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A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina

RESENHAS

"A hora da eugenia": raça, gênero e nação na América Latina

Nancy Leys Stepan. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005. 224p.

A partir de meados dos anos 1980 os trabalhos sobre eugenia tornaram-se discussões bastante recorrentes na historiografia internacional. De maneira geral, os historiadores têm procurado demonstrar que longe de ter sido um acontecimento histórico específico dos países anglo-saxônicos, a eugenia foi um movimento de idéias que emergiu em várias partes do mundo, conformando-se sempre aos diferentes contextos nacionais. O livro da historiadora Nancy Leys Stepan procura reafirmar essas noções ao destacar as especificidades ideológicas e o modo pelo qual se organizaram os movimentos eugênicos na América Latina.

A autora, também professora da Universidade de Colúmbia, em Nova York, publicou outros livros diretamente relacionados à história das ciências e da medicina, entre os quais se destacam The idea of race in science: Great Britain, 1800-1860 (1 982) e Picturing tropical nature (200 1). Seu primeiro trabalho sobre eugenia foi resultado de pesquisas realizadas no Brasil durante os anos 1980, quando publicou o artigo "Eugenesia, genética y salud pública: el movimiento eugenésico brasileñoy mundial", na Revista Quipu, em 1985. Esse trabalho havia sido preparado com base em discussões que surgiram durante o seminário The History of Eugenics: Work in Progress, realizado nos Estados Unidos, em 1983, sob a organização do historiador Mark Adams. Desse seminário resultou uma série de trabalhos que, sete anos depois, seria apresentado no livro The eellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil, and Rússia, no qual Nancy Stepan publicaria novamente, com ligeiras alterações, seu trabalho de 1985.

É nesse contexto historiográfico que Nancy Stepan lança, em 1991, o livro " The hour of eugenics": race, gender and nation in Latin America, somente agora traduzido para o português. Na obra, a autora defende a tese de que a história da eugenia na América Latina subverte o entendimento do significado da eugenia em geral, afirmando que o movimento eugênico internacional não foi unitário e não pode ser indiscriminadamente apreendido. Ao contrário da concepção mendeliana de genética - dominante nos países anglo-saxônicos -, os eugenistas latino-americanos baseavam sua eugenia em uma corrente alternativa de noções neolamarckianas de hereditariedade, cujas concepções se apoiavam na idéia da transmissão dos caracteres adquiridos. O resultado foi a adoção de uma "eugenia preventiva", muito mais preocupada com as reformas sociais e com a adaptação ao meio do que propriamente com as questões biológicas.

Nesse livro, Nancy Stepan explora os movimentos eugênicos dos três países mais populosos da América Latina - Brasil, México e Argentina -, ressaltando que suas diferentes tradições do pensamento científico, político e cultural permitem uma análise comparativa. Apesar de articularem de maneiras diversas as ideologias raciais, os movimentos eugênicos latino-americanos estavam unidos em torno de uma mesma preocupação: a construção de uma "verdadeira nacionalidade". Os esforços da maioria dos eugenistas latino-americanos foram empregados com o objetivo de superar a heterogeneidade de sua "população mestiça", abrindo caminho para a homogeneização da identidade nacional.

A história da eugenia na América Latina é abordada pela autora com base em uma visão contextualizadora, marcada pelas concepções da nova história social da ciência. Sua orientação possibilita compreender como os elementos culturais e as tradições intelectuais locais tornam-se parte constituinte das teorias científicas, além de permitir apreender a eugenia como um conhecimento científico e social estreitamente conformado pelos fatores particulares das sociedades em que emergiram. A utilização dessa abordagem teórica evidencia ainda a imensa autoridade social que a ciência exerce no mundo moderno, a maneira pela qual ela produz percepções e as técnicas capazes de conformar interpretações culturais e levar ao desenvolvimento de diversas estratégias sociais.

Um dos principais méritos da obra é demonstrar que a América Latina não pode ser vista como uma consumidora de idéias, conforme os estudiosos da história intelectual procuraram reforçar por muito tempo. Nas palavras da autora, concepções como essas deixam de considerar "a contribuição de uma região como a América Latina para nosso entendimento sobre o modo como as idéias passam a fazer parte do complexo tecido da vida político-social" (p. 11). Seu argumento é que os eugenistas latino-americanos não faziam ciência por imitação, reproduzindo idéias estrangeiras em um contexto estranho ou não científico. Ao contrário, a história da eugenia na América Latina deve ser vista como uma espécie de conhecimento produzido e conformado pelas variáveis culturais peculiares à região. Assim, "em lugares como a América Latina, temos de estudar a eugenia não como pálido reflexo da eugenia de outras partes do mundo, algo talvez 'mal entendido' ou 'mal interpretado', mas como algo enraizado na experiência cultural e na história da própria região" (p.40).

O livro está dividido em sete capítulos. No primeiro, a autora analisa "a nova genética e os primórdios da eugenia", que remontam ao final do século XIX. Demonstra que o novo evolucionismo, surgido a partir da década de 860, foi essencial para que o cientista britânico Francis Galton agrupasse um conjunto de idéias que chamou, em 1883, de eugenia. Nesse mesmo contexto, a autora discute as novas teorias da hereditariedade, como as concepções de August Weismann sobre a continuidade do plasma germinativo e, acima de tudo, a redescoberta das leis de Mendel sobre a recombinação de caracteres hereditários em plantas. Essas teorias acabariam conjugando-se, logo no início do século XX, no bojo de um mesmo projeto eugênico, confirmando as noções galtonianas sobre a importância da "linhagem", e não do meio social, na determinação das características hereditárias.

A institucionalização da eugenia na América Latina é o assunto tratado no segundo capítulo. Nancy Stepan procura compreender o desenvolvimento das idéias sobre a eugenia numa região cuja população era marcadamente pobre, de formação católica, amplamente miscigenada e com sérios problemas de saúde pública. Segundo a autora, os eugenistas latino-americanos encontraram no discurso eugênico uma ferramenta poderosa para auxiliar no processo de reforma social e de aperfeiçoamento médico da nacionalidade. Liderado por intelectuais de diversos matizes, o movimento eugênico rapidamente se institucionalizou em vários países da região. Para Stepan, a Sociedade Eugênica de São Paulo e a Sociedade Eugênica da Argentina, ambas fundadas em 1918, foram impulsionadas pelo sentimento nacionalista que tomou conta da América Latina no período imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial. Destaca também a organização do movimento eugênico no México, que, em pleno contexto da Revolução Mexicana, entre 1910 e 1920, recebeu significativo apoio de médicos e reformadores nacionais.

No terceiro capítulo, a autora analisa as concepções neolamarckistas desenvolvidas durante a década de 1920. Segundo Stepan, os eugenistas assumiram um programa eugênico ao estilo do ambientalismo médico em que a idéia de evolução parecia um modo mais harmonioso e humano de aperfeiçoar a natureza, diferentemente da evolução baseada na intensa luta darwiniana. Ao invés de medidas radicais, como a esterilização e a segregação racial, os eugenistas latino-americanos preferiram um modelo de "eugenia preventiva", que incorporasse políticas em prol da higiene, do saneamento e do combate aos "venenos raciais", como o álcool, a nicotina, a sífilis e outras doenças infecciosas. A autora destaca também a importância da puericultura como medida preventiva para conservar a saúde racial das mães e de suas proles, consideradas pelos eugenistas como recurso biológico essencial para o futuro da nação. Impregnados pelo hereditarismo neolamarckista, os eugenistas e puericultores divulgaram amplo programa de educação e moralização da esfera sexual, além de conselhos dirigidos aos pais com o objetivo de evitar que o meio ambiente e social se constituíssem em fonte de degeneração hereditária.

Nancy Stepan discute no quarto capítulo os discursos de gênero e raça inseridos no programa para uma eugenia reprodutiva. Ao contrário da "eugenia negativa" anglo-saxônica, o controle da reprodução humana na América Latina ocorreu de forma menos radical. Denominada pelos próprios eugenistas latino-americanos "eugenia matrimonial", Stepan explica que a "eugenia reprodutiva negativa" adquiriu na região características próprias, compatíveis com as visões sociais, políticas e religiosas dessas sociedades. Ao invés de intervenções cirúrgicas, os eugenistas latino-americanos incentivaram o controle matrimonial por meio de exames médicos e de certificados pré-matrimoniais, restringindo "uniões inadequadas" como entre indivíduos portadores de doenças consideradas hereditárias e "vícios sociais". Nesse sentido, os discursos de gênero, raça e nação transformaram-se em elementos centrais da "eugenia matrimonial", uma vez que era mediante a reprodução sexual que ocorriam as conformações raciais. As políticas matrimoniais concentraram sua atenção sobre o gênero feminino, pois era por intermédio da educação, dos conselhos morais e da higiene sexual feminina que se poderia garantir uma prole saudável e uma "nação eugênica".

As discussões sobre as identidades nacionais e as transformações raciais na América Latina são analisadas mais detidamente no quinto capítulo. Para Stepan a grande preocupação dos eugenistas era homogeneizar a "raça nacional", ainda que fosse para criar uma identidade mestiça ou, para outros, uma nacionalidade em processo de branqueamento. De maneira geral, os eugenistas buscavam um caminho alternativo que fugisse aos esteriótipos negativos que os cientistas europeus construíam em relação à instabilidade das formas raciais das nações latino-americanas. Nas palavras da autora, "os argentinos eram vistos, na melhor das hipóteses, como europeus pobres. O México, com seus índios e mestiços, jamais foi considerado próximo à norma branca dos racistas. No Brasil, o clima tropical era visto como fator adicional de deterioração de sua população mestiça" (p. 150). Para vencer esses estereótipos, a autora demonstra que cada movimento eugênico lidou de maneira própria com as ideologias raciais, sempre mobilizado por políticas de cunho nacionalista. Na Argentina, por exemplo, predominou um modelo eugênico mais racializado, que visava construir uma nacionalidade conforme as idealizações europeizantes das elites brancas locais. Os eugenistas mexicanos procuraram criar um discurso eugênico que pudesse sustentar a idéia de uma miscigenação construtiva, como propunha o ensaísta José Vasconcelos em suas obras Raza cósmica (1924) e Indianologia (1925). O caso brasileiro é apresentado pela autora como particularmente interessante, uma vez que o discurso eugênico sobre raça e identidade nacional florescia conforme as contingências do nacionalismo e das discussões acerca das políticas de imigração.

No capítulo seis são destacadas as vinculações internacionais da eugenia latino-americana. Apesar da organização de dois congressos panamericanos, realizados nas décadas de 1920 e 1930, Nancy Stepan explica que a cooperação entre os eugenistas norte-americanos com seus pares da América Latina fracassou amplamente, pois punha em evidência as diferentes concepções políticas e ideológicas que norteavam seus projetos eugênicos. A autora demonstra que a organização internacional da eugenia latino-americana encontrou abrigo ideológico nos movimentos eugênicos da Itália, da França e da Bélgica, que associados por "pontos em comum" fundaram, em 1934, a Federação Internacional de Sociedades Eugênicas. De acordo com Nancy Stepan, a construção da "latinidade", como identidade ideológica, ocorreu com uma oposição ao projeto eugênico proposto pelos países anglo-saxônicos. Enquanto a visão anglo-saxônica de raça era considerada em suas formas unilateral, biológica e mendeliana, a Federação Latina pensava as discussões raciais de forma mais tolerante, ligada a uma visão neolamarckista que refletia a diversidade da situação racial na América Latina.

No último capítulo, que serve como conclusão para a obra, a historiadora esboça uma reflexão sobre as relações entre a ciência e a política, demonstrando que as "representações científicas tanto são conformadas como formam o mundo à sua volta" (p. 213). Nesse contexto chama a atenção para a importância da história da eugenia no tempo presente, na medida em que as discussões sobre genética, biotecnologia e fisiologia reprodutiva são atualmente apresentadas como idéias "cientificamente validadas" que prometem novos métodos de reprodução humana, a eliminação de doenças e "imperfeições biológicas", além do desejo de conhecer as características mais recônditas contidas no DNA.

Para encerrar, valer dizer que o livro em apreço tem contribuído muito para uma série de trabalhos produzidos no Brasil e na América Latina, especialmente no campo da história das ciências, da medicina e da saúde pública. Mais do que uma importante referência, ele pode ser definido como uma grande agenda de pesquisa sobre temas latino-americanos, uma vez que apresenta um panorama geral sobre diversas questões que envolvem não somente as discussões sobre ciência, raça, gênero, nação, sexualidade e reprodução humana, mas também sobre a própria história intelectual da região.

Vanderlei Sebastião de Souza

Doutorando em História das

Ciências e da Saúde

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

vanderleidesouza@yahoo.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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