Acessibilidade / Reportar erro

A domesticação técnica da morte: anti-aging como projeto existencial

The technological taming of death: anti-aging as an existential project

La domesticación técnica de la muerte: anti-aging como proyecto existencial

Resumo:

O programa anti-aging, assim como outros programas de prolongamento da vida, é a precipitação histórica de um longo processo de conquistas tecnológicas sobre a morte. Em seu horizonte de expectativas, prospecta-se não apenas o alargamento do tempo que decorre entre nascimento e morte, como também a eliminação da experiência de decaimento e da perda de vitalidade ao longo do curso da vida. Mas o anti-aging compreende também uma forma de relação com a morte: não enquanto evento final, mas como objeto da consciência, isto é, enquanto uma presença na vida. O anti-aging reconfigura a presença da morte na vida de duas formas: primeiro, desloca-a do campo do destino ao campo das deliberações humanas, e, segundo, identifica o corpo humano como barreira à realização plena da vida e como fonte última de risco.

Palavras-chave:
Anti-aging; Tecnologia; Morte; Existência

Abstract:

The anti-aging program, like other life extension programs, is a historical precipitation of a long process of technological conquering over death. In its horizon of expectations, there is not only the widening of the timespan between birth and death, but also the elimination of the experience of decay and loss of vitality throughout the life-course. But anti-aging also comprises a form of relationship with death: not as a final event, but as an object of consciousness, that is, as a presence in life. Anti-aging reconfigures the presence of death in life in two ways: first, it displaces death from the field of destiny to the field of human deliberation, and second, it identifies the human body as a barrier to the full realization of life and as an ultimate source of risk.

Palabras clave:
Anti-aging; Tecnología; Muerte; Existencia

Resumen:

El programa antienvejecimiento, como otros programas de extensión de la vida, es una precipitación histórica de un largo proceso de conquista tecnológica sobre la muerte. En su horizonte de expectativas, no sólo se amplía el tiempo entre el nacimiento y la muerte, sino que también se elimina la experiencia de decadencia y pérdida de vitalidad durante el curso de vida. Pero al mismo tiempo el antienvejecimiento también comprende una forma de relación con la muerte: no como un acontecimiento final, sino como un objeto de conciencia, es decir, como un aspecto presente en la vida. Así, el antienvejecimiento reconfigura la presencia de la muerte en la vida de dos maneras: en primer lugar, desplaza la muerte desde el campo del destino al campo de la deliberación humana y, en segundo lugar, identifica el cuerpo humano como una barrera para la plena realización de la vida a la vez que como última fuente de riesgo.

Keywords:
Anti-aging; Technology; Death; Existence

A presença da morte na vida

O tema da morte interessa a todos. Não só porque todos morreremos, mas sobretudo porque sabemos que morreremos. Essa distinção não é banal, principalmente quando pretendemos investigar a maneira como a morte afeta nossos modos de existência, ou como formações culturais configuram modos de existência em relação à morte, como é o caso do presente ensaio. O simples saber sobre a morte que caracteriza a existência humana – e demarca sua diferença em relação a outras formas de vida2 2 Muito embora esse pressuposto “antropocêntrico” tenha sido contestado recentemente conforme Kellehear (2007). – é suficiente para que a vida social seja por ela afetada. Importa, nesta ocasião, tomar não a morte enquanto tal, mas sua presença na vida. Tony Walter3 3 Walter, Tony. 2018. Sociology of mortality. Existential or pragmatic? Discover Society, 6 fev. 2018, acessado em 15 dez. 2020, https://discoversociety.org/2018/02/06/viewpoint-sociology-of-mortality-existential-or-pragmatic. identifica as mediações sociológicas da presença da morte na vida em duas dimensões. Por um lado, ela é mediada por questões práticas e técnicas, como o ordenamento jurídico da transição geracional ou as regras de despojo funerário. Ainda a essa dimensão podemos acrescentar, com Allan Kellehear (2007)Kellehear, Allan. 2007. A social history of dying. Cambridge: Cambridge University Press., a capacidade técnica (médica) de antecipação e de prevenção das causas da morte. Por outro, sua presença é mediada por sistemas simbólicos que provêm um horizonte de sentido em relação ao qual é possível transcender a finitude e a transitoriedade da vida individual. Aqui, a presença da morte na vida é um conector entre sociedade e existência, um problema sociológico-existencial de primeira ordem. Peter Berger (1990)Berger, Peter. The sacred canopy. Elements of a sociological theory of religion. New York: Anchor Books, 1990., Ernst Becker (2011)Becker, Ernest. 2011. The denial of death. London: Souvenir. e Jan Assmann (2000)Assmann, Jan. 2000. Der Tod als Thema der Kulturtheorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp. são autores que vinculam explicitamente uma relação entre a consciência da morte e o surgimento da ordem simbólica. Para eles, a cultura é em si mesma uma resposta à mortalidade.

Essas duas dimensões, tecnológica e simbólica, assumem uma configuração particular no discurso tanatológico da sociologia. A sociologia tanatológica do século 20, em autores díspares como Geoffrey Gorer (1955)Gorer, Geoffrey. 1955. The pornography of death. New York: Doubleday., Philippe Ariès (1974)Ariès, Philippe. 1974. Western attitudes toward death. From the Middle Ages to the present. Baltimore: John Hopkins University Press, e Norbert Elias (2001)Elias, Norbert. 2001. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar., ou, mais recentemente, Armin Nassehi e Georg Weber (1988Nassehi, Armin e Georg Weber. 1988. Verdrängung des Todes. Kulturkritische Vorurteil oder Strukturmerkmal moderner Gesellschaften? Systemtheoretische und wissenssoziologische Überlegungen. Soziale Welt 39 (4): 377-396. https://www.jstor.org/stable/i40039387.
https://www.jstor.org/stable/i40039387...
) e Philip Mellor e Chris Shilling (1993Mellor, Philip A. e Chris Shilling. 1993. Modernity, self-identity and the sequestration of death. Sociology 27 (3): 411–431. https://doi.org/10.1177/0038038593027003005.
https://doi.org/10.1177/0038038593027003...
), aponta para uma retração histórica da capacidade que as sociedades modernas têm em providenciar aos indivíduos uma resposta culturalmente vinculante ao problema da morte. Essa teria se tornado um problema de ordem privada. Ao mesmo tempo, no entanto, esses mesmos autores identificam o avanço inaudito, nessas mesmas sociedades, de uma capacidade técnica em domesticar a virulência e a violência da morte. Não apenas a medicina afunilou o espectro de doenças que há apenas um século seriam fatais, mas também os estados-nação foram capazes de concentrar em si o uso da violência e conduziram a uma relativa pacificação social. A constelação experiencial que a sociologia tanatológica identifica pode ser resumida como: a presença da morte na vida, em sociedades modernas, é mediada, a um só tempo, pela sua dessimbolização e domesticação técnica.

Esta configuração é exemplarmente exposta pela emergência do campo discursivo produzido pelos programas biotecnológicos de prolongamento da vida humana. Ao lado de uma série de projetos tecnocientíficos que promovem um imaginário transhumanista de sublevação contra corporalidade da vida (Martins 2012Martins, Hermínio. 2012. Hegel, Texas: temas de filosofia e sociologia da técnica. In Experimentum Humanum. Civilização tecnológica e condição humana, 15-34. Belo Horizonte: Fino Traço.; Sibilia 2015Sibilia, Paula. 2015. O homem pós-orgânico. A alquimia dos corpos e das almas à luz das tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Contraponto.), e que prospectam uma imortalidade tecnologicamente suportada pela inteligência artificial, pelas nanotecnologias e medicina regenerativa (Lafontaine 2010Lafontaine, Céline. 2010. Die postmortale Gesellschaft. Wiesbaden: VS Verlag.; Turner 2007Turner, Bryan. 2007. Culture, technologies and bodies: the technological utopia of living forever. The Sociological Review 55: 19-36. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2007.00690.x.
https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2007...
), uma forma mais prosaica e ao mesmo tempo tão radical de controle sobre a morte é proposta pelo programa do anti-aging.4 4 Para uma leitura compreensiva da história e da estrutura dos programas anti-aging, ver Binstock et al. 2006; Fishman et al. 2008; Knell e Weber 2009; Post e Binstock 2004; Vincent 2009). Esse, que não se refere aqui simplesmente a procedimentos estéticos, mas a toda uma proposta de reformulação médica, propõe uma nova concepção do envelhecimento como um processo patológico que ocorre ao longo da vida, acarretado tanto por fatores genéticos quanto pelo estilo de vida, mas, em última instância, maleável (Grey 2004Grey, Aubrey de. 2004. An engineer's approach to developing real anti-aging medicine. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock, 249- 269. New York: Oxford University Press.; Sinclair e LaPlante 2019Sinclair, David e Matthew LaPlante. 2019. Lifespan: why we age and why we don't have to. London: Thorsons.).5 5 Horvath, Steve. 2018. Steve Horvath at undoing aging, 30 de maio 2018, acessado em 15 dez. 2020, https://www.youtube.com/watch?v=uw1J0UqWSjo&t=965s. Para esse programa, não se trata de prolongamento da vida em situação crítica, como a geriatria o faz ao administrar a sobrevida dos idosos em meio a doenças crônicas (Gilleard e Higgs 2016Gilleard, Chris e Paul Higgs. 2016. Gerontology versus geriatrics: different ways of understanding ageing and old age. In The Palgrave handbook of the philosophy of aging, organizado por Geoffrey Scarre. London: Palgrave Macmillan. Kindle.). A promessa do anti-aging é o prolongamento do tempo saudável de vida, o impedimento de que doenças crônicas se estabeleçam. O campo tecnocientífico no qual essa promessa se desenvolve é o da biogerontologia, que se coloca justamente como uma alternativa à geriatria clínica por propor uma mudança fundamental na etiologia das doenças do envelhecimento: não mais concebidas como fenômenos independentes, mas como epifenômenos de uma patologia mais profunda, originada em falhas dos mecanismos moleculares que mantêm o funcionamento do organismo e que, com o tempo, precipitam nossos corpos em erros catastróficos.6 6 Para um panorama da formação teórica e institucional do campo biogerontológico ver Gems 2009; Vincent 2008; Moreira e Palladino 2008. Em que medida, no horizonte discursivo dos programas de prolongamento da vida e, em especial, do anti-aging, se desenha não apenas uma relação técnica com a morte, mas também uma concepção da morte como problema técnico? A configuração produzida pelo anti-aging eleva a domesticação técnica da morte de um subproduto da modernização tecnológica a um projeto existencial. Ainda que tais programas reiterem e reforcem o processo de dessimbolização da morte, positivam, por outro lado, uma forma ideal de relação com a presença da morte na vida. Por um lado, essa forma ideal é marcada pela desconstrução da necessidade biológica da morte. Por outro lado, ao invés de um evento absoluto que se antepõe e dá sentido de unidade à vida, a morte é aí representada como um conjunto de riscos internos ao corpo, para os quais soluções técnicas devem ser produzidas.

Prolongamento biotecnológico da vida

Prolongar a vida humana para além de seus limites biológicos tornou-se um grande empreendimento em diversos nichos tecnocientíficos. Um olhar sobre o particular universo do Vale do Silício em suas ramificações científicas e empresariais (normalmente entrelaçadas entre si) nos apresenta uma miríade de prospectos. Ray Kurzweil, renomado inventor e chefe de engenharia da Google, antevê a possibilidade futura de “mind uploading”, ou “whole brain emulation”, como maneira razoável de nos permitir a continuidade da existência após o desfalecimento de nossos corpos. Outro projeto, talvez ainda mais chocante, é apresentado por companhias como Alcor – Life Extension Foundation e Cryonics Institute: o projeto da criogenia, ou criopreservação. Sumariamente, o serviço que oferecem é o do congelamento dos corpos – ou apenas das cabeças, se o orçamento for restrito – de seus clientes, após a declaração legal de suas mortes, de modo que esses possam ser conservados, ou “suspensos”, até que, no futuro, tecnologias capazes de reavivá-los estejam disponíveis.7 7 Sobre projetos imortalistas no Vale do Silício, ver Friend, Tad. 2017. Silicon Valley's quest to live forever. The New Yorker, 27 mar. 2017, acessado em 15 dez. 2020, https://www.newyorker.com/magazine/2017/04/03/silicon-valleys-quest-to-live-forever; e O’Connell 2017. No entanto, gostaria de dedicar meu foco a outra classe de programas tecnocientíficos de prolongamento da vida, menos extravagante que a criogenia ou a digitalização, mas tão radicais quanto: os programas anti-aging. Diferentemente daqueles, proponentes do anti-aging não são tão afeiçoados à ideia de desfazer-se do corpo. De fato, proponentes do anti-aging, como o bioengenheiro Aubrey de Grey (2004)Grey, Aubrey de. 2004. An engineer's approach to developing real anti-aging medicine. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock, 249- 269. New York: Oxford University Press. ou geneticista David Sinclair (2019Sinclair, David e Matthew LaPlante. 2019. Lifespan: why we age and why we don't have to. London: Thorsons.), querem otimizar o corpo, torná-lo mais durável e mais funcional. Mas durável e funcional em relação àquilo que a tecnologia abre como possibilidade, não em relação àquilo que é biologicamente possível. Isto é, um corpo que corresponda aos anseios de eficiência e potência estabelecidos pela razão encarnada nos aparatos técnicos e em sua indefinida capacidade de melhoramento. E, justamente o processo do envelhecimento, nossa disposição interna ao decaimento e à morte, revela o quão restritas são as possibilidades contidas no biologicamente possível. Proponentes do anti-aging visam à liberação do corpo de sua biologia. Para tal, pretendem descobrir ou desenvolver formas de decifrar os códigos genéticos dos mecanismos moleculares que atuam por detrás do processo do envelhecimento. Ao invés da transferência de nossa consciência em uma máquina, seu objetivo, como posto recentemente pelo diretor da alemã Forever Healthy Foundation, Michael Greve, é trazer o envelhecimento sob controle médico total. Proponentes do anti-aging idealizam não apenas novas formas de mensuração do envelhecimento, fundadas sobre o nível de deterioração genética ao invés do número de aniversários de uma pessoa (Moreira 2016Moreira, Tiago. 2016. De-standardising ageing? Shifting regimes of age measurament. Ageing & Society 36 (7): 1407-1433. https://doi.org/10.1017/S0144686X15000458.
https://doi.org/10.1017/S0144686X1500045...
), como também uma concepção de medicina e saúde completamente nova (Katz e Marshall 2004). Sinclair propõe uma medicina “desdiferenciada”, que vá além do tratamento departamentalizado de patologias isoladas e tome o processo de decaimento do corpo como um fenômeno total. É a vida em si mesma, para usar o termo de Nikolas Rose (2001)Rose, Nikolas. 2001. The politics of life itself. Theory, Culture & Society 18 (6): 1-30. https://doi.org/10.1177/02632760122052020.
https://doi.org/10.1177/0263276012205202...
, que deve aqui ser trazida sob vigilância médica.

Apesar de excêntricos, projetos como os do anti-aging, e até mesmo a ideia do mind uploading são respaldados por investimentos milionários e tornaram-se já lugar comum na linguagem empresarial de figuras como: Peter Thiel, Elon Musk, Jeff Bezzos e Bill Maris. O que unifica as diferentes abordagens utilizadas na tarefa de prolongar a vida humana é a concepção básica de vida a elas oferecida pela biotecnologia – isto é, conhecimento produzido pelas diversas técnicas modernas de DNA recombinante. Mais especificamente, a concepção segundo a qual a vida é um fenômeno, em última instância, informático, o qual pode ser “crackeado” e “hackeado” de modo a servir propósitos que não aqueles constados em seu “programa” original (Belt 2009Belt, Henk van den. 2009. Philosophy of biotechnology. In The handbook of philosophy of science. Philosophy of technology and engineering sciences, organizado por Anthonie W. M. Meijers, 1301-1340, vol. 9. Amsterdam: North Holland.). A suposta natureza informacional da vida é o que torna concebível a ideia de “tradução” das informações contidas no “meat-ware” que nós chamamos de corpo em um suporte mais confiável e durável. Ou, no caso, do anti-aging, a vida concebida como informação é o que permite a divisada da possibilidade de manipulação do processo de envelhecimento como se esse fosse a acumulação de erros que, ao longo de uma vida – para citar Sinclair (2019Sinclair, David e Matthew LaPlante. 2019. Lifespan: why we age and why we don't have to. London: Thorsons.) novamente – criam “ruídos” genéticos que atrapalham as células na leitura da informação contida no DNA.

Na configuração biotecnológica do envelhecimento otimizado, não se trata simplesmente da extensão do tempo da vida à custa de uma existência fragilizada pela doença e pela perda de autonomia, mas de fazer com que esse tempo acrescido seja conjugado a um acréscimo de vitalidade. Assim, o deslocamento da morte, seu afastamento da experiência, deve ocorrer aqui em dois sentidos. Em primeiro lugar, a manipulação biotecnológica do envelhecimento deve resultar na extensão do tempo que decorre entre o nascimento e a morte, de modo que a idade máxima permitida pelas constrições biológicas, que circula em torno dos 120 anos, seja sobrepujada (Grey 2004Grey, Aubrey de. 2004. An engineer's approach to developing real anti-aging medicine. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock, 249- 269. New York: Oxford University Press.).8 8 Feinerman, Ariel. 2018. The rise of Oisin biotechnologies. Interview with Gary Hudson. U. S. Transhumanist party – Official Website, 2 abr. 2018, acessado em 15 dez. 2020, https://transhumanist-party.org/2018/04/02/feinerman-hudson-interview. Em segundo lugar, e com maior importância, deve resultar na erradicação das marcas antecipatórias da morte, isto é, todo o sofrimento e decaimento que pavimenta o caminho que leva da maturidade ao momento final. Essa dimensão do anti-aging relaciona-se com aquilo que muitos proponentes chamam de “compressão de morbidade”, isto é, o processo ideal através do qual é possível manter uma vitalidade ótima até os poucos dias, ou talvez horas, que antecedam a morte (Moreira e Palladino 2008Fishman, Jennifer, Robert Binstock e Marcie Lambrix. 2008. Anti-aging science. The emergence, maintenance, and enhancement of a discipline. Journal of Aging Studies 22 (4): 295-303. https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05.010.
https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05...
). Mas, ambos sentidos se conectam pelo anseio de uma forma de vida humana liberta das misérias do corpo.

A proposta em torno da qual convergem as diversas estratégias do anti-aging é de que o processo do envelhecimento deva ser compreendido como uma doença. Na concepção do envelhecimento como doença revela-se, a um só tempo, a abertura de possibilidades biotecnológicas de superação dos limites orgânicos pela via da reengenharia do corpo, e a reavaliação da condição humana como inerentemente insuficiente e carente de melhoramento e de vigilância. A concepção do envelhecimento como doença encontra seu fundamento epistemológico e praxiológico no campo da biogerontologia.

Biogerontologia e o envelhecimento como doença

As últimas duas décadas presenciaram o surgimento e a consolidação da biogerontologia como uma disciplina biomédica (Binstock et al. 2006Binstock, Robert, Jennifer Fishman e Eric Juengst. 2006. Boundaries and labels: anti-aging medicine and science. Rejuvenation Research 9 (4): 433-435. https://doi.org/10.1089/rej.2006.9.433.
https://doi.org/10.1089/rej.2006.9.433...
; Gems 2009Gems, David. 2009. Eine Revolution des Alterns. Die neue Biogerontologie und ihre Implikationen. In Länger leben?, organizado por Sebastian Knell e Marcel Weber. Frankfurt am Main: Suhrkamp.; Gilleard e Higgs 2016Gilleard, Chris e Paul Higgs. 2016. Gerontology versus geriatrics: different ways of understanding ageing and old age. In The Palgrave handbook of the philosophy of aging, organizado por Geoffrey Scarre. London: Palgrave Macmillan. Kindle.). Como o próprio nome indica, biogerontologia é o campo de estudo (logos) das causas biológicas do envelhecimento (géron). Ela é distinta de sua disciplina vizinha, a geriatria. Diferentemente dessa, a biogerontologia não objetiva providenciar assistência médica àqueles que, inevitavelmente, encontram-se na última fase da vida. Seu objetivo primário é produzir modelos teóricos capazes de explicar como e por que envelhecemos. Por uma longa porção de sua história, a biogerontologia permaneceu uma disciplina teórica. Enquanto a geriatria tem uma postura administrativa, que visa o gerenciamento do caótico conjunto de patologias que orbitam a velhice, a biogerontologia quer entender o que faz do envelhecimento biológico o que ele é.

Até recentemente, a biogerontologia permaneceu uma disciplina marginal devido ao baixo nível de tradução de seus resultados em conhecimento aplicado. Afinal, o que poderia ser feito do aprendizado sobre processos em relação aos quais nenhum ser humano pode evadir-se (Binstock 2004Binstock, Robert. 2004. The Search for prolongevity. A contentious pursuit. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock,11-37. New York: Oxford University Press.)? Neste sentido, é digno de atenção o fato de ter-se tornado a biogerontologia, hoje, uma disciplina biomédica de vanguarda, objeto de investimentos bilionários como o projeto Calico, fundado pela Google, no qual a pesquisa básica é combinada com o potencial desenvolvimento de produtos que possam ajudar “pessoas a viverem vidas mais longas e saudáveis”.

O ponto de viragem da biogerontologia ocorre com sua entrada no hall das ciências aplicadas. Aproximando-se da genética a partir dos anos 1960, a biogerontologia começa a refundar-se sobre uma compreensão biotecnológica da vida enquanto fenômeno informático que pode ser reprogramado no plano molecular (Sinclair e LaPlante 2019Sinclair, David e Matthew LaPlante. 2019. Lifespan: why we age and why we don't have to. London: Thorsons.). A reengenharia do envelhecimento é, então, subsidiada por experimentos nos quais alterações genéticas são suficientes para estender significativamente o tempo de vida de certos animais (Magalhães, Stevens e Thornton 2017Magalhães, João Pedro de, Michael Stevens e Daniel Thornton. 2017. The business of anti-aging science. Trends in Biotechnology 35 (11): 1062–1073. https://doi.org/10.1016/j.tibtech.2017.07.004.
https://doi.org/10.1016/j.tibtech.2017.0...
). Ao mesmo tempo, teorias evolutivas do envelhecimento, como a do “soma descartável” (Kirkwood 1999Kirkwood, Tom. 1999. Time of our lives. The science of human aging. New York: Oxford University Press.), estabelecem uma nova interpretação sobre seu significado, segundo a qual o envelhecimento não ocorre por necessidade evolutiva, mas justamente pela ausência de um propósito evolutivo. Grosso modo, essa ausência significa que a evolução equipou organismos com mecanismos de reparo celular cuja função é prevenir o surgimento de doenças crônicas até o período de maturidade sexual, de modo a garantir reprodução. Após o alcance desse período, tais mecanismos reparadores entram em declínio, e doenças insurgem. Uma vez que, até pouquíssimo tempo atrás, não costumávamos viver muito após o declínio de nossa maturidade sexual, não houve tempo para que o desenvolvimento de mecanismos reparadores se tornasse uma vantagem evolutiva. O importante desse entendimento é que ele revela o envelhecimento não como atualização de um comando “programado” em nossa composição genética. Antes, como ausência de um programa, isto é, como um fenômeno desprovido de necessidade biológica (Gems 2009Gems, David. 2009. Eine Revolution des Alterns. Die neue Biogerontologie und ihre Implikationen. In Länger leben?, organizado por Sebastian Knell e Marcel Weber. Frankfurt am Main: Suhrkamp.).

Fornecendo uma imagem do envelhecimento como fenômeno plástico e contingente, a biogerontologia produz também uma concepção particular de saúde e de cuidado médico. Apesar de não ser uma disciplina clínica, ela funda um novo olhar clínico, o qual captura não mais patologias associadas ao envelhecimento, mas o envelhecimento como processo patológico. Uma vez que a manipulação genética revela a elasticidade de seus mecanismos e a teoria evolutiva o desloca do reino da necessidade, o fenômeno do envelhecimento já não pode mais representar um estado “normal”. À luz das possibilidades biotecnológicas, ele é um estado disfuncional, mas que pode ter sua funcionalidade não apenas recuperada como potencializada (Katz e Marshall 2004Binstock, Robert. 2004. The Search for prolongevity. A contentious pursuit. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock,11-37. New York: Oxford University Press.). Contestando a normalidade do envelhecimento enquanto tal, a biogerontologia aprofunda o nível de penetração de seu olhar clínico em relação àquela da geriatria. Aqui, aquilo que geriatras chamam de doenças crônicas do envelhecimento – como Alzheimer, câncer, diabetes tipo 2 – deve ser compreendido como apenas sintoma, manifestação superficial da verdadeira doença: o envelhecimento.

A concepção biogerontológica do envelhecimento como doença é o que fornece aos programas anti-aging seu fundamento teórico e prático. Tal concepção não apenas afeta a ideia de envelhecimento ao patologizá-lo, mas afeta, sobretudo, a ideia de doença. O que é posto em jogo nessa concepção é a aceitabilidade do corpo em sua condição dada, isto é, predisposta ao decaimento. A doença do envelhecimento não é uma doença no sentido em que se opõe a um estado normal, mas simplesmente aquilo que se revela quando a condição orgânica da vida humana é contrastada com o potencial de vitalidade da biotecnologia. A concepção do envelhecimento como doença é também reflexo de uma abertura para ação em que antes havia apenas espaço para o destino: se o envelhecimento é tido como uma necessidade em relação a qual nada pode ser feito, ele não pode ser tomado como problema de ordem prática. Apenas quando “descobrimos” sua natureza contingente é que podemos nos ver confrontados com um chamado à ação. O programa do anti-aging é, em última instância, esse chamado à ação. Enquanto tal, é motivado pela promessa de liberação da vida de seus constrangimentos orgânicos em direção a um estado de permanente perfectibilidade, mas também pela angústia gerada pela reconfiguração do corpo como fonte primária de riscos e de ameaça à própria vida.

Entre a promessa de liberação tecnológica e a angústia do risco orgânico, o programa do anti-aging projeta em seu horizonte uma forma particular de posicionamento e de significado da presença da morte na vida. No que segue, buscarei desenhar alguns contornos dessa forma particular.

Configurações da mortalidade

A filosofia existencial, ou, como propôs Michael Theunissen (1991)Theunissen, Michael. 1991. Negative Theologie der Zeit. Frankfurt am Main: Suhrkamp., a filosofia moderna como um todo, só pode pensar a morte em seus efeitos sobre a vida. O fechamento dos horizontes metafísicos é também um bloqueio ao acesso à morte enquanto tal, como fenômeno posto no além. Isto é, a morte só pode ser pensada como mortalidade, como condição da existência. Para Martin Heidegger, o fundamento da existência, a possibilidade de concebê-la em sua inteireza temporal (zeitliches Ganzsein), é apenas possível pela antecipação de seu próprio fim (Vorlauf zum Tode). No entanto, apesar do individualismo heroico que subjaz à filosofia existencial, é possível afirmar que as configurações da mortalidade, isto é, os modos de relação com a morte na vida, são, em todas as sociedades tradicionais, reflexo de “figuras da morte” (Todesbilde) e “ritos da morte” (Todeskult) coletivamente constituídos. Esses são termos do egiptólogo e filósofo Jan Assmann (2000)Assmann, Jan. 2000. Der Tod als Thema der Kulturtheorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp., para quem a própria ideia de cultura pode ser lida como um ponto nodal entre a consciência da mortalidade e a necessidade de atribuição de sentido que ela impõe sobre os humanos. Em sua reconstrução dos mitos de origem babilônicos, nota Assmann (2000)Assmann, Jan. 2000. Der Tod als Thema der Kulturtheorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp. a seguinte estrutura de sentido comum: o saber da morte é um fardo propriamente humano, os deuses não o possuem, pois são imortais, e os animais também não, pois não comeram da árvore do conhecimento. Sua tese, compartilhada por Peter Berger (1990)Berger, Peter. The sacred canopy. Elements of a sociological theory of religion. New York: Anchor Books, 1990. e Ernst Becker (2011)Becker, Ernest. 2011. The denial of death. London: Souvenir., é a de que o fenômeno da cultura não apenas fornece uma resposta ao problema existencial do saber da morte, como é, em última instância, por ele gerado. Ela

representa a tentativa de criação de um espaço e um tempo nos quais o homem pode projetar seu pensamento para além de seu horizonte de vida restrito, e pode prolongar a linha de sua ação, de sua experiência e seus planos em horizontes e dimensões de realização mais amplos. Só assim sua necessidade de sentido é satisfeita, e a consciência dolorosa e insustentável de seu limite e incompletude existencial encontra descanso (Assmann 2000Assmann, Jan. 2000. Der Tod als Thema der Kulturtheorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp., 13-14).

A tese segundo a qual sociedades modernas são destituídas dessa capacidade geradora de imagens e de cultos da morte devido ao processo de secularização e de individualização poderia ser lida aqui como a tese de uma desconfiguração cultural da mortalidade. Isto é, como retraimento das capacidades discursivas e práticas da cultura em dar forma à presença da morte na vida. Phillip Mellor e Chris Shilling (1993Mellor, Philip A. e Chris Shilling. 1993. Modernity, self-identity and the sequestration of death. Sociology 27 (3): 411–431. https://doi.org/10.1177/0038038593027003005.
https://doi.org/10.1177/0038038593027003...
) acrescentam a esse retraimento a emergência mais recente de uma atitude reflexiva em relação ao self que torna a relação com a ideia de sua finitude ainda mais problemática, uma vez que o próprio tempo da vida é posto sob permanente revisão biográfica.

No entanto, o programa do anti-aging, em particular, e o programa de prolongamento biotecnológico da vida, em geral, parecem propor uma forma ideal de relação com a morte. Essa, por sua vez, não é pautada no horizonte do além, aberto pela religião, nem da verdadeira autenticidade, aberto pela filosofia existencial, mas pela expectativa de redenção do orgânico. Na mesma medida em que tais programas tecnocientíficos buscam deslocar a morte e ganhar controle sobre sua entrada na vida, também reposicionam, reconfiguram a morte no interior da vida. No caso do anti-aging, essa reconfiguração é sua transformação em uma doença silenciosa e universal em resposta à qual somos exortados a agir.

Domesticação técnica da morte

No centro do discurso tanatológico da sociologia está o conceito de “morte domada”, com o qual Philippe Ariès (1974)Ariès, Philippe. 1974. Western attitudes toward death. From the Middle Ages to the present. Baltimore: John Hopkins University Press, contrastara, no que concerne a atitude frente à morte, a postura da dominante na alta idade média com aquilo que considerava ser a postura dominante moderna. Segundo o argumento, no interior das sociedades medievais, a publicidade do morrer, bem como a estrutura simbólica e ritual que acompanhava o indivíduo em sua última jornada, tornavam o processo familiar, aproximavam a morte da vida de modo que aquela perdesse parte de sua selvageria intrínseca. Essa atitude perante a morte, para a qual é a “morte ao mesmo tempo familiar e próxima”, e não evoca “grande medo ou admiração”, é posta em marcado contraste em relação à moderna, “na qual a morte é tão assustadora que nem mesmo ousamos dizer seu nome”. “Por isso chamei-a de ‘morte domada’.” Com isso, ele não quer dizer que a morte tenha sido antes indomada: “quero dizer, antes, que hoje ela se tornou selvagem” (Ariès 1974Ariès, Philippe. 1974. Western attitudes toward death. From the Middle Ages to the present. Baltimore: John Hopkins University Press,, 13-14). Entre outros, Elias (2001)Elias, Norbert. 2001. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar. criticara esse argumento por fazer uma história por cima, vivida por reis e nobres que tinham a rara oportunidade de morrer em seus leitos rodeados por herdeiros, ignorando a verdade menos pacífica da maioria que morria das formas mais indignas. Elias (2001)Elias, Norbert. 2001. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar. também defendera a tese de que a morte se tornara uma questão de inquietude para o homem moderno, mas o atribuía ao seu escamoteamento, à sua desaparição da vida pública, não à sua desdomesticação. Ao contrário, a ciência com sua concepção da morte natural nos libertara da tortura existencial do medo do inferno; a centralização da violência pelos estados-nação contribuíra para uma relativa pacificação social; e a medicina moderna nos poupara de uma enorme gama de doenças e sofrimentos que assolaram a vida humana por milênios. Dito de outra forma, para Elias (2001)Elias, Norbert. 2001. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar., é a modernidade que domesticou a morte.

Apesar de subscrever às críticas feitas à tese de Ariès (1974)Ariès, Philippe. 1974. Western attitudes toward death. From the Middle Ages to the present. Baltimore: John Hopkins University Press,, creio haver um desentendido em parte das interpretações subsequentemente feitas ao conceito de morte domada. O historiador não o aplica para identificar a relação que estabelece entre o moribundo e o fato bruto de sua morte, que, na época por ele descrita, era provavelmente um evento doloroso e, frequentemente, repentino. O que Ariès (1974)Ariès, Philippe. 1974. Western attitudes toward death. From the Middle Ages to the present. Baltimore: John Hopkins University Press, tem em vista é a relação com a presença da morte na vida, isto é: domesticado significa aqui a integração da condição mortal em um universo de sentido, com discursos (imagens) e práticas (cultos) que forneçam aos vivos um saber prático através do qual esses possam amenizar a natureza disruptiva da morte. Por outro lado, se Elias (2001)Elias, Norbert. 2001. A solidão dos moribundos. Rio de Janeiro: Zahar. fala de um processo o qual podemos chamar de domesticação moderna, técnica e científica da morte, o objeto em foco é outro. Aqui, o que se domestica é justamente o evento da morte, o qual é paulatinamente trazido ao alcance da ação humana e que, graças à capacidade tecnológica de antecipação, prevenção e remediação de sua entrada na vida, cede também parte de sua selvageria.

A morte como problema técnico

O anti-aging pretende elevar este processo de domesticação técnica da morte a um projeto existencial. Isto é, domesticar não apenas o evento da morte, mas também o significado de sua presença na vida. Diferentemente da integração simbólica da morte na vida, o que o anti-aging visa é, em um estado ideal, a redução da morte a um problema técnico, o qual só nos conduzirá à aniquilação se não nos utilizarmos dos meios corretos para solucioná-lo. Tal atitude compreende, também, uma relação paradoxalmente religiosa com a tecnologia: o ato de fé de proponentes do anti-aging reside na crença de um futuro benevolente imanentemente inscrito na teleologia do progresso tecnológico. O respaldo à essa crença é fornecido pelo horizonte de possibilidades aberto pela desconstrução biotecnológica da necessidade biológica. À luz desse horizonte de possibilidades, o corpo humano é não apenas redefinido naquilo que é, mas também que pode ser. É essa potência revelada pela biotecnologia que permite conceber a morte como problema técnico: por mais que ainda não tenham acesso aos meios técnicos para resolvê-lo, proponentes do anti-aging já definem a morte enquanto aquilo que ocorre por causa da ausência de tais meios, não porque ela é inevitável.

Em seu recente livro sobre o conceito de “indisponibilidade” (Unverfügbarkeit) como elemento de uma relação ressonante com o mundo, Hartmut Rosa (2018)Rosa, Hartmut. Unverfügbarkeit. 2018. Wien: Residenz Verlag. escreve sobre a morte como fenômeno que, a despeito dos avanços tecnológicos sobre a dominação do mundo material, permanece inalcançável, indisponível ao controle humano. Seu argumento é o de que o envelhecimento e a morte sinalizam o limite para o programa moderno de conquista técnica do mundo. Em uma inversão dessa perspectiva, o programa do anti-aging propõe: não é a morte que indica o limite da tecnologia, mas o limite da tecnologia é o que permite a morte de acontecer. A diferença aqui está na (idealizada) retirada da agência da morte sobre a vida: ela não existe em si mesma, mas apenas como resultado dos limites (atuais) da tecnologia.

A necessidade da constituição orgânica da vida deve ser posta em suspensão: essa a promessa da biotecnologia que energiza o projeto do anti-aging. E é sobre esse pressuposto que a domesticação técnica da morte pode tornar-se uma forma de relação com a mortalidade. Se a exaustão dos sistemas simbólicos deixa um vácuo de significado sobre a mortalidade, o que o anti-aging parece oferecer em troca é a abertura de um campo de ação, e, com ele, um receituário de práticas de automanutenção. Fazendo-o, o anti-aging não apenas tenta preencher uma lacuna existencial deixada pela dessimbolização da morte, mas abre um novo espaço para a escolha e a deliberação humana. Assim como outras tendências que emergem no bojo da biotecnologia, o anti-aging promete liberar a vida humana dos constrangimentos naturais ao mesmo tempo em que promete entregar aos próprios humanos o fardo de fazer da “vida em si mesma” (Rose 2001Rose, Nikolas. 2001. The politics of life itself. Theory, Culture & Society 18 (6): 1-30. https://doi.org/10.1177/02632760122052020.
https://doi.org/10.1177/0263276012205202...
, 17-20) uma questão existencial.

A morte reside em nós

A associação entre morte e envelhecimento é menos óbvia do que parece, ela é já parte de nossa experiência social do morrer mediada pela técnica. Sempre houve anciões, mas a regra em todas as sociedades humanas até pouco tempo atrás era a associação da morte com agentes externos: a guerra, a fome, a doença. A mortalidade infantil costumava ser (e, em muitas partes, ainda costuma), até muito recentemente, o ponto crítico da saúde pública e a expressão epidemiológica das causas dominantes de morte, isto é, das causas de escassez (Imhof 1984Imhof, Arthur. 1984. Von der unsicheren zur sicheren Lebenszeit. Ein folgenschweren Wandel im Verlaufe der Neuzeit. Vierteljahrschrift für Sozial- und Wirtschaftsgeschichte 71 (2):175-198.). As medidas que remediaram essa situação – reformas sanitárias, avanços da tecnologia médica, gestão pública da saúde populacional, vacinação, industrialização e “revolução verde” – são as mesmas que deslocaram aquele ponto crítico do início para o final da vida. A chamada crise demográfica do envelhecimento (Neilson 2006Neilson, Brett. 2006. Anti-ageing cultures, biopolitics and globalization. Cultural Studies Review 12 (2): 149-164. https://doi.org/10.5130/csr.v12i2.2341.
https://doi.org/10.5130/csr.v12i2.2341...
) é um conceito catalisador dessa experiência: mais pessoas vivem por mais tempo e, por isso mesmo, a experiência das formas graduais de sofrimento vinculadas ao envelhecimento é compartilhada por um número inaudito de pessoas. À luz do programa anti-aging, essa experiência é interpretada como expressão de um processo pelo qual o corpo, por um lado, é progressivamente poupado de ameaças externas e, por outro, é percebido como locus no qual os grilhões à realização de uma vida repleta se encontram. Graças à domesticação técnica da morte, essa não se apresenta mais como fenômeno externo que cessa a vida, mas como risco presente no interior da vida. Na ordem de segurança do tecnocosmo biotecnológico, o corpo é o elo frágil a ser vigiado e, com esperança, melhorado.

A concepção do envelhecimento como doença é a forma acabada dessa percepção do corpo como fonte de ameaça. Não por acaso, proponentes do anti-aging insistem tanto na comparação entre doenças infecciosas e envelhecimento: a possível vitória civilizatória sobre a “doença do envelhecimento” seria legítima porque apenas leva adiante o processo que se iniciou com a descoberta das vacinas. A mudança qualitativa que se esconde por detrás dessa suposta continuidade está na própria relação estabelecida com a morte. Na medida em que a morte é alojada em nossos corpos e o envelhecimento se torna seu portador, é de se esperar que as ansiedades a ela vinculadas sejam direcionadas ao interior da vida. Diferentemente da luta contra doenças infecciosas, a luta contra o envelhecimento coloca a própria vida humana sob suspeita de assassínio, de modo que ela deva ser interpelada tecnologicamente em sua inteireza. Essa suspeita é dirigida contra o envelhecimento enquanto doença, que, para o programa anti-aging, não está mais localizado nas enfermidades isoladas da velhice, mas no curso da vida, como ameaça silenciosa. Como escreveram Sinclair e La Plante (2019Sinclair, David e Matthew LaPlante. 2019. Lifespan: why we age and why we don't have to. London: Thorsons., 83)

Não importa como te sentes neste momento de tua vida […] mesmo com uma atitude positiva e um estilo de vida saudável, tens uma doença. E ela se apossará de ti, mais cedo do que tarde, a não ser que faças algo.

Considerações finais

No discurso tanatológico da sociologia, a relação moderna com a morte dá-se sobre uma ambiguidade: capacidade historicamente inaudita de controle e de autonomia em relação a seu evento e vacuidade simbólica em relação à sua integração à vida. O programa anti-aging propõe um salto qualitativo em relação a esse arranjo ao propor que a domesticação técnica da morte possa ser uma forma de integrar a morte à vida, não através de sua simbolização, mas de sua transformação em um problema técnico incrustado no corpo. O que aqui está em jogo é a ruptura com as barreiras materiais herdadas de nossa história evolutiva, a qual favoreceu a continuidade da vida pela via da reprodução, e não da eterna longevidade. A promessa sobre a qual se assenta o anti-aging é a da liberdade em relação ao corpo, à sua anatomia limitante e vulnerabilidade – uma promessa que, por sua vez, não emerge do potencial de perfectibilidade humana, como sonhavam os primeiros humanistas, mas de perfectibilidade biotecnológica, como sonham os transhumanistas. Ao mesmo tempo, à luz dessa promessa, a precariedade da condição humana é trazida à tona, não mais pela sua comparação à forma perfeita dos deuses, mas, como escrevera Günther Anders (2002)Anders, Günther. 2002. Über die prometheische Scham. In Die Antiquiertheit des Menschen. Über die Seele im Zeitalter der zweiten industriellen Revolution, 35-114, vol.1. München: C. H. Beck. há meio século, à vitalidade sempre perfectível dos artefatos técnicos. É essa vergonha prometeica frente ao potencial aberto pelas biotecnologias o que impulsiona a configuração da existência que se avista no horizonte do anti-aging: por um lado, angústia gerada pela percepção do corpo como ameaça à liberdade da vida e, por outro, a esperança de, um dia, ser tão livre como uma máquina.

  • 2
    Muito embora esse pressuposto “antropocêntrico” tenha sido contestado recentemente conforme Kellehear (2007)Kellehear, Allan. 2007. A social history of dying. Cambridge: Cambridge University Press..
  • 3
    Walter, Tony. 2018. Sociology of mortality. Existential or pragmatic? Discover Society, 6 fev. 2018, acessado em 15 dez. 2020, https://discoversociety.org/2018/02/06/viewpoint-sociology-of-mortality-existential-or-pragmatic.
  • 4
    Para uma leitura compreensiva da história e da estrutura dos programas anti-aging, ver Binstock et al. 2006Binstock, Robert, Jennifer Fishman e Eric Juengst. 2006. Boundaries and labels: anti-aging medicine and science. Rejuvenation Research 9 (4): 433-435. https://doi.org/10.1089/rej.2006.9.433.
    https://doi.org/10.1089/rej.2006.9.433...
    ; Fishman et al. 2008Fishman, Jennifer, Robert Binstock e Marcie Lambrix. 2008. Anti-aging science. The emergence, maintenance, and enhancement of a discipline. Journal of Aging Studies 22 (4): 295-303. https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05.010.
    https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05...
    ; Knell e Weber 2009; Post e Binstock 2004Binstock, Robert. 2004. The Search for prolongevity. A contentious pursuit. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock,11-37. New York: Oxford University Press.; Vincent 2009Vincent, John Albert. 2009. Ageing, anti-ageing, and anti-anti-ageing: who are the progressives in the debate on the future of human biological ageing? Medicine Studies 1 (3): 197-208. https://doi.org/10.1007/s12376-009-0016-6.
    https://doi.org/10.1007/s12376-009-0016-...
    ).
  • 5
    Horvath, Steve. 2018. Steve Horvath at undoing aging, 30 de maio 2018, acessado em 15 dez. 2020, https://www.youtube.com/watch?v=uw1J0UqWSjo&t=965s.
  • 6
    Para um panorama da formação teórica e institucional do campo biogerontológico ver Gems 2009Gems, David. 2009. Eine Revolution des Alterns. Die neue Biogerontologie und ihre Implikationen. In Länger leben?, organizado por Sebastian Knell e Marcel Weber. Frankfurt am Main: Suhrkamp.; Vincent 2008Vincent, John. 2008. The cultural construction old age as a biological phenomenon. Science and anti-ageing technologies. Journal of Aging Studies 22 (4): 331–339. https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05.006.
    https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05...
    ; Moreira e Palladino 2008.
  • 7
    Sobre projetos imortalistas no Vale do Silício, ver Friend, Tad. 2017. Silicon Valley's quest to live forever. The New Yorker, 27 mar. 2017, acessado em 15 dez. 2020, https://www.newyorker.com/magazine/2017/04/03/silicon-valleys-quest-to-live-forever; e O’Connell 2017O’Connell, Mark. 2017. To be a machine. Adventures among cyborgs, utopians, hackers, and the futurists solving the modest problem of death. New York: Granta Publications..
  • 8
    Feinerman, Ariel. 2018. The rise of Oisin biotechnologies. Interview with Gary Hudson. U. S. Transhumanist party – Official Website, 2 abr. 2018, acessado em 15 dez. 2020, https://transhumanist-party.org/2018/04/02/feinerman-hudson-interview.

Referências

  • Anders, Günther. 2002. Über die prometheische Scham. In Die Antiquiertheit des Menschen. Über die Seele im Zeitalter der zweiten industriellen Revolution, 35-114, vol.1. München: C. H. Beck.
  • Ariès, Philippe. 1974. Western attitudes toward death. From the Middle Ages to the present Baltimore: John Hopkins University Press,
  • Assmann, Jan. 2000. Der Tod als Thema der Kulturtheorie Frankfurt am Main: Suhrkamp.
  • Becker, Ernest. 2011. The denial of death London: Souvenir.
  • Belt, Henk van den. 2009. Philosophy of biotechnology. In The handbook of philosophy of science Philosophy of technology and engineering sciences, organizado por Anthonie W. M. Meijers, 1301-1340, vol. 9. Amsterdam: North Holland.
  • Berger, Peter. The sacred canopy. Elements of a sociological theory of religion New York: Anchor Books, 1990.
  • Binstock, Robert. 2004. The Search for prolongevity. A contentious pursuit. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock,11-37. New York: Oxford University Press.
  • Binstock, Robert, Jennifer Fishman e Eric Juengst. 2006. Boundaries and labels: anti-aging medicine and science. Rejuvenation Research 9 (4): 433-435. https://doi.org/10.1089/rej.2006.9.433
    » https://doi.org/10.1089/rej.2006.9.433
  • Elias, Norbert. 2001. A solidão dos moribundos Rio de Janeiro: Zahar.
  • Fishman, Jennifer, Robert Binstock e Marcie Lambrix. 2008. Anti-aging science. The emergence, maintenance, and enhancement of a discipline. Journal of Aging Studies 22 (4): 295-303. https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05.010
    » https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05.010
  • Gems, David. 2009. Eine Revolution des Alterns. Die neue Biogerontologie und ihre Implikationen. In Länger leben?, organizado por Sebastian Knell e Marcel Weber. Frankfurt am Main: Suhrkamp.
  • Gilleard, Chris e Paul Higgs. 2016. Gerontology versus geriatrics: different ways of understanding ageing and old age. In The Palgrave handbook of the philosophy of aging, organizado por Geoffrey Scarre. London: Palgrave Macmillan. Kindle.
  • Gorer, Geoffrey. 1955. The pornography of death New York: Doubleday.
  • Grey, Aubrey de. 2004. An engineer's approach to developing real anti-aging medicine. In The fountain of youth. Cultural, scientific, and ethical perspectives on a biomedical goal, organizado por Stephen Post e Robert Binstock, 249- 269. New York: Oxford University Press.
  • Imhof, Arthur. 1984. Von der unsicheren zur sicheren Lebenszeit. Ein folgenschweren Wandel im Verlaufe der Neuzeit. Vierteljahrschrift für Sozial- und Wirtschaftsgeschichte 71 (2):175-198.
  • Katz, Stephen e Barbara L. Marshall. 2004. Is the functional ‘normal’? Aging, sexuality and the bio-marking of successful living. History of the Human Sciences 17 (1): 53-75. https://doi.org/10.1177/0952695104043584
    » https://doi.org/10.1177/0952695104043584
  • Kellehear, Allan. 2007. A social history of dying Cambridge: Cambridge University Press.
  • Kirkwood, Tom. 1999. Time of our lives. The science of human aging New York: Oxford University Press.
  • Knell, Sebastian e Marcel Weber, orgs. 2009. Länger leben? Philosophische und biowissenschaftliche Perspektiven Frankfurt am Maim: Suhrkamp.
  • Lafontaine, Céline. 2010. Die postmortale Gesellschaft Wiesbaden: VS Verlag.
  • Magalhães, João Pedro de, Michael Stevens e Daniel Thornton. 2017. The business of anti-aging science. Trends in Biotechnology 35 (11): 1062–1073. https://doi.org/10.1016/j.tibtech.2017.07.004
    » https://doi.org/10.1016/j.tibtech.2017.07.004
  • Martins, Hermínio. 2012. Hegel, Texas: temas de filosofia e sociologia da técnica. In Experimentum Humanum. Civilização tecnológica e condição humana, 15-34. Belo Horizonte: Fino Traço.
  • Mellor, Philip A. e Chris Shilling. 1993. Modernity, self-identity and the sequestration of death. Sociology 27 (3): 411–431. https://doi.org/10.1177/0038038593027003005
    » https://doi.org/10.1177/0038038593027003005
  • Moreira, Tiago. 2016. De-standardising ageing? Shifting regimes of age measurament. Ageing & Society 36 (7): 1407-1433. https://doi.org/10.1017/S0144686X15000458
    » https://doi.org/10.1017/S0144686X15000458
  • Moreira, Tiago e Paolo Palladino. 2008. Squaring the curve: the anatomo-politics of ageing, life and death. Body & Society 14 (3): 21–47. https://doi.org/10.1177/1357034X08093571
    » https://doi.org/10.1177/1357034X08093571
  • Nassehi, Armin e Georg Weber. 1988. Verdrängung des Todes. Kulturkritische Vorurteil oder Strukturmerkmal moderner Gesellschaften? Systemtheoretische und wissenssoziologische Überlegungen. Soziale Welt 39 (4): 377-396. https://www.jstor.org/stable/i40039387
    » https://www.jstor.org/stable/i40039387
  • Neilson, Brett. 2006. Anti-ageing cultures, biopolitics and globalization. Cultural Studies Review 12 (2): 149-164. https://doi.org/10.5130/csr.v12i2.2341
    » https://doi.org/10.5130/csr.v12i2.2341
  • O’Connell, Mark. 2017. To be a machine. Adventures among cyborgs, utopians, hackers, and the futurists solving the modest problem of death New York: Granta Publications.
  • Post, Stephen e Robert Binstock, orgs. 2004.The Fountain of youth. Cultural, scientific and ethical perspectives on a biomedical goal New York: Oxford University Press.
  • Rosa, Hartmut. Unverfügbarkeit. 2018. Wien: Residenz Verlag.
  • Rose, Nikolas. 2001. The politics of life itself. Theory, Culture & Society 18 (6): 1-30. https://doi.org/10.1177/02632760122052020
    » https://doi.org/10.1177/02632760122052020
  • Sibilia, Paula. 2015. O homem pós-orgânico A alquimia dos corpos e das almas à luz das tecnologias digitais. Rio de Janeiro: Contraponto.
  • Sinclair, David e Matthew LaPlante. 2019. Lifespan: why we age and why we don't have to London: Thorsons.
  • Theunissen, Michael. 1991. Negative Theologie der Zeit Frankfurt am Main: Suhrkamp.
  • Turner, Bryan. 2007. Culture, technologies and bodies: the technological utopia of living forever. The Sociological Review 55: 19-36. https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2007.00690.x
    » https://doi.org/10.1111/j.1467-954X.2007.00690.x
  • Vincent, John. 2008. The cultural construction old age as a biological phenomenon. Science and anti-ageing technologies. Journal of Aging Studies 22 (4): 331–339. https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05.006
    » https://doi.org/10.1016/j.jaging.2008.05.006
  • Vincent, John Albert. 2009. Ageing, anti-ageing, and anti-anti-ageing: who are the progressives in the debate on the future of human biological ageing? Medicine Studies 1 (3): 197-208. https://doi.org/10.1007/s12376-009-0016-6
    » https://doi.org/10.1007/s12376-009-0016-6

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2020
  • Aceito
    01 Dez 2020
  • Publicado
    07 Maio 2021
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Av. Ipiranga, 6681 - Partenon, Cep: 90619-900, Tel: +55 51 3320 3681 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: civitas@pucrs.br