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“Cada qual é o mais distante de si mesmo”* * Tradução de Eder Corbanezi

“Each One is the Most Distant of Himself”

Resumo:

Gostaríamos de questionar a recuperação e inversão da fórmula de Terêncio "eu sou o mais próximo de mim", nos termos de Nietzsche: "Jeder ist sich selbst der Fernste (cada qual é o mais distante de si mesmo), que encontramos no primeiro parágrafo do Prefácio à Genealogia da Moral. Propomos aqui um comentário a este parágrafo que é acompanhado por uma interpretação desta fórmula, com base no contexto em que aparece. Gostaríamos, assim, de questionar o modo como Nietzsche articula essa fórmula com a dificuldade do autoconhecimento, sobre a qual insiste o início da Genealogia. Nietzsche nos diz imediatamente que esse ideal délfico nunca foi alcançado porque a empresa na realidade nunca foi realmente tentada. Será então que o início da Genealogia realmente busca impedir todo autoconhecimento (porque tudo seria possível conhecer, menos a si mesmo), ou não há outra forma mais interessante de ouvir essa fórmula de que estamos mais distantes de nós mesmos? Gostaríamos de mostrar duas coisas a esse respeito: em primeiro lugar, que o autoconhecimento não é proibido aqui por Nietzsche, mas que ele nos convida a pensá-lo de maneira diferente e, em segundo lugar, que a fórmula segundo a qual "cada qual é o mais distante de si mesmo” também pode ser entendida como uma injunção para manter o eu sempre à distância. As duas dimensões estão então ligadas, pois sustentamos que o autoconhecimento no sentido clássico pode e deve ser positivamente substituído em Nietzsche por uma interpretação de si e que essa interpretação nunca deve ser pensada precisamente como um empreendimento voltado para a apreensão de si .de uma vez por todas, o que equivaleria a reificá-lo, tirando-o do devir.

Palavras-chave:
Nietzsche; si mesmo; autoconhecimento; interpretação

Abstract:

In this essay, we would like to question the recovery and inversion of Terence's formula "I am the closest to myself", in Nietzsche's terms: "Jeder ist sich selbst der Fernst (Each one is to himself the farthest)", found in the first paragraph of the Preface to the Genealogy of Morals. Taking into account the context in which it appears, we propose below a commentary of this paragraph alongside an interpretation of this formula. We would like to question the way Nietzsche relates this formula to the difficulty of acquiring self-knowledge, on which the beginning of the Genealogy of Morals insists. Does this sentence according to which "Each one is to himself the farthest" mean that a knowledge of oneself by oneself would be a futile exercise and that others would necessarily know us better than ourselves, such that the detour by otherness would constitute an obligatory passage for self-knowledge? But Nietzsche tells us from the outset that this Delphic ideal has never been achieved because the exercise has never been really attempted in the first place. Is it then that the beginning of the Genealogy of Morals indeed tries to prevent any self-knowledge (because it would be possible to know everything but the self), or, is there not another more interesting way to understand this formula according to which we are the most distant to ourselves? We would like to show two things in this regard: firstly, that Nietzsche does not prohibit self-knowledge here, but invites us to think about it differently; and secondly, that the formula according to which "everyone is the furthest away from himself" can also be understood as an injunction to keep the self always at a distance. The two dimensions are then linked, since we maintain that self-knowledge in the classical sense can and must be positively replaced in Nietzsche by an interpretation of the self, and that this interpretation must never be thought of as an undertaking to grasp the self once and for all, which would amount to reifying it by taking it out of becoming.

Keywords:
Nietzsche; himself; self-knowledge; interpretation

Neste trabalho, gostaríamos de nos interrogar sobre a recuperação e a inversão da fórmula de Terêncio “eu sou o mais próximo de mim mesmo”, nos termos de Nietzsche: “‘Jeder ist sich selbst der Fernste’” (“‘Cada qual é o mais distante de si mesmo’”), que se encontra no primeiro parágrafo do Prefácio de Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998. (GM/GM Prólogo, 1, KSA 5.248)1 1 NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. A partir de agora indicado como PCS. Para a referência a Terêncio, ver a nota 2, à página 46, da tradução de P. Wotling (Nietzsche, La Généalogie de la morale, Le Livre de poche, 2020). . Propomo-nos aqui a realizar um comentário deste parágrafo e uma interpretação desta fórmula, com base no contexto em que ela figura. Desse modo, gostaríamos de examinar a maneira pela qual Nietzsche articula essa fórmula e a dificuldade do conhecimento de si, na qual insiste o início de Genealogia da moral2 2 Segundo Marie-Andrée Ricard (2022, p. 145), “essa sentença sugere também que, para conhecer-se, ou […] para encontrar-se, é preciso percorrer, tateante, um longo caminho ao longo do qual é possível extraviar-se, ou mesmo permanecer nele”. . Essa sentença, segundo a qual “‘cada qual é o mais distante de si mesmo’”, significa assim que um conhecimento de si por si seria um empreendimento fútil e que outro nos conheceria necessariamente melhor que nós mesmos, de modo que o desvio pela alteridade seria uma passagem obrigatória do conhecimento de si?3 3 Essa seria uma maneira interessante de explicar a presença insistente do Nós (Wir, Uns) no texto de Genealogia da moral, em que insistiu Quentin Landenne (2022, pp. 161-175). Mas Nietzsche nos diz logo de partida que esse ideal délfico nunca foi atingido porque, na realidade, o empreendimento nunca foi verdadeiramente tentado. O começo de Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998. buscaria então verdadeiramente evitar todo conhecimento de si (porque seria possível conhecer tudo, salvo a si próprio), ou não haveria outra maneira, mais interessante, de entender essa fórmula segundo a qual nós somos o mais distante de nós mesmos?

Gostaríamos de mostrar duas coisas a esse respeito: primeiro, que o conhecimento de si não é aqui interditado por Nietzsche, mas que ele nos convida a pensá-lo de outro modo, e em seguida que a fórmula segundo a qual “‘cada qual é o mais distante de si mesmo’” também pode ser entendida como uma injunção a manter longe o si mesmo. As duas dimensões se encontram então aliadas, visto que sustentamos que, em Nietzsche, o conhecimento de si no sentido clássico pode e deve ser substituído positivamente por uma interpretação de si e que essa interpretação não deve precisamente ser pensada como um empreendimento que vise a apreender o si mesmo de uma vez por todas, o que equivaleria a reificá-lo, retirando-lhe do devir.

Gostaríamos, enfim, de perseguir uma terceira linha de investigação: evidentemente, é possível primeiramente interrogar-se sobre a presença dessa interrogação sobre o si mesmo no início de um estudo sobre a moral. O que vem fazer esse motivo do conhecimento de si em um texto em que se trata da origem e do valor da moral? Na realidade, esse procedimento é bem clássico, visto que geralmente se estima que só a partir do conhecimento da natureza humana se pode compreender a moral humana. Em Hobbes (2004HOBBES, T. Leviathan.Trad. do latim de François Tricaud. Paris: Vrin, 2004., p. 12), por exemplo, na edição latina do Leviatã, trata-se de partir do conhecimento da natureza humana para estabelecer uma ciência política:

Mas existe outro preceito, mais antigo, graças ao qual, se eles quisessem, poderiam saber ler os outros homens com maior exatidão: trata-se do Conhece-te a ti mesmo. Esse preceito não deve ser compreendido, como pensam alguns, como se ele justificasse tanto a soberba desumana dos poderosos em relação aos homens comuns, quanto a insolência grosseira dos humildes em relação aos poderosos; o que ele nos ensina é que os pensamentos e as paixões dos diversos homens são a tal ponto semelhantes entre si, que todo homem que olhe para o interior de si mesmo e examine o que faz e por que o faz quando pensa, opina, raciocina, espera, teme etc. lerá e compreenderá ao mesmo tempo os pensamentos e as paixões de todos os outros homens, suscitados por causas semelhantes.

De modo geral, os teóricos da moral buscam identificar uma invariante moral na natureza humana. Mas então é porque se essencializam assim a moral e a natureza humana que a investigação sobre uma delas é necessariamente solidária com uma reflexão sobre a outra. Em consequência, compreende-se imediatamente que Nietzsche subverte por completo essa abordagem tradicional. Primeiro, porque, de acordo com ele, não existe natureza humana nem, portanto, moral absoluta, fixa, que deveria valer para todos os homens e para sempre; em seguida, porque, partindo de uma concepção de natureza humana como sendo algo fixo, só se pode falhar na investigação moral propriamente dita e impedir todo procedimento genealógico. Quando se toma o homem como algo permanente, não se considera seriamente a história da moral, já que as mudanças de paradigmas são meramente aparentes e já que existe uma realidade do Bem e do Mal, embora ela não seja necessariamente apreendida. E, inversamente, partir do preconceito de que existe necessariamente uma moral equivale a impedir-se de compreender a variedade dos tipos de homens que se constituíram no curso da história (e da história da moral em particular), já que sempre se procura reconduzi-los à unidade.

É possível então perguntar se aqui Nietzsche interdita verdadeiramente o conhecimento de si ou se, ao contrário, não existe um conhecimento dos homens, um conhecimento dos tipos humanos (assim como dos respectivos valores deles) por meio da história e por meio da moral bem compreendida. Assim, o projeto nietzschiano faz ver que existe um conhecimento subjacente, um conhecimento de si, mas não imediatamente por si, já que se trata de reconhecer os impulsos que trabalham por trás, a exemplo do ressentimento que em dado momento produziu um certo tipo de moral e um certo tipo de homem. Parte-se, portanto, em busca, mas igualmente para trás, de maneira genealógica ou regressiva, retraçando uma história e buscando na profundidade o que o provocou. Trata-se, portanto, de percorrer a região da moral que “realmente houve, que realmente se viveu”, e portanto de “descobrir [entdecken] essa região” (GM/GM Prólogo, 7, KSA 5.254, tradução de PCS). A interrogação a respeito da moral nunca foi suficientemente radical, segundo Nietzsche, porque nunca mergulhou em direção à raiz da moral, mas sempre tomou a moral como um fato e, sobretudo, não se perguntou pelo valor da moral.

Compreende-se assim que existem vários tipos de moral, aos quais correspondem vários tipos de homem, que têm valores diferentes aos olhos do filósofo. De um lado, paradoxalmente, partiu-se erroneamente do fato de que a moral era um dado e do fato de que existia algo como o Bem; de outro lado, jamais se partiu da realidade quando se interrogou a moral, isto é, das morais efetivamente vividas, do texto da realidade que está diante de nós, ousaríamos dizer (ainda que os fenômenos morais sejam sempre más interpretações4 4 A moral é apenas uma interpretação de certos fenômenos, uma interpretação errônea, para dizer de modo mais preciso (GD/CI, Os “melhoradores” da humanidade 1, KSA 6.98, tradução de PCS). , e é preciso reencontrar o jogo das pulsões em operação atrás do que se denomina erroneamente “fatos morais”).

Nietzsche diz que vai fazer a “efetiva história da moral” (GM/GM Prólogo, 7, KSA 5.254, tradução de PCS), de modo que esse procedimento pode lembrar o empreendimento realizado na segunda de suas Considerações extemporâneas, a qual não nos fala tanto de história, já que se trata precisamente de tematizar o esquecimento, mas diz que certos homens são suficientemente fortes para não serem esmagados por tal conhecimento histórico. É a nossa “força plástica [Die plastische Kraft]” que determina a soma de história que somos capazes de acolher sem sermos por ela esmagados (HL/Co. Ext. II 1 e 4, KSA 1.248-257, 271-278). Esse motivo, aliás, será encontrado na Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998., em que Nietzsche escreve que “há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento” (GM/GM I, 10, KSA 5.273, tradução de PCS). No entanto, a axiologia se dá em sentido inverso, uma vez que, se a história dos grandes homens pode parecer demasiadamente monumental a alguns que se sentirão esmagados pelos modelos que ela nos coloca diante dos olhos, trata-se, na Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998., de considerar as pulsões subjacentes de tal modo que a história da moral que escreve Nietzsche, longe de esmagar-nos apresentando retratos de grandes homens, é feita para nos abrir os olhos quanto à moral e, portanto, quanto a nós mesmos.

A aproximação desses dois textos, muito espaçados no curso da escrita nietzschiana, parece-nos pertinente na medida em que essa Consideração extemporânea destinada à história mede, ao mesmo tempo, a utilidade e o perigo do conhecimento dos homens por meio dela, ao passo que a Genealogia começa, parece, por uma crítica do conhecimento de si, que, todavia, pode-se compreender como uma valorização implícita de outro tipo de conhecimento que seja mais eficaz tanto sobre si quanto sobre a moral que nos damos. Na Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998., ter-se-á compreendido, não se trata de pensar um conhecimento do homem, mas um conhecimento dos homens, de certos tipos de homem5 5 Nietzsche escrevia já em Humano, demasiado humano que doravante o conhecimento de si deve ser historicizado. Leia-se em particular o parágrafo 223 de Opiniões e sentenças diversas, em que Nietzsche escreve: “A direta observação de si próprio não basta para se conhecer: necessitamos da história, pois o passado continua a fluir em mil ondas dentro de nós; e nós mesmos não somos senão o que a cada instante percebemos desse fluir” (VM/OS 223, KSA 2.477, tradução de PCS). , e em particular do tipo humano que é o homem europeu que lhe é contemporâneo, que Nietzsche convoca, aliás, a ultrapassar. Mas principalmente, e esta é a nossa segunda linha de investigação, a mais importante, na realidade: veremos que essa fórmula nietzschiana - “‘cada qual é o mais distante de si mesmo’” - não interdita todo conhecimento de si, e assim nós lhe daremos uma dimensão tanto prática quanto teórica.

Retornemos ao primeiro parágrafo do Prefácio, que trata do conhecimento de si. Por que nós, enquanto homens de conhecimento, temos tanta dificuldade para nos conhecer a nós mesmos?

Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos - e não sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos [fänden]? Com razão alguém disse: “onde estiver teu tesouro, estará também teu coração”. Nosso tesouro está onde estão as colmeias do nosso conhecimento. Estamos sempre a caminho delas, sendo por natureza criaturas aladas e coletoras do mel do espírito, tendo no coração apenas um propósito - levar algo “para casa” [heimzubringen]. (GM/GM Prólogo, 1, KSA 5.247, tradução de PCS)

Para dizer tudo claramente, esse é um texto que achamos de difícil apreensão. Poderíamos interpretá-lo em uma perspectiva similar à que propõe Levinas em Totalité et infiniLEVINAS, E. Totalité et infini. Paris: Le livre de Poche, 1971., segundo a qual a metafísica clássica ocidental se desencaminhou em relação ao que seria o conhecimento, relacionando sempre o outro ao mesmo. Desde Platão, segundo a leitura de Levinas, conhecemos as coisas reduzindo-as ao idêntico, às Ideias, por exemplo (no que tange aos Diálogos), cujo conhecimento sempre já está em si (ainda que de modo latente), o que faz com que o movimento do conhecimento deva ser compreendido como o retorno de Ulisses a Ítaca6 6 Na realidade, a imagem é de Plotino (2002, Traité 1, Sur le beau, § 8). . Assim, Levinas tenta pensar a contrario um tipo de conhecimento que não reduza o outro ao mesmo, que conserve a heterogeneidade dos pontos de vista, uma relação sem relação que ele chama de “religião”7 7 Cf. Levinas, 1971, Section I, A, § 2. . Poderíamos assim ler o primeiro parágrafo do Prefácio de Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998. primeiramente nessa ótica, com a ideia de que o erro dos homens de conhecimento consistia em querer sempre relacionar algo e, portanto, em querer retornar a eles (tema que, obviamente, está presente também na obra de Nietzsche). Não queremos dizer que essa dimensão está totalmente ausente do texto da Genealogia, mas pensamos que aqui a perspectiva do filósofo alemão é mais complicada e que o diagnóstico de tal homem do conhecimento é de fato mais sutil, como tentaremos mostrar a seguir.

Mas comecemos por ver a dimensão crítica dessa passagem e aquilo por que as perspectivas de Nietzsche e de Levinas podem efetivamente ser aproximadas: nós, homens do conhecimento, queremos que esse conhecimento seja proveitoso, que a pesquisa seja frutuosa. Queremos produzir algo. Ora, essa operação de conversão em que consiste o conhecimento de si “nada leva” no sentido de que, ainda que ele seja bem sucedido, far-nos-á conhecer algo que já está aí, aparentemente sempre ao nosso alcance. Procurar conhecer-se a si mesmo não traria nada, razão pela qual ao nosso ideal de conhecimento repugnaria dirigir-se a si mesmo. Todavia, é preciso compreender bem o que está em jogo aqui, e, a nosso ver, é o vínculo entre a questão do conhecimento de si e da moral: desviamo-nos desse conhecimento precisamente porque acreditamos tratar aqui de algo fixo, de um dado, como se estivéssemos diante do pretendido fato moral. Porém, se o si mesmo é um dado, se há um si mesmo fixado para sempre, o homem de conhecimento, verdadeiramente interessado pela pesquisa, dele se desvia naturalmente, já que quer levar algo.

Em nosso entender, na realidade, Nietzsche não é crítico aqui em relação à atitude de um tal pesquisador que se desvia de si próprio precisamente porque pesquisa. Alhures, o filósofo sempre valoriza a experimentação em termos de conhecimento. Simplesmente, ele nota aqui um erro: esse desvio é precisamente a consequência de uma má compreensão do que é o si mesmo. Em resumo, quando interroga a si próprio, o homem de conhecimento da Genealogia tem a impressão de perder seu tempo e esse conhecimento, fosse ele possível, teria pouco valor para ele. Mas é preciso ver também que, para Nietzsche, o si mesmo concebido de maneira atômica é uma ilusão. Assim, se dessa forma não se procura o si mesmo, mas apenas um interior, essa pesquisa é efetivamente vã8 8 A expressão de interior para significar o si mesmo figurava, todavia, na terceira das Considerações extemporâneas: “Não há na natureza nenhuma criatura mais desolada e repugnante do que o homem que, após se afastar de seu gênio, espreita à direita e à esquerda, adiante e a toda parte. Por fim, não se pode mais atacar de modo algum tal homem, pois ele é todo superfície sem interior [Aussenseite ohne Kern], uma roupagem decomposta, tingida, bufante, um espectro emendado, que já não pode despertar medo e menos ainda compaixão” (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.338, tradução de Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan, a partir de agora indicados respectivamente como GR e TT). Na realidade, essa expressão vem-lhe diretamente de Schopenhauer, mas, em nossa tese, buscamos mostrar que Nietzsche desloca a unidade do si mesmo concebida de modo metafísico pelo autor do Mundo em direção a uma unidade plástica e psicológica (QUÉRINI, 2020). .

Mas, na Genealogia, não se trata de partir de um si mesmo dado, mas sim de pensar um conhecimento de si a partir de experiências que se fazem sobre si mesmo. Aliás, é só sob essa condição que Nietzsche admite verdadeiro conhecimento: não compreendemos uma coisa enquanto não a experimentamos nós próprios (MA II/HH II Prólogo, 1, KSA 2.369-371)9 9 À imagem da grandeza dos grandes homens de que trata a segunda das Considerações extemporâneas, visto que é preciso ter certa grandeza em si mesmo para dela perceber algo. . O conhecimento de si é então conhecimento da vida, e mesmo da vida tal como a vivemos e experimentamos. É assim que prossegue o primeiro parágrafo da Genealogia:

Quanto ao mais da vida, as chamadas “vivências” [Erlebnisse], qual de nós pode levá-las a sério? Ou ter tempo para elas? Nas experiências recentes, receio, estamos sempre “ausentes”: nelas não temos nosso coração - para elas não temos ouvidos. Antes, como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, do nosso ser - ah! e contamos errado… (GM/GM Prólogo, 1, KSA 5.247, tradução de PCS)

Por que contamos errado? Precisamente porque contamos de modo inverso: sempre partimos de uma ideia de um si mesmo à qual reconduzimos todas as nossas experiências, e particularmente no tocante ao conhecimento da moral (pois é disso que se trata) partimos do conhecimento de si mesmo como se se tratasse do ponto de partida natural e necessário da coisa. Mas a sequência vai mostrar justamente que a moral não encontra sua verdade em uma natureza humana, que ela não tem origem nesse sentido. Em sua obra intitulada Nietzsche, la généalogie, l’histoire, Foucault, como bom leitor da primeira dissertação da Genealogia da moral nietzschiana, explica que fazer a genealogia de uma ideia é conjurar sua origem10 10 Segundo Foucault (1971, p. 150), é preciso “conjurar a quimera da origem”. . Enquanto se imagina que as ideias eram no início estáveis e puras, ao modo de uma Ideia platônica, a genealogia deve mostrar que a noção está sempre situada e ancorada em uma história.

Em resumo, a moral não poderia encontrar seu ponto de ancoragem em um si mesmo, assim como as experiências não poderiam ser compreendidas quando reportadas a um si mesmo, uma vez que, pelo contrário, são elas que nos constituem. Todo o paradoxo da escrita nietzschiana nessa obra consiste em começar por colocar essa questão do conhecimento de si, quando se trata de mostrar que isso não pode constituir o ponto de partida legítimo de uma investigação sobre a moral. Mas é o jogo: quando se espera ver começar a investigação sobre a moral por uma investigação sobre o homem, Nietzsche tematiza o inverso: talvez seja necessário partir da moral tal como ela é vivida para chegar, se possível, a conhecer algo do homem, ou melhor, dos homens que são habitados por essa moral.

Enfim, na Genealogia da moralNIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998., esse conhecimento de si pode e deve ser concebido como um conhecimento do ser humano, não do homem em si, pesquisa vã, mas do que ele se tornou, quer dizer, dos tipos de seres humanos com os quais nos deparamos, e, na perspectiva nietzschiana aqui, do tipo humano cristão europeu que somos. Para tanto, o psicólogo deverá buscar alhures: “O psicólogo tem de afastar a vista de si para enxergar” (GD/CI, Máximas e flechas 35, KSA 6.65, tradução de PCS). Paradoxalmente, se pertencemos a tal tipo de homem, seremos capazes de nos conhecer, se dirigirmos o olhar a outra coisa que nós mesmos e tomarmos distância de nós mesmos.

Nietzsche conclui assim esse primeiro parágrafo da Genealogia sobre a quase impossibilidade de se conhecer a si mesmo, pelo menos para nós, homens do conhecimento, “Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos [Wir bleiben uns eben nothwendig fremd], não nos compreendemos [wir verstehn uns nicht], temos que nos mal-entender [wir müssen uns verwechseln], a nós se aplicará para sempre a frase: ‘Cada qual é o mais distante de si mesmo’ - para nós mesmos somos ‘homens do desconhecimento’ [für uns sind wir keine ‘Erkennenden’]” (GM/GM Prólogo, 1, KSA 5.247-248, tradução de PCS).

De novo, não se deve partir de um dado que estaria aí de modo evidente. No parágrafo 186 de Para além de bem e mal, Nietzsche levanta o problema de todos que quiseram fazer uma ciência da moral e que partiram de tal dado11 11 Nesse texto, Nietzsche também escreve que os moralistas possuíam apenas um conhecimento grosseiro dos “facta” morais porque não investigaram a moral na qualidade de historiadores, com exceção, talvez, dos famosos psicólogos ingleses, mencionados na Genealogia da moral, os quais começaram semelhante empresa, mas não souberam realizá-la com suficiente radicalidade, uma vez que não colocaram a questão do valor dos valores, do valor da moral (a esse respeito, ver igualmente o parágrafo 345 de A gaia ciência, que considera a moral como problema). . Quando se parte do fato de que existem julgamentos morais fundamentados ou do fato de que o si mesmo existe, o empreendimento filosófico não é radical o suficiente… Se jamais nos procuramos verdadeiramente, é porque, segundo Nietzsche, na história dos homens jamais procuramos conhecer os homens, mas sempre colocamos uma essência metafísica. De certo modo, é contra isso que se dirigia igualmente a segunda das Considerações extemporâneas. Se lemos a história de modo hegeliano, não a lemos por ela mesma, mas à luz da finalidade que lhe dá um sentido, e Nietzsche rejeita portanto toda abordagem teleológica da história. A expressão da extemporaneidade é preciosa aqui, pois ela diz igualmente que apenas se nos distanciamos de nossa cultura é que podemos compreendê-la e determinar-lhe o valor; é preciso, portanto, afastar-se de si mesmo, no sentido em que foi necessário a Nietzsche afastar-se da cultura do homem alemão do século XIX para poder conhecê-lo e estimar-lhe o valor. Assim, a extemporaneidade consiste em criar um pathos da distância em relação a si mesmo, como na expressão “‘Cada qual é o mais distante de si mesmo’”, para que tal conhecimento seja possível e para que possamos nos aparecer.

Na realidade, portanto, há duas maneiras de compreender essa passagem da Genealogia citada: em primeiro lugar, do ponto de vista da possibilidade mesma do conhecimento de si que é colocado em questão, ao menos para nós, homens de conhecimento (o que equivale a dizer ao mesmo tempo que há, talvez, um conhecimento de si possível por outro meio), e, portanto, em segundo lugar, pode-se ler igualmente esse texto como um convite para tomar esse si mesmo como algo absolutamente distante: “temos que nos mal-entender”. Aqui, é imperativo enganar-se acerca de si mesmo, evitar fixar o si mesmo, o que lembra o parágrafo 281 de Para além de bem e mal, em que Nietzsche diz que jamais procurou ele mesmo. De certo modo, o erro da expressão “‘o que foi que vivemos?’” ou do fato de contar “depois” consiste em sempre buscar ter uma relação elucidada consigo mesmo ou uma relação de elucidação de si mesmo, e sobretudo do si mesmo que se foi. Compreende-se então que esse empreendimento não dinamize. O si mesmo não é fixo, o si mesmo não é um objeto de conhecimento imediato, mas sim o que há de mais longínquo. Assim, vemos desenhar-se aqui algo positivo, como o si mesmo ideal de que já nos falavam as Extemporâneas, um si mesmo projetado diante de si, e portanto que é preciso buscar para além de si12 12 Notadamente a terceira: “pois a sua verdadeira essência não se encontra profundamente escondida em você [denn dein wahres Wesen liegt nicht tief verborgen in dir], mas imensuravelmente acima de você [unermesslich hoch über dir], ou ao menos acima do que você ordinariamente toma por seu eu [was du gewöhnlich als dein Ich nimmst]” (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.340-341, tradução de GR e TT). . Desse ponto de vista, compreende-se que o conhecimento de si que deve ser compreendido como interpretação possa desempenhar um papel totalmente positivo.

É, portanto, sobretudo contra a ideia de um conhecimento imediato que se pronuncia o “Prólogo” da Genealogia. É necessário precisamente partir em busca de si e não renunciar a essa experiência, pois a essa busca se junta um princípio ativo: é necessário trabalhar para se tornar si mesmo, conforme a sentença de Píndaro que nos convida a tomar consciência do que nos tornamos13 13 Cf. Píndaro, 1951, II, p. 131. Voltaremos ao assunto no final do artigo. . Portanto, isso implica não crer que se está presente a si mesmo, a um si mesmo facilmente conhecível. Com efeito, conforme escreve Nietzsche já na terceira e na quarta Considerações extemporâneas, há um si mesmo que está para além de si, que é como um ponto de mira. Esse si mesmo, portanto, é mais uma visada que deve orientar nosso tornar-se do que algo que estaria em nós e que precisaríamos simplesmente redescobrir. Se “‘cada qual é o mais distante de si mesmo’”, é portanto também porque é necessário afastar-se de si para se conhecer, desviar-se de um conhecimento imediato, o que se pode ler também em um texto de A gaia ciência:

Conheço o espírito de muitos homens (Ich kenne mancher Menschen Sinn)
Mas não sei quem sou eu mesmo! (Und weiss nicht, wer ich selber bin)
Meu olhar é demasiado próximo de mim - (Meine Auge ist mir viel zu nah)
Não sou o que vejo e o que vi. (Ich ben nicht, was ich seh und sah)
Eu seria de maior proveito para mim (Ich wollte mir schon besser nützen)
Se de mim pudesse estar mais longe. (Könnt’ ich mir selber ferner sitzen)
Não tão distante quanto meu inimigo, claro! (Zwar nicht so ferne wie mein Feind)
Já o amigo mais próximo está longe demais - (Zu fern sitzt schon der nächste Freund)
Mas entre nós dois há o meio do caminho! (Doch zwischen dem und mir die Mitte)
Adivinham vocês o meu pedido? (Errathet ihr, um was ich bitte) (FW/GC “Brincadeira, astúcia e vingança”. Prelúdio em rimas alemãs, 25 (KSA 3.358, tradução de PCS).

Paradoxo várias vezes mencionado por Nietzsche, segundo o qual ele é um grande conhecedor de homens, sem, contudo, conhecer-se a si mesmo. O olho aqui evocado simboliza um conhecimento objetivo e imediato, pois se vincula a um si mesmo que se teria diretamente sob os olhos, enquanto tal conhecimento de si seria interessante apenas no caso em que se pudesse afastar-se de si mesmo. Reencontra-se aqui uma perspectiva similar à do parágrafo 15 da primeira parte de A gaia ciência, no qual Nietzsche nos diz que a proximidade com o objeto de conhecimento imediato, com o objeto visto de muito perto, engendra a decepção:

De longe. - Esse monte faz encantadora e significativa a paisagem que domina: após haver dito isso muitas vezes para nós mesmos, somos de tal forma insensatos e agradecidos para com ele, que acreditamos que, proporcionando esse encanto, ele deve ser a coisa mais encantadora da paisagem - e assim o escalamos e nos decepcionamos. De repente ele próprio, e toda a região em torno e abaixo de nós, é como que desencantado; esquecêramos que algumas grandezas, como algumas bondades, pedem para ser vistas a uma certa distância [eine gewisse Distanz], e de baixo, não de cima - apenas assim têm efeito. Talvez você saiba de pessoas, à sua volta, que devem olhar para si mesmas apenas de alguma distância [Ferne], a fim de se achar suportáveis, ou atraentes e animadoras. O autoconhecimento não lhes é aconselhável [die Selbsterkenntnis ist ihnen zu widerrathen]. (FW/GC 15, KSA 3.388, tradução de PCS).

A montanha que nos parecia tão bela, tão majestosa porque quase impossível de captar de baixo, parece finalmente bem modesta do alto (questão de perspectiva aqui). Quando escalamos a montanha e chegamos ao topo, quando subimos a rampa que nos leva em direção a nós mesmos, decepcionamo-nos. A transparência em relação a si mesmo pode então ser desaconselhada, na medida em que ela nos enfraquece. Notar-se-á imediatamente, todavia, que não é a todo e qualquer homem que Nietzsche desaconselha o conhecimento de si. Mas aqui nos deparamos com esse si mesmo ideal de que nos fala Nietzsche desde as Extemporâneas? Esse si mesmo é verdadeiramente atingível? Aqui, o erro não seria crer que podemos atingi-lo absolutamente? Se há um efeito, uma atração, um afeto que seduz e tonifica, que pode provocar o si mesmo, o desejo de ser si próprio, isso só ocorre na medida em que ele permanece a distância, na medida em que o si mesmo está irremediavelmente distante de si, mesmo se ele pode ser atingido muito pontualmente. Encontra-se expressa essa ideia em Humano, demasiado humano com essa expressão de um si mesmo superior:

Relações com o eu superior [höheren Selbst]. - Cada pessoa tem o seu dia bom, em que descobre o seu eu superior [sein höheres Selbst findet]; e a verdadeira humanidade exige que alguém seja avaliado conforme esse estado, e não conforme seus “dias de semana” de cativeiro e sujeição. Deve-se, por exemplo, julgar e reverenciar um pintor segundo a visão mais elevada que ele pôde ver e representar. Mas os próprios indivíduos se relacionam de modo muito variado com esse eu superior, e com frequência são atores [Schauspieler] de si mesmos, na medida em que depois repetem continuamente o que são nesses momentos. Muitos vivem no temor e na humildade frente a seu ideal, e bem gostariam de negá-lo: temem o seu eu superior [sie fürchten ihr höheres Selbst)], porque este, quando fala, fala de modo exigente. Além disso, ele possui uma espectral liberdade de aparecer ou de permanecer ausente: por isso é frequentemente chamado de dom dos deuses, quando tudo o mais, na realidade, é dom dos deuses (do acaso): ele, porém, é a própria pessoa. (MA I/HH I 624, KSA 2.351-352, tradução de PCS).

Nietzsche fala de “verdadeira humanidade”, expressão que parece estranha sob sua pluma. Mas, se não queremos ser tomados pela aversão ao que é humano, demasiado humano, é preciso ser caridoso com os homens e apreciá-los em função de seu si mesmo ideal. Todavia, essa perspectiva é de certo modo imediatamente corrigida, porque iremos apreciá-los sobretudo em função da relação que eles têm com seu si mesmo ideal, o que equivale a assinalar que todo homem que se torna ator de seu próprio ideal leva uma existência fracassada, ao menos com respeito ao que ele poderia ser. Aqui, Nietzsche escreve que esses atores “temem o seu eu superior, porque este, quando fala, fala de modo exigente”, o que lembra a terceira das Considerações extemporâneas, em que Nietzsche escrevia que “o homem que não quiser pertencer à massa precisa apenas deixar de ser condescendente consigo mesmo” (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.338, tradução de GR e TTNIETZSCHE, F. Schopenhauer como educador: considerações extemporâneas. Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Mundaréu, 2018.). O temor ou o medo em relação a esse eu superior vem do fato do afastamento entre o que ele representa e o que ele é; medo desse si mesmo que nos convida e até nos impele a ter uma certa exigência em relação a si mesmo14 14 Evidentemente aqui não se trata de uma superioridade moral, uma vez que Nietzsche dedica uma seção inteira de Crepúsculo dos ídolos aos “‘melhoradores’ da humanidade” (KSA 6.98-102). . Mas em caso algum é o si mesmo ideal que é objeto de aversão, aquele si mesmo que é projetado diante de si em uma lógica positiva de afirmação de si e que orienta o tornar-se si mesmo. Pelo contrário, é quando nos tornamos atores de nosso próprio ideal que não somos nós mesmos, que o que somos, nós mesmos, nos decepciona (Wagner terá se tornado o ator de seu próprio ideal e, assim, terá decepcionado Nietzsche, tornando necessária a ruptura da amizade deles). Lembremos igualmente que, na terceira de suas Considerações extemporâneas, o que Nietzsche despreza é a preguiça dos homens, a preguiça que os impede de tornarem-se o que são. O objeto de desprezo é sempre o si mesmo “imediato”, desprezado à luz de um si mesmo superior.

Eis o remédio, se o conhecimento de si nos provoca aversão a nós mesmos: em hipótese alguma aceitar o conhecimento de si como algo que para, que fixa, mas sempre projetar o si mesmo para além de si mesmo, como interpretação que dinamiza. No texto de A gaia ciência citado mais acima, o si mesmo é suportável apenas porque não é conhecido; o desprezo de si mesmo advém quando nos vemos de modo lúcido. Aqui, o conhecimento de si acaba com a vida. Já no parágrafo 7 de O nascimento da tragédia escrevia Nietzsche: “O conhecimento mata a atuação, para atuar é preciso estar velado pela ilusão” (GT/NT 7, KSA 1.57, tradução de J. Guinsburg)15 15 Evidentemente, esse é um tema onipresente na segunda das Considerações extemporâneas. . O parágrafo 15 de A gaia ciência terminava dizendo que é preciso desaconselhar o conhecimento de si. Compreende-se que o parágrafo 335 faça do conhecimento de si “quase uma maldade”, parágrafo, aliás, em que se encontra pela primeira vez enunciada a fórmula que nos interessa, segundo a qual “‘Cada qual é o mais distante de si mesmo’”:

Quantas pessoas sabem se observar [beobachten]? E, entre as poucas que sabem - quantas observam a si mesmas [beobachten sich selber]? “Cada qual é o mais distante de si mesmo” [Jeder ist sich selber der Fernste] - é o que sabe todo escrutador das entranhas, para seu próprio desgosto; e as palavras “Conhece a ti mesmo [erkenne dich selbst]!” são, na boca de um deus e dirigida aos homens, quase uma maldade [beinahe eine Bosheit]. (FW/GC 335, KSA 3.569, tradução de PCS).

Por certo, conhecer objetivamente a si mesmo, compreender seus defeitos e seus erros, provoca aversão. Além disso, o parágrafo 335 de A gaia ciência insiste no fato de que até agora acreditamos nos reconhecer nos ideais que, entretanto, são-nos exteriores e formados por outros, e que constituem então um obstáculo ao nosso tornar-nos nós mesmos. Mas o ponto importante está no “quase” (beinahe), uma vez que, se entrevirmos mediante esse conhecimento o que podemos nos tornar, há lugar, em Nietzsche, também para um conhecimento de si concebido como uma atividade dinamizadora que nos orienta imediatamente em direção a um tornar-nos nós mesmos. Esse conhecimento deve conservar então uma dimensão fluida, porque ele não quer tornar-se um conhecimento objetivo, mas um conhecimento em que se ligam o si mesmo atual e os limites do si mesmo, o horizonte desse si mesmo que é possível tornar-se. Trata-se então mais de interpretar a si mesmo do que de conhecer-se em sentido estrito. Se há igualmente na segunda das Considerações extemporâneas um possível uso positivo do passado enquanto um conhecimento de si bem compreendido que nos permite transformá-lo em novas formas, há todavia uma necessidade de ignorar seus limites para poder ultrapassá-los, enquanto o conhecimento de si compreendido em um sentido pobre consiste em reconhecer seus limites como intransponíveis e nos convida a respeitar tais limites. Para ultrapassar-se a si mesmo, então, é preciso certo desconhecimento de si no sentido de uma ignorância de seus limites. Mais tarde, Nietzsche dirá que não se deve sequer suspeitar quem se é para estar em condições de ir o mais longe possível e tornar-se o que se é (EH/EH, Por que sou tão inteligente 9, KSA 6.293-295, tradução de PCS). Se conhecemos bem nossa medida, então paramos aí, necessariamente.

De modo similar, na Genealogia da moral, o conhecimento lúcido da moral, de seu começo, pode provocar aversão a muitos homens e levá-los ao ceticismo e, depois, ao niilismo (quando percebemos que a moral não é tão moral, que ela não é pura e que há nela algo de patológico), mas pode, ao contrário, em função de nossa força, incitar-nos a ultrapassá-la. Todavia, é preciso reconhecer que, se soubermos que nossa moral tem origem pulsional e que por vezes o que tomamos por nossa justiça nada mais é do que um efeito de ressentimento, esse conhecimento pode provocar aversão. Mas também aqui o erro vem do fato de fixar o si mesmo. Não se trata apenas de aceitar que o si mesmo seja de si mesmo o mais distante, é preciso também tomá-lo por algo distante, segundo a interpretação que damos a esse motivo.

Queremos enfim lembrar que o parágrafo 32 de Para além de bem e mal faz do conhecimento de si o motivo que fez a humanidade entrar na era da moral. Já se tratava de dizer que a moral tinha um começo, que houve uma humanidade pré-moral, mais animal, que não refletia sobre si mesma. Ora, é essa reflexão que, no final das contas, produz a ficção da vontade livre e que permite que se faça da moral outra coisa que uma ilusão (o que ela é, contudo). Mas, se o conhecimento de si produziu a moral, ele pode igualmente servir de aguilhão e permitir que ultrapassemos essa moral. Tratar-se-á então de conhecer o homem para ultrapassá-lo e fazer advir o além-do-homem. Nietzsche pensa assim numa superação da moral por ela mesma e fala, em uma formula de aspecto hegeliano, de autossuperação da moral, mas isso não significa que a era moral esteja ao ponto de se superar por si só, habitada que ela seria por contradição. É preciso buscar sua superação e, desse ponto de vida, buscar o além-do-homem, um tipo de existência para além do bem e do mal.

A nosso ver, a perspectiva da Genealogia da moral pode ser traduzida da seguinte maneira: conhecer o tipo de homem que produziu a moral cristã do ressentimento para poder em seguida pensar e produzir a partir de sua superação em direção a um tipo superior, para além de bem e mal. Desse ponto de vista, a Genealogia não é unicamente a pesquisa dos começos das morais, uma vez que ela permite, a partir daí, uma projeção em direção à superação de uma moral reativa e perigosa para a vida, de modo que ela chama, implicitamente, outro tipo de moral. Certamente, portanto, a moral da época provoca aversão em Nietzsche (a quinta seção de Para além de bem e mal menciona a moral de escravos que nos enfraquece), mas ela também pode nos permitir a superação do homem, mediante a superação dessa moral e a produção de uma moral ou de uma ética que não faça a economia de si mesmo.

Assim, a moral é “algo a ser superado”, injunção paradoxal, pois é um dever superar a moral. Nietzsche conclui o parágrafo 32 de Para além de bem e mal escrevendo: “A superação da moral, num certo sentido até mesmo a autossuperação da moral, inclusive: este poderia ser o nome para o longo e secreto lavor que ficou reservado para as mais finas e honestas, e também mais maliciosas consciências de hoje, na condição de ardentes pedras de toque da alma. -” (JGB/BM 32, KSA 5.51, tradução de PCS). De partida, notemos que aqui se encontra o motivo da maldade associado ao conhecimento de si, no sentido de que as consciências mais finas e probas podem parecer “maldosas”, considerando o que elas revelam. Aqui, Nietzsche assume um ponto de vista específico (sem, todavia, absolutizar uma essência humana invariável): pode-se conhecer o homem tal como ele é no presente, na moral que o determina, e esse conhecimento nos permitirá superar tal homem. Isso significa que o homem evidentemente não tem uma natureza essencial, mas que a “natureza” humana está inscrita em um devir. É possível pensar uma história humana, substituir o homem no devir, uma vez que “o homem é o animal ainda não determinado” (JGB/BM 62, KSA 5.81, tradução de PCS). E não é óbvio que esse animal que é o homem se fixe um dia16 16 “Nietzsche recorre ao prefixo über para designar uma elevação de grau no interior de uma hierarquia e mesmo a passagem ao grau supremo desta hierarquia. É esse movimento que evoca o conceito de Übermensch, que diz respeito à hierarquia de valores, isto é, à classificação dos tipos humanos selecionados pelos diferentes tipos de culturas. O além-do-homem não designa, portanto, um absoluto; pelo contrário, o prefixo über indica que não se trata nem mesmo de pensar um conflito entre o Übermensch e a humanidade em seu conjunto, mas sim de opor um tipo a outro no interior de uma única e mesma hierarquia. Por isso Nietzsche realça a relatividade do conceito de além-do-homem” (Wotling, 1995, pp. 337-338). .

Contudo, o fato de que o homem esteja em devir não impede um certo conhecimento do homem em uma certa época dada, desde que se trata de um conhecimento de psicólogo, o que nos convida a pensar igualmente um conhecimento de si do tipo ideal, ainda que esse conhecimento seja particularmente difícil, segundo o parágrafo 354 de A gaia ciência. Nietzsche escreve no parágrafo 6 de Para além de bem e mal: “No filósofo, pelo contrário, absolutamente nada é impessoal; e particularmente a sua moral dá um decidido e decisivo testemunho de quem ele é” (JGB/BM 6, KSA 5.20, tradução de PCS). Aqui também é a moral de um indivíduo que nos permite compreendê-lo, mas justamente no que ela tem de pessoal. Trata-se de compreender os valores que um indivíduo escolhe para si. Podem-se interpretar de modo afirmativo os fenômenos, de tal modo que esses valores não contradigam nem reduzam o eu, mas antes lhe confiram força. E é justamente a interpretação que um indivíduo faz dos fenômenos que nos permite compreendê-lo. A superação da moral, tal como orquestrada por Zaratustra, que quer constituir uma ética da afirmação para os homens futuros, ou antes para o além-do-homem por ele esperado, é portanto uma forma de superação da moral por ela mesma, o próprio Zaratustra estando na origem dessa moral.

Enfim, pensamos que se deve pensar também ao nível individual essa superação, que é ao mesmo tempo uma negação do conhecimento de si como período moral da humanidade, uma vez que essa superação equivale à recusa de compreender o homem de modo fixo. Assim, no parágrafo 80 de Para além de bem e mal, Nietzsche escreve que “uma coisa que se esclarece deixa de nos interessar” (JGB/BM 80, KSA 5.88, tradução de PCS). Um tanto paradoxalmente, o conhecimento de si nos convidaria a desinteressar-nos de nós mesmos, a esquecermos de nós mesmos, e desembocaria assim em um imperativo contrário. Se o deus nos convidasse a nos vermos objetivamente, isso significaria, com efeito, que é preciso compreender quem somos verdadeiramente (superar a ignorância de si), mas igualmente constituir-nos como objeto. Só se pode tornar-se objetivo reificando-se, constituindo-se em um eu bem definido, fixando-se a si mesmo. Portanto, essa perspectiva parece contrária à que Nietzsche entende (ou quer fazer entender) na frase de Píndaro Genoi’ hoios essi mathôn17 17 Cf. Píndaro (1951, p. 131). Essa fórmula é com frequência traduzida por “Sois tel que tu as appris à te connaître”, e Nietzsche a traduz por “werde, wer du bist [torna-te quem tu és]”. . Ao apropriar-se da palavra de Píndaro, Nietzsche realça a dimensão do devir e aparentemente deixa de lado a dimensão do conhecimento18 18 Nietzsche atribui um sentido forte ao verbo utilizado aqui por Píndaro, trazendo a questão do vir-a-ser, enquanto ele também poderia significar simplesmente “manifestar” no contexto do verso de Píndaro do qual ele advém. . O si mesmo está sempre em movimento, e não se trata de fixar esse movimento19 19 O parágrafo 257 de Para além de bem e mal fala, assim, de uma “contínua ‘autossuperação do homem’” (KSA 5. 203, tradução de PCS). . Por isso, pode-se relacionar essa frase do parágrafo 80 de Para além de bem e mal (“uma coisa que se esclarece deixa de nos interessar”) com o primeiro parágrafo da Genealogia da moral, compreendendo que, se um conhecimento busca obter algo, ele se desinteressa, porém, de um saber desde que ele é adquirido. O conhecedor sempre quer algo novo. Considerando o si mesmo como um objeto bem definido e suscetível de ser conhecido, esse conhecimento deveria, com efeito, fazer com que nos desinteressemos dele.

Ocorre o mesmo quanto à moral. Conceber que os valores atuais não são intangíveis permite pensar sua superação e retirar o homem atual de sua fixidez, uma vez que ele acredita obedecer a valores intangíveis, ao dado, de que é preciso extraí-los. Mas nem por isso se deve acreditar que os novos valores propostos ao homem atual, para superá-lo, sejam mais verdadeiros, que eles constituam um novo dado, valores que o fixarão novamente. A única questão pertinente que é preciso colocar a respeito deles é a questão do valor deles para a vida, para a potência do indivíduo que vai encarná-los. No parágrafo 7 do “Prólogo” da Genealogia da moral, Nietzsche lembra que se partiu da moral como um dado e da ideia de que “o bom” é algo que melhoraria o homem em geral, que poderia desenvolvê-lo, antes de perguntar se, finalmente, não seria o inverso e se o mau lhe seria mais favorável. Em todo caso, a radicalidade da pergunta deve colocar em questão esse preconceito20 20 Note-se, aliás, um paralelo com a perspectiva da verdade no início de Para além de bem e mal, em que se indica que nunca se questionou que a verdade seja desejável e deva ser procurada. Talvez a falsidade e a ilusão sejam preferíveis. . Na Genealogia, evidentemente, a questão da moral é inteiramente habitada pela questão da pesquisa, pela maneira de pesquisar, porque precisamente todas as ilusões morais, todos os preconceitos morais que têm origens pulsionais, só puderam se estabelecer porque se pesquisou de modo errôneo, porque sempre se considerou a moral como algo dado, de modo que se poderia dizer que até agora não houve uma verdadeira filosofia moral, no sentido de uma investigação radical sobre suas fontes profundas, sua história e suas transformações.

Em conclusão, se, em um primeiro nível de leitura do primeiro parágrafo do “Prólogo” da Genealogia da moral, parece claro que Nietzsche nega um conhecimento imediato e objetivo do eu, pudemos propor, em um segundo nível, uma interpretação dessa passagem e especialmente da sentença “‘cada qual é o mais distante de si mesmo’” segundo a qual é preciso compreender que é necessário considerar o si mesmo como algo sempre distante. Assim, pode-se compreender, de modo solidário, que a autossuperação da moral se acompanha da superação do ideal de um conhecimento objetivo de si, ideal esse que deve ser superado por uma abordagem do si mesmo em termos de interpretação e que permite pensar um para além da moral ou um tipo de moral superior e talvez mais pessoal que permita ao si mesmo afirmar-se para além da moral e da abnegação tal como vivida na Europa à época em que Nietzsche escreve.

O conhecimento de si, aliás, coincide com o conhecimento da moral. Para o homem mediano que é inteiramente determinado pelos valores morais circundantes, o conhecimento de si coincide com esses valores. Ele se conhece apenas enquanto indivíduo humano mediano, participando plenamente dos valores de uma época. Por outro lado, por sua individualidade, o verdadeiro indivíduo escapa a essa determinação moral externa e, assim, é mais difícil de ser conhecido na medida em que não se inscreve no seu tempo nem nos valores partilhados, valores que, no caso do indivíduo mediano, servem de critério de conhecimento. O filósofo, porém, é conhecível pela “moral” (ou ética) que ele escolhe para si próprio. Assim, se Nietzsche rejeita tal conhecimento objetivo de si por si, ele não parece renunciar a conhecer outros homens. Nietzsche parece aceitar que se possa conhecer alguém, uma vez que a moral do filósofo (que preferimos qualificar de ética pessoal para distingui-la da moral circundante) indicaria “quem ele é”. Contudo, é preciso notar de imediato que esse conhecimento parece ser de tipo interpretativo, visto que a moral de um filósofo apenas traz um testemunho (por certo, decisivo) do que ele é. Ela é o que nos ensina o mais certamente sobre o que ele é, mas não se trata de conhecimento imediato. Assim, percebe-se o si mesmo a partir de certos valores que ele escolhe para si. Se, enfim, é necessário manter o si mesmo distante, é precisamente para não reificar nosso si mesmo e conservar uma perspectiva dinâmica em relação a ele, de modo que os valores e a moral ou ética que se escolhe deverão ser sempre retrabalhados.

Referências

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  • LANDENNE, Q. La formation perspectiviste du “nous” dans la Généalogie de la morale. In: SALANSKIS, E.; MERKER, A. Nietzsche, Le projet de la Généalogie de la morale. Strasbourg: Cahiers philosophiques de Strasbourg, n°51, 2022.
  • LEVINAS, E. Totalité et infini. Paris: Le livre de Poche, 1971.
  • NIETZSCHE, F. Schopenhauer como educador: considerações extemporâneas. Trad. Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan. São Paulo: Mundaréu, 2018.
  • NIETZSCHE, F. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2000.
  • NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres volume II. Opiniões e sentenças diversas. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2008.
  • NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998.
  • NIETZSCHE, F. La Généalogie de la morale. Trad. Patrick Wotling. Le Livre de poche, 2020.
  • NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  • NIETZSCHE, F. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 2008.
  • PÍNDARO, -. Pythiques. Trad. Aimé Puech. Paris: Les Belles Lettres, 1951.
  • PLOTINO,-. Traités 1-6. Trad. sob a direção de Luc Brisson et Jean-François Pradeau. Paris: Flammarion, 2002.
  • QUÉRINI, N. De la connaissance de soi au devenir soi. Tese de doutorado. Strasbourg, 2020.
  • RICARD, M.-A. L’exigence de la connaissance de soi dans la Généalogie de la morale. In: SALANSKIS, E.; MERKER, A. Nietzsche, Le projet de la Généalogie de la morale. Strasbourg: Cahiers philosophiques de Strasbourg, n°51, 2022.
  • WOTLING, P . Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: PUF, 1995.
  • *
    Tradução de Eder Corbanezi
  • 1
    NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras , 1998.. A partir de agora indicado como PCS. Para a referência a Terêncio, ver a nota 2, à página 46, da tradução de P. Wotling (Nietzsche, La Généalogie de la morale, Le Livre de poche, 2020NIETZSCHE, F. La Généalogie de la morale. Trad. Patrick Wotling. Le Livre de poche, 2020.).
  • 2
    Segundo Marie-Andrée Ricard (2022RICARD, M.-A. L’exigence de la connaissance de soi dans la Généalogie de la morale. In: SALANSKIS, E.; MERKER, A. Nietzsche, Le projet de la Généalogie de la morale. Strasbourg: Cahiers philosophiques de Strasbourg, n°51, 2022., p. 145), “essa sentença sugere também que, para conhecer-se, ou […] para encontrar-se, é preciso percorrer, tateante, um longo caminho ao longo do qual é possível extraviar-se, ou mesmo permanecer nele”.
  • 3
    Essa seria uma maneira interessante de explicar a presença insistente do Nós (Wir, Uns) no texto de Genealogia da moral, em que insistiu Quentin Landenne (2022LANDENNE, Q. La formation perspectiviste du “nous” dans la Généalogie de la morale. In: SALANSKIS, E.; MERKER, A. Nietzsche, Le projet de la Généalogie de la morale. Strasbourg: Cahiers philosophiques de Strasbourg, n°51, 2022., pp. 161-175).
  • 4
    A moral é apenas uma interpretação de certos fenômenos, uma interpretação errônea, para dizer de modo mais preciso (GD/CI, Os “melhoradores” da humanidade 1, KSA 6.98, tradução de PCS).
  • 5
    Nietzsche escrevia já em Humano, demasiado humano que doravante o conhecimento de si deve ser historicizado. Leia-se em particular o parágrafo 223 de Opiniões e sentenças diversas, em que Nietzsche escreve: “A direta observação de si próprio não basta para se conhecer: necessitamos da história, pois o passado continua a fluir em mil ondas dentro de nós; e nós mesmos não somos senão o que a cada instante percebemos desse fluir” (VM/OS 223, KSA 2.477, tradução de PCS).
  • 6
    Na realidade, a imagem é de Plotino (2002 PLOTINO,-. Traités 1-6. Trad. sob a direção de Luc Brisson et Jean-François Pradeau. Paris: Flammarion, 2002., Traité 1, Sur le beau, § 8).
  • 7
    Cf. Levinas, 1971LEVINAS, E. Totalité et infini. Paris: Le livre de Poche, 1971., Section I, A, § 2.
  • 8
    A expressão de interior para significar o si mesmo figurava, todavia, na terceira das Considerações extemporâneas: “Não há na natureza nenhuma criatura mais desolada e repugnante do que o homem que, após se afastar de seu gênio, espreita à direita e à esquerda, adiante e a toda parte. Por fim, não se pode mais atacar de modo algum tal homem, pois ele é todo superfície sem interior [Aussenseite ohne Kern], uma roupagem decomposta, tingida, bufante, um espectro emendado, que já não pode despertar medo e menos ainda compaixão” (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.338, tradução de Giovane Rodrigues e Tiago Tranjan, a partir de agora indicados respectivamente como GR e TT). Na realidade, essa expressão vem-lhe diretamente de Schopenhauer, mas, em nossa tese, buscamos mostrar que Nietzsche desloca a unidade do si mesmo concebida de modo metafísico pelo autor do Mundo em direção a uma unidade plástica e psicológica (QUÉRINI, 2020QUÉRINI, N. De la connaissance de soi au devenir soi. Tese de doutorado. Strasbourg, 2020.).
  • 9
    À imagem da grandeza dos grandes homens de que trata a segunda das Considerações extemporâneas, visto que é preciso ter certa grandeza em si mesmo para dela perceber algo.
  • 10
    Segundo Foucault (1971FOUCAULT, M. "Nietzsche, la généalogie, l’histoire". In: BACHELARD, S. et al. Hommage à Jean Hyppolite. Paris: Presses universitaires de France, 1971, pp. 145-172., p. 150), é preciso “conjurar a quimera da origem”.
  • 11
    Nesse texto, Nietzsche também escreve que os moralistas possuíam apenas um conhecimento grosseiro dos “facta” morais porque não investigaram a moral na qualidade de historiadores, com exceção, talvez, dos famosos psicólogos ingleses, mencionados na Genealogia da moral, os quais começaram semelhante empresa, mas não souberam realizá-la com suficiente radicalidade, uma vez que não colocaram a questão do valor dos valores, do valor da moral (a esse respeito, ver igualmente o parágrafo 345 de A gaia ciência, que considera a moral como problema).
  • 12
    Notadamente a terceira: “pois a sua verdadeira essência não se encontra profundamente escondida em você [denn dein wahres Wesen liegt nicht tief verborgen in dir], mas imensuravelmente acima de você [unermesslich hoch über dir], ou ao menos acima do que você ordinariamente toma por seu eu [was du gewöhnlich als dein Ich nimmst]” (SE/Co. Ext. III 1, KSA 1.340-341, tradução de GR e TT).
  • 13
    Cf. Píndaro, 1951PÍNDARO, -. Pythiques. Trad. Aimé Puech. Paris: Les Belles Lettres, 1951. , II, p. 131. Voltaremos ao assunto no final do artigo.
  • 14
    Evidentemente aqui não se trata de uma superioridade moral, uma vez que Nietzsche dedica uma seção inteira de Crepúsculo dos ídolosNIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. aos “‘melhoradores’ da humanidade” (KSA 6.98-102).
  • 15
    Evidentemente, esse é um tema onipresente na segunda das Considerações extemporâneas.
  • 16
    “Nietzsche recorre ao prefixo über para designar uma elevação de grau no interior de uma hierarquia e mesmo a passagem ao grau supremo desta hierarquia. É esse movimento que evoca o conceito de Übermensch, que diz respeito à hierarquia de valores, isto é, à classificação dos tipos humanos selecionados pelos diferentes tipos de culturas. O além-do-homem não designa, portanto, um absoluto; pelo contrário, o prefixo über indica que não se trata nem mesmo de pensar um conflito entre o Übermensch e a humanidade em seu conjunto, mas sim de opor um tipo a outro no interior de uma única e mesma hierarquia. Por isso Nietzsche realça a relatividade do conceito de além-do-homem” (Wotling, 1995WOTLING, P . Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: PUF, 1995., pp. 337-338).
  • 17
    Cf. Píndaro (1951PÍNDARO, -. Pythiques. Trad. Aimé Puech. Paris: Les Belles Lettres, 1951. , p. 131). Essa fórmula é com frequência traduzida por “Sois tel que tu as appris à te connaître”, e Nietzsche a traduz por “werde, wer du bist [torna-te quem tu és]”.
  • 18
    Nietzsche atribui um sentido forte ao verbo utilizado aqui por Píndaro, trazendo a questão do vir-a-ser, enquanto ele também poderia significar simplesmente “manifestar” no contexto do verso de Píndaro do qual ele advém.
  • 19
    O parágrafo 257 de Para além de bem e mal fala, assim, de uma “contínua ‘autossuperação do homem’” (KSA 5. 203, tradução de PCS).
  • 20
    Note-se, aliás, um paralelo com a perspectiva da verdade no início de Para além de bem e mal, em que se indica que nunca se questionou que a verdade seja desejável e deva ser procurada. Talvez a falsidade e a ilusão sejam preferíveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2022
  • Aceito
    20 Dez 2022
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