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Educação e Valores*

Education and Values

Resumo:

Partindo da ligação estreita entre formação e valores e considerando que a avaliação dos valores é fundamental para as concepções e os conteúdos educacionais, o artigo propõe-se a tematizar a educação a partir da filosofia dos valores de Nietzsche, considerando a distinção nietzschiana entre trabalhadores filosóficos e filósofos do futuro e a relação entre formação ética e o modo de valorar em termos sociais desde Max Weber.

Keywords:
Educação; valores; filósofos do futuro; criar

Abstract:

Starting from the close connection between formation and values and considering that the evaluation of values is fundamental for educational conceptions and contents, the article proposes to thematize education from Nietzsche's philosophy of values, considering the Nietzschean distinction between philosophical workers and philosophers of the future and the relationship between ethical formation and the way of valuing in social terms since Max Weber.

Keywords:
Education; Values; Philosophers of the future; Creation

Neste artigo, partindo da distinção nietzschiana entre trabalhadores filosóficos e filósofos do futuro e aplicando-a à formação, tematizaremos a importância da pergunta pelos valores que a educação veicula e, pincipalmente, os valores que os educadores querem para os estabelecimentos de ensino; haja vista que, acreditamos haver um elo estreito entre formação e valores, fazendo com que as práticas educativas visem ou o culto dos valores em curso, de modo análogo aos trabalhadores filosóficos, ou a criação de valores, conforme os filósofos do futuro de Nietzsche. Em um primeiro momento, considerando a tese weberiana, à qual anuímos, tencionamos mostrar que há uma imbricação existente entre uma dada formação ética e as relações com o que se valora em termos sociais, isto é, para utilizarmos o termo weberiano, com o “espírito” de uma sociedade, ainda que Weber se refira somente à interrelação entre a formação protestante e o espírito do capitalismo. Em um segundo momento, apresentaremos a distinção estabelecida por Nietzsche entre filósofos do futuro e trabalhadores filosóficos. Por fim, partiremos da filosofia dos valores de NietzscheAZEREDO, V. Filosofia dos Valores e Educação em Nietzsche. ETD -Educ. Tem. Dig., Campinas, v.12, n.1, p.25-45, jul./dez.2010. para pensar a educação desde a consideração de que a avaliação dos valores é fundamental para concepções e conteúdos educacionais.

Comecemos com A Ética protestante e o espírito do capitalismoWEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras . 2013. , nela Max Weber procura mostrar a interrelação existente entre uma determinação formação ética e as bases do espírito capitalista nos diversos países em que o protestantismo se fez presente, apresentando dados em que tanto os proprietários do capital e empresários quanto os profissionais mais qualificados professam culto protestante, haja vista a estatística religiosa. Estabelecendo uma relação de influência entre a “peculiaridade espiritual inculcada pela educação” (Weber, 2013, p. 33.2) a partir de determinada atmosfera religiosa, seja da região de origem ou da casa paterna, como determinante sobre a escolha profissional, explica porque os artesãos católicos permanecem no artesanato enquanto os protestantes dirigem-se às fábricas em busca de postos elevados. Constata haver nos protestantes uma inclinação para o racionalismo econômico e, a partir disso, busca compreender a ligação existente entre o antigo protestantismo - Lutero, Calvino, Knox, Voët - e a cultura capitalista moderna a partir de traços religiosos. São neles que se podem entender as noções de espírito de trabalho e progresso presentes na cultura capitalista moderna, em que pese o antigo protestantismo não ter nenhuma reverência pelo progresso.

Weber mostra-nos, principalmente através do discurso de Benjamin Franklin, que um novo ethos se constrói gradativamente, enquanto expressão maior do interesse da posse como um fim em si, enquanto decorrente de uma afinidade entre o conteúdo doutrinário da religião protestante e o capitalismo, mormente o culto ao trabalho, como vocação e ascese, gerado pelo calvinismo. No discurso B. Franklin, aparece a associação do tempo ao dinheiro e a visão do dinheiro como procriador, que, para o sociólogo alemão, indica a noção do dever prosperar em termos de bens materiais e do homem honrado como aquele que é digno de crédito, como postulação de advertências morais de cunho eminentemente utilitário. Convém assinalar, como faz Weber, que não se trata de uma técnica de vida, mas de uma ética que institui o dever na promoção da propriedade: “Acima de tudo, este é o summum bunum dessa ‘ética’: ganhar dinheiro e sempre mais dinheiro, no mais rigoroso resguardo de todo gozo imediato do dinheiro ganho...”. Em outra passagem, lemos: “O ser humano em função do ganho como finalidade da vida, não mais o ganho em função do ser humano como meio destinado a satisfazer suas necessidades materiais”. (Weber, 2013, p. 46)

Ora, quando o sociólogo alemão fala do “espírito do capitalismo” como uma rede de conexões que acontecem na realidade histórica, permitindo formar um conceito que designe uma significação cultural, ele não pensa em conceitos que possam se adequar a determinada realidade, mas, ao contrário, em conexões genéticas concretas que permitam apreender conceitualmente uma individualidade que se forma, como no caso do “espírito do capitalismo” enquanto expressa justamente o ethos capitalista. Trata-se, exclusivamente, do capitalismo moderno presente na Europa Ocidental e na América do Norte, haja vista que é nelas que se encontra o mesmo leitmotiv inversor da ordem do ganho, como mencionado acima na obra de Weber. Interessa-nos, especialmente, os conceitos de “espírito do capitalismo” e, “ética protestante”, pois é por meio deles que contamos compreender a relação entre capitalismo e formação enquanto tributária da emergência de um novo modo de ser no mundo e com os outros e de ver o mundo e as relações sociais.

Duas citações são exemplares do motivo de solidificação de um conjunto de relações sociais determinadas pela vigência do espírito capitalista e da racionalidade instrumental que caracteriza a crise até nossos dias, segundo nossa visão. A primeira, concernente a ordem capitalista como um cosmos que subsumi o indivíduo:

Atualmente a ordem econômica capitalista é um imenso cosmos em que o indivíduo já nasce dentro e que para ele, ao menos enquanto indivíduo, se dá como um fato, uma crosta que ele não pode alterar e dentro da qual tem que viver. Esse cosmos impõe ao indivíduo, preso nas redes do mercado, as normas de ação econômica (Weber, 2013WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras . 2013. , p. 48).

A segunda, referente ao modo de ver de grupos de pessoas a partir do qual emergiu a ordem capitalista:

O capitalismo hodierno, dominando de longa data a vida econômica, educa e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos - empresários e operários - de que necessita. E, entretanto, é justamente esse fato que exibe de forma palpável os limites do conceito de “seleção” como meio de explicação de fenômenos históricos. Para que essas modalidades de conduta de vida e concepção de profissão adaptadas à peculiaridade do capitalismo pudessem ter sido “selecionadas” (...), primeiro elas tiveram que emergir, evidentemente, e não apenas em indivíduos isolados, mas sim como um modo de ver portado por grupos de pessoas. (Weber, 2013WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras . 2013. , p. 48)

A análise weberiana explica a gênese e a emergência desse modo de ver. De nossa parte, valer-nos-emos dos conceitos previamente elencados para com eles pensar Ética e formação com o auxílio das investigações weberianas. Primeiramente, tomemos por elemento a Reforma Religiosa no século XVI com Lutero e desenvolvida também por Calvino. Weber mostra a dominação dos calvinistas a partir do século XVI em Genebra e na Escócia, depois, na virada do século, nos Países Baixos, no XVII na Nova Inglaterra e mesmo na Inglaterra, apontando para a presença do calvinismo e a emergência das classes burguesas como heroicas. Cita ainda O espírito das leis, em que Montesquieu afirma que os ingleses têm uma maestria em prevalecer com referência à religião, ao comércio e à liberdade (Weber, 2013, p. 39). Na página 63 da Ética protestante e o espírito do capitalismo, aponta para a especificidade do tipo ideal de capitalista representado para os alemães de sua época como tendo conduta similar àquela apregoada por B. Franklin, remetendo sempre tal conduta ao irracional cumprimento do dever profissional em detrimento da noção de riqueza para si.

Ora, a reforma protestante com o ideal de racionalidade e o trabalho como dever expressam gradativamente o espírito do capitalismo weberiano, justamente nele situamos a relação entre ética e formação como resultado de uma nova visão de mundo expressa pelo capitalismo, na medida em que converte todo fazer em função do aumento e acúmulo irracional de posses. Acreditamos que esse espírito capitalista não poderia ser inofensivo aos estabelecimentos de ensino, haja vista a mudança e a formação de um novo modo de ver que acarretou uma transformação na forma de proceder na esfera da cultura como um todo. Esse modo de proceder construído e solidificado gradativamente nas nações capitalistas conjuga-se com a defesa da eficácia e a ditadura do “sejas operatório ou perecerás” como base de uma razão eminentemente utilitária, cujo sentido e empenho não são se reconcilia com a vida, uma vez que a presença dos negócios e do trabalho são tidos com indispensáveis a ela, em que pese todo irracionalismo dessa conduta como bem aponta Max Weber: “os negócios e o trabalho constante tornaram-se ‘indispensáveis à vida’”, como modo possível de viver desde o ethos capitalista, e acrescenta em complemento a firmação anterior: “Esta última é de fato a única motivação pertinente, e ela expressa ao mesmo tempo [do ponto de vista da felicidade pessoal] o quanto há de [tão] irracional numa conduta de vida em o ser humano existe para o seu negócio e não o contrário” (Weber, 2013, p. 62).

Em tal situação, faz sentido, embora sem sentido e, por isso, irracional, que a razão se converta em uma mera faculdade restrita a deduzir, a inferir e a classificar, pois como expressão da cultura capitalista deve tornar-se também um instrumento do próprio fazer. A ordem econômica capitalista exige uma razão em defesa dos fatos com a consequente rejeição das normas, pois não importa ao ethos capitalista a normatividade prática. O que serve ao acúmulo de capital e à subserviência ao mercado é, de fato, uma racionalidade técnica positivista que jamais interrogue o estatuto do fazer. Daí esse tipo de razão vigorar nos estabelecimentos de ensino enquanto propõe uma formação para o trabalho, sem a correspondente discussão sobre o sentido da vida e os fins do fazer. Há de se impedir toda discussão sobre fins, sob pena de não ser operatório e perecer. A única razão que se coaduna com a nova visão de mundo é aquela que opera no domínio do fato e da técnica e deixa aos meios à completa hegemonia. A diminuição da carga horária ou mesmo extinção de componentes curriculares da área das Ciências Humanas e Sociais, a nosso ver, vai ao encontro da irracionalidade do ethos capitalista. Uma citação, colhida entre várias, expressa o sentido de nosso argumento alusivo à formação de uma racionalidade técnica:

A ordem econômica capitalista precisa dessa entrega de si à “vocação” de ganhar dinheiro; ela é um modo de se comportar com bens exteriores que é tão adequado àquela estrutura, que ligada tão de perto às condições de vitória na luta econômica pela existência, que de fato hoje não há mais que se falar de uma conexão necessária entre essa conduta de vida “crematista” e alguma “visão de mundo” unitária. É que ela não precisa mais se apoiar no aval de qualquer força religiosa e, se é que a influência das normas eclesiásticas na vida econômica ainda se faz sentir, ela é sentida como obstáculo análogo à regulamentação da economia pelo Estado. A situação de interesses políticos-comerciais costuma então determinar a “visão de mundo”. Aquele que em sua conduta de vida não se adapta às condições do sucesso capitalista, ou afunda ou não sobe” (Weber, 2013WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras . 2013. , p. 64).

Em nossa ótica, somente mediante o abandono do espírito capitalista será possível ultrapassar uma racionalidade meramente instrumental, pensar em ciências que não se convertam em função do mercado e em estabelecimentos de formação que coloquem a pergunta pelo sentido do fazer antecedendo a primazia do executar. Enfim, como afirma Paulo Freire: “A humanização enquanto vocação tem, na desumanização, sua distorção” (FREIRE, 1994, p. 184). No limite, os estabelecimentos de ensino, como parte importante da visão formada no espírito capitalista, também incorporaram o modo de proceder nele presente. Afinal, como lemos no discurso Benjamin Franklin: “Lembra-te que tempo é dinheiro; “Lembra-te que crédito é dinheiro”. “Lembra-te que o dinheiro é procriador e por natureza fértil” (Weber, 2013WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras . 2013. , p. 43.2), o dinheiro constituiu a base da cultura nascente e hoje completamente desenvolvida, promovendo a defesa da eficácia e a ditadura do “sucesso capitalista”, isto é: “aquele que em sua conduta de vida não se adapta às condições do sucesso capitalista, ou afunda ou não sobe”.

A nosso ver, um ensaio inverso é requerido a partir da revisão do papel do educador e do educando no processo educativo visando a promover a crítica e a criação, estimulando os estudantes a questionarem o sentido e o valor do que lhes foi dito. Afinal, não se pode conceber a educação como instrumento ideológico, nem como produtora de conhecimento fechado e nem como subserviente do mercado enquanto legitimadora do “sedes operatório ou pereceras”. Mas, ao contrário, deve permitir aos educadores e aos educandos assumirem-se no espaço dos estabelecimentos de ensino, realizando uma das tarefas precípuas requeridas por Paulo Freire que seria: “propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador” (Freire, 1997FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997., p.46). Ora, é por considerar “o assumir-se freiriano” como dimensão imperante para pensar a relação entre um ensino criador que recorremos à filosofia nietzschiana. Nela, contamos encontrar os elementos que conduzam a esse assumir-se através da pergunta pelo valor dos valores que regem os processos de ensino-aprendizagem, notadamente na educação básica.

Convém mencionar que Nietzsche nunca pretendeu arregimentar seguidores ou mesmo tornar-se redentor de uma possível Ágora extemporânea. A sua filosofia, circunscrita na denúncia das dicotomias subjacentes ao absoluto, implica um redimensionamento dos conteúdos semânticos da tradição, mas não requer sua inscrição como defensor de outro conteúdo semântico. Isso fica patente em muitos de seus textos, inclusive na sua autobiografia, escrita com o intuito de prevenir usos arbitrários de seu discurso. Não se trata, para Nietzsche, de substituir o conteúdo semântico da tradição por outro, mas de fazer passar pela destruição de ideais a própria recusa peremptória de uma intenção possível de vir a erigi-los. E isso torna no mínimo problemático tanto direcionar a sua crítica a uma dada filosofia, quanto fazer dela um método de desconstrução de estruturas sociais - seja qual for o predicativo da estrutura - à disposição dos oprimidos ou de massas revolucionárias.

Não se quer aqui excluir o ataque direto de Nietzsche a alguns filósofos ou mesmo à vigência de organizações instituídas (Estado, Igreja etc.) como mantenedores da decadência. Até porque Nietzsche explicita sua crítica direta tanto àqueles que denominou de livres-pensadores, trabalhadores filosóficos, quanto à propagação da incondicionalidade da obediência que tem como produto o homem domesticado. O que se quer então assinalar é o fato de a crítica nietzschiana dirigir-se ao ideal subjacente à filosofia da tradição, assim como às organizações instituídas, manifestamente expresso em seu conteúdo semântico. Em vista disso, propormos repensar os valores educacionais a partir da crítica nietzschiana sem a prévia definição de determinado ideal de educação, mas através do resgate do sentido de avaliador enquanto algo que deveria atravessá-la. Isso faz com que a discussão em torno do tema da cultura e da educação a partir do pensamento de Nietzsche seja importante para esse resgate, sob pena de nossos estabelecimentos de ensino produzirem o homem domesticado. Em vista disso, a retomada da distinção nietzschiana entre trabalhadores filosóficos e filósofos do futuro.

Convém mencionar a necessidade da transvaloração apontada por Nietzsche enquanto tarefa que ele reclama para si e para os "novos filósofos", cuja denominação de novos encontra apoio na prerrogativa de poderem transvalorar valores eternos. Essa é a condição apontada por Nietzsche para executarem-na: possuir, simultaneamente, força e ousadia, isto é, uma constituição fisiológica bem lograda que exija a destruição dos antigos valores e a criação de novos. Em Para além de bem e mal afirma: "Para novos filósofos, não há escolha; para espíritos fortes e originais o bastante para estimular valorizações opostas e transvalorar e transtornar 'valores eternos'" (JGB/BM § 203, KSA, 5.126), em termos da necessidade presente, nesses filósofos, para a tarefa da transvaloração, e acrescenta, na sequência, acerca de seu ensinamento: "Ensinar ao homem o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma vontade humana, e preparar grandes empresas e tentativas globais de disciplinação e cultivo..." (JGB/BM § 203, KSA, 5.126).

É na noção de filósofos propriamente ditos, ou filósofos do futuro, que se encontra a chave nietzschiana para proceder à transvaloração dos valores. Graças à sua fortaleza, suportariam um grau máximo de verdade no sentido de criação, isto é, teriam competência para compreender o limite no qual se processa a doação de valores, qual seja, a imposição de uma interpretação. Eis o porquê da transformação que faz do seu conhecer um criar e do seu criar uma legislação. Em tais filósofos, a vontade de verdade é entendida como vontade de potência e toda afirmação é vista como o expressar de uma avaliação. Consoante Nietzsche, amaram também suas verdades esses filósofos, embora não queiram que outros as amem, pois que sua verdade jamais será verdade para todos sem deixar de ser sua.

Diversas questões estão implicadas na noção nietzschiana de novos filósofos ou filósofos do futuro. Há uma diferença marcante entre eles e os filósofos que cultuam os valores em curso, denominados também de trabalhadores filosóficos, qual seja, a condição de um e de outro. Trata-se aqui de uma prerrogativa do discurso nietzschiano que encontra apoio na sua noção de tipologia. É a distinção entre um tipo forte, cuja condição fisiológica, que se manifesta através de suas avaliações, expressa um bom sistema de vassalagem entre os impulsos e uma condição fraca que exprime, ao contrário, uma desagregação hierárquica. Consoante o pensador, o filósofo legislador é o filósofo do futuro, aquele a quem cabe o manejo do martelo visando a destruir ideias e ideais. Não lhe cumpre a manutenção do dado. Isso foi tarefa dos livres-pensadores, que, ao acreditarem na incondicionalidade da verdade, acabaram por empreender uma defesa do estabelecido.

O filósofo do futuro é apresentado como médico, artista e legislador, cujas tarefas precípuas estariam determinadas pela interpretação dos sintomas, pela moldagem dos tipos e pela determinação do nível. A interpretação dos sintomas remete à compreensão do sentido da força. Na configuração dos tipos, identificam-se as dissimetrias que configuram interpretações. Mediante a determinação do nível, chega-se à hierarquia dos valores e à possibilidade da transvaloração. Essa tríade, proposta para o filósofo, estabelece certa unidade entre a filosofia e a ciência, que fornece as condições necessárias para a tarefa fundamental do filósofo, o estabelecimento de uma hierarquia dos valores.

A tematização da cultura e principalmente da educação, seja para precisar os conceitos nietzschianos a partir de novas abordagens, seja para pensar questões da atualidade através de Nietzsche, traz contribuições significativas para o conjunto da filosofia e para a reflexão sobre os estabelecimentos de ensino e a educação em particular. Ora, pensar questões da atualidade por meio do aparato conceptual nietzschiano, certamente, permite uma crítica da cultura em seu conjunto e fornece elementos para avaliar os valores da atualidade. Do diagnóstico à destruição dos velhos ídolos e, quiçá, à transvaloração. Afinal, quando Nietzsche pergunta pelo valor dos valores morais, ele indaga sobre o conjunto de valores que, com certeza, norteia a educação, e que, nesse sentido, subjaz ao currículo, à disciplina, à relação professor/aluno, à organização dos espaços na escola e às instituições de formação. No limite, o questionamento acerca do valor dos valores, juntamente com o conjunto da filosofia de Nietzsche, leva-nos a pôr em questão nosso modo de pensar e de agir. Trata-se da necessidade premente que se põe de reavaliar nossas crenças, princípios, enfim, nosso conjunto de valores. Nesse sentido, compartimos com Thomas E HartHART, T. A philosophy for education. In: HART, T. (Org.) Nietzsche, culture and education. Burlington: ASHGATE, 2009. p. 113-135. 1 1 Cf. Hart, 2009. p. 113-135. a perspectiva de imbuir-se da atmosfera gerada pelas noções do autor de Assim falava Zaratustra para dirigir o olhar à educação e à cultura. Por um lado, isso requer o conhecimento dos conceitos com os quais o filósofo as investiga. Supõe o ingresso na sua própria filosofia, o andar com a intratextualidade como dimensão imperante que permite discorrer sobre um autor. De outro, requer o distanciamento enquanto posição que permite pensar com Nietzsche sem pensar como Nietzsche.

Nosso intuito é pensar a educação a partir da filosofia dos valores de Nietzsche e, nesse sentido, pode-se dizer que há duas possibilidades em termos de concepção de educação desde sua relação aos valores. A inclusão de Nietzsche nesse debate conduz, em nossa ótica, a uma reviravolta com referência à própria colocação da questão. Por um lado, temos a concepção de que os valores são entidades absolutas que, pairando num céu inteligível, norteiam as avaliações realizadas no plano mundano. Com isso se quer dizer que os valores constituem um reino subsistente por si próprio, sendo, ao mesmo tempo, absolutos e imutáveis. Tal compreensão tem reflexos diretos nas concepções de educação, pois, em termos de formação do homem, parte-se do pressuposto de referir seus juízos a valores absolutos, orientando-o, não para a criação de valores, mas para a seleção e o culto dos existentes. Por outro lado - e aqui inserimos a perspectiva nietzschiana -, os valores não se encontram prontos, não são entidades absolutas, mas produtos de avaliações e, portanto, com uma ascendência humana, demasiado humana. Os valores são criados pelo homem e têm, por isso, uma história que os remete às oscilações de poder que se manifestam no seu devir. Essa perspectiva também tem reflexos diretos sobre as concepções de educação, pois nesse caso o ponto de partida para a formação do homem é a compreensão de que ele é um criador de valores e não deve, em vista disso, cultuar valores em curso.

Em nossa ótica, a pergunta fundamental que se coloca para os educadores, especialmente os da atualidade, é que tipo de ser humano se quer formar: um crítico e criador ou um conformista reprodutor? É da competência da educação educar para a criação de valores, para a introdução de interpretações, para a imposição de perspectivas, resgatando, no plano pedagógico, as teses filosóficas de Nietzsche, mesmo que o autor de Assim falava Zaratustra não tenha pretendido melhorar a humanidade. Mas somente assim pode-se equiparar o educar com a promoção do criar, em termos da construção não só do conhecimento, mas do processo educativo como um todo.

A introdução da crítica à moral e aos valores de Nietzsche possibilita uma mudança de posição pedagógica, pois, tanto o docente quanto o discente têm de abandonar a compreensão de uma aceitação incondicional do mundo moral e devem passar a questioná-lo. Inaugura-se, propriamente, a crítica com relação aos valores e à moral. De fato, trata-se da mudança de perspectiva que se manifesta na compreensão dos valores desde sua genealogia e da moral a partir de avaliações. A análise nietzschiana da moral mostra a existência de tendências morais distintas, cujos valores estabelecidos expressam modos diferentes de ser e de viver. Apresentada como produto de interpretações e avaliações, a moral é vista como um signo, um sintoma, que se refere à constituição daquele que avalia, à condição mesma de uma vida. Os valores expressam essa condição. Antes de Nietzsche, avaliava-se desde uma determinada composição de valores. Depois de Nietzsche, é o valor do valor que é avaliado, e isso tem reflexos tanto no modo de ensinar acerca do valor quanto na assimilação do valor. Eis aqui a possibilidade de uma nova postura do educador em termos de formação para a crítica, elaboração, construção do mundo, ao invés de uma atitude passiva de recepção. Há de educar-se o homem para ser um criador de valores, enquanto entendimento de que o homem se faz humano pela criação e não pela mera recepção e reprodução do existente.

Ao introduzir na filosofia os conceitos de sentido e de valor, Nietzsche promove uma inversão crítica, justamente por não tomar o valor como algo estabelecido, perguntando, pelo valor desse valor. Os valores, de um lado, norteiam uma avaliação e, de outro, procedem de uma avaliação. Se o problema crítico é problema da criação, então a questão central seria: de onde procede esta avaliação? O recurso a esse tipo de questionamento, em Nietzsche, aponta para o procedimento genealógico enquanto caminho para uma análise nas profundezas. A crítica, referida aos valores, não se contentaria em perguntar qual o valor que está por trás dessa avaliação, mas qual a avaliação que determina o valor desse valor. Eis a posição que permite reavaliar a educação e o conjunto de seus valores.

A partir do texto Assim falava Zaratustra, a tematização do valor aparece e, especialmente, em Para a genealogia da moral, Nietzsche procede a um desmascaramento da moral, ao propor uma análise de seus valores. Neste texto, o filósofo formula uma questão: "sob que condições inventou-se o homem aqueles juízos de valor, 'bom' e 'mau'? e que valor têm eles?” (GM/GM, Prólogo, § 6). Nota-se que a expressão "sob que condições" sugere que existem diversas condições possíveis, mas que especialmente sob algumas o homem inventou os juízos de valor bom e mauAZEREDO, V. Os juízos de valor e a educação. Educação: Nietzsche, v. 2, p. 48-58, 2006.. Observe-se que o homem inventou, ou seja, não lhe foram dados, não estavam prontos, foram criados pelo homem, restando saber sob que condições. A problemática refere-se a alguém que cria e que o faz sob determinadas condições e, mais profundamente ainda, que valor tem os valores criados. Qual o valor da invenção humana do bom e do mau? "Obstruíram ou favoreceram até agora o prosperar da humanidade? São um signo de estado de indigência, de empobrecimento, de degeneração da vida? Ou, inversamente, denuncia-se neles a plenitude, a força, a vontade de vida, seu ânimo, sua confiança, seu futuro?” (GM/GM, Prólogo, § 6, KSA 5.252-253).

A posição nietzschiana entende o elemento crítico como criador e, por isso, requer as condições de criação dos valores como algo que possibilite o próprio estabelecimento do valor deles. Em vista disso, a posição indiferente que se efetivaria na manutenção do dado ser objeto de crítica e, porque não dizer, ideal a ser destruído pelo “martelo”, já que a crítica, enquanto referida ao valor dos valores, configura a “filosofia a marteladas”, destruidora de ideias e dos ideais. Se a pergunta pelo valor dos valores remete às suas condições de criação e, por conseguinte, ao elemento diferencial de onde derivam os valores, a crítica, necessariamente, aniquila tanto aquilo que vale em si quanto aquilo que vale para todos, pois o elemento diferencial não pode referendar o em si, ou mesmo o para todos, embora possa demonstrar a impertinência de tais análises e, com isso, recusar a continuidade dessas avaliações.

Se formos excluir a posição indiferente das perspectivas educacionais, teremos de rejeitar, ao mesmo tempo, a concepção dogmática e o laisse faire conforme apontamento de Tongeren2 2 No artigo de Paul van Tongeren: ―Medida e Bildung, o autor, partindo do conceito de Bildung, procura, por um lado, apresentar a crítica nietzschiana ao referido conceito na cultura alemã de sua época e, por outro, precisar o sentido de Bildung no pensamento de Nietzsche.Com relação às críticas do pensador alemão, elas seriam relativas, especialmente, à separação entre conhecimento e vida, ao conceito de medida dogmática, assim como seu antagonismo, o laisser faire. Quanto à elucidação do sentido de Bildung no pensamento de Nietzsche, van Tongeren resgata o conceito de medida dos gregos, assim como sua reformulação latina em Cícero. Ele considera o conceito de medida como central para a Filosofia de Nietzsche. Uma medida de proporção que não pode ser a mesma para todos e também não pode ser para todas as circunstâncias. Nela, inclui o Agón grego e a compreensão de que deve ser aberta ao crescimento e à autossuperação. Daí, a Bildung nietzschiana seguir uma medida de batalha, porque a vida é vontade de potência. Tanto a filosofia, quanto a filologia constituem uma Bildung prática que rejeitam, ao mesmo tempo, a medida dogmática e a ausência de medida. Na avaliação de Paul van Tongeren, seu sentido encontra-se na prática da sophrosine, conforme os gregos e a interpretação latina de Cícero. (Tongeren, 2009, p. 97-112). . A primeira, por apresentar-se como guardiã da certeza, fixa o valor no mundo do em si. A segunda, enquanto um contínuo deixar-fazer sem medida, termina por recusar a proposição do valor. Nos dois casos, voltamos a oscilar no elemento indiferente que impede a indagação acerca do valor dos valores. Poderíamos parafrasear Nietzsche e dizer que: necessitamos de uma crítica dos valores veiculados nos estabelecimentos de ensino? Ou, mais profundamente, qual o valor dos valores educacionais?

A exclusão do questionamento acerca do valor conflita com a possibilidade da crítica e do distanciamento enquanto condicionantes para averiguar, e não para corroborar. Essa reflexão deve atravessar a educação sob pena de ela eternizar a visão de que a moral, assim como os valores, sempre foi tomada como existente, dada, estabelecida. Daí perguntarmos: como se efetiva a investigação acerca dos valores na escola? Há uma indagação sobre o valor do valor e a reavaliação dos valores veiculados, por exemplo, no currículo? Não estará a educação oscilando no elemento indiferente entre aquilo que vale em si e aquilo que vale para todos? Avaliar os valores educacionais é identificar que forças operam na avaliação, assim como em bom e ruim/bom e mau. Se a filosofia tem de ser uma sintomatologia, uma tipologia e uma genealogia ao interpretar os sintomas, ao moldar os tipos e ao determinar o nível, hierarquia dos valores, o educador, que visa uma educação para a diferença e a criação de valores, tem de ser médico, artista e legislador do processo educativo3 3 Encontramos em Deleuze essa tríade proposta para o filósofo a partir de Nietzsche na terceira parte do livro Nietzsche e a filosofia (Deleuze, 1976, 170 p.) , principiando por introduzir questões que permitam guiar os estabelecimentos de ensino pela crítica constante, indagando: temos uma educação para a força e a criação? Educamos para a imposição de interpretações? Enfim, em seguindo a perspectiva nietzschiana, os valores apregoados pela educação são um signo de florescimento ou de definhamento, neles se manifesta a plenitude ou o declínio? A filosofia dos valores de Nietzsche, seja pensando com ele seja pensando como ele, nos leva à necessidade de uma crítica contínua dos valores veiculados em nossos estabelecimentos de ensino e à pergunta: que valores quer a educação?

Referências

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  • SMITH, R. Authenticity and higher education: the nietzschean university in the twenty-first century. In: HART, T. (Org.) Nietzsche, culture and education Burlington: ASHGATE , 2009. p. 1-14.
  • VAN TONGEREN, P. Measure and Bildung. In: HART, T. (Org.) Nietzsche, culture and education Burlington: ASHGATE , 2009. p. 97-112.
  • WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo Tradução Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Companhia das Letras . 2013.
  • 1
    Cf. Hart, 2009HART, T. Nietzsche, culture and education. Burlington: ASHGATE , 2009. 138 p.. p. 113-135.
  • 2
    No artigo de Paul van Tongeren: ―Medida e Bildung, o autor, partindo do conceito de Bildung, procura, por um lado, apresentar a crítica nietzschiana ao referido conceito na cultura alemã de sua época e, por outro, precisar o sentido de Bildung no pensamento de Nietzsche.Com relação às críticas do pensador alemão, elas seriam relativas, especialmente, à separação entre conhecimento e vida, ao conceito de medida dogmática, assim como seu antagonismo, o laisser faire. Quanto à elucidação do sentido de Bildung no pensamento de Nietzsche, van Tongeren resgata o conceito de medida dos gregos, assim como sua reformulação latina em Cícero. Ele considera o conceito de medida como central para a Filosofia de Nietzsche. Uma medida de proporção que não pode ser a mesma para todos e também não pode ser para todas as circunstâncias. Nela, inclui o Agón grego e a compreensão de que deve ser aberta ao crescimento e à autossuperação. Daí, a Bildung nietzschiana seguir uma medida de batalha, porque a vida é vontade de potência. Tanto a filosofia, quanto a filologia constituem uma Bildung prática que rejeitam, ao mesmo tempo, a medida dogmática e a ausência de medida. Na avaliação de Paul van Tongeren, seu sentido encontra-se na prática da sophrosine, conforme os gregos e a interpretação latina de Cícero. (Tongeren, 2009VAN TONGEREN, P. Measure and Bildung. In: HART, T. (Org.) Nietzsche, culture and education. Burlington: ASHGATE , 2009. p. 97-112., p. 97-112).
  • 3
    Encontramos em Deleuze essa tríade proposta para o filósofo a partir de Nietzsche na terceira parte do livro Nietzsche e a filosofia (Deleuze, 1976DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. Trad. Edmundo Fernandes Dias e Ruth Dias. Rio de Janeiro, RJ: Semeion, 1976. 170 p., 170 p.)
  • *
    Releitura do artigo Filosofia dos valores e Educação em Nietzsche mediante a inclusão do estabelecimento de um elo entre formação e ética desde a leitura de Max Weber e do conceito nietzschiano de filósofo do futuro.
  • 0
    Palavras-chave: Educação, valores, filósofos do futuro, criar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2022
  • Aceito
    17 Ago 2022
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