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Classes sociais e consumo: um estudo dos gastos das famílias brasileiras a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018)

Social classes and consumption: a study on the expenses of Brazilian families based on the Household Budget Survey (2017-2018)

Clases sociales y consumo: un estudio acerca de los gastos de las familias brasileñas a partir de la Encuesta de Presupuestos Familiares (2017-2018)

Resumo:

O objetivo deste artigo é investigar a relação entre classe social e consumo. A partir de uma perspectiva teórica que busca conectar práticas, disposições e classes, o consumo é visto como uma instância empírica privilegiada para a investigação das divisões sociais baseadas em classe. Existem homologias entre as estruturas de gastos das famílias e suas posições sociais? É provável que tais estruturas de gastos variem entre as classes e suas frações em função dos princípios de diferenciação do espaço social. Os dados são extraídos da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018). Além da comparação dos gastos médios relativos das famílias conforme sua posição social, serão utilizadas técnicas exploratórias descritivas, como a Análise Geométrica de Dados.

Palavras-chave:
Classe social; Consumo; Capital cultural; Capital econômico; Orçamentos familiares

Abstract:

The goal in this article is to investigate the association between social class and consumption. Based on the theoretical approach aiming to connect practice, dispositions and classes, consumption is seen as a privileged empirical instance to observe class-based social divisions. Are there homologies between the structure of family expenditures and social positions? Patterns of consumption are likely to differentiate social classes and their fractions in terms of the principles of differentiation operating in social space. Data used are derived from Household Budget Survey (2017-2018). Besides comparing relative mean expenditures on different items by social classes, descriptive exploratory techniques named Geometric Data Analysis will be used.

Keywords:
Social class; Consumption; Cultural capital; Economic capital; Family budget

Resumen:

El objetivo de este artículo es averiguar la relación entre clases sociales y consumo. Partiendo de una perspectiva teórica que busca conectar prácticas, disposiciones y clases, se ve el consumo como una instancia empírica privilegiada para la investigación de las divisiones sociales con base en clase. ¿Hay homologías entre las estructuras de los gastos familiares y sus posiciones sociales? Los padrones del consumo probablemente diferencian las clases sociales y sus fracciones de acuerdo con los principios de diferenciación social operantes en el espacio social. Los dados son extraídos de la Encuesta de Presupuesto Familiares (2017-2018). Además de comparar los gastos relativos medios con diferentes ítems por clase social, serán utilizadas técnicas exploratorias descriptivas denominadas Análisis Geométrica de Dados.

Palabras clave:
Clase social; Consumo; Capital cultural; Capital económico; Presupuestos familiares

Introdução

Se a compra de um sapato de uma marca de luxo por R$ 4 mil2 2 Diniz, Pedro. 2020. Na pandemia, elite adapta luxos à vida sem passaporte. Grifes de luxo montam operações de delivery de produtos de alto padrão. Folha Uol, 9 out. 2020. Acessado em 6 out. 2021, https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/na-pandemia-elite-adapta-luxos-a-vida-sem-passaporte.shtml?origin=folha. ou a escolha de destinos turísticos em que as diárias de hotéis podem facilmente ultrapassar os mil dólares3 3 Campos, Mari. 2020. Marketing e promessa “anti-covid”: por que Maldivas é paraíso dos famosos? Nossa Uol, 3 dez. 2020. Acessado em 6 out. 2021, https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2020/12/03/marketing-e-promessa-anti-covid-por-que-maldivas-e-paraiso-dos-famosos.htm. podem parecer um “luxo” inacessível para uns ou um desperdício para outros, tais despesas podem ser absolutamente “indispensáveis” para os que as realizam, parte de um investimento “necessário” para acumular capital social visando à manutenção de uma clientela ou à preservação um espaço de circulação restrito e exclusivo.

O problema que orientará este estudo se refere aos condicionantes sociais dos usos do orçamento doméstico, ou seja, das “escolhas” que as famílias fazem sobre como gastar os recursos disponíveis. A hipótese principal afirma que as estruturas de gastos variam em função dos sistemas de necessidades gerados por diferentes condições de existência. Tal afirmação implica que a propensão a consumir não pode ser reduzida à capacidade de apropriação econômica ou que o princípio de seleção não reside simplesmente nas condições econômicas definidas em dado momento (Bourdieu 2008Bourdieu, Pierre. 2008. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk.).

Esta pesquisa, portanto, pretende tematizar a relação entre consumo e classes sociais a partir da análise dos usos conferidos pelas famílias aos orçamentos domésticos.4 4 Enquanto objeto sociológico, o consumo é abordado em três dimensões diferentes: aquisição, apropriação e apreciação (Warde 2017). Nas Ciências Sociais, esse tema foi incialmente proposto nas pesquisas de Maurice Halbwachs (1933)Halbwachs, Maurice. 1933. L’évolution des besoins dans la classe ouvrière. Paris: Alcan. sobre os orçamentos de famílias de trabalhadores alemães (Migliorati 2015Migliorati, Lorenzo. 2015. Maurice Halbwachs: classical Sociology after the classics. Italian Sociological Review 5 (2): 251–272. http://dx.doi.org/10.13136/isr.v5i2.99.
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). Comparada com a literatura sociológica sobre o consumo preocupada em investigar os condicionantes sociais do gosto (Bourdieu 2008Bourdieu, Pierre. 2008. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk.; Douglas e Isherwood 2009Douglas, Mary e Baron Isherwood. 2009. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.),5 5 Para uma revisão da literatura mais recente ver Coulangeon e Duval 2015. os estudos sobre o consumo em sua dimensão propriamente econômica, ou seja, em termos de como as famílias e os indivíduos efetivamente usam seus “recursos finitos para adquirir diferentes bens e serviços” (Charron-Chérnier 2018Charron-Chénier, Raphaël. 2018. Spending bundles: incorporating household expenditures in the sociology of consumption. Socius: Sociological Research for a Dynamic World 4: 1–13. https://doi.org/10.1177/2378023117752834.
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, 1), é pequena (Torres-Pabón 2019Torres Pabón, Giselle. 2019. ¿En qué gastamos para comer y cuánto? Condiciones socioeconómicas y presupuesto para el consumo de alimentos. Revista Colombiana de Sociología 42 (2): 191-228. https://doi.org/10.15446/rcs.v42n2.74809.
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; Díaz-Méndez e García-Espejo 2012Díaz-Méndez, Cecilia e Isabel García-Espejo. 2012. Contemporary Food Trends in the homogenization of food expenditure in Spain and UK. Revista Española de Investigaciones Sociologicas 139: 21-44. https://doi.org/10.5477/cis/reis.139.21.
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; Majima e Warde 2008Majima, Shinobu, e Alan Warde. 2008. Elite consumption in Britain, 1961-2004: results of a preliminary investigation. The Sociological Review 56 (1): 210-239. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2008.00769.x.
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2008...
; Tomlinson 2003Tomlinson, Mark. 2003. Lifestyle and social class. European Sociological Review 19 (1): 97-111. https://doi.org/10.1093/esr/19.1.97.
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).

As pesquisas nacionais sobre esse objeto, com base no estudo dos orçamentos familiares, são ainda muito raras, considerando a produção propriamente sociológica. Os estudos em outras áreas científicas (sobretudo na Economia) são mais numerosos, mas tendem a restringir a análise do consumo a domínios específicos ou a tratar das classes essencialmente a partir do ângulo da estratificação socioeconômica (Kamakura e Mazzon 2016Kamakura, Wagner e José Afonso Mazzon. 2016. Critérios de estratificação e comparação de classificadores socioeconômicos no Brasil. Revista de Administração de Empresas 56 (1): 55-70. https://doi.org/10.1590/S0034-759020160106
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).

Este estudo propõe uma abordagem que trata de diversos indicadores do consumo em muito domínios sociais simultaneamente, de modo a apreender as correspondências entre eles, e deles com as posições sociais dos agentes. O consumo, como argumenta Alan Warde (2017Warde, Alan. 2017. Consumption: a sociological analysis. Londres: Palgrave Macmillan., 86), é um

um processo por meio do qual os agentes se engajam na apropriação e na apreciação, por razões utilitárias, expressivas ou contemplativas, de bens e serviços, performances, informações e ambiência, comprados ou não, em relação aos quais o agente tem algum grau de controle.

Do ponto de vista sociológico, o consumo não é uma prática em si, mas “um momento em quase todas as práticas”, irredutível à operação de uma lógica utilitarista que vê apenas consumidores com preferências intercambiáveis e “produtos com propriedades uniformemente percebidas e apreciadas” (Bourdieu 2008Bourdieu, Pierre. 2008. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk., 96). Da mesma forma que os consumidores são o produto de diferentes condições sociais e econômicas, os bens são socialmente diferenciados, na medida em que as experiências que os agentes neles inscrevem quando os adquirem, deles se apropriam e os apreciam entram em sua própria definição.

O consumo é, assim, um objeto sociológico privilegiado, ao menos de uma certa perspectiva teórica, porque expressa, segundo lógicas específicas, as disposições (os esquemas de ação, apreciação e classificação, o habitus) que são o produto de certas condições objetivas de existência e dos condicionamentos sociais subjacentes (Bourdieu 1989Bourdieu, Pierre. 1989. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.).

As classes sociais são aqui definidas por distâncias e direções em um espaço multidimensional de posições diferenciadas conforme se distribuem as propriedades eficazes em um dado universo social. Tais propriedades são eficazes porque conferem poder aos agentes nas disputas pela apropriação dos recursos e bens socialmente valorizados. Em sociedades capitalistas, tais propriedades correspondem aos diversos tipos de capital que podem ser mobilizados pelos agentes sociais nos diferentes campos em que a vida social se organiza, como o capital econômico (recursos financeiros, propriedade fundiária ou imobiliária, propriedade de meios de produção), o capital cultural (domínio de sistemas simbólicos, esquemas mentais ou corporais, competências intelectuais ou habilidades linguísticas, que geralmente se objetivam na forma de livros ou outros objetos que representam o que se entende por cultura dominante e/ou encontram reconhecimento sob a forma de certificados ou títulos escolares, conforme Nogueira 2017Nogueira, Maria Alice. 2017. Capital cultural. In Vocabulário Bourdieu, organizado por Afrânio Mendes Catani, Maria Alice Nogueira, Ana Paula Hey e Cristina de Medeiros, 103-106. Belo Horizonte: Autêntica Editora.), o capital social (conjunto de relacionamentos a que os agentes podem recorrer para alcançar seus objetivos) e o capital simbólico, “que diz respeito ao modo como o agente social, portador de seus vários recursos, é percebido pelos outros agentes” (Sallum e Bertoncelo 2017, 119).

Cada posição no espaço social é definida a partir de um conjunto de coordenadas cujos valores correspondem ao volume total de capital possuído, à composição do capital (se algum dos tipos de capital têm maior peso para determinar a posição do agente no espaço social) e à modalidade de apropriação dos capitais, ou seja, as trajetórias, individuais e coletivas, percorridas pelos agentes. Uma classe social corresponde a um conjunto de agentes que ocupam posições relativas próximas no espaço social.

Assim definidas, as classes sociais são apenas um construto analítico, “classes no papel” (Bourdieu 1989Bourdieu, Pierre. 1989. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.). Ao mesmo tempo, tendo sido construídas de modo a captar os princípios de diferenciação social pertinentes a um universo social, são também classes prováveis. Estando submetidos a condições objetivas similares e, portanto, a condicionamentos sociais similares, essas classes de agentes têm também toda a probabilidade de terem disposições, interesses, comportamentos similares. Em consequência disso, tenderia a haver uma relação de homologia entre o espaço social e os estilos de vida.

Problema e hipótese

É possível agora tornar mais precisas a questão e a hipótese principais deste trabalho: partindo da premissa teórica de que existe uma relação expressiva entre práticas e disposições (ou habitus) e uma relação causal entre classe e disposições, então seria possível “ler” as distâncias objetivas entre as classes, apreendidas no momento da classificação analítica, nos diferentes padrões de consumo (neste caso, as estruturas de gastos), que constituiriam, assim, uma instância empírica privilegiada para a observação das lógicas em operação no espaço social. Por isso, a questão básica é saber se é possível observar essa estrutura isomórfica entre as estruturas de gastos das famílias e as divisões que estruturam o espaço social. A hipótese afirma que haveria padrões de consumo a diferenciar as classes sociais e suas frações em função dos princípios de diferenciação operantes no espaço social, mais especificamente relacionados com o volume e com a composição do capital. Enfim, a cada classe de condições objetivas de existência, corresponderiam sistemas de necessidades distintos que gerariam propensões diferenciais para consumir.

Dados e métodos

Os dados utilizados neste estudo são extraídos da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017-2018). A POF está organizada em bases de dados diferenciadas em blocos temáticos: domicílio, morador, condições de vida, despesas coletivas, despesas individuais, consumo alimentar. As despesas coletivas se referem à aquisição de bens ou de serviços que beneficiam os membros de uma família indistintamente. São as despesas com moradia, alimentação, decoração ou mobiliário. Por sua vez, as despesas individuais são aquelas em que bens ou serviços são adquiridos para membros específicos da família. Incluem educação, assistência à saúde, produtos de cuidado pessoal, lazer etc. Para reconstruir as estruturas de gastos familiares, construiu-se uma variável de despesa total (incluindo despesas coletivas e individuais) e, então, foram calculadas as proporções médias das despesas com itens específicos (ou agregados) em relação ao gasto total por família.

A operacionalização do espaço social, conforme a definição anterior, exigiria a construção de indicadores para mensurar a posse/controle dos diversos tipos pertinentes de capital, de um ponto de vista sincrônico e diacrônico. O uso de uma fonte de dados secundários impõe limitações a essa tarefa. A POF não possui informações sobre a origem social dos indivíduos. Apesar de ser particularmente rica em informações sobre rendimentos – o que nos permite construir indicadores para diversos tipos de capital econômico –, a única informação disponível sobre o capital cultural se refere ao nível de instrução. Apesar de insuficiente, trata-se, no entanto, de uma medida central à operacionalização do conceito. O capital cultural institucionalizado (diploma) é um indicador válido do volume de capital cultural, ainda que o capital cultural incorporado não se converta totalmente – nem mesmo igualmente – em títulos escolares, pois detentores do mesmo título educacional podem possuir diferentes volumes de capital cultural, resultantes de diferentes trajetórias sociais.

Para contornar as limitações antes mencionados na operacionalização do espaço social, proponho, à semelhança de Atkinson (2017)Atkinson, Will. 2017. Class in the new millennium: the structure, homologies and experience of the British social space. Londres: Routledge., um procedimento em duas etapas: após serem comparadas em termos do nível de instrução formal típico e da média de rendimentos do trabalho, as ocupações são agregadas conforme a lógica subjacente a esse construto, quer dizer, buscando diferenciar agregados ocupacionais em termos do volume e da composição do capital (no caso, o capital econômico e o capital cultural).

Com isso, não se quer reduzir o espaço social a um espaço de ocupações. Ao mesmo tempo, a ocupação é um proxy importante da posição no espaço social, por dois motivos: a ocupação é o principal meio para acumulação e transmissão de diversos tipos de capital; além disso, os diferenciais de rendimentos materiais e simbólicos de diferentes ocupações estão associados a restrições de acesso a certas regiões do espaço social, restrições que frequentemente assumem a forma de exigências da posse/controle prévio de determinados capitais. Por fim, o título descritivo de uma ocupação nos dá uma informação sobre a provável inserção de um indivíduo em um certo campo profissional, com seus alvos específicos e recursos eficazes que funcionam como trunfos mais ou menos rentáveis (por exemplo: o artista plástico atua em um campo cultural, em que o capital econômico está sujeito a estratégias de denegação, possuindo alvos, trunfos e hierarquias que serão tanto mais específicas quanto mais autônomo for o respectivo campo).

Assim construído, o espaço social apresenta a seguinte configuração:

Figura 1
Representação esquemática do espaço social

A posição de cada agregado ocupacional (proxy para as frações de classe) deve ser lida relacionalmente. À medida que subimos o eixo vertical, aumenta o volume de capital econômico e de capital cultural. Em relação ao eixo horizontal, os agrupamentos à esquerda têm relativamente mais nível de instrução em comparação à média de vários tipos de rendimento. O oposto se dá para os agrupamentos à direita. Os agrupamentos centralizados apresentam mais simetria na composição do capital.

Na região superior do espaço social, temos quatro frações de classe: (i) os dirigentes e executivos de negócios, que são, majoritariamente, dirigentes por título ocupacional e, em menor número, médios proprietários com renda líquida familiar mensal per capita superior a dez salários-mínimos; (ii) os profissionais, fração que inclui os profissionais liberais, engenheiros e arquitetos, profissionais da administração e da tecnologia da informação; (iii) a fração cultural dominante, que inclui os profissionais de disciplinas científicas, professores do ensino superior, algumas profissões da cultura e da informação e, também, certas profissões relativamente pouco estruturadas quanto às regras de entrada e que exigem certo volume capital cultural incorporado, como os profissionais da publicidade, artistas plásticos, diretores de cinema etc. Por fim, essa fração inclui também os trabalhadores de serviços médico-sociais, responsáveis pelo trabalho de cuidado altamente especializado; finalmente, (iv) os trabalhadores de colarinho-branco, responsáveis por operações financeiras e administrativas complexas, incluindo funções burocráticas especializadas do Estado.

Na região intermediária do espaço social, há igualmente quatro frações distribuídas de forma similar: (i) à direita, estão os gerentes e donos de pequenos comércios;8 8 Os proprietários de comércio aqui incluídos possuem renda líquida familiar mensal per capita inferior a dez salários-mínimos. (ii) na região oposta, à esquerda, está a fração cultural média, que reúne professores do ensino secundário e primário, produtores e intermediários culturais e, por fim, técnicos médico-sociais; (iii) ocupando uma porção mais central da região intermediária, estão os técnicos, assim denominados por controlarem um capital cultural de tipo técnico, aplicado em funções que executam certos conhecimentos incorporados aos processos produtivos, geralmente associadas à escolarização média ou superior; (iv) por fim, no limite com a região inferior do espaço social, estão os trabalhadores de apoio administrativo, responsáveis por atividades não manuais relativamente rotinizadas.

Na região inferior do espaço social, há cinco frações de classe: (i) ocupando uma posição próxima à região intermediária, estão os trabalhadores de vendas; (ii) à esquerda, estão os trabalhadores de cuidado (cuidadores de idosos, crianças, assistentes na educação básica); (ii) à direita dessa região do espaço, está a fração dos trabalhadores especializados, composta por aqueles que exercem trabalho manual qualificado na indústria ou nos serviços e que possuem frequentemente alguma formação técnica; (iii) as frações de pequenos proprietários urbanos e rurais ocupam uma porção mais à direita, em função da composição do capital;9 9 São incluídos apenas os proprietários urbanos (que atuam principalmente nos setores da construção civil e de serviços, como mecânicos de veículos a motor e pedreiros) e rurais com renda líquida familiar mensal per capita inferior a dez salários-mínimos. (iv) por fim, ocupando a região inferior do espaço das classes populares, estão as frações dos trabalhadores elementares, que exercem algum tipo de trabalho manual com poucas barreiras de acesso em termos de instrução formal, e os trabalhadores rurais.

“Gastos de necessidade” versus “gastos de liberdade”

Com o objetivo de investigar as correspondências entre diversos tipos de gastos, o passo inicial da análise consistiu em um exercício exploratório, por meio do uso da técnica estatística denominada Análise de Componentes Principais. A ACP, assim como a Análise de Correspondências (simples e múltiplas), faz parte da chamada Análise Geométrica de Dados (Le Roux e Rouanet 2004Le Roux, Brigitte e Henry Rouanet. 2004. Geometric Data Analysis: from Correspondence Analysis to Structured Data Analysis. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers.). A AGD permite descrever a associação entre as linhas e colunas de uma tabela, por meio de ferramentas visuais (as “nuvens de modalidades e de indivíduos”), de modo que as principais oposições ou afinidades entre as variáveis (suas categorias e valores) e entre os casos sejam visualizadas por meio de distâncias relativas em um plano fatorial.10 10 A ACP é geralmente aplicada a uma base do tipo indivíduos por variáveis (contínuas). Os resultados completos dessa e de outras análises apresentadas no estudo, assim como as bases de dados utilizadas, estão armazenados na aba - literatura relacionada - no link: http://cis.prp.usp.br/cis/DetalheBancoDados.aspx?cod=B610&lng=pt-br.

Essa análise preliminar revelou alguns conjuntos relativamente bem delimitados de gastos: (i) os “gastos de necessidade”, os mais comuns e dificilmente evitáveis, que incluem os gastos com alimentação, remédio e com taxas de luz, energia, água e esgoto; (ii) com apresentação, que incluem o vestuário, produtos e serviços de cuidado pessoal; (iii) com patrimônio econômico, que incluem veículos, impostos e serviços do imóvel principal e secundário,11 11 Os serviços domiciliares incluem os serviços de limpeza e manutenção da residência. e, finalmente, (iv) com cultura, educação e lazer, incluindo cursos regulares ou livres, viagens, assinatura de revistas e jornais, compra de ingressos para equipamentos culturais etc.

Os valores médios dos dois primeiros conjuntos de gastos se elevam, ainda que em graus diferentes, à medida que nos movemos de cima para baixo no espaço social (Gráfico 1). Quanto mais baixa for a posição de uma fração de classe no eixo vertical, maior será a proporção relativa dos gastos de necessidade e de apresentação de si, com exceção dos serviços de cuidado pessoal. Os “gastos de necessidade”, que somam mais de 30% das despesas totais nas famílias de trabalhadores agrícolas e manuais elementares, não chegam a 20% do total nas frações superiores e na fração gerencial. Os gastos de apresentação de si, por sua vez, diminuem mais levemente na mesma direção que os anteriores, ficando entre, aproximadamente, 11% e 13% nas frações inferiores, com exceção das frações proprietárias, e caindo para, aproximadamente, 8% a 9% nas frações superiores.

Gráfico 1
Proporção de “gastos de necessidade” e de apresentação de si em relação à despesa familiar total

As pequenas diferenças relativas em matéria de despesas com vestuário e com produtos de cuidado pessoal evidenciam provavelmente o compartilhamento pelos indivíduos de um repertório de técnicas corporais tão fortemente integradas a suas rotinas cotidianas que dificilmente são vistas como uma questão de “escolha” e, nesse sentido, não são particularmente distintivas (Crossley 2005Crossley, Nick. 2005. Mapping reflexive body techniques: on body modification and maintenance. Body and Society 11 (1): 11-35. https://doi.org/10.1177/1357034X05049848
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, 26). Ao mesmo tempo, se os gastos médios relativos constituem um indicador mais preciso da estrutura de gastos por minimizarem o efeito da desigualdade em termos absolutos, a observação dos gastos médios por item de vestuário, por sua vez, revela que, conforme subimos na hierarquia social, o preço médio do item eleva-se fortemente. Em matéria de calçados, por exemplo, os maiores gastos médios são observados entre os profissionais e dirigentes.12 12 Respectivamente, R$ 767,80 e R$ 651,16, ante uma média amostral de R$ 385,91 (valores anualizados). Ou seja, os itens adquiridos são mais caros e, possivelmente, distintivos. Por sua vez, os serviços de cuidado pessoal acionam certas técnicas corporais que demarcam outras divisões sociais, baseadas tanto em classe quanto em gênero: as frações de classe que mais gastam com esse item se distribuem do centro para a esquerda do espaço social e são majoritariamente femininas e, à medida que subimos o eixo vertical, os serviços “comprados” tendem a ser mais raros (ex.: tratamentos estéticos).

Os dois últimos conjuntos de gastos, com patrimônio econômico, por um lado, e com cultura, lazer e educação, de outro, apresentam uma distribuição inversa à anterior: elevam-se à medida que subimos na hierarquia social, mas variam também conforme a posição da fração considerada no eixo horizontal (composição do capital).

Os gastos relativos com patrimônio crescem conforme subimos o eixo vertical e avançamos à direita, em direção às frações mais ricas em capital econômico (Gráfico 2). Os dirigentes gastam relativamente mais com patrimônio (30,6%), seguidos dos profissionais (30,1%), dos gerentes (27,2%) e dos pequenos proprietários urbanos e rurais (respectivamente, 23,8% e 23,3%).

Gráfico 2
Proporção de gastos com imóveis, veículos, cultura, lazer e educação em relação à despesa familiar total

Ao mesmo tempo, a composição desses gastos é diversa conforme a fração considerada. Nas quatro frações mais ricas em capital econômico, a proporção média dos gastos com veículos é bastante similar, sendo ligeiramente superior entre os pequenos proprietários urbanos. No entanto, os gastos médios absolutos (anualizados) com a aquisição de veículos de passeios são maiores entre dirigentes, profissionais e gerentes (respectivamente, R$ 42.950,00; 41.743,00; R$ 34.186,00), evidenciando possivelmente uma maior propensão dessas frações ao consumo de bens mais caros. Os gastos com imóveis, por sua vez, têm uma distribuição levemente distinta: os profissionais registram a proporção mais elevada de gastos com imóveis (impostos domiciliares, condomínio, aquisição ou seguro do imóvel, outros imóveis e serviços domésticos), equivalente a, aproximadamente, 14%, seguidos dos dirigentes (12%), da fração cultural dominante (9,5%) e da fração gerencial (8,8%). Considerando essas informações em conjunto com aquelas contidas na Tabela 1, com referência especial aos rendimentos derivados de aluguel de imóveis, evidencia-se, com toda a probabilidade, a maior acumulação de patrimônio imobiliário por profissionais e dirigentes, que constitui um indicador confiável da reprodução nas posições superiores do espaço social (Savage 2015Savage, Mike. 2015. Social class in the 21st century. Londres: Pelican Books.). Nesse sentido, as informações sobre os rendimentos financeiros e patrimoniais dão indícios aproximados dos prováveis padrões de recrutamento às diferentes frações de classe.

Tabela 1
Caracterização dos agrupamentos ocupacionais

Os gastos relativos médios com educação, viagens e cultura, à semelhança, dos anteriores, se elevam à medida que percorremos o espaço social de baixo para cima: na região inferior, é pouco maior do que 6% entre os pequenos proprietários urbanos e não ultrapassa 5% entre os trabalhadores agrícolas e elementares.13 13 Cultura inclui assinatura de revistas e jornais, compra de livros (exceto os didáticos), de ingressos para eventos culturais ou esportivos, aquisição de instrumentos musicais ou fotográficos, compra de serviços de streaming. Entre os trabalhadores de cuidados, a proporção desses gastos é ligeiramente mais elevada do que nas demais frações não proprietárias nas classes populares. Quando se cruza a linha que separa a região inferior do espaço social de sua região intermediária, ou seja, a partir dos trabalhadores de apoio administrativo, os gastos com esse conjunto de itens elevam-se acima da média amostral. Embora gerentes/proprietários gastem relativamente mais com esse conjunto de despesas do que a fração cultural média (respectivamente, 8,4%; 8,3%), os últimos gastam um pouco mais com cultura do que os primeiros. Por fim, quando adentramos a região superior, as proporções desses gastos alcançam seus valores mais elevados, sobretudo entre profissionais, dirigentes e cultural dominante (respectivamente, 12%, 11% e 10,1%).

A discussão anterior evidencia que as estratégias de reprodução ou ascensão social dependem fortemente da acumulação e da transmissão de capital cultural em sua forma institucionalizada ou incorporada (o desenvolvimento de competência linguísticas, mais provável entre os que os frequentadores de equipamentos culturais ou que viajam mais) e da reconversão de capital econômico em capital escolar (como nas frações dirigentes e gerenciais).14 14 A estratificação do sistema de ensino no país acaba por impor exigências diferenciais às frações de classe a depender da posição no espaço social (Almeida 2009; Nogueira 2004). Ao mesmo tempo, observando o nível de escolaridade médio das frações médias e superiores, notamos que a “inflação dos diplomas” afeta, sobretudo, os usuários mais recentes do sistema de ensino. É, por isso, que as frações superiores apresentam níveis muito mais elevados que as demais de famílias em que a pessoa de referência e/ou o cônjuge possui pós-graduação e que, nessas frações, aquela que mais depende da posse/controle de capital cultural possua o maior gasto relativo com cursos de especialização ou de mestrado/doutorado: a fração cultural dominante gasta relativamente mais com cursos de pós-graduação como proporção dos gastos com educação (12,2%), se comparada às demais frações superiores, assim como a fração cultural média (8%) em relação às demais frações intermediárias.

Apreendidos em conjunto, a distribuição dos gastos médios com diferentes itens pelas diferentes frações de classe evidencia que um dos princípios mais importantes das diferenças em matéria de consumo reside na oposição entre os gostos de necessidade (neste caso, os “gastos de necessidade”) e os gostos de liberdade (ou “gastos de liberdade”). Estes são o produto de condições de existência marcadas pela distância à necessidade material, que se eleva conforme aumenta o volume global de capital (Bourdieu 2008Bourdieu, Pierre. 2008. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk.). Neste caso, enquanto os “gastos de necessidade” remetem, sobretudo, ao primeiro conjunto de gastos (e, em menor medida, ao segundo), os “gastos de liberdade” têm a ver com as estratégias de acumulação ou reprodução de patrimônio econômico e de capital cultural.

Por fim, apresento os resultados da aplicação da Análise de Correspondências Simples (ACS) à tabela “gastos x classes” com o intuito de apreender, em sua totalidade, a associação dos agregados de gastos entre si e deles com as frações de classe.15 15 A ACS é tipicamente aplicada a uma tabela de contingência. Por isso, os dados foram recodificados conforme a sugestão de Michael Greenacre (2017, 207-8).

A Figura 2 exibe uma nuvem de modalidades em um plano fatorial formado pelos dois primeiros eixos.16 16 Os dois primeiros eixos explicam aproximadamente 88% da variância total (respectivamente, 68,4% e 19,2%). A interpretação do plano fatorial deve considerar duas informações principais: as localizações das categorias ao longo do eixo vertical e do eixo horizontal e as contribuições delas para cada um dos eixos. Na figura em questão, são exibidas apenas as categorias que mais contribuem para o eixo vertical (losangos) e para o eixo horizontal (quadrados). No eixo vertical, há uma oposição entre os “gastos de necessidade” e os “gastos de liberdade”: abaixo do eixo, estão as categorias que indicam gastos relativos mais elevados com alimentação, produtos de cuidado de si e taxas domiciliares, e de gastos relativos mais baixos com viagem, educação, assistência privada à saúde, imóvel e serviços domésticos. Acima do eixo, temos o padrão inverso. Em relação ao eixo horizontal, há uma oposição entre, à direita, gastos relativos mais elevados com veículos e com transporte individual e, à esquerda, com cultura, internet e TV por assinatura, com aluguel e transporte coletivo. Observando, agora, as posições relativas das frações de classe, notam-se algumas aproximações importantes com o modelo do espaço social construído, revelando homologias importantes. Há uma forte diferenciação ao longo do eixo vertical que remete à dimensão do volume de capital, separando uma região superior (profissionais, dirigentes, cultural dominante e, um pouco abaixo, colarinho-branco e gerentes) de uma região intermediária (técnicos, cultural médio, apoio administrativo e frações de pequenos proprietários), e as duas da região inferior (trabalhadores de vendas, manuais qualificados ou elementares, trabalhadores de cuidados e trabalhadores rurais). De modo menos acentuado, há também uma diferenciação horizontal. As frações de pequenos proprietários (urbanos e rurais) ocupam uma porção mais à direita do eixo horizontal; dirigentes, gerentes e médios proprietários estão levemente à direita; por outro lado, profissionais, a fração cultural dominante, os trabalhadores de colarinho-branco, a fração cultural média e os trabalhadores de cuidados estão um pouco mais à esquerda, indicando a existência de uma associação entre as oposições descritas no eixo horizontal e as diferenças entre as frações de classe quanto à composição do capital.

Figura 2
Plano fatorial formado pelos eixos 1 e 2 da ACS, exibindo as modalidades ativas e suplementares

Pesado, gorduroso, substancioso vs. leve, diverso, magro: padrões no gasto alimentar

Nesta seção, serão analisados os gastos médios das famílias com diferentes tipos de alimentos em função do gasto total com alimentação.17 17 São considerados apenas os gastos com alimentação coletiva. Como vimos anteriormente, os gastos com alimentação (como proporção do gasto total) variam fortemente conforme a posição da família no espaço social: quanto mais baixa for a posição no eixo vertical, mais elevado será o valor do gasto médio com esse item.

Inicialmente, foi feita uma análise exploratória dos gastos alimentares por meio da ACP. Há um primeiro conjunto de gastos com itens alimentares que, em certas combinações e preparos, produzem refeições “fortes”, “substanciosas”, revelando outra dimensão da proximidade com a necessidade material, que tende a reduzir o alimento a sua função de sustentação do corpo. Temos, aqui, os gastos com arroz, feijão, macarrão, café, farinha (sobretudo, de trigo ou de mandioca), açúcar e óleo (especialmente de soja ou de milho).18 18 Para resultados similares, com base em dados sobre consumo alimentar, ver Bertoncelo (2019). O segundo conjunto de gastos inclui as carnes, sobretudo a carne bovina, mais consumida, acompanhada da carne de porco, aves, alguns embutidos (especialmente a linguiça e a salsicha) e, por fim, os pescados. O terceiro conjunto de gastos inclui os alimentos “frescos”, como as frutas e as diversas hortaliças (herbáceas, frutosas e tuberosas). Por fim, os panificados, os laticínios (leite integral, leite desnatado, queijos, iogurtes, manteiga, margarina, requeijão) e algumas carnes processadas (presunto, mortadela, salame etc.).

Analisando a distribuição dos gastos com esses conjuntos de alimentos por fração de classe, é possível discernir padrões que se estruturam conforme o volume e a composição do capital familiar. Os gastos relativos com o primeiro conjunto de itens alimentares aumentam conforme descemos o eixo do espaço social correspondente ao volume de capital (Gráfico 3): o valor com esses itens atinge o maior valor entre os trabalhadores agrícolas (18,9%), sendo superior a 10% em todas as frações de classe que ocupam a região inferior do eixo. Esse valor se reduz a menos de 8% entre as frações superiores, decrescendo fortemente quando se passa da região inferior para a intermediária.

Gráfico 3
Proporção de gastos com diversos itens alimentares em relação à despesa familiar com alimentação

Os gastos do segundo grupo (as carnes) apresentam uma distribuição levemente similar àqueles do primeiro grupo, com algumas diferenças pertinentes (Gráfico 3): os maiores valores médios desses gastos estão nas frações inferiores, sobretudo entre os trabalhadores agrícolas (especialmente pescados e embutidos) e pequenos proprietários urbanos (especialmente carne bovina e embutidos). Nelas, o valor médio de gastos com esses itens alcança 26,7% do total com alimentação. Há um decréscimo relativo à medida que passamos da região inferior para a intermediária, com exceção dos gerentes/proprietários (que tendem a gastar proporcionalmente mais com carne bovina) e desta para a superior, aumentando entre os dirigentes (também em função dos gastos com carne bovina). Os gastos com carne bovina são geralmente mais elevados nas frações ricas em capital econômico (embora alcance valor acima da média amostral entre os técnicos, trabalhadores qualificados e de vendas), diferentemente do padrão observado com as demais carnes, evidenciando possivelmente que o consumo de carnes vermelhas expresse outra dimensão do consumo de alimentos “pesados”, porém “caros”.

Com relação aos gastos com hortaliças e frutas (Gráfico 4), notamos que o valor médio aumenta sutilmente conforme subimos a hierarquia social, com exceção das frações rurais (pequenos proprietários e trabalhadores agrícolas). Considerados isoladamente, as hortaliças têm peso bastante similar no orçamento dos alimentos em todas as posições do espaço social, embora os gastos com as tuberosas (especialmente com os tubérculos, como as batatas) aumentem conforme se desce na hierarquia social. Como mostra um estudo recente sobre o consumo alimentar (Barbosa 2007Barbosa, Lívia. 2007. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos brasileiros. Horizontes Antropológicos 13 (28): 87-116. https://doi.org/10.1590/S0104-71832007000200005.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183200700...
), hortaliças são alimentos muito comumente consumidos, sobretudo nas refeições “quentes” do dia, especialmente sob a forma de saladas ou ensopados. As frutas, diferentemente, apresentam uma distribuição fortemente enviesada em relação à região superior do espaço social: com exceção da fração dos pequenos proprietários rurais, que gastam muito acima da média com frutas (especialmente com as bananas e as laranjas), os maiores valores médios são encontrados nas frações superiores, seguidas da fração cultural média e do pessoal de apoio administrativo (que, como em outros exemplos, parece marcar uma fronteira com o espaço das classes populares em matéria de alimentação).

Gráfico 4
Proporção de gastos com laticínios, alimentos “frescos”, “leves” e frios em relação à despesa familiar com alimentação

Por fim, o quarto conjunto de itens alimentares, que inclui o pão francês, os laticínios e os “frios”, é geralmente consumido, em diferentes combinações e preparos, como parte do café da manhã ou como lanches realizados entre as refeições principais (Barbosa 2007Barbosa, Lívia. 2007. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos brasileiros. Horizontes Antropológicos 13 (28): 87-116. https://doi.org/10.1590/S0104-71832007000200005.
https://doi.org/10.1590/S0104-7183200700...
). Foram incluídas na análise desses itens os cereais matinais, as geleias, a gelatina e os chás, considerados como alimentos “leves”. Tomados em conjunto, os gastos médios aqui alcançam seu maior valor nas frações intermediárias dos técnicos e dos trabalhadores de apoio administrativo. Observados separadamente, é possível apreender a operação de lógicas distintas que estruturam as despesas familiares. A começar pelo leite que, embora consumido pela maioria das famílias, varia em sua distribuição conforme seja integral ou “magro”. Os gastos com manteiga e margarina seguem uma lógica similar àquela do leite integral e desnatado: os valores médios aumentam, no caso do primeiro (assim como com o pão francês), e diminuem, no caso do segundo, conforme se desce na hierarquia social. Requeijão, “frios” e, sobretudo, queijos apresentam gastos médios que crescem da mesma forma. Os alimentos “leves”, por sua vez, são mais comuns nas frações superiores e também naquelas ricas em capital cultural: se acrescentarmos os iogurtes, as maiores despesas relativas com esses alimentos são observadas na fração cultural dominante (3,1%), na região superior; na região intermediária, na fração cultural média e de apoio administrativo (2,2% e 2%), e na região inferior, entre os trabalhadores de cuidado (1,6%).

Com o objetivo de apreender a associação entre as frações de classe e as despesas alimentares antes consideradas separadamente, utilizou-se a Análise de Correspondências Simples. Os eixos 1 e 2 “explicam” 71,7% da variância (respectivamente, 56,9% e 14,8%), que é uma proporção bastante razoável. Por isso, a análise a seguir se restringirá ao plano fatorial formado pelos dois primeiros eixos.

A interpretação do plano fatorial considera as distâncias relativas entre as categorias em cada eixo e as contribuições que fazem para a variância do eixo. As categorias que mais contribuem para o eixo vertical estão representadas por losangos; as que mais contribuem para o eixo horizontal, em triângulos (Figura 3). Além delas, há categorias que foram inseridas como “passivas”, ou seja, que não contribuem para a construção dos eixos e definição das distâncias.19 19 Diferentemente das categorias ativas, as categorias passivas não são consideradas para o cálculo das distâncias e para a construção dos eixos. Estão representadas por uma cruz, se correlacionadas com o eixo vertical e por “X”, se correlacionadas com o segundo eixo. Observando o primeiro eixo, nota-se a oposição entre os “gastos de necessidade” que, em matéria de alimentação, se referem às despesas com alimentos que servem ao preparo de refeições consideradas “substanciosas” como o arroz e o feijão, o óleo, o café, a farinha e o açúcar, cujas categorias estão localizadas abaixo do eixo, por um lado, e os “gastos de liberdade”, ou seja, despesas mais elevadas com uma maior diversidade de alimentos, geralmente mais caros, como os queijos, a manteiga, o iogurte e o presunto, além da menor despesa relativa com frango, cujas categorias estão localizadas acima do eixo. Em relação ao segundo eixo, há uma oposição entre o “leve”, de um lado, representado pelas despesas mais elevadas com alimentos frescos, como as hortaliças herbáceas e frutosas, além das frutas (como o mamão); com cereais, gelatina, geleia e chá (incluídos na categoria “leve”), com pescados e por despesas menores com carne bovina, embutidos (como a linguiça) e margarina, e, de outro, o “pesado”, caracterizado, inversamente, por gastos mais elevados com carnes, embutidos e margarina, e por despesas menores com os alimentos frescos e “leves”.

Figura 3
Plano fatorial formado pelos eixos 1 e 2 da ACS, exibindo as modalidades ativas

Observando agora a Figura 4, notamos que as frações de classe se distribuem ao longo dos dois eixos do plano fatorial, segundo um padrão que se aproxima, em alguma medida, das divisões do espaço social conforme seus eixos de volume e composição do capital. O eixo vertical opõe as frações superiores e intermediárias, localizadas acima da origem do plano, às frações inferiores, localizadas abaixo dela, evidenciando que, em matéria de alimentação, há uma verdadeira fronteira a separar as “classes populares” das demais. Em relação ao segundo eixo, nota-se que a fração cultural dominante, os profissionais e os proprietários rurais estão localizados bem à direita, em função da inclinação de sua estrutura de gastos alimentares para o “fresco” e, no caso, dos dois primeiros, também para o “caro” ou o “diverso”, em oposição aos técnicos, gerentes e proprietários urbanos, em virtude das despesas mais elevadas com o “pesado” (carne bovina e embutidos).

Figura 4
Plano fatorial formado pelos eixos 1 e 2 da ACS, exibindo as categorias suplementares

Conclusão

A questão que orientou este estudo indagava acerca da existência de correspondências ou homologias entre as estruturas de despesas com itens diversos e as divisões do espaço social, conforme o volume do capital e sua composição. Os resultados das análises evidenciam a existência de tais correspondências, ainda que de modo aproximado – como, aliás, era de se esperar, dada a natureza dos dados, nem sempre adequados para a apreensão de diferenças qualitativas sociologicamente pertinentes. Os resultados das análises evidenciam a existência de uma forte correspondência entre a posição das famílias no eixo vertical (volume de capital) do espaço social e o peso que têm na estrutura das despesas familiares os chamados “gastos de necessidade” e os “gastos de liberdade”, conforme a lógica específica que opera em dado domínio da vida social. Há também uma homologia, mais “visível” em matéria de alimentação do que em termos das despesas gerais, entre o eixo horizontal (composição do capital) e uma propensão para gastar mais com alimentos “leves” e “frescos” ou com alimentos “pesados”, em um caso, com cultura ou com veículos, no outro.

Temos, portanto, evidências de que a estratificação social do consumo se estrutura, ao menos em parte, conforme a lógica que opera no espaço social, opondo as diferentes classes e suas frações em função do volume e da composição de seus capitais. É necessário avançar as pesquisas sobre esse tema, com o objetivo de reconstruir, para além das evidências empíricas de correspondências entre o espaço social e as “escolhas” de consumo, as estratégias distintivas, quer dizer, as disputas entre os agentes em torno da apropriação dos bens e do valor que lhes é conferido enquanto signos de distinção.

  • 2
    Diniz, Pedro. 2020. Na pandemia, elite adapta luxos à vida sem passaporte. Grifes de luxo montam operações de delivery de produtos de alto padrão. Folha Uol, 9 out. 2020. Acessado em 6 out. 2021, https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/na-pandemia-elite-adapta-luxos-a-vida-sem-passaporte.shtml?origin=folha.
  • 3
    Campos, Mari. 2020. Marketing e promessa “anti-covid”: por que Maldivas é paraíso dos famosos? Nossa Uol, 3 dez. 2020. Acessado em 6 out. 2021, https://www.uol.com.br/nossa/noticias/redacao/2020/12/03/marketing-e-promessa-anti-covid-por-que-maldivas-e-paraiso-dos-famosos.htm.
  • 4
    Enquanto objeto sociológico, o consumo é abordado em três dimensões diferentes: aquisição, apropriação e apreciação (Warde 2017Warde, Alan. 2017. Consumption: a sociological analysis. Londres: Palgrave Macmillan.).
  • 5
    Para uma revisão da literatura mais recente ver Coulangeon e Duval 2015.
  • 6
    Proporção de famílias em que a escolaridade máxima (da pessoa de referência ou do/a cônjuge) alcança o ensino superior completo. Para alguns agrupamentos, entre parênteses, é apresentada a proporção de famílias com pós-graduação.
  • 7
    Possui a maior proporção de famílias com pós-graduação stricto sensu (19,2%).
  • 8
    Os proprietários de comércio aqui incluídos possuem renda líquida familiar mensal per capita inferior a dez salários-mínimos.
  • 9
    São incluídos apenas os proprietários urbanos (que atuam principalmente nos setores da construção civil e de serviços, como mecânicos de veículos a motor e pedreiros) e rurais com renda líquida familiar mensal per capita inferior a dez salários-mínimos.
  • 10
    A ACP é geralmente aplicada a uma base do tipo indivíduos por variáveis (contínuas). Os resultados completos dessa e de outras análises apresentadas no estudo, assim como as bases de dados utilizadas, estão armazenados na aba - literatura relacionada - no link: http://cis.prp.usp.br/cis/DetalheBancoDados.aspx?cod=B610&lng=pt-br.
  • 11
    Os serviços domiciliares incluem os serviços de limpeza e manutenção da residência.
  • 12
    Respectivamente, R$ 767,80 e R$ 651,16, ante uma média amostral de R$ 385,91 (valores anualizados).
  • 13
    Cultura inclui assinatura de revistas e jornais, compra de livros (exceto os didáticos), de ingressos para eventos culturais ou esportivos, aquisição de instrumentos musicais ou fotográficos, compra de serviços de streaming.
  • 14
    A estratificação do sistema de ensino no país acaba por impor exigências diferenciais às frações de classe a depender da posição no espaço social (Almeida 2009Almeida, Ana Maria. 2009. As escolas dos dirigentes paulistas: ensino médio, vestibular, desigualdade social. Belo Horizonte: Argvmentvm.; Nogueira 2004Nogueira, Maria Alice. 2004. Favorecimento econômico e excelência escolar: um mito em questão. Revista Brasileira de Educação 26: 133-184. https://doi.org/10.1590/S1413-24782004000200011.
    https://doi.org/10.1590/S1413-2478200400...
    ).
  • 15
    A ACS é tipicamente aplicada a uma tabela de contingência. Por isso, os dados foram recodificados conforme a sugestão de Michael Greenacre (2017Greenacre, Michael. 2017. Correspondence analysis in practice. Londres: Chapman & Hall, 207-8).
  • 16
    Os dois primeiros eixos explicam aproximadamente 88% da variância total (respectivamente, 68,4% e 19,2%).
  • 17
    São considerados apenas os gastos com alimentação coletiva.
  • 18
    Para resultados similares, com base em dados sobre consumo alimentar, ver Bertoncelo (2019)Bertoncelo, Edison. 2019. Classes Sociais e Alimentação: padrões de consumo alimentar no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Ciências Sociais 34 (100): 1-28. https://doi.org/10.1590/3410005/2019.
    https://doi.org/10.1590/3410005/2019...
    .
  • 19
    Diferentemente das categorias ativas, as categorias passivas não são consideradas para o cálculo das distâncias e para a construção dos eixos.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do autor antes da publicação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Out 2021
  • Aceito
    15 Dez 2021
  • Publicado
    16 Ago 2022
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