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Um filósofo* * Publicado no jornal O Paiz. Rio de Janeiro, ano 16, N. 5489, 16 de Outubro de 1899, p. 01.

Resumos

Artigo publicado em 1889, no jornal O Paiz. Nele, o autor discorre acerca da popularidade que a filosofia de Nietzsche alcançou na Alemanha e França do final do século XIX. Faz lembrar ainda a conflituosa relação entre o filósofo e seu país, transcreve algumas passagens de suas obras, apresenta considerações da crítica francesa a seu respeito e da influência de seu pensamento sobre artistas e literatos, não só europeus, mas também americanos, do norte e do sul.

Nietzsche; super-homem; Alemanha; França; América


Article published in 1889, in the newspaper O Paiz. In this article, the author talks away about the popularity of Nietzsche's philosophy in Germany and France at the end of XIX century. It also draws attention to the conflictual relation between the philosopher and his country, transcribes some passages of his works, presents considerations of French critics about Nietzsche and of the influence of his thought on artists and writers, not only Europeans, but also Americans, from North and South America.

Nietzsche; superman; Germany; France; America


Ao Dr. Silvio Romero

Friedrich Nietzsche é considerado na Alemanha contemporânea como um dos maiores pensadores do século.

Grande influência exerce no pensamento dos literatos e artistas, que no seu entusiasmo pelo autor de Zaratustra julgam-no pessimista a Schopenhauer, revolucionário moral a Tolstoi, original a Ibsen; nenhum escritor alemão, mesmo Henri Heine e Schopenhauer, tem sido tão pouco alemão como ele!

Entendia que "o dever de todo o bom alemão é se desgermanisar..." O seu modo de pensar e de escrever não é nebuloso nem metafísico assim como o da generalidade dos filósofos e escritores germânicos; tem uma forma breve e plástica as suas ideias, nitidez de beleza nas imagens.

Nietzsche, na opinião do critico de Écrivains Etrangers, não apresentava aspecto de alemão, pela fisionomia impressionava fortemente; os seus compridos bigodes e os enormes olhos negros, brilhantes como duas esferas de fogo, através do pince-nez, assemelhavam-no a um gato. Foi imenso o assombro que causou, em hotel em Tyrol, quando aquele escritor francês soube que estava em presença de Friedrich Nietzsche, professor de filosofia na universidade de Basileia.

Pelo nascimento pertencia ao reino de Saxe, mas de fisionomia, temperamento e caráter era inteiramente slavo; no físico e no moral parecia-se com esses extraordinários tipos de niilistas criados por Ivan Tourguénef e por Goutharouf nos seus romances sociais. Mentalmente adquirira vastíssima cultura da filosofia da Grécia e da literatura francesa dos séculos XVII e XVIII; adorava os escritores clássicos da França deste áureo período, conhecia todas as produções deles e não cessava de referi-las em citações ou testemunhos para as suas ideias.

Com estes elementos intelectuais preparou o cérebro e com a atividade pasmosa se dispôs para o trabalho de escritor.

Aos trinta e cinco anos formara o projeto de "passar em revista o conjunto das ideias, das emoções e das ações humanas. Examinaria todos os sistemas de metafísica e todos de moral, todas as teorias políticas, todas as ciências e todas as religiões". O seu fim seria efetuar uma travessia pelos domínios do pensamento.

Não é, pois, de estranhar que uma alma com esta complexidade ficasse um pouco doentia ou mórbida, malsã segundo Pompoyo Gener.

Suas doutrinas, cheias de ceticismo e de ironia acerca da natureza humana, estão vivazes nestes excertos que escolhemos ao acaso.

- A moral é uma mentira necessária para conter a selvageria existente em nosso íntimo. É uma mentira que alternadamente tem por base o temor, a esperança, interesse, a vaidade.

- A consciência é uma comodidade e um pretexto que tomamos para deixar de recorrer à nossa razão.

- Mostrar compaixão por alguém é o mesmo que mostrar que se deixou de respeitá-lo, enfim, que se tem desprezo...

- O reconhecimento é uma formula abrandada da vingança; o benfeitor se faz superior daquele que auxiliou e este readquire a sua superioridade pelo esforço reconhecimento.

- O egoísmo é a única lei da natureza humana, ele é o fundamento de todos os preconceitos morais. A forma suprema do egoísmo ocupa o lugar de sentimentos desinteressados.

- A vaidade é a pele da alma, serve para ocultar ao olhar dos outros a miséria de cada um.

O amor e a amizade não mereceram do ator do Caso Wagner menos rigor de análise e de conselho.

- Vai para oeste, eu irei para leste, é somente com esta condição que será possível a amizade... Com um homem bastante ocupado é que pode haver amizade possível, porque o homem desocupado envolve-se nos negócios do amigo e fica importuno rapidamente.

- Donde vem o profundo amor do homem pela mulher? Não pode ser só pela sensualidade, porém do homem encontrar ao mesmo tempo na mulher a brandura, a necessidade de auxilio e o sentimento de superioridade de que ele logo se possui e que desperta um misto de piedade e de humilhação - o que é a origem do amor.

- Uma prova admirável da superioridade intelectual da mulher está em que ela soube fazer-se sustentar pelo homem. Especulo com a vaidade dele, a pretexto de lhe deixar o domínio, a mulher deu-lhe o trabalho e a responsabilidade.

Igualmente sobre a arte e a política Nietzsche se manifestou de modo independente e bizarro. Entende que:

"O culto da Humanidade pelo gênio resulta de que por vaidade os homens atribuem proporções sobrenaturais a obras que não se sentem capazes de criar. Não querendo concordar que um homem possa produzir o que não nos seria possível, fazemos dessa individualidade um Deus, a fim de salvaguardar o nosso amor próprio".

Quando se julgava curado das dúvidas e incertezas que o atormentavam, Friedrich Nietzsche publicou o livro - Assim falou Zaratustra.

Desta obra diz Teodor de Wyzewa:

- Superior à medíocre humanidade hodierna, superior a nossa mesquinha existência de vícios e virtudes, desenvolve em frases perfumadas de poesia o ideal de uma humanidade, de uma vida magnifica. Com eloquência ao mesmo tempo desesperada e jucunda, o que faz deste livro o mais belo poema da prosa alemã; ele invoca o aparecimento do Super-homem, "do ser inteligente e forte destinado a livrar o mundo da sua degradação, resultante de tantos séculos de moral de religião...".

Um dos trabalhos mais importantes de Nietzsche e que deu lugar a grandes debates da opinião é a brochura O Caso Wagner, em reação franca às teorias do genial compositor.

Depois de acusar Richard Wagner de tornar a composição musical dificultadíssima, ele voltou às antigas ideias de fervoroso wagneriano a ponto de atacar os compositores que presumiram competir com o mestre de Bayreuth. A música de Wagner exercia tão dominadora influência sobre o seu sentimento que em 1868 assistindo a concerto em cujo programa havia o preludio de Tristão e Isolda a abertura dos Mestres Cantores, dizia que esta música irreversível agitava a sua serenidade de critico, fazendo vibrar todas as vibras e todos os seus nervos.

Não tardou que se lhe oferecesse ocasião de travar conhecimento com o glorioso compositor nacional da Alemanha moderna; a entrevista foi em Leipzig, onde Wagner era hospede incógnito de sua Madame Rietschl.

O mestre recebeu com amabilidade e lhe testemunhou o júbilo de que estava possuindo, conhecendo pessoalmente um critico familiar à sua música; assentou-se ao piano e executou as passagens importantes em Mestres Cantores, imitando todas as vozes. Na palestra referiram-se a Schopenhauer, e Wagner divertiu-se à custa do congresso dos filósofos reunido em Praga, leu um fragmento da sua autobiografia e à hora despedida apertou afetuosamente a mão de Nietzsche, convidando-o para aparecer outras vezes e conversarem sobre música e filosofia.

Professor de filologia em Basileia, estreitou a sua intimidade com o compositor de Parsifal; fazendo-se então o intérprete mais seguro da sua doutrina artística e na literatura wagneriana figura a biografia Richard Wagner em Bayreuth como uma das produções mais instigantes do pensamento de Nietzsche.

O eminente autor da Degenerescência classificou este pensador e filologista na galeria dos de traqués; de fato no organismo de Nietzsche a inteligência absorveu todas as outras faculdades. Portanto foi esta hipertrofia de intelectualidade que produziu a "catástrofe trágica" desta extraordinária celebração.

Mas o nome do escrito de Humano, muito humano! goza de grande fama em toda a Europa; diz dos seus admiradores que "a influência dos seus escritos se faz sentir no Triumfo de la morte de G. Annunzio, nos recentes dramas de Ibsen e em algumas obras dos romancistas da Rússia".

Vários escritores franceses têm divulgado ao público, de leitores latinos, as particularidades das obras e do caráter de Friedrich Nietzsche; no número desses está H. Abert, que é um apaixonado pelo nietzscheismo.

Os alemães votam imensa admiração às teorias do seu filósofo contemporâneo; professores ensinando nos cursos universitários e já se cultivam "uma literatura, uma música e uma política a Nietzsche".

Talvez prevendo o seu fim, foi que ele escreveu que: a civilização moderna, multiplicando os conhecimentos, chegava a equilibrar o sistema nervoso.

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    Publicado no jornal O Paiz. Rio de Janeiro, ano 16, N. 5489, 16 de Outubro de 1899, p. 01.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
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