RESUMO
Objetivo Verificar se o desempenho da primeira avaliação da maturidade simbólica de crianças com transtorno do desenvolvimento da linguagem, se correlaciona com o desempenho em provas formais de avaliação da função intelectual não-verbal e vocabulário receptivo e expressivo após os 5 anos de idade.
Método A pesquisa foi composta por 26 sujeitos, sendo 19 do sexo masculino, e 7 do sexo feminino, com média de idade de 4:10. Todos os participantes tinham, por ocasião da avaliação inicial, hipótese diagnóstica de TDL, posteriormente confirmada com base em critérios de inclusão e exclusão descritos internacionalmente. Foram analisados dados em relação à maturidade simbólica, vocabulário e desempenho em avaliação intelectual padronizada e investigada correlação entre eles. Todos os dados passaram por análise estatística e os intervalos de confiança foram de 95%.
Resultados Quanto à maturidade simbólica, verificou-se tanto para o jogo mais utilizado, quanto para o mais elaborado, que a maioria das crianças com transtorno de desenvolvimento da linguagem apresentaram jogos mais primitivos. Em relação ao vocabulário, os dados apontam um melhor desempenho em vocabulário receptivo. Na avaliação do quociente de inteligência, as crianças obtiveram, em sua maioria, classificações na média e superior à média. Em relação à interação entre variáveis estudadas, nenhuma correlação foi encontrada.
Conclusão Não foram encontradas correlações entre as variáveis estudadas. Os dados são discutidos à luz de literatura internacional e promovem importantes reflexões a respeito do desenvolvimento simbólico-linguístico dessa população.
Descritores: Criança; Linguagem Infantil; Avaliação; Transtornos do Desenvolvimento da Linguagem; Testes de Linguagem
ABSTRACT
Purpose To verify whether the performance in the first assessment of pretend play of children with diagnostic hypothesis of developmental language disorder, correlates with the performance in formal tests of non-verbal intellectual function and both receptive and expressive vocabulary after 5 years old.
Methods The research comprised 26 subjects, 19 of whom were male, and 7 were female, with an mean age of 4:10. All participants presented a diagnostic hypothesis of developmental language disorder based on inclusion and exclusion criteria described internationally. Data were analyzed in relation to pretend play, vocabulary and performance in standardized intellectual assessment test; we also investigated correlation between them. All data underwent statistical analysis and the confidence intervals were 95%.
Results As for pretend play, it was found that most children with suspected developmental language disorder present more primitive symbolic development. Regarding vocabulary, the data show greater performance in receptive vocabulary than in expressive. In the assessment of the intelligence quotient, the children obtained, in their majority, classifications in the mean score and superior score to their age. Regarding the interaction between studied variables, no correlation was found.
Conclusion No relationship was found between the studied variables. The data are discussed in the light of international literature and promote important reflections on the symbolic-linguistic development of this population.
Keywords: Child; Child Language; Evaluation; Developmental Language Disorders; Language Tests
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da linguagem oral correlaciona-se com uma série complexa de habilidades cognitivas, perceptuais e linguísticas cuja gênese está no período pré-verbal. A construção simbólica faz parte das habilidades cognitivas essenciais para a formação do signo linguístico e consequentemente da utilização de vocábulos como forma de expressão. Assim, o desenvolvimento do simbolismo está diretamente relacionado ao da linguagem oral(1).
Sabe-se que no processo de desenvolvimento da linguagem, a entrada no mundo simbólico é fator preponderante para que a criança possa atingir níveis de maior complexidade linguística. Durante esse processo de desenvolvimento infantil, existe uma grande e estreita relação entre as áreas cognitiva, afetiva, social e comunicativa, que constituem a base para a emergência dos símbolos(2). A função simbólica consiste na capacidade de representar o mundo experienciado e vivido. Envolve, além da linguagem e da brincadeira simbólica, a imitação diferida, a resolução de problemas por combinação mental de ações e imagens mentais, que constituem um sistema de significantes das funções simbólicas e cognitivas, possibilitando as diversas formas de representação(3).
Diferentes autores destacam a relação, em crianças típicas, das habilidades de maturidade simbólica e o desenvolvimento ulterior de linguagem em seus diferentes subsistemas relacionando-a, inclusive, aos diferentes estágios da complexidade das habilidades linguísticas(4,5).
Alguns pesquisadores têm afirmado que a maturidade simbólica e as habilidades linguísticas têm seu desenvolvimento apoiado em habilidades semelhantes, uma vez que ambas dependem da capacidade de representação e utilização de um elemento representativo de dado objeto, pessoa, lugar ou ação de um outro elemento ou situação(6,7). Em atividades de maturidade simbólica, objetos ou situações são utilizados ainda que não estejam presentes, similarmente ao que ocorre na atividade linguística que se utiliza de combinações fonológicas (palavras) para representar objetos, situações, locais e eventos do mundo real(6). Além disso, tanto a maturidade simbólica quanto a linguagem compartilham estruturas semelhantes que progridem de formas mais elementares para uso progressivamente complexo e que demanda diferentes habilidades cognitivas(7,8).
Crianças com Transtorno do Desenvolvimento da Linguagem (TDL) apresentam desenvolvimento atípico e discrepante nas habilidades de linguagem, além de processamento linguístico comprometido(4). Esse desenvolvimento atípico também envolve as habilidades pré-linguísticas que constituem a maturidade simbólica e essas crianças tendem a apresentar jogos simbólicos mais simples do que aqueles observados em seus pares típicos, conforme demonstrado por Takiuchi, Befi-Lopes e Araújo(9).
Estudos mais recentes indicam que as crianças com TDL podem ter outras manifestações co-ocorrendo com os déficits linguísticos, tais como: alterações de atenção, alterações no processamento motor da fala, além das-cognitivas e intelectuais. Outro ponto que vem sendo rediscutido é a mudança na caracterização da discrepância entre habilidades não-verbais e verbais, sugerindo que crianças com QI não-verbal abaixo da média, que não seja inferior a 70, podem passar a ser diagnosticadas com TDL(10).
Cabe ressaltar, no entanto, a dificuldade em encontrar materiais que avaliem as habilidades cognitivo-intelectuais de crianças com idade inferior a cinco anos, e que sejam possíveis de aplicação pelo fonoaudiólogo, o que torna o processo de diagnóstico dessas crianças uma tarefa mais árdua, principalmente para o profissional que trabalha em regiões mais afastadas, longe dos grandes centros. Nesse sentido, a avaliação da maturidade simbólica se mostra de suma importância nessa faixa etária, uma vez que além de indicar o nível do desenvolvimento simbólico do indivíduo, é apontada por alguns autores como uma importante habilidade que relaciona o desenvolvimento do simbolismo e as habilidades cognitivo-intelectuais(11-14).
Dessa maneira, considerando-se que o desempenho em avaliação da maturidade simbólica pode fornecer dados não apenas a respeito do desenvolvimento simbólico-linguístico, mas também pode ser um indicador das funções intelectuais e de linguagem, se faz necessário investigar de que maneira essas habilidades se relacionam. Sendo assim, o objetivo do presente estudo foi verificar se os resultados da primeira avaliação da maturidade simbólica de crianças que ingressaram para atendimento fonoaudiológico com suspeita de TDL antes dos cinco anos e que tiveram seu diagnóstico confirmado se relacionam com o desempenho em provas formais de avaliação da função intelectual não-verbal e vocabulário aos cinco anos de idade.
MÉTODO
Estudo retrospectivo transversal, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Instituição sob nº 523.760. Em decorrência do estudo ser retrospectivo, realizado em banco de dados, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi dispensado.
A pesquisa foi composta por 26 sujeitos, sendo 19 do sexo masculino, e 7 do sexo feminino, com média de idade de 4:10 (anos: meses). Todos os participantes tinham diagnóstico de TDL baseado em critérios de inclusão e exclusão descritos internacionalmente: prejuízo em pelo menos duas medidas que compõem a avaliação completa de linguagem como vocabulário receptivo, expressivo, memória curto prazo verbal e operacional fonológica, fonologia, morfossintaxe, discurso, e obter um desempenho intelectual não verbal adequado no qual, segundo novos critérios de inclusão, abrange as crianças com classificação que varia de muito superior até a inferior(10,15). As crianças participantes do presente estudo foram atendidas nos últimos cinco anos no Laboratório de Investigação Fonoaudiológica em Pediatria (LIFPED) do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Os dados da maturidade simbólica foram coletados utilizando-se a primeira avaliação da maturidade simbólica da criança que ocorre, frequentemente, na faixa etária de 3 a 5 anos, quando as crianças iniciam atendimento.
Conforme descrito pelas autoras(9), a avaliação da maturidade simbólica dever ser realizada por meio da análise da filmagem, registrando-se as ações e os jogos simbólicos no protocolo correspondente. Cada esquema deve ser numerado e, caso ocorram jogos simbólicos sequenciais, estes devem ser separados(9).
Os atos (ações e jogos) devem ser classificados de acordo com os estágios do jogo simbólico: Esquema Pré-Simbólico (EPS) – 1 ponto: a criança reconhece o uso apropriado de um objeto, utilizando gestos breves de reconhecimento; não há jogo simbólico ainda, são as propriedades do objeto que eliciam o gesto (Ex.: a criança coloca o telefone perto da orelha; a criança encosta o pente no cabelo); Esquema Auto-Simbólico (EAS) – 2 pontos: a criança brinca desenvolvendo ações que são parte do seu repertório, demonstrando simulação. O simbolismo encontra-se diretamente envolvido com o corpo da criança (Ex.: a criança finge dormir; a criança finge beber de uma mamadeira de brinquedo); Jogo Simbólico Assimilativo (JSA) – 3 pontos: a criança simula ações com outras pessoas, nas quais o seu próprio papel é revertido, incluindo outros receptores da ação (Ex.: a criança alimenta a mãe; a criança penteia a boneca); Jogo Simbólico Imitativo (JSI) – 4 pontos: a criança simula ações que são tipicamente associadas a atividades de outras pessoas, desempenhando o papel do outro (Ex.: a criança finge varrer; a criança finge ler um livro; a criança move um carro de brinquedo com sons próprios de veículo); Jogo Simbólico com Objetos Substitutos (JSOS) – 5 pontos: a criança brinca utilizando objetos substitutos para realizar suas ações (Ex.: a criança brinca de telefone com uma colher; a criança come usando um palito como se uma colher); Jogo Simbólico Combinatorial de Esquema Único (JSCU) – 6 pontos: a criança aplica um mesmo esquema de jogo simbólico sequencialmente para uma série de diferentes agentes ou objetos (Ex.: a criança alimenta a mãe, depois o avaliador, depois a boneca); Jogo Simbólico Combinatorial de Esquemas Múltiplos (JSCM) – 7 pontos: a criança aplica uma sequência de esquemas diferentes, relacionados ao mesmo objeto (Ex.: a criança dá banho, alimenta e coloca a boneca na cama).
Após a classificação deve-se verificar qual o esquema mais elaborado que a criança apresentou e qual foi o mais utilizado. Por fim, a pontuação é somada e registrada em protocolo específico contendo o resultado final no qual a pontuação máxima é a de 14 pontos.
Por sua vez, o teste de Matrizes Progressivas Coloridas de RAVEN(16), tem o objetivo de verificar o desempenho intelectual não verbal. O teste é composto por uma escala que é constituída por três séries de 12 itens: A, Ab e B. Os itens estão dispostos em ordem de dificuldade crescente em cada série, sendo cada série mais difícil do que a série anterior.
No início de cada série são sempre colocados itens mais fáceis, cujo objetivo é introduzir a criança a um novo tipo de raciocínio, que vai ser exigido para os itens seguintes. Os itens consistem em um desenho ou matriz com uma parte faltando, abaixo do qual são apresentadas seis alternativas, uma das quais completa a matriz corretamente. A criança deve escolher uma das alternativas como a parte que falta, permitindo com que o examinador observe a capacidade de compreender novas situações, lembrar informações relevantes e a capacidade de julgamento e acúmulo de informações especializadas.
As crianças participantes da presente pesquisa foram avaliadas, por profissional habilitado, após completarem cinco anos. Conforme descrito no manual do teste, o desempenho dos sujeitos foi classificado da seguinte forma: pontuação 1 para intelectualmente superior, 2 definidamente acima da média, 3 intelectual médio, 4 definidamente abaixo da média na capacidade intelectual e 5 intelectualmente deficiente.
Além disso, especificamente para esse estudo, com o intuito de melhor correlacionar os resultados da avaliação da maturidade simbólica com os dados advindos do teste de Matrizes Progressivas Coloridas de RAVEN foi elaborado um critério de interpretação dos resultados da avaliação da prova de maturidade simbólica em relação ao jogo/esquema mais utilizado, jogo/esquema mais elaborado, pontuação total e classificação (Quadro 1).
Para a avaliação de vocabulário expressivo, foi utilizada a Prova de Vocabulário do teste ABFW(17) que é composta por 118 figuras divididas em nove campos conceituais: vestuário, animais, alimentos, meios de transporte, móveis e utensílios, profissões, locais, cores e formas, e brinquedos e instrumentos musicais. Sendo o desempenho da criança quantificado em: número de acertos ou designação de vocábulo usual (DVU), número de outras formas de nomeação que não a forma correta ou os processos de substituição (PS), e as ausências de resposta ou não designação (ND). Para o presente estudo foi considerado apenas o valor de DVU total para vocabulário expressivo.
No que diz respeito ao vocabulário receptivo, a prova consiste em solicitar à criança que aponte, dentre um conjunto de figuras, aquela que o avaliador nomear. A prova possui os mesmos campos semânticos encontrados na prova de vocabulário expressivo do ABFW(17).
Todos os dados passaram por análise estatística. O valor de significância estatística adotado foi igual a 5% (p ≤ 0,05). Utilizou-se o software SPSS Statistics, versão 25.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA). Para o cálculo dos intervalos de confiança de 95% foi utilizado o método de viés corrigido e acelerado com base em 2000 amostras bootstrap. Os valores entre colchetes nas tabelas indicam os limites superior e inferior dos intervalos de confiança de 95%.
RESULTADOS
A Tabela 1 apresenta a distribuição da amostra de acordo com o tipo de jogo mais utilizado e jogo mais elaborado na prova de maturidade simbólica.
Caracterização dos indivíduos quanto ao tipo de jogo mais utilizado e jogo mais elaborado na prova de maturidade simbólica
A Tabela 2 apresenta as medidas de tendência central e de dispersão da pontuação total da maturidade simbólica e da porcentagem de acertos nas provas de vocabulário expressivo e receptivo.
Caracterização da amostra do estudo em relação à pontuação total na prova de maturidade simbólica e porcentagem de acertos nas provas de vocabulário expressivo e receptivo
A Tabela 3 apresenta uma análise da distribuição dos dados quantitativos para a amostra do estudo. A intenção desta análise foi verificar se os dados obedecem ao pressuposto de normalidade, de modo a auxiliar na decisão da escolha do teste para investigação de correlação destas variáveis (teste paramétrico ou não-paramétrico). Utilizou-se o teste de Shapiro-Wilk para verificar o cumprimento do pressuposto de normalidade.
Como as variáveis quantitativas violaram o pressuposto de normalidade (p ≤ 0,05 no teste de normalidade de Shapiro-Wilk) e como as demais variáveis apresentam natureza qualitativa ordinal, utilizou-se apenas testes não-paramétricos para a investigação das correlações.
A Tabela 4 apresenta a análise de correlação entre a maturidade simbólica, o teste Raven e a prova de vocabulário. Para essa análise, realizou-se o cálculo do coeficiente de correlação e do valor de p por meio do teste de correlação de Spearman (não-paramétrico). Em todas as análises realizadas não foram observadas correlações lineares estatisticamente significantes.
DISCUSSÃO
Considerando o desempenho na avaliação da maturidade simbólica, foi possível observar tanto para o jogo mais utilizado, quanto para o mais elaborado e para as possíveis combinações entre esses dois jogos que a maioria das crianças com suspeita de TDL que chegam para a clínica fonoaudiológica, apresentam jogos mais primitivos, que não envolvem a representação de suas ações com o objeto, com pobre capacidade de abstrair e realizar o faz de conta. Esses dados apontam que essas crianças estão simbolicamente muito inferiores à média, mostrando a forte relação que essa habilidade tem frente ao desenvolvimento de linguagem, uma vez que todas as crianças apresentavam alterações nos níveis de expressão e recepção linguística(11,18).
Em relação ao vocabulário, os dados do presente estudo apontam melhor desempenho de crianças com TDL em vocabulário receptivo conforme verificado por diferentes autores(17,18). Estudos apontam que, em geral, crianças com alterações de linguagem apresentam atraso no desenvolvimento das primeiras palavras e falha na expansão vocabular, dificuldades em adquirir conceitos abstratos e em combinar os significados das palavras para formar sentenças(17,18).
Quanto ao RAVEN, as crianças do presente estudo obtiveram, em sua maioria, classificações de inteligência não verbal na média e superior à média. Em alguns casos, observou-se classificação inferior à média o que, de acordo com os novos critérios diagnósticos descritos internacionalmente, permitem a inclusão dessas crianças no diagnóstico do TDL(10,19). Liao et al ao estudarem o desenvolvimento cognitivo em crianças com alterações de linguagem observaram a heterogeneidade desse quadro sobre o QI verbal e o QI desempenho. Seus resultados mostraram que o QI dessas crianças era significativamente menor do que em crianças sem alteração, e apontou que o atraso no desenvolvimento de habilidades de linguagem pode estar ligado ao atraso do desenvolvimento da capacidade mental(20).
Mediante a isso cabe ao profissional ter conhecimento das habilidades intelectuais de seus pacientes para chegar a um diagnóstico mais fidedigno, o que propiciará melhor planejamento de intervenções, além de informações importantes sobre o prognóstico em crianças com problemas de desenvolvimento(10). Isso se torna ainda mais imperioso ao se considerar que estudos mais recentes mostram que as crianças com TDL podem apresentar variações na função intelectual e até mesmo na pontuação do QI não-verbal, fato que pode contribuir ainda mais para a heterogeneidade de manifestações já observadas e descritas nessa população, podendo ter repercussões importantes não apenas no diagnóstico, mas também no direcionamento terapêutico (10).
No que diz respeito à correlação entre as provas de maturidade simbólica e RAVEN, esperava-se que, por meio dos dados da maturidade simbólica, fosse possível inferir sobre o futuro desempenho da inteligência não verbal das crianças com TDL, porém isso não foi observado. Uma possível hipótese para esses resultados é a de que a não correlação entre as variáveis se dá pelo fato de serem habilidades de bases diferentes, ou seja, as habilidades simbólicas são diretamente relacionadas a tarefas linguísticas e aquelas mensuradas pelo Raven são de ordem não verbal. Por outro lado, a literatura(20) mostra que quando se analisa a relação inversa, ou seja, se as habilidades linguísticas influenciam no potencial cognitivo, encontram-se estudos com correlação significante. Além disso, esse mesmo estudo(20) mostrou evidência de que o atraso no desenvolvimento de habilidades de linguagem pode explicar parcialmente o atraso no desenvolvimento das capacidades intelectuais, mesmo quando o atraso é considerado dentro da faixa normal de QI.
Ressalta-se que diferentes autores(21-23) já afirmaram que a relação entre o desenvolvimento cognitivo e o de linguagem e as fases de aquisições pelas quais a criança passa para efetivar a construção de seu conhecimento, nos mostram que a linguagem e a cognição parecem estar relacionadas em pontos específicos do desenvolvimento. Assim, a aquisição da linguagem não poderia ser entendida de forma isolada no desenvolvimento infantil. Seu surgimento possui estreitas relações com os aspectos cognitivos e sugere que o desenvolvimento linguístico depende do desenvolvimento da cognição(24).
No que diz respeito à correlação entre maturidade simbólica e vocabulário, essa se mostrou fraca nos sujeitos do presente estudo, com leve tendência de associação apenas entre o jogo simbólico mais elaborado e as habilidades de vocabulário expressivo. Resultados semelhantes foram observados nos estudos de Quinn et al(25) que realizaram uma meta-análise envolvendo mais de 6325 sujeitos, na qual foi identificada relações entre maturidade simbólica e diferentes subsistemas da linguagem, apontando para forte correlação com o vocabulário. Entretanto, diferentemente dos resultados encontrados no presente estudo, os autores observaram maiores interações entre maturidade simbólica e vocabulário receptivo.
Lee et al(26), ao descreverem os resultados de correlação entre maturidade simbólica e linguagem em crianças com alterações nesta área, demonstraram que essa população apresenta comportamento diferente no que diz respeito à tais habilidades quando comparadas a seus pares típicos. Os resultados encontrados nas crianças da presente pesquisa reforçam esses dados ao observarmos a fraca correlação entre a maturidade simbólica e o vocabulário. Os autores discutem as diferentes variáveis que podem interferir nessa relação, ressaltando que para realizar a maturidade simbólica adequadamente é necessária uma capacidade de abstração e representação simbólica, geralmente prejudicada nessas crianças. Os autores ressaltam ainda a necessidade de mais estudos envolvendo a investigação de tais habilidades em crianças com alterações no desenvolvimento de linguagem(27,28).
Cabe destacar também que a literatura internacional indica que quanto menor a idade da criança, maior a chance de se observar correlação entre maturidade simbólica e desenvolvimento linguístico. Essa pode ser uma razão que explique a baixa correlação encontrada no presente estudo uma vez que a avaliação da maturidade simbólica ocorreu em crianças acima dos três anos de idade e, algumas delas, já com quatro anos completos(29).
É importante salientar ainda que diferentes estudos internacionais apontaram que, para crianças típicas, é muito comum a associação entre maturidade e vocabulário, entretanto, há pesquisadores que relatam não ter encontrado tal correlação(4,29,30). Os autores descrevem diversos fatores que podem influenciar resultados tão diversos na literatura e citam que uma das maiores dificuldades é a própria avaliação da maturidade simbólica que ocorre de diferentes maneiras e envolve também a subjetividade do avaliador. Além disso, citam o número reduzido de estudos dessa natureza envolvendo crianças com alterações de linguagem.
Sendo assim, o presente estudo contribui de forma consistente ao indicar a necessidade de se investigar mais profundamente as relações entre habilidades cognitivo-intelectuais, simbólicas e linguísticas a fim de prover dados que possam aprimorar não apenas os métodos de avaliação, mas também os procedimentos terapêuticos desenvolvidos para crianças com diagnóstico de TDL. Sugere-se, além da inclusão de grupo controle, uma casuística maior, a fim de estabelecer um paralelo entre crianças com e sem alterações do desenvolvimento de linguagem no que diz respeito às habilidades simbólicas e linguísticas, pois essas, são provavelmente, limitações do presente estudo.
CONCLUSÃO
Não foram encontradas relações entre o desempenho em maturidade simbólica, vocabulário e habilidades intelectuais não-verbais de crianças com hipótese diagnóstica de TDL. Tais dados promovem importantes reflexões a respeito do desenvolvimento simbólico-linguístico dessa população, apontando para a necessidade de estudá-las mais profundamente e em paralelo com seus pares típicos a fim de se aprimorar o conhecimento do desenvolvimento simbólico-linguístico.
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Trabalho realizado no Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo – USP - São Paulo (SP), Brasil.
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Fonte de financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Maio 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
20 Mar 2020 -
Aceito
08 Maio 2020