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A chave do enigma: loucura ou pecado?

The Key of the Puzzle: Madness or Sin?

Resumo:

O artigo tem por objetivo analisar no aforismo 23, da segunda dissertação da Genealogia da Moral, a seguinte afirmação: “Loucura e não pecado! Vocês compreendem?”.

Palavras-chave:
Loucura; pecado; ressentimento; culpa

Abstract:

The article aims to analyse in aphorism 23, from the second dissertation of the On the Genealogy of Morals, the following statement by Nietzsche: “Madness and not sin! Do you understand?”

Keywords:
Madness; Sin; Resentment; Guilt

Escrevo este artigo para homenagear a amiga Vânia Dutra de Azeredo, incansável pesquisadora da obra de Nietzsche e preocupada com a educação na universidade e em todas as instituições de ensino. Hoje, felizmente, dispomos de seus livros para compreendermos esse filósofo e trazê-lo para nossas vidas de modo a conduzi-la a uma prática sadia, libertadora e criadora. A leitura do belo e instigante livro de Vânia: Nietzsche e a dissolução da moral (2000)AZEREDO, Vânia Dutra. Nietzsche e a dissolução da moral. São Paulo: Discurso Editorial; Íjui: Editora Unijuí, 2000. levou-me a escrever este artigo que tem como objetivo analisar na obra do filósofo a seguinte afirmação de Genealogia da moral: “Loucura e não pecado! Vocês compreendem?...”

Tomo como ponto de partida o item 23, da segunda dissertação da Genealogia da Moral”:

Isto deve bastar, de uma vez por todas, acerca da origem do “santo Deus”. - Que em si a concepção de deuses não conduz necessariamente a essa depravação da fantasia que tivemos de considerar por um instante, que existem maneiras mais nobres de se utilizar a invenção dos deuses, que não seja para essa violação e autocrucificação do homem, na qual os últimos milênios europeus demonstraram sua mestria - isto se pode felizmente concluir, a todo olhar lançado aos deuses gregos, esses reflexos de homens nobres e senhores de si, nos quais o animal no homem se sentia divinizado e não se dilacerava, não se enraivecia consigo mesmo! Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para manter afastada a “má-consciência”, para poder continuar gozando a liberdade da alma: uso contrário, portanto, ao que o cristianismo fez do seu Deus. Nisso eles foram bem longe, essas crianças magníficas e leoninas; e uma autoridade não menor que a do próprio Zeus homérico lhes dá a entender, vez por outra, que elas tornam as coisas fáceis demais para si mesmos. “Estranho”, diz ele numa ocasião - trata-se do caso de Egisto, um caso bastante grave - “Estranho, como se queixam dos deuses os mortais! Apenas de nós vêm seus males, acreditam; mas são eles que por insensatez, e mesmo contra o destino causam infortúnio”.

Mas aí se pode ver e ouvir que também esse juiz e espectador olímpico está longe de se aborrecer com os homens ou deles pensar mal: “como são loucos!” é o que pensa, ao observar os malfeitos dos mortais - e “loucura”, “insensatez”, um pouco de “perturbação na cabeça”, tudo isso admitiam de si mesmos até os gregos da era mais forte e mais valente, como motivo de muita coisa ruim e funesta - loucura e não pecado! Vocês compreendem?... Mas mesmo essa perturbação era um problema - “como é possível? Como pôde isso acontecer a cabeças como as nossas, nós, de ascendência aristocrática, homens afortunados, bem constituídos, da melhor sociedade, de nobreza e virtude?” - assim se perguntou durante séculos o grego nobre, em face das atrocidades e cruezas incompreensíveis com que um de seus iguais se havia maculado. “Um deus deve tê-lo enlouquecido”, dizia finalmente a si mesmo, balançando a cabeça... Esta saída é típica dos gregos... Dessa maneira os deuses serviam para, até certo ponto, justificar o homem também na ruindade; serviam como causas do mal - naquele tempo eles não tomavam a si o castigo, e sim, o que é mais nobre, a culpa... (GM/GM, II, 23, KSA 5.333NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Edição crítica organizada por Giogio Colli e Mazzino Montinari. Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, 1988.).

A questão que norteia este texto é: que sentido tem a existência para os gregos homéricos e para os cristãos? Hoje, é comum colocar a existência como algo que ainda não é, que é tal como não devia de ser e que precisa ser corrigida. A mentalidade judaico-cristã, constitucionalmente acostumada a encarar essa vida como prelúdio de outra e subordinada a ela, criou uma atitude de sensibilidade que se pode definir como um desprezo pela vida. O sofrimento foi usado como meio para provar a injustiça da existência, mas, ao mesmo tempo, como meio para encontrar-lhe uma justificativa superior e divina. Na obra de Nietzsche, o par “dor e existência” tem um relevo especial; daí a pergunta pelo sentido de a existência remeter a outra questão: que lugar ocupa a dor na existência?

Nos tempos pré-homéricos, a imaginação grega revestia-se de atrocidades. Época sanguinária em que dominavam os “filhos da noite, a guerra, a obsessão, o engano, a velhice e a morte.” (CV/CP, “A disputa em Homero”, KSA 1. 790). Esta noite dos tempos, onde reinava a Eris cruel, deixou traços profundos na alma grega. A tal ponto que uma escola como a de Orfeu, de Museu e seus cultos ver a existência com profundo desgosto. Compreender essa vida como um castigo a expiar. Acreditar na identidade existência e culpabilidade. Estas consequências, segundo Nietzsche, não são especificamente helênicas, mas teriam vindo do contato com a Índia e o Oriente. (CV/CP, “A disputa em Homero”, KSA 1. 783).

Mas os gregos, povo que sentiu os horrores da existência, gerou em sonho o mundo brilhante dos deuses olímpicos. A imaginação transfiguradora criou os deuses como imagem reflexa dos homens nobres e orgulhosos. Os atos dos deuses são atos dos homens magnificados, são do mesmo gênero, mas em ponto maior, em ponto divino. Os homens não saem da humanidade rejeitando-a, mas glorificando o semideus no homem. A natureza divina é simplesmente super-humana. A imagem desses deuses não tem nada que lembre o ascetismo, a imaterialidade ou o dever, há uma vida exuberante, triunfante na qual tanto o bem como o mal se encontram divinizados. Os deuses legitimam a vida humana vivendo-a eles mesmos.

A superabundância de vida dos gregos vem da maneira como eles inserem seu corpo na vida. Guerras, aventuras, caça, dança, jogos e exercícios físicos, tudo isso contribui para uma atitude robusta, alegre e livre.

Quando se fala de humanidade, a noção fundamental é a de algo que separa e distingue o homem da natureza. Mas tal separação não existe na realidade: as qualidades “naturais” e as propriamente chamadas “humanas” cresceram conjuntamente. O ser humano, em suas mais elevadas e nobres capacidades, é totalmente natureza, carregando consigo seu inquietante duplo caráter. As capacidades terríveis do homem, consideradas desumanas, talvez constituam o solo frutífero de onde pode brotar toda humanidade, em ímpetos, feitos e obra. (CV/CP, “A disputa em Homero”, KSA 1. 783).

Aos seus instintos os gregos davam de quando em quando uma festa. Eles, os homens mais humanos da antiguidade, possuíam um caráter cruel e traziam, marcado em si, um desejo selvagem de destruição. Mas é importante notar que na guerra, nas competições, os homens podiam dar livre curso ao seu ódio. Em tais situações, seus sentimentos reprimidos se liberavam e uma incrível crueldade brilhava em seus olhos. A crueldade ou a destruição são aceitas apenas enquanto criadoras. Apenas criando podemos aniquilá-la. O domínio de si, a justa medida são fundamentais ao se dar livre curso aos instintos.

Ao se perguntar o que quer dizer uma vida de luta e de vitória, Nietzsche traz o poema didático Os trabalhos e os dias”, de Hesíodo, que foi inscrito em uma placa de pedra severamente castigada pelo tempo. O viajante Pausânias, que a tinha nas mãos, reconheceu que “ao contrário dos exemplares usuais, o poema não possuía em seu início a invocação a Zeus, mas começava imediatamente com o esclarecimento: “Há sobre a terra duas deusas Eris.” (CV/CP, “A disputa em Homero”, KSA 1.786). Uma Eris deve ser louvada, a outra deve ser censurada, pois diferem totalmente. Hesíodo rejeita a Eris má, aquela que conduz os homens à luta aniquiladora e hostil e enaltece a Eris benfazeja, aquela que Zeus colocou nas raízes da Terra e entre os homens, como melhor e como ciúme, rancor, inveja para estimular os homens para a ação da disputa, para a superação e não para a luta destruidora.

Esses sentimentos dolorosos se exprimem em um momento histórico onde há superabundância de vida. Um momento privilegiado anterior a todo dualismo metafísico, a toda distinção entre teoria e prática, a toda a fissura entre vida e pensamento. Em sua atuação, a boa Eris desperta nos homens a inveja produtora: aquele que carece de posses observa o outro, que é rico, e então se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este e a ordenar bem a casa; um vizinho rivaliza com o outro vizinho para também construir uma casa para seu bem-estar. Assim, toda a sociedade grega é atravessada pela altiva lei da competição. “O sentido original desta instituição singular não é, porém, o de válvula de escape, mas de um meio de estímulo.” (CV/CP, “A disputa em Homero”, KSA 1.786). A competição detesta o domínio de um só, teme seus perigos, daí eliminar aqueles que sobressaem para que o jogo da disputa possa despertar novamente. A competição é inimiga da exclusividade do gênio, há sempre vários gênios que se estimulam mutuamente para a ação, assim como se mantêm mutuamente nos limites da medida. Aqueles que se sobressaíam muito na competição, tornando-se imbatíveis, não eram bem-vistos pela comunidade grega, pois colocavam em perigo o próprio princípio da vida e da cidade.

Essa competitividade se estende nas lutas corporais, nas práticas desportivas, nas atividades artísticas:

Os artistas gregos, os trágicos, por exemplo, criavam para vencer; toda a sua arte é impensável sem a competição: a boa Eris de Hesíodo, a Ambição, dava asas ao seu gênio. Esta ambição exigia, antes de tudo, que sua obra mantivesse a excelência máxima aos seus próprios olhos, tal como eles compreendiam a excelência, sem consideração por um gosto reinante e pela opinião geral sobre o que é excelente numa obra de arte. (MAI/HH I, 170, KSA 2.158).

Hesíodo também revelou que o princípio de vida do Estado grego era a competição. Esta tem a finalidade de desenvolver a personalidade do jovem ateniense. Ao entrar em competição (corrida, lança, teatro ou canto) o grego pensava na sua glória, mas também na glória de sua cidade natal. E aos deuses do lugar entregava sua coroa de louros.

Assim, as competições tinham um sentido político e cultural. O Estado grego sancionou a arena como o lugar onde o impulso de vencer e prevalecer podiam ser descarregados sem colocar em perigo a ordem política, e o lugar onde o homem adestrava suas forças reativas. Dar livre curso aos instintos, isto é, dentro dos limites de justa medida, significava poder fazer tábula rasa da consciência e ter em bom funcionamento a faculdade ativa do esquecimento. A cultura era vista assim no seu sentido ativo, embora tivesse a função de criar hábitos e regularidades, ou seja, de fazer uma memória, proporcionava um meio de vazão dos instintos, uma boa hierarquização destes e em bom funcionamento à faculdade ativa do esquecimento.

É importante frisar que os deuses eram espectadores da luta. Estavam ali para zelar pela manutenção da competição. O olhar invejoso dos deuses recaía sobre aquele que se distinguia como o melhor. Ele podia ser um rival.

No texto “A disputa em Homero”, há um exemplo que esclarece a relação da cultura com o indivíduo na época de Homero através dos infortúnios de Miltíades, vencedor das competições. Ele desrespeitou a lei da disputa, ao se sobressair como o melhor e o imbatível. Por isso, foi colocado no lugar de honra, isolado e bem acima de todos os seus companheiros de combate. Contrariamente ao que era norma nesse período homérico, Miltíades sentiu nascer nele um desejo mesquinho de vingança contra um cidadão de Paros em relação a quem nutria uma velha inimizade. Impossibilitado de participar das disputas e, portanto, dar livre curso aos seus instintos de modo a conseguir uma boa hierarquização destes, vê nascer em si um desejo de vingança.

O herói aproveita seu prestígio e requisita aos atenienses o fornecimento de naus e dinheiro para empreender uma incursão com esse objetivo. Sofrendo resistência dos habitantes de Paros para satisfazer esse rancor, abusa de seu renome no Estado, de sua dignidade de cidadão e acaba por se desonrar. Como se não bastasse esse ato, aconselhado que, ao tocar em um objeto sagrado, obteria a força necessária para a realização de seu intento, trama com Timo - sacerdote de Deméter - de penetrar no templo sagrado de onde todos os homens eram excluídos. Ao atravessar o muro e entrar no santuário, um “temor medonho” toma conta dele de súbito. Desfalecido e sem sentidos, vê-se repelido, atirado de volta sobre o muro, precipitando-se lá embaixo, entrevado e gravemente ferido. Ao colocar em perigo o princípio da vida do Estado Grego, Miltíades recebe o castigo.

O Tribunal do povo o aguardava: um lugar de justiça, de espetáculo, onde o devedor pagava as dívidas que contraiu com o Estado e com os cidadãos. Miltíades era responsável por uma dívida, mas não culpado. A sua dor era um meio de troca, uma moeda corrente com a qual pagava ao Estado e aos cidadãos, o exato equivalente de um dano causado, de uma promessa não cumprida. A competição se opunha à ideia de exclusividade. Aqueles que participam dela deviam manter-se dentro dos limites da justa medida.

Ainda é importante notar que as vitórias consecutivas de Miltíades atiçavam os deuses. Após a batalha de Maratona, a inveja divina se incendeia ao avistar o homem sem qualquer adversário e opositor, nas alturas mais isoladas da fama. Ele tinha apenas os deuses a seu lado - por isso, agora ele os tinha contra si. Os deuses, porém, o seduziram para um ato de hybris (desmesura), sob o qual ele sucumbiu. Eles passaram a vê-lo com olhares invejosos e tramaram sua destruição. Os deuses tornaram-no louco. Porém, Miltíades não é culpado pela desmesura, e sim os deuses que tramaram sua destruição.

Os nobres tinham um segredo: sabiam que a dor dava prazer a alguém. A dor era vista no elemento de sua exterioridade, no seu sentido ativo. Não era argumento contra a vida, mas um excitante da vida. Todo mal era justificado desde que um deus se comprazia em olhar para ele. Toda humanidade antiga estava cheia de respeito para com o espectador, porque este mundo era feito para os olhos, não podia se conceber a felicidade sem espetáculos e festas.

As cidades gregas soçobraram quando deixaram a arena da disputa e ergueram templos à vitória. O princípio de vida do Estado grego sucumbiu e os homens gregos, como Miltíades, provocaram sua própria queda. Erguer templos à vitória, à eternização não mais da luta, mas da glória, do sucesso, faz com que os homens que até então usavam a competição como um meio de dar livre curso aos instintos se perdessem. A desmesura dos gregos não tinha limites, mesmo assim não são culpados. Foram os deuses que os tornaram loucos.

“Pecado, vocês compreendem?”

Os comediantes da virtude e do pecado - Entre os homens da antiguidade que se tornaram famosos por sua virtude, havia, ao que parece, um número extraordinário daqueles que atuavam diante de si mesmos: em especial os gregos sendo atores natos, o teriam feito de modo completamente involuntário e o teriam julgado bom. E cada um achava-se com sua virtude, em competição com a virtude do outro ou de todos os outros: como não teria utilizado todas as artes para pôr à mostra sua virtude, sobretudo ante si próprio, por exercício que fosse! De que adiantava uma virtude que não se podia mostrar ou que não sabia mostrar-se? - O cristianismo deu fim a esses comediantes da virtude: para isso inventou a repulsiva exibição e alardeio do pecado, trouxe ao mundo a pecaminosidade fingida (até hoje considerada “de bom tom entre os bons cristãos”). (M/A, 29, KSA 3.39).

Vimos que no mundo grego a crueldade não era negada, pelo contrário, este instinto era até mesmo divinizado. O choque entre os indivíduos era algo superficial, não havia interioridade, nem profundidade. O grego sentia-se feliz em se assemelhar a peixes voadores que brincam nas mais altas cristas das ondas: acham que o melhor das coisas se encontra na superfície: no que existe à flor da pele.

Os homens aristocratas, que entre seus iguais se continham nos limites dos costumes, do respeito, da gratidão, quando saíam do círculo da sua classe pareciam feras em liberdade, livres das prisões sociais. Indenizavam-se através de uma série de malfeitos, descarregando sua tensão nos povos aprisionados e feitos escravos. A sua indiferença, o desprezo pelo bem-estar na vida, a alegria profunda de destruição, os prazeres da vitória, da crueldade: na imaginação das vítimas, tudo isso se resumia na noção de “bárbaro” (Cf. GM/GM, I, 11, KSA 5.274), maligno, vândalo, malvado. Mas como veremos, essa atitude “besta loira” da classe dos guerreiros trouxe sérias consequências para a civilização ocidental.

No primeiro tratado da Genealogia da moralNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987., Nietzsche, em seu exercício de filólogo-filósofo, buscando a etimologia, o significado originário dos termos básicos da linguagem moral: bom e mau, em várias línguas, procurou compreender a gênese dos valores morais e sua transformação. A tese central é a de que há uma dupla origem de valores morais e de uma oposição histórica irredutível entre dois tipos fundamentais de moral: uma “moral dos mestres” e uma “moral dos escravos” ou, para usar as expressões de “Crepúsculo dos ídolos” (GD/CI, A moral contra a natureza, 4, KSA 6.85): uma “moral sadia”, natural, regida pelos instintos da vida e uma moral “contranatural”, voltada contra os instintos da vida. São dois tipos de moral que nada têm em comum.

Nietzsche apresenta a transformação conceitual dos valores bom e mau, mostrando que em diferentes línguas o termo bom (gut) significou nobre, aristocrático, no sentido animicamente superior; e mau (schlecht) designava o que era ruim, vulgar, plebeu. O filósofo lembra que a superioridade do conceito de “nobre” se apoia em diversos critérios, como superioridade de poder, riqueza, mas também em um aspecto mais interessante: “um traço típico de caráter”. Eles se denominam, por exemplo, “os verazes”; “alguém que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro” e, com isso, distingue-se do homem comum, qualificado de “mentiroso, tal como Teógnis o vê e descreve” (GM/GM, I,5, KSA 5.262).

Nietzsche escreve: “Descobri então que todas elas remetem à mesma transformação conceitual - que em toda parte, ‘nobre’, ‘aristocrático’ no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu ‘bom’, no sentido de ‘espiritualmente nobre’, ‘aristocrático’, de espiritualmente bem-nascido, espiritualmente privilegiado.” (GM/GM, I, 4, KSA 5.261). Assim, quem diz eu sou bom não se compara com ninguém e nem tem como modelo valores superiores e transcendentes. Diz: eu sou bom, não espera ser chamado de bom. Tudo o que encontra em si honra tal ética que consiste na glorificação de si mesmo.

O bom procura seu antípoda para se afirmar com maior alegria. Esse é o estatuto da agressividade. Os gregos são os artistas mais inconscientes e involuntários. Sua obra consiste em criar instintivamente formas e imprimir seu cunho em todas as coisas. Não sabem o que é culpa e responsabilidade. Agora, sem eles não teria brotado a má-consciência. Uma quantidade de liberdade foi arrojada do mundo, ou melhor, desapareceu.

Mas essa forma aristocrática de valorar foi sofrendo um processo de transformação. Com o surgimento de uma casta sacerdotal tudo se torna mais perigoso e como Nietzsche acrescenta: “o homem se tornou um animal interessante” (GM/GM I, 6, KSA 5.266). A casta nobre-sacerdotal surge como uma degeneração da casta aristocrática, invertendo a valoração aristocrática baseada na força e na ação para outro tipo de valoração que parte da impotência e da espiritualidade. Assim, a casta judaica-sacerdotal inicia a rebelião dos escravos na moral - e essa terá sua continuação no cristianismo. Promove uma guerra oculta contra os nobres e fortes:

[...] com apavorante coerência, ousaram inverter a equação de valores aristocrática (bom=nobre= poderoso=belo=feliz=caro aos deuses), e com unhas e dentes (os dentes do ódio mais fundo, o ódio impotente) se apegaram a essa inversão, a saber, “os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são os bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, unicamente para eles há bem-aventurança” - mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados! (GM/GM, I, 7, KSA 5.267).

Um estranho silogismo é construído: “Tu és mau, eu sou bom.” Estranho silogismo que começa a negar o outro, o que era bom, e se afirmar como bom. O mau desse silogismo era aquele que agia, que dava livre curso aos seus instintos, que levava sua força até onde podia, afirmava sua diferença com relação aos outros. O bom, agora, é o que antes era o ruim, na moral dos senhores. Este bom é o fraco, que se contém em agir, que se mede com os outros, que não faz mal, que não ataca, nem usa de represálias; que deixa a Deus o cuidado da vingança.

Segundo Nietzsche, este tipo de silogismo não só forja outro mundo, como também exclui o mundo real, em função de um mundo do além. E é para esse além que se projetam todos os desejos, principalmente o desejo de encontrar no mundo aquilo que permanece. É o sofrimento, a dor, não mais como consequência da vontade de afirmar que inspira essas conclusões negativas. Existe sofrimento neste mundo, logo existe outro mundo mais precioso onde não há sofrimento. O ressentimento dos doentes para com a realidade torna-se criador. A rebelião escrava na moral triunfou definitivamente. Essa rebelião dos escravos na moral acabou por instaurar a moral dos escravos, totalmente oposta à primitiva ética nobre. Como vimos, a ética nobre surge da afirmação de si mesma e da ação, enquanto a moral dos escravos surge da negação e da reação contra tudo o que é nobre e superior.

Os dois valores contrapostos da moral nobre são gut-schlecht (bom e ruim) e são muito diferentes dos valores na moral dos escravos gut-böse (bom e malvado). Na moral dos escravos, moral do ressentimento, malvado é justamente o que na outra moral era o bom: poderoso, o dominador, que antes era chamado de bom, mas agora é malvado. Essa inversão dos valores foi tramada pelos fracos para acabar com todas as raças nobres: a nobreza romana, árabe, germânica, japonesa, os heróis homéricos, vikings escandinavos.

No parágrafo 13 da Genealogia da moralNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987., Nietzsche aprofunda essa questão, apresentando a metafísica que sustenta essa inversão de valores: “Exigir da força, que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força.” (GM/GM, I,13, KSA 5.279). É uma ficção do pensamento separar a força do que ela pode, assim como é ficção a fraqueza se manifestar como força. Essa ficção tem seu sustentáculo em toda a metafísica. Sustentada na sedução da linguagem que nos faz duplicar as coisas, crendo que existe um sujeito por um lado e as ações do sujeito de outro, que pensa ser possível separar o raio do relâmpago assim, pensamos que se pode separar a força de sua manifestação. Para Nietzsche, isso é um erro. “Não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; o agente é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo.” (GM/GM, I,13, KSA 5.279). Os fracos, apoiando-se nesse pensamento de separação entre ser e fazer, entre manifestar e não manifestar a força, fazem crer que renunciaram a manifestar sua força, que sua fraqueza é meritória porque se trata de um ato voluntário e livre.

A linguagem pode nos conduzir a buscar aquilo que permanece. A ideia de sujeito, de causalidade, de substância é uma ficção que surgiu a partir de um hábito gramatical que liga a ação ao seu autor. Embora a força não se separe de sua manifestação, faz-se da manifestação um efeito; a partir desse efeito, procura-se uma causa. Inventa-se um sujeito neutro (substratum), dotado de livre arbítrio, ao qual emprestamos o poder de agir ou de se conter. No momento em que o pensamento desdobra as relações de força em causa e efeito, em sujeito, um passo a mais essa relação poderá vir a ser moralizada. É meritória a força que se contém de agir e culpada aquela que manifesta a força. Eis aí a desvalorização do movimento e a procura do fixo e do que permanece, como sinônimos do Bem e Mal.

Nietzsche desmascara o que existe sob a moral dos escravos, a forma como foram fabricados os seus ideais, transformando a fraqueza em mérito, a impotência em bondade, o temor em humildade - isto é, todas as manifestações da debilidade transformadas em méritos e virtudes de um sujeito livre. Esses fracos querem ser fortes, esperam que chegue seu reino, terão assim a vingança mais terrível, a vingança eterna, por isso precisam da vida eterna. Os humildes, os pacientes que evitam o encontro com o mal, esperam pouco dessa vida, mas muito de outra vida, em que reina o Bem, a santidade da vida eterna. Eis aí o nascimento do Bem e do Mal, da determinação ética do bom e do ruim.

No parágrafo 10 da Genealogia da moralNIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987., Nietzsche apresenta o primeiro aspecto do ressentimento:

A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtém reparação. Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante dizer Sim a si mesmo, já de início a moral escrava diz Não a um “fora”, um “outro”, um “não eu” - e este Não é seu ato criador. (GM/GM, I,10, KSA 5.270).

O segundo aspecto é a invasão dos traços da memória na consciência. O homem do ressentimento perde a faculdade ativa do esquecimento, não faz mais tábula rasa da consciência para que ações mais nobres tomem lugar. Ele não reage a nada, tudo lhe fere. A reação deixa de ser acionada para tornar-se algo de sentido. O que lhe fere fica a tal ponto gravado em sua memória que hipnotiza todo o seu sistema nervoso: ele não sai de nada. Incapaz de reagir, em estado praticamente letárgico, ele ressente e ataca um objeto qualquer, é preciso vingar-se. O objeto é, assim, responsável pela sua impotência. Em volta do homem do ressentimento só há faltas, lacunas. É preciso encontrar o responsável por tal estado de coisas.

Quem retirou o ressentimento do seu estado bruto e deu forma a ele foi a rivalidade entre a casta dos guerreiros e aquela dos sacerdotes judeus que conduziu a inversão da ética guerreira em moral dos escravos. Esses sacerdotes, mestres destronados, mobilizaram contra os guerreiros todos os fracos e todos aqueles que sofrem.

E para onde vai o instinto de crueldade que é próprio da natureza humana? A ira, a crueldade e a vontade de perseguir voltam-se contra o próprio homem. Todos os instintos que não têm saída, que alguma força repressiva impede de explodir para fora, voltam-se para dentro, é o que Nietzsche chama de “interiorização” do homem, na qual está a origem da má-consciência (Cf.GM/GM, II,16, KSA 5.321).

O instinto interiorizado produz dor e, com isso, o mundo interior adquire largura, altura e profundidade. Inventou-se um novo sentido para a dor, um sentido interno. Essa secreta auto violação, a essa “crueldade de artista”; esse prazer de dar forma a si mesmo como uma matéria bruta, de marcar a fogo nela uma vontade, uma crítica, uma autocontradição, um desprezo, um não, esta alma voluntariamente cindida consigo mesmo se faz sofrer pelo prazer de se fazer sofrer.

Quem é que inventa e quem quer esse sofrimento interno? É o sacerdote ascético que faz a má-consciência sair de seu estado bruto, animal (Cf. GM/GM, III, 20, KSA 5.387). É ele que preside a interiorização da dor. É ele, o sacerdote médico, que cura a dor, infecionando o ferimento. É ele, o sacerdote artista, que conduz a má-consciência a sua forma superior - a dor como consequência de um pecado. O sacerdote cristão muda a direção do ressentimento. Lembremos que o homem do ressentimento acusa. É tua culpa, o sacerdote judeu organiza esse sentimento e diz: são os nobres que são os maus. O sacerdote cristão muda a direção do ressentimento e diz verdade minha ovelha, alguém deve ser a causa de tudo o que sofre, mas a causa está não fora de você, mas em você mesmo. Até que o sujeito bata no peito e diga é minha culpa: o sacerdote inventa a noção de pecado. O pecado é o nome dado pelo sacerdote à má-consciência animal (a crueldade interiorizada) (Cf. GM/GM, III, 20, KSA 5.387).

O sacerdote deu ao homem a primeira explicação para a causa do seu mal e fez com que ele procurasse em si mesmo, em alguma falta cometida no passado, interpretando essa dor como sendo castigo. De doente o homem converteu-se em pecador.

O ressentimento diz: é tua culpa; a má consciência diz: é minha culpa. O ressentimento não se acalma enquanto não contagia os sadios. A vingança contra a vida triunfa quando conseguirem infundir na consciência dos felizes a sua própria miséria. Que vergonha sermos felizes em presença de tantas misérias (Cf. GM/GM, III,14, KSA 5.367).

A noção de pecado deu frutos. O sacerdote médico é aquele que cura a dor envenenando o ferimento. O homem do ressentimento, da má-consciência está mergulhado na dor, vê a existência como algo sem sentido. A natureza é, por princípio, diabólica e lugar do mal. Os instintos sem saída voltam-se para dentro do homem e ferem. Para tirar o homem da letargia, da negação radical, o sacerdote vem e diz: no fundo, todas as paixões são boas, mas é preciso lhes dar uma boa direção. A cólera, o prazer, o temor, o ódio, a esperança, o triunfo, a crueldade - o sacerdote cristão tomou ao seu serviço toda matilha de cães selvagens que ladram no homem e lançou ora um ora outro para despertá-lo de sua larga tristeza, para libertá-lo de sua dor surda, mas sempre guiado por uma justificação religiosa.

A desmesura tem uma significação importante para o padre cristão, porque é por meio dela que ele pode interiorizar mais a dor, tornar o homem um sofredor e transformar a natureza em pecado. O corpo, os instintos são faltas para com o Deus Santo. O homem está sempre em dívida, é sua natureza ser pecador, a tal ponto que foi preciso a vinda de Jesus, a sua morte na cruz, para redimir os homens do pecado original. Deus mesmo se ofereceu em sacrifício para pagar as dívidas dos homens.

Agora os homens e não os deuses são culpados pela desmesura. O homem é responsável pela loucura de um Deus que se crucifica a si mesmo.

Referências

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  • AZEREDO, Vânia Dutra. Nietzsche e a aurora de uma nova ética São Paulo: Humanitas; Íjui, Unijuí, 2008.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2021
  • Aceito
    16 Dez 2021
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