliberal se baseia em certa concepção de mercado, sua organização de governança e do social não é apenas o resultado do vazamento do econômico para outras esferas, mas sim da imposição explícita de uma forma particular de racionalidade de mercado sobre essas esferas”. encontraria afinidades com a racionalidade moral e reguladora do neoconservadorismo, especialmente de vertente cristã fundamentalista, não apenas nos Estados Unidos, objeto imediato de pesquisa da autora.

Brown tem dado relevo ao fato de que, para os fundadores do neoliberalismo, e particularmente para F. Hayek, os pilares da sociedade são a “moralidade tradicional” (conservadorismo) e os “mercados competitivos” (Brown 2019Brown, Wendy. 2019. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Politéia., 32, 47). Entendidos como entes espontâneos que sempre andam juntos, mercado e moral tradicional, por assim dizer, propiciam o encontro entre neoliberalismo e uma certa forma de “cristandade”. Os efeitos desse encontro consistiriam na “desvalorização da liberdade política, da igualdade, da cidadania substantiva e do estado de direito”, minando, assim, “tanto a cultura quanto as instituições de democracia constitucional”, favorecendo, deste modo, a “produção do cidadão não democrático” (Brown 2006Brown, Wendy. 2006. American Nightmare Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. Political Theory 34 (6): 690-714 https://doi.org/10.1177/0090591706293016.
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, 691-692).

O elemento que sobressai sob o neoliberalismo é, portanto, regressivo e comumente reacionário, tanto do ponto de vista socioeconômico, quanto cultural e político. Neste sentido, é possível afirmar que o bolsonarismo constitui não uma revolução passiva como foi o fascismo italiano, mas a forma política própria de uma época de restaurações reacionárias neoliberais, experimentadas internacionalmente, ou, pode-se dizer, como uma forma histórica particular de realização da dialética revolução-restauração.

Revolução-restauração

No Q. 1, §44, por meio da análise do Risorgimento, Gramsci inicia a formulação de uma “teoria” do movimento histórico, em especial aquele que se refere à construção e à afirmação de novas hegemonias, que seria composto por períodos de “expansão” e de “coerção”. De acordo com o autor,

Este fenômeno se verifica “espontaneamente” nos períodos nos quais determinada classe é realmente progressiva, isto é, faz avançar toda a sociedade, não somente satisfazendo às suas exigências existenciais, mas ampliando continuamente os seus quadros para uma contínua conquista de novas esferas de atividade industrial-produtiva. Quando a classe dominante exaure a sua função, o bloco ideológico tende a se desintegrar e agora a “espontaneidade” é sucedida pela “coerção” em formas sempre menos veladas e indiretas, até as verdadeiras e próprias ações policiais e aos golpes de estado. (Q. 1, § 44, 42).

Disso se deduz que todo processo histórico ativo de consolidação de uma nova direção política passa por um primeiro momento progressivo, hegemônico, mas, que aos poucos vai se esgotando. A classe cada vez mais precisa se valer da coerção para sustentar seu domínio, até o golpe de estado, que consiste em um movimento reacionário. O progresso histórico, assim, caminha por meio de um movimento de expansão e regressão, emancipação e desemancipação, que o autor nomeou como dialética revolução-restauração (Q10I, § 6, 1219-1222).

A concepção de revolução-restauração, neste sentido, ganha maior generalidade, isto é, como “forma” do movimento mais geral, que encontra seu caso mais exemplar na Revolução francesa. Na Revolução francesa o progresso ocorreu por fases de inovação seguidas por fases de restauração no longo período que vai de 1789 a 1871.10 10 Cf. Q. 10I, § 9, 1226; Q. 10II, § 41.XIV, 1324 e Q10II, § 61, 1361. A eleição de Luís Bonaparte em 1848 e posteriormente o golpe de estado teriam sido, neste sentido, momentos de restauração após o primeiro período de revolução. Contudo, essa dialética inovação-conservação se concretizou de modo diferente no processo de constituição do estado unitário na Itália, conhecido como Risorgimento. Neste caso, o momento da revolução e da expansão progressista da classe, que faz avançar toda a sociedade, é limitado e simultâneo ao da restauração, isto é, uma revolução sem revolução, ou uma revolução passiva.11 11 O conceito de revolução-restauração aparece nos Quaderni associado aquele de revolução passiva sempre que Gramsci trata da Itália, contudo, os dois conceitos não se identificam totalmente. Para uma discussão mais detida desse tema consultar Aliaga (2021). A revolução-restauração seria, portanto, um movimento histórico passível de generalização, que se concretiza de formas diversas em casos particulares, que assumem a forma política de acordo com as condições do contexto histórico, social e político, isto é, uma forma histórica particular de realização.

O bolsonarismo entre Césares e Napoleões

Como buscamos demonstrar, os autores abordados aqui possuem perspectivas diversas sobre a repetição histórica, no entanto, existe um importante ponto de contato entre eles que consiste justamente em uma determinada “estrutura de repetição”. Hegel, ao afirmar que os eventos e os personagens históricos mostram sua relevância apenas na segunda vez em que ocorrem, demonstra que esses eventos não são contingentes. Isto é, se eles são recorrentes é porque existe algo neles que transcende o particular e o subjetivo e que, portanto, possui certa generalidade e objetividade.

Marx, por outro lado, esclarece que as relações entre as crises, as diferentes reações das classes em luta e a necessidade de lideranças carismáticas como solução para tal crise, evidencia certa regularidade histórica observável. Em outros termos, a crise, como estrutura de repetição, ilumina os elementos fundamentais das lutas de classes, das inovações e das reações, que demonstram aparentes similaridades com formas passadas, ainda que em movimento decadente. Gramsci, por sua vez, ao formular a dialética revolução-restauração como um movimento amplo na história do Ocidente, entre forças inovadoras e conservadoras, reformula a tese marxiana sobre as crises e suas consequências políticas nas lutas de classes sob forma da dialética revolução-restauração. Isso se mostra, especialmente, quando o autor afirma que a um período de expansão da burguesia seguiu-se seu exaurimento, a crise de hegemonia e o golpe de estado de Luís Bonaparte.

A estrutura de repetição, que permite a efetivação da dialética revolução-restauração, pode ser observada historicamente. A crise política e econômica foi o elemento fundamental que permitiu tanto a ascensão de Luís Bonaparte em 1851, de Mussolini em 1922, de Hitler em 1933 e de Jair Bolsonaro em 2018. Todos esses eventos emergiram em conjunturas que apresentavam pelo menos três elementos comuns: (1) Uma prévia e profunda crise econômica, política e ideológica ou, em termos gramscianos, uma crise de hegemonia; (2) A derrota dos movimentos dos trabalhadores, movimentos populares, da esquerda; e (3) A emergência de forças reacionárias organizadas (cf. Marx 1997Marx, K. 1997. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Rio de Janeiro: Paz e Terra.; Fresu 2017Fresu, Giovanni. 2017. Nas trincheiras do Ocidente: lições sobre fascismo e antifascismo. Ponta Grossa: UEPG.; Borchardt 1991Borchardt, Knut. 1991. Perspectives on modern German economic history and policy. Cambridge: Cambridge University Press.; Solano 2019Solano, Ester, org. 2019. Brasil em colapso. São Paulo: Unifesp.).

No contexto específico do neoliberalismo contemporâneo brasileiro, a crise de hegemonia está sendo administrada sobre a base de um equilíbrio catastrófico, com inequívocos contornos autoritários e gerador de novas crises sociais, econômicas e políticas. O novo governo eleito em 2018 se apoia nas forças acumuladas desde 2013, que permitiram o reaparecimento e a afirmação dos movimentos de direita e de extrema-direita (cf. Anderson 2020Anderson, Perry. 2020. Brasil à parte. São Paulo: Boitempo.; Miguel 2019Miguel, Luís F. 2019. O colapso da democracia no Brasil: da Constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Expressão Popular.; Rocha 2019Rocha, Camila. 2019. ‘Imposto é roubo!’ A formação de um contrapúblico ultraliberal e os protestos pró-Impeachment de Dilma Rousseff. Dados 62 (3): 1-42. https://doi.org/10.1590/001152582019189.
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). Por esta razão carrega em seu bojo fortes acentos autoritários, que em grande medida retomam pautas antidemocráticas do pré-1964, legitimadas pelo discurso anticomunista. Os pés de apoio do bolsonarismo estão calcados tanto nos grupos cristãos fundamentalistas quanto nas forças militares, especialmente da reserva, e nas polícias estaduais, invocando a racionalidade conservadora da ditadura civil-militar.

Assim sendo, para tradução da racionalidade neoconservadora-neoliberal para o Brasil contemporâneo se faz necessário considerar a importância tanto do fundamentalismo religioso quanto do militar. O militarismo (tanto das Forças Armadas quanto da polícia militar), como se sabe, constitui parte integrante da cultura autoritária brasileira e está claramente sendo restaurado no governo Bolsonaro.12 12 Já é volumosa a literatura que trata desse problema. Conferir, entre outros, Martins Filho (2021), Carvalho (2020), Manso (2020), Fuccille (2019) e Almeida (2019). Os militantes bolsonaristas, em suas manifestações antidemocráticas encontram na moral cristã conservadora13 13 Sobre esse tema consultar Almeida (2019). e na intervenção militar, em especial no AI-5, a solução para os problemas do Brasil, que eles imaginam estar concentrados no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal, na medida em que ousam impor os limites ao Executivo. Destarte, como conclusão parcial a ser desenvolvida, propomos compreender o bolsonarismo como a forma histórica particular da dialética revolução-restauração. Essa restauração reacionária constitui uma resposta – provisória e precária – para a crise da hegemonia burguesa em um momento de acumulação neoliberal.

  • 3
    A reunião ministerial de 22 de abril de 2020 mostra claramente esse discurso por parte de Bolsonaro e de seus ministros. Serviço Público Federal. 2020. Ditec – Instituto Nacional de Criminalística. Laudo No. 1242/2020 - INC/DITEC/PF. Acessado em 22 maio 2020, https://assets.documentcloud.org/documents/6923169/Decis%C3%A3o-de-Celso-de-Mello-que-liberou-v%C3%ADdeo-de.pdf.
  • 4
    Löwy, Michael. 2020. O neofascista Bolsonaro diante da pandemia. Blog da Boitempo. Acessado em 5 fev. 2021, https://blogdaboitempo.com.br/2020/04/28/michael-lowy-o-neofascista-bolsonaro-diante-da-pandemia.
  • 5
    Especialmente os teóricos da II Internacional. Sobre isso consultar Fresu 2016Fresu, Giovanni. 2016. Lenin, leitor de Marx: dialética e determinismo na história do movimento operário. São Paulo: Anita Garibaldi..
  • 6
    Ainda sobre o conceito de crise em O Capital de K. Marx consultar Grespan (2012)Grespan, Jorge. 2012. O negativo do Capital: o conceito de crise na crítica de Marx à Economia Política. São Paulo: Expressão Popular..
  • 7
    Utilizamos aqui o termo tal como cunhado por Luís Orlandi (2018)Orlandi, Luís. 2018. Arrastões na imanência. Campinas: Editora PHI. em Arrastões na Imanência, cuja significação aponta para algo inexistente concretamente a despeito de sua presença no linguajar.
  • 8
    Adotamos o padrão internacional de citação de A. Gramsci nos Quaderni del Cárcere na Edição Crítica organizada por Valentino Gerratana, utilizando a letra “Q” para indica o caderno, seguida do parágrafo e da página de referência.
  • 9
    De acordo com Brown (2006Brown, Wendy. 2006. American Nightmare Neoliberalism, Neoconservatism, and De-Democratization. Political Theory 34 (6): 690-714 https://doi.org/10.1177/0090591706293016.
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    , 693), “uma racionalidade política é uma forma específica de razão política normativa que organiza a esfera política, as práticas de governança e a cidadania”. Ela “governa o dizível, o inteligível e os critérios de verdade desses domínios. Assim, enquanto a racionalidade política neoliberal se baseia em certa concepção de mercado, sua organização de governança e do social não é apenas o resultado do vazamento do econômico para outras esferas, mas sim da imposição explícita de uma forma particular de racionalidade de mercado sobre essas esferas”.
  • 10
    Cf. Q. 10I, § 9, 1226; Q. 10II, § 41.XIV, 1324 e Q10II, § 61, 1361.
  • 11
    O conceito de revolução-restauração aparece nos Quaderni associado aquele de revolução passiva sempre que Gramsci trata da Itália, contudo, os dois conceitos não se identificam totalmente. Para uma discussão mais detida desse tema consultar Aliaga (2021)Aliaga, Luciana. 2021. Revolução passiva e revolução-restauração: dois conceitos em construção. In Gramsci e a verdade efetiva das coisas, organizado por Leandro Galastri e Marcos del Roio. São Paulo: Expressão Popular..
  • 12
    Já é volumosa a literatura que trata desse problema. Conferir, entre outros, Martins Filho (2021Martins Filho, João R. 2021. Os militares e a crise brasileira. São Paulo: Alameda.), Carvalho (2020)Carvalho, José M. 2020. Forças armadas e política no Brasil. São Paulo: Todavia., Manso (2020)Manso, Bruno P. 2020. República das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia., Fuccille (2019)Fuccille, Alexandre. 2019. Militarização do governo e os desafios à democracia. In Brasil em colapso, organizado por Ester Solano, 93-105. São Paulo: Unifesp. e Almeida (2019)Almeida, Ronaldo. 2019. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos estudos CEBRAP 38 (1): 185-213. https://doi.org/10.25091/S01013300201900010010.
    https://doi.org/10.25091/S01013300201900...
    .
  • 13
    Sobre esse tema consultar Almeida (2019)Almeida, Ronaldo. 2019. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos estudos CEBRAP 38 (1): 185-213. https://doi.org/10.25091/S01013300201900010010.
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Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2021
  • Aceito
    22 Nov 2021
  • Publicado
    16 Ago 2022
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