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Uma resposta nuançada à pergunta acerca das implicações relativistas do perspectivismo nietzschiano

CORBANEZI, Eder. . Perspectivismo e relativismo na filosofia de Nietzsche . São Paulo, Ed. Unifesp, 2021, 192p.

O livro de Eder Corbanezi, Perspectivismo e relativismo na filosofia de Nietzsche, uma versão modificada e consideravelmente ampliada de sua dissertação de Mestrado, defendida em 2013 na USP sob orientação da professora Scarlett Marton (Cf. Corbanezi, 2013______. Perspectivismo e relativismo em Nietzsche. São Paulo: USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, 2013 (107p).), publicado no ano de 2021 pela Coleção Sendas & Veredas [Ensaios] numa parceria entre a Editora da Unifesp e o GEN (Grupo de Estudos Nietzsche), tem como objetivo responder a uma questão bastante pontual: em que medida o perspectivismo de Nietzsche incorre em relativismo? Para responder a esta questão principal, Corbanezi mobiliza alguns dos principais conceitos da filosofia teórica de Nietzsche, exibindo competentemente suas articulações internas (concepção de mundo, vontade de potência, forças, perspectiva, interpretação, relação, impulsos, valores). Ao fazer essa opção, ele contraria uma certa preferência atual por explorar temas mais periféricos da obra do filósofo alemão. Esses conceitos nucleares do pensamento nietzschiano são reconstruídos com notável paciência, mas sem nenhuma concessão digressiva; suas articulações são exibidas com clareza e suas implicações argumentativas apresentadas ao leitor com uma precisão que busca o convencimento sem apelar a ênfases retóricas compensatórias. Essas qualidades do trabalho permitem que ele ao mesmo tempo resista de forma exemplar a uma tendência relativamente comum entre os estudiosos de Nietzsche, que é a de se deixar seduzir pela tentação de aparar as arestas e tensões a que estamos expostos enquanto leitores de sua obra. A caridade interpretativa é um princípio hermenêutico louvável, mas está sempre na iminência de se converter ou numa patética atitude paternalista face a grandes filósofas e filósofos (que passam muito bem sem nossa ânsia de torna-las consistentes a qualquer preço) ou numa espécie de anacronismo arrogante, que faz com que mobilizemos soluções ad hoc que têm o intuito de ocultar as referidas arestas e tensões, mas que na prática implicam numa extemporaneidade às avessas, na qual os preconceitos teóricos do presente fornecem o padrão para acessar a razoabilidade de posições teóricas do passado, ao invés de reconstruir essas posições com o intuito de tornar menos confortável nossa lida com os esquemas conceituais do presente. Ambas as tentações deveriam encontrar resistência entre os leitores de Nietzsche, um filósofo que viu na extemporaneidade uma forma essencial de confrontação agonística com o presente, e que recomendou essa atitude de confrontação como um imperativo da vida filosófica. Corbanezi é um intérprete exemplar também na medida em que evita ambas as tentações e nos apresenta uma resposta à questão principal posta por sua investigação que preserva um dos aspectos mais valiosos do pensamento de Nietzsche: sua aguda consciência da complexidade dos problemas filosóficos, que impede respostas simples e teoricamente apaziguadoras. Tudo no livro se lê com grande proveito, mas infelizmente as exigências formais de uma resenha obrigam seu autor a ser bastante seletivo, sacrificando inúmeros detalhes e insights que apenas uma leitura em primeira mão pode oferecer. E é a ela que eu convido o leitor desta resenha. Feita essa recomendação inicial do livro, passemos a uma descrição de seu conteúdo. Uma ou outra ponderação crítica, tanto de seus resultados quanto de suas escolhas metodológicas serão feitas sobretudo em algumas notas de rodapé e à medida em que os temas são apresentados ao leitor.

O livro de Corbanezi está dividido em quatro capítulos, os dois primeiros com cinco seções cada, o quarto com três seções e o terceiro sem nenhuma divisão em seções. Esses capítulos são precedidos por uma pequena introdução, que apresenta o problema, as respostas dadas a ele por parte da literatura secundária canônica, as razões pelas quais se considera que essas respostas são insuficientes, as linhas gerais do que será a resposta alternativa a ser defendida e rápidas considerações de natureza metodológica. Por fim, há uma brevíssima conclusão na qual o leitor encontrará uma recapitulação dos passos principais do argumento desenvolvido no livro.

A leitura da introdução nos instrui sobre a tese central que será defendida no livro. Não há uma resposta unívoca à questão principal se o perspectivismo de Nietzsche incorre em relativismo. Como antecipei acima, a resposta exige a mobilização de algumas noções centrais da filosofia teórica de Nietzsche (uma exigência intensificada pela opção metodológica do autor por uma leitura imanente da obra). O exame desses conceitos (realizado sobretudo nos capítulos 1 e 2, com um rigor e precisão notáveis) “aponta uma possível equivocidade no pensamento de Nietzsche, que, de um lado, combate e até inviabiliza o relativismo, ao mesmo tempo que, sob outros aspectos, talvez o admita e o radicalize” (Corbanezi, 2021CORBANEZI, E. Perspectivismo e relativismo na filosofia de Nietzsche. São Paulo: Editora Unifesp, 2021., p. 10). O leitor não deve se impressionar com as modalizações contidas na passagem que acabo de citar: a equivocidade não é meramente possível e o “talvez o admita e o radicalize” é uma concessão às convenções literárias da introdução e uma gentileza para com o leitor, que ainda não percorreu os passos argumentativos que têm por objetivo autorizar uma mudança nas expressões modais, substituindo-as por termos que expressam compromissos mais assertivos. O objetivo do trabalho é provar, contra a leitura hegemônica na literatura secundária (ou na forma de uma complementação dessa literatura, o que talvez seja uma formulação mais adequada tendo em vista o estilo pouco adversarial do autor), que a questão não comporta uma resposta negativa unívoca, e isso significa: se por um lado o perspectivismo de Nietzsche recusa e combate o relativismo, por outro lado ele de fato o admite e mesmo o radicaliza. Como é possível defender uma semelhante conclusão? Em alguma medida, podemos dizer que Corbanezi chega a esse resultado aparentemente contraintuitivo mobilizando os recursos da própria filosofia nietzschiana, ou seja, perspectivando a questão. Se por um lado, a literatura secundária está correta ao afirmar quase consensualmente que Nietzsche não é relativista1 1 Corbanezi cita como exemplos representativos desse consenso (ou interpretação hegemônica) Müller-Lauter (1974), S. Marton (2000), P. Wotling (2009) A. Marques (2003), C. Denat (2010) (cf. as páginas 11-13, assim como as páginas 121-122, especialmente as notas 2e 3 do capítulo 3). , ela o faz na medida em que entende o relativismo como a tese segundo a qual “todas as interpretações se equivalem”2 2 Corbanezi cita como exemplos de intérpretes de Nietzsche que aceitam implícita ou explicitamente essa definição de relativismo, A. Nehamas (2002), M. Clark (1990), S. Hales e R. Welshon (2000), M. Dixsaut (2012), P. Wotling (2016), M. Lima (2018). Segundo ele, a constatação de que esse seria um pressuposto definicional compartilhado pela pesquisa Nietzsche que trata da relação entre perspectivismo e relativismo encontra-se também em A. Itaparica (2010). Conferir sobre isso a nota 4 nas páginas 122-123. (tese da equivalência das interpretações) e na medida em que entende o perspectivismo à luz do conceito de vontade de potência, ou seja, na medida em que acessa a questão a partir da perspectiva instaurada pelo critério nietzschiano (por um ponto de vista que é interno à sua perspectiva das vontades de potência). Ao circunscrever o conceito de relativismo à tese de que todas as interpretações têm o mesmo valor ou se equivalem (uma concepção que o autor julga “não só restrita em demasia, mas até mesmo equivocada” (p. 123), e ao subordinar o perspectivismo à doutrina das vontades de potência, os intérpretes combinam as duas teses na forma de um argumento que permite concluir que o perspectivismo nietzschiano não incorre em relativismo. Mas esse argumento se sustenta em pressupostos problemáticos ou apenas parcialmente corretos, pois o relativismo não equivale necessariamente a uma ausência de critérios e de hierarquização (o que seria uma forma radical de relativismo), mas antes à tese de que tais critérios são sempre relativos a um determinado horizonte de inteligibilidade, que pode ser circunscrito de formas variadas, por exemplo, a uma determinada alguma espécie animal (os seres humanos), a uma determinada cultura, a uma forma de vida, a algum esquema conceitual e/ou perceptual, a um certo arranjo teórico que podem exibir graus variados de incomensurabilidade3 3 Corbanezi faz um belíssimo trabalho ao insistir na insuficiência do conceito de relativismo pressuposto na pesquisa Nietzsche (ao identificá-lo à tese da equivalência entre as diversas interpretações, que por sua vez remete à ausência de critérios e hierarquizações; na prática, à tese de que todas as interpretações têm o mesmo valor). Mas o leitor talvez se ressinta com alguma razão da ausência de uma definição mais explícita (ainda que estipulativa) do que seria então um conceito mais satisfatório de relativismo para o autor. Por tudo que é dito no texto, e principalmente por contraste com o que o autor julga insuficiente na tese da equivalência, devemos supor que uma definição mais interessante envolva a tese de que os critérios que usamos para avaliar e hierarquizar as diversas interpretações são sempre internos e relativos a uma determinada cultura, esquema conceitual, linguagem, constructo teórico, etc... (em oposição à suposição de que tais critérios seriam objetivos, absolutos, incondicionais, únicos, ou seja, independentes de certos parâmetros dados internamente a uma determinada perspectiva). Em contraste com a definição do relativismo como equivalência das interpretações, poderíamos então pensar numa definição em termos de internalismo dos critérios e parâmetros. . Trata-se, portanto, de mostrar que o fato de Nietzsche estabelecer um critério (a vida concebida como vontade de potência, e a vontade de potência em sentido ascendente) que lhe permite distinguir e hierarquizar interpretações (entre boas e ruins, promotoras e inibidoras da vida ascendente) não é suficiente para construir um argumento sólido a favor da exclusão de toda e qualquer implicação relativista de sua filosofia. Para examinar adequadamente a questão, ou seja, para examiná-la sem cometer uma petição de princípio em favor de Nietzsche, ou até mesmo contra ele (a depender de a quais intenções atribuímos maior centralidade em seu programa filosófico), é preciso antes “investigar como esse pensamento peculiarmente caracterizado por um perspectivismo e um antidogmatismo radicais institui o seu critério de avaliação e de hierarquização” (p. 124). Essa investigação caberá ao Capítulo 3, e os resultados obtidos permitirão alterar os marcadores modais utilizados na apresentação do problema na introdução: se invertermos a perspectiva e considerarmos agora não o perspectivismo à luz da vontade de potência, mas a vontade de potência à luz do perspectivismo, nos depararemos então com a reiterada recusa por parte de Nietzsche de qualquer critério que se apresente com a pretensão de validade absoluta e incondicional, e isso deve valer também para o critério proposto por ele mesmo (vou chamar de leitura autoinclusiva). Deste modo, “todo critério [inclusive o critério da vida concebida como vontade de potência ascendente, RL] tem que ser considerado relativo a uma determinada interpretação perspectivística”, e é justamente essa relatividade do critério que “nos autoriza a perguntar se, mesmo instituindo uma pedra de toque para avaliar e hierarquizar as interpretações, a filosofia de Nietzsche incorre em relativismo” (p. 11). A resposta a essa segunda forma de compreender a questão terá de ser necessariamente positiva. Nesse sentido, o perspectivismo envolve uma forma de relativismo (aquele implicado pela aceitação da tese inescapável de que todo e qualquer critério de hierarquização e de avaliação das interpretações é um critério ele mesmo relativo a uma determinada perspectiva interpretativa). Para escapar dessa conclusão, teríamos que pressupor que Nietzsche isenta a sua própria interpretação das condições que ele impõe às demais, rejeitando assim a tese da autoinclusão e abraçando a tese de uma distinção entre perspectivas de primeira e de segunda ordem4 4 Essa é a solução defendida por Matthew Meyer (2014) para escapar das tradicionais aporias apontadas no perspectivismo nietzschiano derivadas do que poderíamos chamar de paradoxos de autoinclusão: interpretar o perspectivismo de Nietzsche como uma tese de segunda ordem que não impõe a si mesma as condições limitantes que ela estabelece para todas as outras interpretações de primeira ordem. A maior parte dos intérpretes considerados por Corbanezi parece contornar a gravidade do problema ao aceitar os dois pressupostos referidos por ele e mencionados acima. Isso permite distanciar o seu perspectivismo de qualquer implicação relativista. Mas o custo que se paga é o de um déficit de reflexividade que envolve avaliar a questão a partir única e exclusivamente da perspectiva interna ao esquema valorativo instaurado pela hipótese interpretativa das vontades de potência. Isso envolve ainda uma incorreção exegética caso a leitura autoinclusiva seja verdadeira, conforme defende Corbanezi, ou seja, caso Nietzsche entenda que as condições limitantes impostas pelo perspectivismo, entre as quais figura a condição de que quaisquer critérios de avaliação e hierarquização das perspectivas são necessariamente relativos a uma determinada forma de avaliação, devam se aplicar à sua própria perspectiva privilegiada, ou seja, à perspectiva instaurada pelo princípio da vontade de potência e que tem na vontade de potência ascendente seu critério último de avaliação. . Mas Nietzsche não parece disposto a fazer isso nas ocasiões em que se manifesta sobre o tema, como ocorre, por exemplo, nos aforismos 9 e 22 de Para Além de Bem e Mal, que são apresentados por Corbanezi, acertadamente, me parece, como duas importantes evidências textuais a favor de sua leitura autoinclusiva e que admite algum grau de circularidade, em oposição a uma leitura que concebe o perspectivismo como uma tese de segunda ordem que exclui a si mesma das condições que ela impõe a todas as outras (cf. sobre a circularidade, a seção final do capítulo 4, em especial p. 180).

Para exibir a plausibilidade desta resposta nuançada à questão que serve de fio condutor à sua investigação, em contraste com a resposta padrão, Corbanezi monta um longo argumento que se inicia no Capítulo 1. Ao mesmo tempo em que introduz o leitor a alguns dos conceitos principais que organizam a questão (os conceitos de concepção de mundo, de perspectiva e de interpretação), o Capítulo 1, tomando como ponto de partida uma minuciosa exegese do aforismo 374 de A Gaia Ciência5 5 Sempre recorrendo a anotações póstumas dos anos 80, recurso metodológico que o autor justifica invocando a brevidade dos textos publicados por Nietzsche (cf. p. 22). , se coloca como tarefa “examinar como Nietzsche [...] formula e busca solucionar o problema da caracterização das condições sob as quais concebemos o que nos aparece como mundo” (p. 21). Essa caracterização envolve tanto o modo como concebemos a acessamos o mundo exterior quanto o mundo interior, sujeitos às mesmas condições perspectivísticas e de aparenciabilidade. Os termos perspectividade e aparenciabilidade (neologismo cunhado por Corbanezi para traduzir o alemão Scheinbarkeit) são noções estreitamente relacionadas, que se implicam mutuamente: “o termo “perspectivístico”, quando caracteriza as formas do intelecto, serve para qualificar as condições sob as quais nosso entendimento percebe e concebe o que lhe aparece como mundo, ao passo que, quando se refere ao mundo, o termo “perspectivístico” tem por função qualificar as condições que tornam possível o aparecimento (no caso, para as formas do nosso entendimento) daquilo que percebemos e concebemos como mundo ou coisas” (p. 28-29). A aparenciabilidade não designa, portanto, pelo menos não primariamente, o caráter ilusório, falso e irreal das coisas, mas antes “a suscetibilidade ou a capacidade que as coisas têm de aparecer (sob certas condições...)” (p. 27). Tanto as formas da nossa percepção sensível (os sentidos) quanto as formas do nosso intelecto (nosso esquema conceitual mais geral, como expresso na doutrina das categorias da tradição kantiana) impõem condições de acesso que se caracterizam “pela apreensão limitada em termos quantitativos e pela compreensão limitada em termos qualitativos” (p. 31). Além disso, essas formas de categorização que integram as condições que determinam nossa concepção de mundo são perspectivísticas na medida em que envolvem processos interpretativos, ou seja, na medida em que “introduzem no mundo aquilo que nele acreditamos encontrar” (p. 31)6 6 Não está claro se Corbanezi entende que essa característica compromete Nietzsche com algum tipo de projetivismo ou de construtivismo radical, ou se o interpretacionismo de Nietzsche o coloca no campo das filosofias de linhagem idealista. Mas um ponto interessante é que Nietzsche parece supor que entre as condições que asseguram o êxito prático para os nossos esquemas interpretativos (tanto do ponto de vista biológico quanto do ponto de vista social, em termos de seu papel na coordenação de ações) encontra-se o apagamento de seu caráter interpretativo, o que poderíamos caracterizar como uma certa alienação (em um primeiro momento produtiva) de seu estatuto ontológico. Se essa suposição está correta, deveríamos então dizer que Nietzsche está comprometido com a tese de que a autoridade dos nossos esquemas conceituais depende da nossa crença, epistemicamente infundada, mas biologicamente necessária, em sua capacidade de rastrear fatos (de forma fortemente realista, ou seja, não interpretativa). Isso teria a implicação de que na prática nos comportamos como realistas ao supor que os nossos esquemas conceitos e padrões perceptuais valem de forma absoluta, e não em relação a um certo arranjo específico ou mesmo a domínio particular de convenções definidas por uma determinada forma de vida. . Assim, o conceito de interpretação, “entendido como introdução de sentido, integra o significado da noção de perspectiva” (p. 33). Esse componente define o compromisso de Nietzsche com duas teses adicionais: a tese do caráter incontornavelmente antropomórfico de nossas concepções de mundo (p. 32), e a tese do pluralismo das interpretações possíveis (p. 35). A tese do caráter interpretativo dos nossos esquemas perceptuais e conceituais compromete Nietzsche com algo mais forte do que a sua mera limitação quantitativa e qualitativa. Ela indica que o caráter perspectivístico de nossos esquemas perceptivos e conceituais envolve simplificação, seletividade e falsificação, atividades que são governadas não, ou não prioritariamente, por qualquer tipo de sensibilidade a normas epistêmicas (considerações relacionadas à acuidade das representações), mas por considerações relativas à utilidade para a nossa conservação e aumento de potência (cf. p. 36-37). É crucial destacar então que o compromisso de Nietzsche com um tipo de pragmatismo vital exclui qualquer conclusão normativa do ponto de vista epistêmico: a utilidade biológica (o valor de um juízo para a intensificação da potência) não nos autoriza a concluir nada sobre sua acuidade epistêmica (sua capacidade de rastrear fatos). Nietzsche tende a sugerir o contrário: que o caráter interpretativo dos nossos esquemas, ao atender sobretudo a considerações de utilidade biológica, está conectado (e ao que tudo indica não apenas genealogicamente, mas de forma constitutiva) à simplificação, seleção e falsificação. É importante salientar também que essa pressão exercida sobre nossos juízos por considerações de utilidade biológica tampouco os torna guias infalíveis do ponto de vista prático. Corbanezi não parece particularmente interessado em discussões de natureza epistemológica7 7 Um indício desse desinteresse é o pouco destaque conferido à seção 12 da Terceira Dissertação da Genealogia da Moral ao longo do livro (uma rápida discussão encontra-se na quarta seção do Capítulo 2, p. 95-99, mas com foco na questão do sujeito das interpretações). Afirmar que há um certo desinteresse por discussões estritamente epistemológicas não implica dizer que a sua leitura não tenha implicações epistemológicas, nem que o autor não tenha consciência dessas implicações. Trata-se apenas de uma questão de foco. (sua leitura privilegia o perspectivismo enquanto tese ontológica, conforme fica claro no Capítulo 2), mas ele certamente corrobora essa leitura que dissocia vantagem adaptativa de correção epistêmica (cf. p. 37), embora ele não avalie criticamente a sua plausibilidade.

Partir do aforismo 374 da GC permite a Corbanezi antecipar retoricamente a questão que está no centro do Capítulo 2, pois ela é extraída deste aforismo: “até onde vai o caráter perspectivístico da existência” [?]; ou seja, trata-se de perguntar pelo sentido e pela extensão dos conceitos de perspectiva e de interpretação “no interior da determinação do caráter da existência em geral”, com o que somos então lançamos no coração do projeto especulativo que encontramos no que se convencionou chamar de filosofia madura de Nietzsche. E aqui as dificuldades são primeiramente de natureza metodológica. Todos os intérpretes de Nietzsche que se interessam pelos grandes temas de sua filosofia se veem confrontados com a necessidade de tomar decisões dessa natureza. Essas decisões são filologicamente controversas mesmo que tenhamos que reconhecer a escassez de material nas obras publicadas, e o fato de que o tratamento conferido aos grandes temas, quando ocorre, se dá de forma breve e com um enquadramento retórico bastante sinuoso. Alguns intérpretes, confrontados com o problema, recusam qualquer autoridade aos póstumos e procuram extrair tudo que podem das evidências textuais disponíveis nos livros publicados por Nietzsche, ou cuja publicação ele tenha autorizado. Outros procuram uma via intermediária, e recorrem aos póstumos somente na medida em que eles corroboram teses que estão devidamente documentadas no material publicado por Nietzsche. Corbanezi segue a decisão hegemônica entre os intérpretes que focam nos grandes temas (Heidegger, Müller-Lauter, Deleuze, Marton), que consiste em conferir igual peso aos póstumos e ao material publicado. Mas na prática isso significa que escolhas exegéticas podem ser feitas com apoio exclusivo nos póstumos e, em alguns casos, em prejuízo de interpretações que seriam mais naturais se considerássemos exclusivamente os textos publicados. A questão central do Capítulo 2, que como dissemos está formulada no aforismo 374 de A Gaia Ciência, é uma ótima ilustração do impacto desse tipo de decisão metodológica. A resposta que encontramos no aforismo está em tensão com o que é dito sobretudo nos póstumos, mas em menor medida também em outras passagens das obras publicadas, como é o caso do aforismo 36 de Para Além de Bem e Mal, ainda que numa formulação muito mais cautelosa e hesitante. Todo leitor de Nietzsche sabe que o aforismo 374 de A Gaia Ciência considera indecidível a questão por ele formulada: o caráter perspectivístico do nosso intelecto e as condições limitantes que lhe são inevitáveis não permitem que a pergunta pela extensão da tese do caráter perspectivístico e interpretacionista para o conjunto da existência tenha uma resposta definitiva, ou seja, qualquer expansão ontológica da tese parece epistemicamente desautorizada dadas as limitações perspectivísticas que caracterizam os nossos esquemas conceituais. Mas todo leitor de Nietzsche sabe também que ele mesmo não obedece a essa condição restritiva fixada no referido aforismo. A constatação da indecibilidade não o impede de ousar uma extensão das características que ele havia estabelecido para as nossas concepções de mundo ao próprio mundo, ainda que esse movimento seja acompanhado por uma série de tensões e ressalvas resultantes de seu compromisso com o perspectivismo. Assim, o autor conclui que “uma vez introduzido8 8 Corbanezi não é muito claro em relação a quando exatamente o conceito é introduzido na obra de Nietzsche. Como ele é bastante liberal em relação à periodização e não recorre a nenhuma tese genética ao longo da sua argumentação, o leitor está autorizado a concluir que ele defende uma concepção fortemente continuísta da filosofia de Nietzsche, pelo menos em relação ao tema fundamental do perspectivismo (mesmo que essa terminologia não estivesse ainda disponível ao filósofo no período de juventude, por exemplo). Isso é reforçado pelo fato de ele recorrer fartamente ao ensaio inacabado e póstumo Sobre Verdade e Mentira no sentido Extramoral, de 1873, e a póstumos da época (na quarta seção do Capítulo 1). Não considero essa hipótese absurda, mas teria sido desejável que alguma argumentação fosse apresentada a favor dela. Na ausência de uma argumentação explícita a favor de uma tese continuísta, o modalizador temporal “uma vez introduzido” paira no ar e o leitor não é capaz de fixar a sua referência. Por outro lado, é de amplo conhecimento na pesquisa Nietzsche que a terminologia do perspectivismo foi incorporada por ele a partir da leitura da obra filosófica de Teichmüller, no início dos anos 80 (em especial de sua obra sistemática intitulada Die wirkliche und die scheinbare Welt. Neue Grundlegung der Metaphysik, de 1882), o que não significa que boa parte dos compromissos essenciais relacionados à sua terminologia já não estivessem presentes e operantes na filosofia de Nietzsche. E penso que Corbanezi está intuitivamente correto na medida em que dá a entender que o vocabulário tropológico utilizado por Nietzsche em Verdade e Mentira antecipa muitos desses compromissos do perspectivismo. na obra de Nietzsche, o conceito de perspectiva adquire relevância crescente na elaboração de seu pensamento. A hesitação do parágrafo 374 de A Gaia Ciência quanto ao alcance do caráter perspectivístico da existência mostra-se por fim aparente. Em nosso entender, o conjunto dos escritos publicados e sobretudo póstumos indica que Nietzsche concebe o caráter perspectivístico como necessariamente presente em toda a existência” (p. 80). Esse gesto teórico ousado, com o qual nos deparamos de forma reiterada e destemida nos póstumos, e de forma hesitante e esparsa nas obras publicadas, marca a tentativa nietzschiana de se reconciliar com a filosofia enquanto atividade especulativa nos anos 80, sobretudo na sua segunda metade, após a superação de um período de grande ceticismo em relação a esse tipo de projeto. Ela marca sobretudo, me parece, um reconhecimento, muitas vezes implícito, de que a filosofia enquanto atividade especulativa só é possível uma vez que tenhamos admitido o método de projeção analógica revivido por Schopenhauer em seu programa de uma metafísica pós-kantiana da experiência (em sentido alargado). O aforismo 36 de Para Além de Bem e Mal, que é objeto de uma primorosa leitura na segunda seção do último capítulo do livro de Corbanezi, ilustra esse movimento de retomada por Nietzsche da tese metodológica do corpo próprio como fio condutor da metafísica imanente (usada aqui em sentido neutro, como uma interpretação global da existência). Voltarei a esse ponto na parte final desta resenha, ao comentar essa primorosa (mas sob certos aspectos problemática) seção de Corbanezi.

Um dos feitos notáveis do Capítulo 2 é o de reconstruir com muita precisão as articulações conceituais que conferem plausibilidade ao gesto teoricamente ousado de expandir a tese do perspectivismo e do interpretacionismo para a totalidade do existente (mundo) sem deixar, no entanto, que o fascínio diante dessa ousadia especulativa nos cegue em relação aos pontos de tensão que percorrem o projeto. O resultado pode não ser muito atraente para o leitor que vê apenas o sistema e negligencia a dialética tensa que o sustenta e que é habilmente exposta por Corbanezi. A extensão da tese do perspectivismo e do interpretacionismo é operada pela ligação com as noções de centro e quantum de força (como aquilo a partir do qual as perspectivas se organizam e se individualizam) e de vontades de potência (enquanto imposição de sentido para fins de dominação e expansão). Aqui há uma ousada tradução do vocabulário fisicalista das forças em um vocabulário mentalista e intencional das vontades que, embora recuse concessões a qualquer metafísica substancialista (não temos mente, mas o corpo concebido como uma comunidade de muitas almas, ou seja, como uma hierarquia de impulsos que comporta configurações as mais diversas e heterogêneas), do ponto de vista metodológico e argumentativo não é um movimento que cause estranhamento a leitores familiarizados com a filosofia alemã do século XIX. Assim, se por um lado temos uma concepção de mundo sistematicamente organizada, que faz com que Nietzsche soe como um filósofo da velha cepa alemã, por outro lado cabe sempre advertir que ele não abandona a sua cautela usual, muito bem capturada por Corbanezi: “admitida a ideia de que a extensão do conceito de mundo presente em toda concepção de mundo é sempre menor do que a extensão da existência em geral, é só sob a modalidade do possível que se pode determinar o caráter de toda a existência” (p. 92). Podemos especular, desde que obedeçamos a certos constrangimentos e limitemos nossas pretensões ao âmbito do meramente concebível. Na parte final do livro Corbanezi voltará à carga ao discutir mais explicitamente o estatuto da concepção nietzschiana de mundo. De resto, o capítulo se encerra com duas seções que apresentam a doutrina nietzschiana dos impulsos e afetos como instâncias teóricas às quais Nietzsche remete por fim às nossas percepções e concepções de mundo e oferecem uma discussão sobre as implicações limitantes dessa remissão aos impulsos e afetos na particularização e singularização das perspectivas e das interpretações. São nossos impulsos e afetos que em última instância interpretam o mundo, e ao fazê-lo buscam, segundo a dinâmica das vontades de potência, impor sua perspectiva a todos os demais. Há quem veja na doutrina dos impulsos de Nietzsche uma forma enviesada de se manter no interior da moderna filosofia do sujeito (Heidegger), ou ainda uma forma de falácia homuncular, na qual se pressupõem entidades destinadas a explicar a agência, mas que são por sua vez microagentes com as características e capacidades de agentes plenos que comparecem nos explananda originais, o que viciaria a explicação (se de fato há pretensão explicativa, o que é descartado na presente leitura). Pode haver alguma verdade nessas críticas, afinal Nietzsche atribui aos impulsos muitas das capacidades agenciais que atribuímos a sujeitos de pleno direito, mas Corbanezi não parece particularmente interessado nessas querelas historiográficas e sistemáticas. A sua leitura, contudo, torna evidente que os impulsos e afetos não podem cumprir as funções que a filosofia moderna destinava ao sujeito (tanto na sua versão cartesiana, metafisicamente ambiciosa, quanto na versão deflacionada proposta por Kant). Cabe perguntar, contudo, se esse recuo às dinâmicas pulsionais efetuado por Nietzsche em seu movimento de singularização e particularização das perspectivas não expõe sua filosofia a um tipo de relativismo radical que o próprio Nietzsche e boa parte de seus intérpretes desautorizam reiteradamente (cf. p. 119-120).

Descartar a implicação do relativismo radical será justamente a tarefa do Capítulo 3. Essa é a razão pela qual toda a argumentação converge para este capítulo: o que vem antes tem o objetivo de preparar o terreno para a resposta nuançada à questão das implicações relativistas do perspectivismo (cujos passos essenciais já foram apresentados na parte inicial desta resenha, razão pela qual não entrarei em maiores detalhes sobre este capítulo), e o que vem depois, o Capítulo 4, tem antes o sentido de um arredondamento do argumento. Não quero com isso dizer, obviamente, que sejam dispensáveis. Como disse no início, tudo no livro se lê com grande proveito, e inúmeros insights encontram-se dispersos no varejo da argumentação, e não apenas nas suas linhas mais gerais. Vale somente relembrar que no Capítulo 3 se cumpre a promessa do livro, que é a de oferecer uma resposta mais nuançada à pergunta sobre as implicações relativistas do perspectivismo nietzschiano9 9 Vale aqui reproduzir parte das conclusões do autor: “Ao estabelecer um critério para avaliar e hierarquizar as interpretações, Nietzsche indica que não pretenderia assumir a posição de um relativista radical: com efeito, ele não subscreveria a tese segundo a qual as interpretações se equivalem. No entanto, ao examinarmos como sua filosofia perspectivística instaura esse critério - que é a sua concepção de vida ascendente como vontade de potência -, procurarmos mostrar que não se trata de uma pedra de toque neutra, objetiva, independente e absoluta, mas sim relativa a determinada interpretação perspectivista” (p. 154). . Uma das consequências mais importantes de se construir essa resposta nuançada é que ela permite identificar com mais clareza um aspecto que com muita frequência é negligenciado nas leituras sobre o seu perspectivismo: há sempre um resíduo de injustiça em toda avaliação. A leitura combinada dos últimos aforismos de Humano, demasiado Humano, I, 1 e do prefácio de 1886 para o mesmo livro permite a Corbanezi evidenciar que Nietzsche não alterou a substância da sua posição a esse respeito, ainda que em 1886 ele esteja muito mais disposto a recomendar um engajamento mais enfático na disputa agonística pelos valores. Em 1878 havia a recomendação para que cultivássemos uma atitude de moderação que, ao mesmo tempo em que reconhece a impossibilidade da suspensão do juízo valorativo, está muito distante da militância em prol de uma ética perfeccionista que elege como adversário boa parte da moralidade hegemônica no Ocidente e como ambição a intensificação das vontades de potência típica das formas de vida ascendentes. É raro que esse engajamento perspectivístico e essa militância em prol dos indivíduos capazes de cultivar e promover bens de excelência tenha o seu partidarismo tão lucidamente reconhecido quanto nos parágrafos finais do Capítulo 3 de Corbanezi, razão pela qual cito parcialmente as suas considerações conclusivas: “Ainda que não se possa avaliar o valor da vida, aquele que avalia o valor dos valores adotando por critério a vida tem de fazê-lo a partir de determinada concepção de vida - concepção que afirma uma forma de existência em detrimento de outras, que reconhece a superioridade de certos valores em comparação com outros, que encerra assim avaliações perspectivas e, portanto, injustas [...]. Se, entretanto, de acordo com o próprio Nietzsche, todos os valores dependem de avaliações perspectivísticas e se estas são necessariamente injustas [...], então uma conclusão nos parece inevitável: tal critério não pode estar isento de toda injustiça” (p. 153-154). É preciso dizer, contudo, que Nietzsche está disposto a defender que maior injustiça comete aquele que é incapaz de reconhecer o caráter perspectivístico de sua própria posição valorativa e que tenta ocultá-lo sob as vestes de uma falsa imparcialidade e objetividade (no sentido do realismo metafísico sobre valores).

O Capítulo 4, como disse acima, tem a função de oferecer um arredondamento do argumento central do livro. Ele o faz a partir da discussão acerca do estatuto da concepção nietzschiana de mundo e está estruturada em três seções. A primeira seção interroga se Nietzsche dispõe de critérios para distinguir entre artes de interpretação boas e ruins. Aqui temos, como era de esperar, uma resposta igualmente nuançada. No limite, não é possível estabelecer uma distinção absoluta entre artes boas e ruins, no sentido de que toda interpretação, considerada em um certo nível de abstração, envolve arbitrariedade e falsificação (pois envolve necessariamente introdução de um sentido que não está no texto). Mas isso não significa que todas as interpretações sejam igualmente arbitrárias e parciais. Nietzsche oferece uma série de parâmetros para que possamos hierarquizar as interpretações, mesmo que eles sejam, no limite, internos à perspectiva de alguém comprometido, por exemplo, com valores epistêmicos. Apenas para esses indivíduos fará sentido evitar o conjunto de infrações que Nietzsche considera características da má filologia (cf. p. 165-166) e cultivar as virtudes epistêmicas condizentes ao que nessa forma de vida se deixa reconhecer como uma boa interpretação: “cautela, paciência, atenção, desconfiança, lentidão, rigor moral [...]” (p. 167). A segunda seção se concentra fundamentalmente no exame do aforismo 36 de Para Além de Bem e Mal, e pretende argumentar que o princípio interpretativo das vontades de potência, embora tenha um caráter hipotético e experimental (tentativo e ensaístico), se impõe como uma hipótese necessária a partir da aceitação de um conjunto heterogêneo de suposições, algumas das quais seriam “subscritas pela própria filosofia de Nietzsche” (como a suposição de inspiração schopenhaueriana segundo a qual o acesso mais intuitivo que temos é o acesso à realidade dos nossos impulsos, que nos forneceria então o vocabulário mais primitivo a partir do qual seria possível traduzir até mesmo o vocabulário mecanicista das forças e remetê-los todos a uma forma fundamental da vontade, ou seja, a vontade de potência, inclusive o conjunto das funções orgânicas)10 10 Aqui Nietzsche nada mais faz do que reeditar a tese metodológica de Schopenhauer, segundo a qual uma metafísica imanente pós-kantiana deve assumir o corpo próprio como fio condutor da especulação, ainda que ele discorde consideravelmente de seu mestre em relação a como compreender o corpo próprio. Em Schopenhauer o corpo próprio é pensado sobretudo a partir de um modelo pulsional desejante, como correlato psicológico da tese metafísica da vontade cega. Em Nietzsche, esse modelo é substituído por um modelo fortemente pluralista inspirado em uma analogia com os corpos políticos, em que as relações hierárquicas de mando e obediência ocupam lugar de centralidade. A tese de um impulso cego desejante, central para a compreensão schopenhaueriana, nunca foi comprada por Nietzsche, que viu nela o fruto de de um novo e igualmente suspeito dualismo entre vontade e representação, a substituir o velho dualismo de corpo e mente dos primeiros filósofos modernos. O modelo pulsional de Nietzsche deve necessariamente envolver a capacidade representacional, ainda que perspectivisticamente concebida (e separada da suposição cartesiana de que toda representação deve ser consciente). e outras teriam a estrutura de uma argumentação ad hominem, por exemplo, a crença na causalidade e a suposição segundo a qual a vontade é causa eficiente (e não um mero epifenômeno) e que nos obrigaria, por obediência ao princípio de economia, a postular a vontade como a única forma de causação. Se esse raciocínio é sólido, isso significa então que Nietzsche estaria propondo algo como um espelhamento pampsiquista do atual argumento fisicalista do fechamento causal do mundo físico. O argumento do fechamento causal do mundo físico não estava disponível na época de Nietzsche, mas a defesa do materialismo metodológico como estratégia cognitiva reducionista era de amplo conhecimento e foi defendida, entre outros, por Friedrich Albert Lange. O ponto importante aqui é que na versão de Lange pretendia-se que o argumento fosse metafisicamente neutro. Nietzsche não parece disposto a se contentar com uma recomendação metodológica nem com algum tipo de monismo neutro (como supostamente era a intenção de Lange). Ele recorre ao princípio de economia para arbitrar uma decisão de natureza metafísica, ou ontológica, com o claro intuito de favorecer o seu princípio interpretativo e autorizar o gesto teoricamente ousado de expandir a sua tese sobre o caráter perspectivístico e interpretativo para a totalidade dos eventos. Embora considere a exegese do aforismo 36 de Para Além de Bem e Mal um dos pontos altos do livro de Corbanezi, devo dizer que não estou inteiramente de acordo com sua leitura. Não creio que a conclusão condicional a que Nietzsche chega no aforismo 36 possa prescindir da crença na causalidade, como o autor defende nas p. 173-174: “a crença na causalidade não desempenha o papel de uma condição sine qua non” (p. 173). Concordo que Nietzsche constrói um argumento ad hominem, e que ele de fato questiona em inúmeras passagens de sua obra, tanto publicada quanto póstuma, o modelo de causalidade operante nas ciências naturais de sua época (que reifica as noções de causa e efeito), assim como os pressupostos metafísicos que sustentam o modelo mecanicista da causação por contato (em crise desde o momento em que Newton precisou postular ação à distância para explicar o funcionamento do princípio gravitacional), mas não me parece que com tudo isso ele possa prescindir de uma noção de causação para fazer o seu argumento funcionar e ter a força que ele pretende que tenha. Eu preferiria ler o argumento como uma espécie de argumento transcendental modesto, que tem a estrutura de um argumento regressivo cuja conclusão é uma reivindicação de indispensabilidade para um determinado item da nossa autocompreensão. O que Nietzsche parece nos forçar a reconhecer é que a nossa crença mais arraigada, ou mais incorporada, da qual não conseguimos efetivamente nos livrar (tanto do ponto de vista prático quanto do ponto de vista teórico) é a crença na eficácia causal da nossa vontade (nós temos a experiência de nós mesmos como agentes no sentido mais rudimentar, por exemplo, quando damos para nós mesmos o comando de levantar o braço direito e apontar com o dedo para um determinado objeto). Se estamos primeiramente convictos de que a nossa vontade é causalmente eficiente (porque ela comanda e é obedecida, pelo menos na superfície da nossa experiência fenomenológica), então devemos, por obediência ao princípio da economia (um princípio pragmático que é quase consensualmente aceito na época de Nietzsche), tentar reduzir toda forma de causação a variações da causação pela vontade (em termos dinâmicos e processuais, e não segundo um modelo mentalista substancial). Esse argumento é o primeiro passo para a defesa da interpretação nietzschiana do mundo como vontade de potência. Muito mais precisa ser introduzido para se chegar à conclusão que ele pretende. E as suposições adicionais identificadas por Corbanezi me parecem essencialmente corretas. Mas não concordo que ele possa prescindir desse primeiro passo, pois é justamente ele que garante que o modelo pulsional da nossa vida interior (caracterizado por uma intencionalidade política de estrutura agonística e hierárquica) possa se apresentar como um candidato alternativo ao modelo estritamente fisicalista (ainda que dinâmico) das forças. Dito isso, é preciso ainda observar que a caracterização do experimento nietzschiano em termos hipotéticos, que ocupa um lugar de destaque na bela reconstrução de Corbanezi (esse é o esforço de boa parte da segunda seção do último capítulo), não seria suficiente, aos olhos de alguns adeptos da filosofia crítica, para proteger Nietzsche contra a acusação de que ele teria recaído em uma forma de filosofia epistemicamente temerária, para não dizer dogmática. E isso se deve ao truísmo de que o procedimento hipotético, no interior da tradição crítica, só é legítimo quando tem por objeto proposições empiricamente verificáveis ou decidíveis. Todo conhecimento que pretende ir além da experiência, seja ele metafísico (e então estará fadado ao fracasso), seja ele transcendental, deve partir de evidências imediatas. Dentre os filósofos contemporâneos lidos por Nietzsche, African Spir é aquele que tem a posição mais intransigente a esse respeito, estabelecendo um veto a qualquer procedimento hipotético no domínio das proposições especulativas que versam sobre a totalidade dos eventos11 11 Essa intransigência chamou a atenção de Nietzsche, tanto que ele marcou à margem a seguinte passagem de Spir sobre o tema: “Man will nun schelchterdings nicht begreifen, dass das Aufstellen von Hypothesen über dasjenige, was jenseit aller Erfahrung liegt, ein vollkommen müssiges Geschäft ist. Und doch ist es klar, dass solche Hypothesen keine Verification zulassen, also von vornherein dazu verurtheilt sind, ewig und immer im Zustande blosser Hypothesen zu bleiben...“ (SPIR, Denken und Wirklicheit, vol. I, p. 2) . Por fim, há algo de surpreendente na afirmação de que as proposições nietzschianas referentes ao mundo compreendido como quanta dinâmicos de vontades de potência tenham um estatuto meramente hipotético, e no desejo de que essa caracterização tenha também o sentido de nos alertar para o fato de que Nietzsche não associa qualquer pretensão explicativa à sua “teoria” (cf. p. 175). Aqui faz falta uma tese mais clara sobre as condições que uma teoria deveria satisfazer para contar como uma explicação, e não como uma mera descrição ou uma interpretação. Nietzsche não é claro sobre isso, e os seus intérpretes costumam segui-lo nisso. Mas no presente contexto o que causa surpresa é o fato de que hipóteses são justamente tentativas de explicar algum aspecto da realidade: propomos certas teses de forma experimental, na expectativa de que elas sejam empiricamente corroboradas. Por isso penso que talvez fosse mais adequado caracterizar as proposições especulativas de Nietzsche não como hipóteses, mas antes como princípios ou ficções reguladoras, que se diferenciam das primeiras justamente pelo fato de não terem qualquer pretensão de serem empiricamente confirmadas. Em geral elas não o podem, mas isso não elimina a sua função heurística: elas permitem grandes sínteses totalizantes, que nos orientam tanto do ponto de vista teórico quanto do ponto de vista prático. Nesse sentido, princípios ou ficções reguladoras estruturam interpretações totalizantes sobre a realidade e se antecipam a resultados empíricos, ou simplesmente os ignoram. Já hipóteses são entidades teóricas provisórias, mas com fortes pretensões explicativas (pois sua razão de ser depende de suas qualidades preditivas). Aqui trata-se em parte de um preciosismo terminológico, mas penso que possa ser útil introduzir essa distinção, até para não tornar as coisas mais fáceis do que são para Nietzsche. E um dos pontos fortes desse livro cheio de virtudes e qualidades é justamente o de não tornar as coisas mais fáceis do que são para Nietzsche. A última seção do Capítulo 4 (sobre a circularidade) exibe muitas das qualidades que tornam possível a Corbanezi manter-se fiel a esse ideal da boa filologia, que não facilita as coisas nem para si mesmo, nem para Nietzsche, nem para o seu leitor. Penso que no final todos saem ganhando, mesmo que tenhamos de reconhecer que alguma ilusão de conforto nos é retirada, por exemplo, a ilusão de que a perspectiva de Nietzsche se impõe sem nenhuma circularidade, ou que ela se impõe simpliciter. Esses são méritos inalienáveis da leitura de Corbanezi, e são razões mais que suficientes para que os leitores desta resenha se sintam motivados a conhecê-la em primeira mão.

Referências

  • CORBANEZI, E. Perspectivismo e relativismo na filosofia de Nietzsche São Paulo: Editora Unifesp, 2021.
  • ______. Perspectivismo e relativismo em Nietzsche São Paulo: USP, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, 2013 (107p).
  • MEYER, M. Reading Nietzsche through the Ancients: An Analysis of Becoming, Perspectivism, and the Principle of Non-Contradiction Berlin: de Gruyter, 2014.
  • SPIR, A. Denken und Wirklichkeit. Versuch einer Erneuerung der kritischen Philosophie (02 vols.) Leipzig: J. G. Findel, 1877.
  • 1
    Corbanezi cita como exemplos representativos desse consenso (ou interpretação hegemônica) Müller-Lauter (1974), S. Marton (2000), P. Wotling (2009) A. Marques (2003), C. Denat (2010) (cf. as páginas 11-13, assim como as páginas 121-122, especialmente as notas 2e 3 do capítulo 3).
  • 2
    Corbanezi cita como exemplos de intérpretes de Nietzsche que aceitam implícita ou explicitamente essa definição de relativismo, A. Nehamas (2002), M. Clark (1990), S. Hales e R. Welshon (2000), M. Dixsaut (2012), P. Wotling (2016), M. Lima (2018). Segundo ele, a constatação de que esse seria um pressuposto definicional compartilhado pela pesquisa Nietzsche que trata da relação entre perspectivismo e relativismo encontra-se também em A. Itaparica (2010). Conferir sobre isso a nota 4 nas páginas 122-123.
  • 3
    Corbanezi faz um belíssimo trabalho ao insistir na insuficiência do conceito de relativismo pressuposto na pesquisa Nietzsche (ao identificá-lo à tese da equivalência entre as diversas interpretações, que por sua vez remete à ausência de critérios e hierarquizações; na prática, à tese de que todas as interpretações têm o mesmo valor). Mas o leitor talvez se ressinta com alguma razão da ausência de uma definição mais explícita (ainda que estipulativa) do que seria então um conceito mais satisfatório de relativismo para o autor. Por tudo que é dito no texto, e principalmente por contraste com o que o autor julga insuficiente na tese da equivalência, devemos supor que uma definição mais interessante envolva a tese de que os critérios que usamos para avaliar e hierarquizar as diversas interpretações são sempre internos e relativos a uma determinada cultura, esquema conceitual, linguagem, constructo teórico, etc... (em oposição à suposição de que tais critérios seriam objetivos, absolutos, incondicionais, únicos, ou seja, independentes de certos parâmetros dados internamente a uma determinada perspectiva). Em contraste com a definição do relativismo como equivalência das interpretações, poderíamos então pensar numa definição em termos de internalismo dos critérios e parâmetros.
  • 4
    Essa é a solução defendida por Matthew Meyer (2014)MEYER, M. Reading Nietzsche through the Ancients: An Analysis of Becoming, Perspectivism, and the Principle of Non-Contradiction. Berlin: de Gruyter, 2014. para escapar das tradicionais aporias apontadas no perspectivismo nietzschiano derivadas do que poderíamos chamar de paradoxos de autoinclusão: interpretar o perspectivismo de Nietzsche como uma tese de segunda ordem que não impõe a si mesma as condições limitantes que ela estabelece para todas as outras interpretações de primeira ordem. A maior parte dos intérpretes considerados por Corbanezi parece contornar a gravidade do problema ao aceitar os dois pressupostos referidos por ele e mencionados acima. Isso permite distanciar o seu perspectivismo de qualquer implicação relativista. Mas o custo que se paga é o de um déficit de reflexividade que envolve avaliar a questão a partir única e exclusivamente da perspectiva interna ao esquema valorativo instaurado pela hipótese interpretativa das vontades de potência. Isso envolve ainda uma incorreção exegética caso a leitura autoinclusiva seja verdadeira, conforme defende Corbanezi, ou seja, caso Nietzsche entenda que as condições limitantes impostas pelo perspectivismo, entre as quais figura a condição de que quaisquer critérios de avaliação e hierarquização das perspectivas são necessariamente relativos a uma determinada forma de avaliação, devam se aplicar à sua própria perspectiva privilegiada, ou seja, à perspectiva instaurada pelo princípio da vontade de potência e que tem na vontade de potência ascendente seu critério último de avaliação.
  • 5
    Sempre recorrendo a anotações póstumas dos anos 80, recurso metodológico que o autor justifica invocando a brevidade dos textos publicados por Nietzsche (cf. p. 22).
  • 6
    Não está claro se Corbanezi entende que essa característica compromete Nietzsche com algum tipo de projetivismo ou de construtivismo radical, ou se o interpretacionismo de Nietzsche o coloca no campo das filosofias de linhagem idealista. Mas um ponto interessante é que Nietzsche parece supor que entre as condições que asseguram o êxito prático para os nossos esquemas interpretativos (tanto do ponto de vista biológico quanto do ponto de vista social, em termos de seu papel na coordenação de ações) encontra-se o apagamento de seu caráter interpretativo, o que poderíamos caracterizar como uma certa alienação (em um primeiro momento produtiva) de seu estatuto ontológico. Se essa suposição está correta, deveríamos então dizer que Nietzsche está comprometido com a tese de que a autoridade dos nossos esquemas conceituais depende da nossa crença, epistemicamente infundada, mas biologicamente necessária, em sua capacidade de rastrear fatos (de forma fortemente realista, ou seja, não interpretativa). Isso teria a implicação de que na prática nos comportamos como realistas ao supor que os nossos esquemas conceitos e padrões perceptuais valem de forma absoluta, e não em relação a um certo arranjo específico ou mesmo a domínio particular de convenções definidas por uma determinada forma de vida.
  • 7
    Um indício desse desinteresse é o pouco destaque conferido à seção 12 da Terceira Dissertação da Genealogia da Moral ao longo do livro (uma rápida discussão encontra-se na quarta seção do Capítulo 2, p. 95-99, mas com foco na questão do sujeito das interpretações). Afirmar que há um certo desinteresse por discussões estritamente epistemológicas não implica dizer que a sua leitura não tenha implicações epistemológicas, nem que o autor não tenha consciência dessas implicações. Trata-se apenas de uma questão de foco.
  • 8
    Corbanezi não é muito claro em relação a quando exatamente o conceito é introduzido na obra de Nietzsche. Como ele é bastante liberal em relação à periodização e não recorre a nenhuma tese genética ao longo da sua argumentação, o leitor está autorizado a concluir que ele defende uma concepção fortemente continuísta da filosofia de Nietzsche, pelo menos em relação ao tema fundamental do perspectivismo (mesmo que essa terminologia não estivesse ainda disponível ao filósofo no período de juventude, por exemplo). Isso é reforçado pelo fato de ele recorrer fartamente ao ensaio inacabado e póstumo Sobre Verdade e Mentira no sentido Extramoral, de 1873, e a póstumos da época (na quarta seção do Capítulo 1). Não considero essa hipótese absurda, mas teria sido desejável que alguma argumentação fosse apresentada a favor dela. Na ausência de uma argumentação explícita a favor de uma tese continuísta, o modalizador temporal “uma vez introduzido” paira no ar e o leitor não é capaz de fixar a sua referência. Por outro lado, é de amplo conhecimento na pesquisa Nietzsche que a terminologia do perspectivismo foi incorporada por ele a partir da leitura da obra filosófica de Teichmüller, no início dos anos 80 (em especial de sua obra sistemática intitulada Die wirkliche und die scheinbare Welt. Neue Grundlegung der Metaphysik, de 1882), o que não significa que boa parte dos compromissos essenciais relacionados à sua terminologia já não estivessem presentes e operantes na filosofia de Nietzsche. E penso que Corbanezi está intuitivamente correto na medida em que dá a entender que o vocabulário tropológico utilizado por Nietzsche em Verdade e Mentira antecipa muitos desses compromissos do perspectivismo.
  • 9
    Vale aqui reproduzir parte das conclusões do autor: “Ao estabelecer um critério para avaliar e hierarquizar as interpretações, Nietzsche indica que não pretenderia assumir a posição de um relativista radical: com efeito, ele não subscreveria a tese segundo a qual as interpretações se equivalem. No entanto, ao examinarmos como sua filosofia perspectivística instaura esse critério - que é a sua concepção de vida ascendente como vontade de potência -, procurarmos mostrar que não se trata de uma pedra de toque neutra, objetiva, independente e absoluta, mas sim relativa a determinada interpretação perspectivista” (p. 154).
  • 10
    Aqui Nietzsche nada mais faz do que reeditar a tese metodológica de Schopenhauer, segundo a qual uma metafísica imanente pós-kantiana deve assumir o corpo próprio como fio condutor da especulação, ainda que ele discorde consideravelmente de seu mestre em relação a como compreender o corpo próprio. Em Schopenhauer o corpo próprio é pensado sobretudo a partir de um modelo pulsional desejante, como correlato psicológico da tese metafísica da vontade cega. Em Nietzsche, esse modelo é substituído por um modelo fortemente pluralista inspirado em uma analogia com os corpos políticos, em que as relações hierárquicas de mando e obediência ocupam lugar de centralidade. A tese de um impulso cego desejante, central para a compreensão schopenhaueriana, nunca foi comprada por Nietzsche, que viu nela o fruto de de um novo e igualmente suspeito dualismo entre vontade e representação, a substituir o velho dualismo de corpo e mente dos primeiros filósofos modernos. O modelo pulsional de Nietzsche deve necessariamente envolver a capacidade representacional, ainda que perspectivisticamente concebida (e separada da suposição cartesiana de que toda representação deve ser consciente).
  • 11
    Essa intransigência chamou a atenção de Nietzsche, tanto que ele marcou à margem a seguinte passagem de Spir sobre o tema: “Man will nun schelchterdings nicht begreifen, dass das Aufstellen von Hypothesen über dasjenige, was jenseit aller Erfahrung liegt, ein vollkommen müssiges Geschäft ist. Und doch ist es klar, dass solche Hypothesen keine Verification zulassen, also von vornherein dazu verurtheilt sind, ewig und immer im Zustande blosser Hypothesen zu bleiben...“ (SPIR, Denken und Wirklicheit, vol. I, p. 2)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Out 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2022
  • Aceito
    20 Maio 2022
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