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Levantamento temático em cadernos de pesquisa: processos de alfabetização e analfabetismo

A thematic survey in cadernos de pesquisa: procedures for literacy processes and illiteracy

Relevamiento temático en cadernos de pesquisa: procesos de alfabetización y analfabetismo

Resumos

Propõe-se neste artigo um exercício de análise das representações por pesquisadores do processo de alfabetização ou do analfabetismo com base em um levantamento temático e bibliográfico de artigos publicados em Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas. A análise abarca um período de 40 anos, desde o primeiro exemplar da revista, lançado em 1971, até o exemplar CP142, de 2011. Por essa abordagem procura-se dimensionar o investimento do trabalho social baseado em determinada demarcação temporal e erigido em princípios de ordenação da alfabetização e do analfabetismo como um fenômeno social.

analfabetismo; alfabetização; pesquisa educacional


In this article we propose an exercise in analyzing how researchers represent the literacy process or illiteracy based on a thematic and bibliographical survey of articles published in Cadernos de Pesquisa, edited by the Carlos Chagas Foundation. The analysis covers a period of 40 years from the first issue of the journal, launched in 1971, to issue CP142, in 2011. With this approach we seek to assess the investment of social work based on a certain time period and on classifying principles of literacy and illiteracy as a social phenomenon.

illiteracy; literacy; educational research


En este artículo se propone un ejercicio de análisis de las representaciones efectuadas por investigadores del proceso de alfabetización o del analfabetismo en base a un relevamiento temático y bibliográfico de artículos publicados en Cadernos de Pesquisa, de la Fundação Carlos Chagas. El análisis abarca un periodo de 40 años, desde el primer ejemplar de la revista, lanzado en 1971, hasta el ejemplar CP142, del 2011. Por medio de este abordaje se intenta dimensionar la inversión del trabajo social basado en una determinada demarcación temporal y fundamentado en principios de ordenación de la alfabetización y del analfabetismo como un fenómeno social.

analfabetismo; alfabetización; investigación educativa


OUTROS TEMAS

Levantamento temático em cadernos de pesquisa: processos de alfabetização e analfabetismo

A thematic survey in cadernos de pesquisa: procedures for literacy processes and illiteracy

Relevamiento temático en cadernos de pesquisa: procesos de alfabetización y analfabetismo

Tatiana Arnaud Cipiniuk

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense – UFF tarnaud78@yahoo.com.br

RESUMO

Propõe-se neste artigo um exercício de análise das representações por pesquisadores do processo de alfabetização ou do analfabetismo com base em um levantamento temático e bibliográfico de artigos publicados em Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas. A análise abarca um período de 40 anos, desde o primeiro exemplar da revista, lançado em 1971, até o exemplar CP142, de 2011. Por essa abordagem procura-se dimensionar o investimento do trabalho social baseado em determinada demarcação temporal e erigido em princípios de ordenação da alfabetização e do analfabetismo como um fenômeno social.

Palavras-chave: analfabetismo; alfabetização; pesquisa educacional

ABSTRACT

In this article we propose an exercise in analyzing how researchers represent the literacy process or illiteracy based on a thematic and bibliographical survey of articles published in Cadernos de Pesquisa, edited by the Carlos Chagas Foundation. The analysis covers a period of 40 years from the first issue of the journal, launched in 1971, to issue CP142, in 2011. With this approach we seek to assess the investment of social work based on a certain time period and on classifying principles of literacy and illiteracy as a social phenomenon.

Keywords: illiteracy; literacy; educational research

RESUMEN

En este artículo se propone un ejercicio de análisis de las representaciones efectuadas por investigadores del proceso de alfabetización o del analfabetismo en base a un relevamiento temático y bibliográfico de artículos publicados en Cadernos de Pesquisa, de la Fundação Carlos Chagas. El análisis abarca un periodo de 40 años, desde el primer ejemplar de la revista, lanzado en 1971, hasta el ejemplar CP142, del 2011. Por medio de este abordaje se intenta dimensionar la inversión del trabajo social basado en una determinada demarcación temporal y fundamentado en principios de ordenación de la alfabetización y del analfabetismo como un fenómeno social.

Palabras clave: analfabetismo; alfabetización; investigación educativa

NÍVEIS DE ANÁLISE

Apresento, neste artigo, um estudo realizado com base em levantamento temático de artigos de Cadernos de Pesquisa (doravante CP)1 1 Os artigos de CP referidos ao longo deste artigo estão listados em quadro anexo com seu respectivo código para referência. que reflete sobre representações construídas pelos autores acerca dos processos de alfabetização e analfabetismo. Esses termos guardam relação com o processo de escolarização oferecido pela rede pública de ensino. Portanto, incidem sobre alunos que se dispõem às adequações formais do método de ensino regular. No levantamento, foram incorporados todos os artigos cujos autores investem na produção de interpretações dos fenômenos e dos princípios de classificação social aos quais aqueles termos estão associados. Entre eles, destaco: fracasso e evasão escolar, desigualdade de chances de alunos advindos de camadas mais pobres e deficiência do aparato escolar ou dos agentes sociais que se encontram envolvidos no processo.

A partir desse cenário multifacetado, proponho um exercício de análise que abarca dados bibliográficos reunidos desde o primeiro exemplar da revista CP até o número 142, o último número disponível quando da pesquisa que deu origem a este artigo. Pretendo colocar em relevo a forma como foi constituído o processo de elaboração das percepções subjacentes às condições de observação dos autores e suas explicações do fenômeno supracitado, considerando a especificidade e a complexa multiplicidade de perspectivas sobre alfabetização e analfabetismo. Pretendo, outrossim, atentar para as condições de construção do objeto sociológico, neste caso diretamente associado ao "problema", por definição social, que urge ser eficazmente gerido ou erradicado.

O critério para a seleção dos artigos foi a referência, direta ou indireta, ao tema da alfabetização, isto é, a citação dos termos alfabetização e outros relacionados, como analfabetismo, analfabeto e suas variações, além da busca de artigos que se relacionassem com expressões como cursos noturnos, educação tardia e modalidade de ensino básico. A ordenação desses dados acompanhou a forma como os autores explicam o fenômeno, suas atribuições e a forma pela qual as interpretações foram construídas no período entre 1971 e 2011.

Como os interesses e os princípios de interpretação da temática estão referenciados a contextos históricos diferentes, eles devem ser distinguidos e entendidos de acordo com a situação, e não confundidos ou interpretados por equivalências. Por essa característica, apresentarei ao leitor a periodicidade com que CP publicou os artigos, de forma crescente, em correspondência com a problemática da forma como a alfabetização e o analfabetismo foram tratados pelos autores desses artigos. Para isso, não limitei o levantamento apenas à análise de resumos, títulos e subtítulos. Todos os trabalhos que poderiam tratar da temática foram integralmente examinados. Para efeito de contextualização, serão citados outros artigos da mesma publicação, além da bibliografia reunida em teses, dissertações e outras publicações.

ALFABETIZAÇÃO E ANALFABETISMO

O debate sobre alfabetização no Brasil está diretamente relacionado ao campo da pesquisa educacional e se apresenta a partir de interações diversas com outros campos do saber, exprimindo a disposição comum a dois ou mais ramos do conhecimento. Nesse arranjo, marcado por interdisciplinaridade, para cada área são advogadas especificidades de estados processuais de formação ou elaboração de ideias. Essas nem sempre se coadunam, razão pela qual há debates quanto às divergências teórico-metodológicas, atribuindo sentidos múltiplos aos usos das diferentes perspectivas de estudo. Essas questões são apresentadas por Gouveia (CP1, CP19), Gatti (CP44a, CP80b), Mello (CP46c), Esteves (CP50), Soares (CP52b), Patto (CP65b), Gusmão (1997), Barretto et al. (CP114a) e Rocha e Tosta (2009).

Em educação, a pedagogia se legitimou como disciplina predominante, mas a sociologia, antropologia, política, medicina, psicologia, linguística, economia e demografia contribuem com conceitos e preceitos metodológicos diversificados. Essa interdisciplinaridade interfere na construção de uma variedade de temas e de abordagens, variedade que impõe uma dimensão de larga escala para qualquer exercício de levantamento nessa área.

O elenco de autores contemplados aqui abarca pesquisadores de diversos campos do conhecimento que apresentam, assim, em termos metodológicos, formas plurais de objetivações reflexivas em relação à temática da alfabetização e de sua inerente propensão oblíqua: o analfabetismo.

Alguns dos autores selecionados investem mais diretamente na revisão da bibliografia presente em artigos publicados em CP. Outros marcam seu interesse pelo levantamento de especificidades situacionais relacionadas às formas de coexistência entre a complexa constituição do universo escolar e as possíveis formas de geri-la, valendo-se de critérios de classificação cuja origem delimita as práticas escolares. E outros ainda, em menor quantidade, buscam compreender o fenômeno social particularizando seus sentidos ou suas representações sociais específicas.

CADERNOS DE PESQUISA

A opção de restringir a análise a Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas, fundamenta-se na recorrência com que o tema alfabetização é nele abordado. A diversidade de perspectivas apresentada em seus volumes se sobressai no rico cenário de pesquisas realizadas no país, onde a importância do fenômeno é destacada. Quanto a isso, faço menção aos números CP52 e CP75, em que são discutidas propostas emergentes às questões, em consonância com a associação que alfabetização/analfabetismo apresenta por diferentes facetas de seu processo.

CP é um dos periódicos mais antigos de sua categoria, publicando continuamente, desde o ano de 1971, artigos científicos sobre educação, e é qualificado com nota máxima expedida pelo órgão do Ministério da Educação, responsável pela avaliação continuada das modalidades de pós-graduação stricto sensu no Brasil. Por tais enlaces, o levantamento temático nessa base de dados é relevante para dimensionar e mensurar aspectos e formas de representação pelas quais a alfabetização e o analfabetismo são relacionados.

CAMPOS TEMÁTICOS

Em Cadernos de Pesquisa, a diversidade de concepções de projetos de alfabetização acompanha o seu percurso editorial, como já assinalado, desde a década de 1970. O investimento inicial esteve a cargo de Poppovic (CP2, 1971), logo no segundo volume do periódico. Ela foi a primeira pesquisadora, nesse periódico, a se preocupar metodologicamente com o estudo da alfabetização em uma perspectiva interdisciplinar. A autora problematiza a relação "possível e desejável" da psicologia e da pedagogia em prol do processo de alfabetização. Na apresentação do texto, Poppovic levanta três questões relacionadas aos aspectos psiconeurológicos e aos princípios educacionais que envolvem a adequação do método de alfabetização. Demonstra, contudo, que autores afiliados aos campos de conhecimento da psicologia e pedagogia não têm dado devido valor a essa abordagem, tema considerado de extrema importância e que propõe algumas possibilidades de diálogo em pesquisa sobre o processo de alfabetização.

Posteriormente, diversos autores ressaltam o carácter emblemático desse artigo de CP. Tanto que, na década de 1980, o artigo foi reeditado no número 36, sem qualquer alteração, reafirmando o grande interesse despertado pelos leitores (CP36a).

É importante notar que a questão da interdisciplinaridade é de grande relevância para explicar muitas das oscilações que marcam as tendências de pesquisas educacionais no Brasil, e continua presente em debates contemporâneos, visto que, segundo Rocha e Tosta (2009), a integração entre saberes no campo das ciências humanas tem-se tornado uma questão importante para se pensar em novas formas de formular projetos científicos.

Outrossim, pondera Gouveia (CP1, 1971), a interdisciplinaridade merece atenção ao ser considerada, posto que o predomínio de uma única perspectiva aliada à hegemonia de determinada corrente, em determinada época, pode interferir de forma não favorável no desenvolvimento de uma pesquisa educacional.

MOVIMENTOS EDUCACIONAIS

Nessa mesma década, ainda desponta um artigo de grande relevância para se compreender a dimensão tomada por três grandes movimentos educacionais brasileiros, apresentados a partir das condições como foram objetivadas as concepções de educação no que tange à alfabetização em tempo de vida considerado inadequado pelo sistema escolar (formal). Barretto (CP6, 1972) traz ao debate o sentido dos "objetivos educacionais" referenciados pelo Movimento de Educação e Base – MEB –, pela Campanha Nacional de Alfabetização de Adultos (Sistema Paulo Freire) e pelo Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral.

A autora caracteriza e destaca elementos históricos e princípios sociais que norteiam as elaborações de critérios associados à construção do fenômeno do analfabetismo. E aponta, em cada um dos três movimentos, diferentes composições sociais, marcadas por desdobramentos que têm como base tentativas de associação entre desenvolvimento do país e educação.

No caso específico do Mobral, ao descrever os objetivos do movimento, Barretto (CP6, 1972) salienta o sobressalto que o valor educação teve diante do resultado da pesquisa elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. Nesse caso, o Mobral corresponde a uma das manifestações máximas dessa concepção em face dos desdobramentos econômicos dos planos do governo brasileiro. O estudo realizado pelo Ipea demonstrou que "a educação produz taxas de retorno muito altas, [e] é, provavelmente, uma das oportunidades mais lucrativas de investimento que se apresentam à sociedade contemporânea" (CP6, 1972, p. 81).

Essa perspectiva analítica apresentada por Barretto (CP6, 1972) avalia o processo de formação de representações sociais conformadoras da percepção do universo educacional. Elas denotam como princípio de elaboração fundante a força motriz do processo de alfabetização imbuída de importância no desenvolvimento socioeconômico a que se aspira para o país.

Tais princípios são resultados de lutas travadas por agentes sociais, instituições, pesquisas encomendadas a institutos que sistematizam taxas e índices e que, por princípio, instituem o fenômeno como "problema social" (LENOIR, 1996). Em decorrência, afirma-se a necessidade tácita da alfabetização e as pressupostas dificuldades de aplicação por esses movimentos de educação. Essa definição se amplia e reforça uma espécie de norma oficial, levada também em consideração como objeto sociológico por pesquisadores que produzem diferentes projetos de pesquisa.

Acompanhando essa linha de elaboração, vale destacar duas pesquisas. A primeira, coordenada por Goldberg et al. (CP8), avaliou, de forma descritiva, as características do Mobral em dezesseis classes, no município paulista de Ribeirão Preto de acordo com o método pedagógico. Na segunda, sob perspectiva histórica e sociológica, Castro e Franco (CP33)2 2 Embora o artigo de Castro e Franco tenha sido publicado no ano de 1980, para efeito de ordenação, relacionei-o à pesquisa de Goldberg, Barretto e Sá e Menezes ( CP8), por se tratar de descrições sobre os movimentos de alfabetização. avaliaram aspectos abrangentes do Mobral, bem como o ensino por correspondência objetivado pelo sistema de rádio e televisão educativa.

Ainda sobre esses artigos, faço menção à problematização do processo de alfabetização de forma mais abrangente, tal como ocorre com as associações de termos tão recorrentes às análises educacionais, como fracasso, evasão escolar e desigualdade de chances, que aparecem como evidência até porque são artigos que analisam programas de alfabetização em fase de desenvolvimento. Assim, as análises realizadas nesse contexto demonstram que a dificuldade de implementação de programas de alfabetização é um problema social, posto que o analfabetismo é definido como gerador de condições que tendem a transformar o conjunto da ordem social.

Percebe-se, porém, que, a partir do artigo publicado em (CP21) por Poppovic e, em seguida, do artigo de Gouveia (CP32), as elaborações sobre o fenômeno da alfabetização encetam rumos diferenciados. E as pesquisas começam a levar em consideração implicações sociais mais particulares, como as questões das desigualdades de chances associadas à condição de classe e seus condicionamentos sociais.3 3 Quanto aos conceitos citados, faço alusão à influência que Pierre Bourdieu exerceu, a partir dos anos 1960, sobre gerações de estudiosos que pesquisaram aspectos que relacionavam o sistema de ensino às diferenças de classe, sob formas específicas de dominação.

Grande parte dos artigos publicados desde então associam as dificuldades de implementação do processo de alfabetização no país a elementos que se constituem princípios fundantes da ordenação do universo educacional, tais como a falta de preparo dos professores, o fracasso e a evasão escolar e a escassez de recursos financeiros. Esses elementos são promovidos como critérios de objetivação do espaço social escolar, aos quais se acrescem os índices e taxas elaborados pelos agentes interessados no tratamento da erradicação do analfabetismo.

No que concerne à forma como os conceitos de evasão da unidade de ensino pública e repetência têm sido constituídos, o artigo de Patto (CP65b) apresenta análise crítica, ressaltando um determinado "cansaço" em relação à linha de investigação assumida por muitos pesquisadores, que acabam, segundo a autora, "produzindo como resultado uma visão reificada da escola e de sua problemática" (CP65b, p. 72). Quanto à valorização do tema o fracasso escolar, referimos os mais relevantes no Quadro 2, em anexo.

Há também artigos que não citam diretamente os termos alfabetização ou analfabetismo, todavia compartilham indiretamente a preocupação sobre o fenômeno e a abordagem supracitada, como podemos ver também no Quadro 2.

Por esses preceitos, articulados e elaborados nos artigos, reconhece-se o processo que constituiu a falta de domínio da prática da escrita e leitura como problema social fundado nas diferenciações socioeconômicas; e, em alguns casos, nas problematizações raciais, ampliadas pelas reivindicações que possuem caráter de combate ao que se designou como "exclusão social" (ver Quadro 2), termo recorrentemente utilizado para contrabalançar o veemente efeito da segmentação social (NEVES, 2007).

Outrossim, aparecem como preocupação de pesquisa questões relacionadas às representações que a linguagem escrita desempenha no universo dos indivíduos que estão em processo de alfabetização, mormente nas questões referentes ao contexto infantil. Desse modo, encontram-se artigos que coadunam, no âmbito das teorias metodológicas, análises interdisicplinares, em que linguística, psicologia, pedagogia e sociologia manifestam-se de forma marcante por alusões às semelhanças e contrastes entre os estudos de Piaget e Vygotsky, entre outros grandes autores relacionados às disciplinas citadas (ver Quadro 2).

EDUCAÇÃO POPULAR

Importante considerar ainda a vertente apresentada pelo artigo de Haddad (CP52k). Seu investimento elege como problemática distinções do movimento da educação popular brasileira, evidenciando, de forma abrangente, dois momentos. O primeiro deles é demonstrado pela forma como a "conscientização dentro do campo da educação popular" se apresenta; e o segundo, como o processo de alfabetização se constitui. Momentos em que não há proposições contraditórias, mas espaços de tempos diferenciados. A perspectiva do autor desponta para a compreensão dos sentidos e atribuições plurais de que o movimento de educação popular faz parte. Coloco em relevo a visão desse autor que, vinculado à forma como esses movimentos se desenvolvem, relaciona-os ao sistema de ideias elaboradas por Paulo Freire, considerado um dos ícones representativos da pedagogia brasileira.

Os aspectos discursivos e ideológicos que constituem o conceito de educação popular também aparecem, um pouco mais adiante, no artigo de Lovisolo (CP67), que denota o interesse dessa discussão, chamando a atenção para os possíveis sentidos que a dinâmica da confrontação entre "modelo popular" e "modelo escolar" assume. Essa publicação merece relevo porque recomeçam a despontar, no cenário do universo escolar, algumas pesquisas antropológicas.

Faço menção ao movimento de recomeço do interesse dos antropólogos pelo estudo do universo escolar, posto que, apesar de aparentemente serem raros os investimentos em pesquisa no campo da educação brasileira pelo viés da antropologia, os antropólogos contribuíram para o campo da educação, mormente pelos "estudos de comunidade", iniciados na década de 1940. Nesses termos, promoveram contribuições de grande relevância para esse campo do saber, conforme apontam Corrêa (CP66a) e Guimarães (1992).

Além disso, Lovisolo, em CP70, apresenta mais um artigo, agora de forma mais direcionada à problematização da educação de adultos ou ao chamado supletivo, visando a explicar alguns dos seus condicionamentos. Sua análise traz uma importante contribuição para se pensar epistemologicamente o significado do termo educação popular na América Latina.4 4 Vinculada aos artigos, a tese defendida em 1987 pelo autor apresenta um estudo pormenorizado da educação popular a partir dos paradoxos iluminista e romântico.

Ainda pela perspectiva antropológica, Garcia, em CP75b, publica um artigo sobre o universo do analfabeto e sua visão diante do mundo ocidental. Em sua análise, a autora se refere à sua dissertação de mestrado, e analisa o processo pelo qual cinco indivíduos que não possuem o domínio do alfabeto percorrem os meios sociais erigidos pela cultura letrada. Essa abordagem demonstra como o pensamento constituído por princípios de ordenação social, no caso relacionados ao processo educacional formal, vem-se objetivando. Toma-se como base o ponto de vista do educando ou dos excluídos desse processo, deslocando assim a perspectiva normativa do universo letrado.

Todos esses artigos estão indicados no Quadro 2.

VIESES HISTÓRICOS

Por outro lado, pesquisadores investem no sentido de dimensionar a magnitude do que era considerado ser analfabeto no passado, direcionando a discussão da alfabetização ou analfabetismo para um viés historicista. O investimento dessa perspectiva apresenta aspectos que caracterizam as condições históricas e sociais erigidas por pressupostos sobre a educação brasileira em diferentes etapas, como no caso da Primeira República.

Nesse cenário, em que os elementos históricos são preponderantes, destacam-se reflexões em torno de memórias recolhidas de professores que lecionaram antes da década de 1930 em escolas rurais; e em outro artigo se denota um quadro político constituído pelos ideais republicanos, em que as prioridades das políticas educacionais se concentravam no meio urbano, em detrimento do meio rural. Ambos os apontamentos são elaborados por Demartini et al. e Demartini em artigos publicados nos anos de 1985 e 1989, respectivamente (CP52f, CP64a). Além disso, destaco dois outros artigos (ver Quadro 2) que adotam a perspectiva histórica, relacionada ao fenômeno da alfabetização e aos aspectos associados à história da cultura escrita no país.

SEGMENTO RURAL

Relevante notar também as distinções elaboradas sobre o segmento rural, meio em que se atribuem os maiores índices de analfabetismo e em que se reconhecem grandes desigualdades de chances provenientes das dificuldades de acesso aos programas educacionais. No Quadro 2, estão listados os artigos que problematizam a relação entre educação e segmento rural contidos em Cadernos de Pesquisa para demonstrar o número expressivo, em determinado intervalo de tempo, de pesquisas que abordam o assunto.

A temática rural desponta em CP de forma mais representativa a partir dos anos 1980. Portanto, circunstância posterior às pesquisas que examinavam e descreviam os movimentos educacionais brasileiros, apresentados na década de 1970, como o Mobral, por exemplo. Neste caso, tais movimentos tinham como preceito a expansão da educação em todos os segmentos da sociedade, mormente nos rurais, que detinham os maiores índices de analfabetismo, como já assinalado.

PRÁTICAS DOCENTES

Cabe avaliar outro investimento bastante valorado pelos estudiosos que publicam em CP. O modo como são empregadas as pesquisas que relacionam o corpo docente às práticas de alfabetização. Percebem-se diferentes usos de abordagens para analisar os professores (alfabetizadores) em suas lutas simbólicas, quando colocam em prática estratégias de trabalho em situações que demandam o reconhecimento do exercício legítimo associado à sua função social. Ações que desencadeiam embates relacionados a mecanismos de força e domínio entre diferentes instituições da sociedade, como a família, por exemplo. Coloco em relevo o trabalho de Gatti et al., elaborado no ano de 1975 (CP13), que já apontava para a problematização das atitudes dos professores em relação às expectativas sociais de sua função.

Em face do desafio que a temática da alfabetização apresenta, Esposito (CP80) escreveu um artigo que, em termos de análise, demonstrou a ampliação da reflexão em torno do fenômeno da alfabetização. Esposito investiu na complexidade dos fatos que se mostraram em jogo que foram levantados pelos autores que contribuem para CP, desde seu início até a década de 1990. Sua análise é uma contribuição importante, que denota o exame do estado da arte dos estudos relacionados diretamente à temática da alfabetização em CP.

Ao finalizar o estudo, a autora indicou a inevitabilidade de se conciliarem e integrarem pesquisas em prol do estudo do fenômeno da alfabetização, posto que sua dimensão se funda, de forma significativa, em diversificadas perspectivas. Tendo essas abordagens plurais como "facetas desse processo", Esposito indagou se o ponto de apoio para compreendê-las seria ter "como norte uma postura política" (CP80, p. 26), no contexto da década de 1990.

Diante da indagação de Esposito, é interessante notar que os artigos que se seguem no decorrer da década de 1990 circunscrevem discussões relacionadas às políticas públicas, tais como proposições e aspectos em que foram constituídas formas de planejamento e implantação dessas políticas. Traz assim o campo da instância burocrática como elemento relevante de estudo. Nota-se ainda a propensão para as discussões que variam de acordo com as projeções de mudanças na organização social e econômica, sob a forma de remanejamento e redistribuição de recursos para educação. Importante perceber, também, que o termo mediação5 5 Filio-me à perspectiva metodológica empregada por Neves (2008) para compreender o sentido do termo mediação social. aparece nos estudos, mas assumindo sentidos que refletem os investimentos no rearranjo da vida social, mormente no que diz respeito às condições de representação política.

No Quadro 2 são listados todos os artigos que problematizam as práticas docentes.

NOVAS ABORDAGENS

Nas últimas décadas de publicação de CP, a pesquisa sobre o fenômeno da alfabetização e do analfabetismo apresenta uma parca presença. As pesquisas que abarcam essa temática são escassas em diferentes campos do saber, mormente na produção acadêmica em pedagogia, psicologia e linguística, em comparação com os anos anteriores. Por outro lado, nesse cenário se nota a ocupação de novas perspectivas antes não discutidas. Ressalto a contribuição dos artigos de Souza (CP107b) e de Traversini (CP137).

O debate trazido por eles aponta para um movimento oportuno do redimensionamento de aspectos pouco ou nunca aprofundados, que são formulados e integrados à problemática considerada por um determinado momento. No caso específico de Souza (CP107b), a perspectiva demográfica se apresenta em relevo e demonstra como taxas e índices de analfabetismo e alfabetização no Brasil podem ser relacionados a outras formas de entendimento.

O autor demonstra que muitas dessas taxas retratam situações que se encontram distanciadas do que efetivamente subsiste. Assim, relaciona a ineficiência do sistema educacional às dificuldades de se desenvolverem taxas mais aproximadas da realidade dos indivíduos que vivenciam a escolaridade fora do tempo considerado legítimo. Essa perspectiva contribui para a crítica que enfoca a forma como as taxas e índices são cristalizados frente a elaborações legitimadas, redimensionando algumas abordagens.

Por outro enfoque, Traversini (CP137) analisa a temática pela relação existente entre autoestima e alfabetização, em jovens e adultos. Sob esse aspecto, sua reflexão apresenta novas formas de compreender o fenômeno no campo de saber da pedagogia, evidenciando o interesse pela conduta dos indivíduos que procuram se alfabetizar, demarcada pelo desenvolvimento da autoconfiança. A lógica de compreensão desse processo abrange direções que constituem novos olhares, proporcionando assim dimensões menos generalizantes.

Por fim, devo reconhecer que o exercício sobre o qual me inclino não cessa nesta análise. Ao contrário, o processo de construção dos artigos relacionados ao tema da alfabetização e do analfabetismo compreende direções que não alcanço, nem almejo esgotá-las. Minha intenção aqui recai em apresentar uma das muitas formas como se exprimem o trabalho árduo de pesquisadores que contribuem para a consagração dos princípios fundantes que estabelecem o processo de alfabetização e o analfabetismo como fenômenos de grande relevância na formação da trajetória de vida do ser social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dada a forma contundente como CP se organiza pelo ponto de vista dos autores que investem na compreensão do fenômeno alfabetização e do analfabetismo, é notório pensar que essa temática está articulada a variadas iniciativas que, elaboradas ao longo de 40 anos da publicação, marcam representações de como esses fenômenos vieram a ser compreendidos.

Demonstrar essas particularidades, com base em demarcações temáticas, ressalta relevantes critérios de classificação erigidos por um intenso trabalho social. Tais distinções se constituem mediante discursos e práticas de movimentos políticos e sociais integrados por algumas camadas específicas da sociedade. Este é o caso de pesquisadores que publicam em CP, elaborando princípios ordenadores, bem como lutas destinadas à erradicação ou á disseminação do fenômeno do analfabetismo e alfabetização, respectivamente (CIPINIUK, 2009).

Acompanhar esses investimentos, quando associados ao conjunto de questões formuladas em torno de uma determinada demarcação temporal, pontua, de forma ampliada, sua progressiva dimensão, além de permitir a construção de um olhar que se afasta da naturalização, recorrentemente atribuída ao seu processo de constituição social.

Recebido em: ABRIL 2012

Aprovado para publicação em: NOVEMBRO 2013

ANEXOS



  • CIPINIUK, Tatiana Arnaud Coutinho. Analfabetismo: problema social e vergonha pessoal. 2009. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-graduação em Antropologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
  • GARCIA, Marlene. Um saber sem escrita: visão de mundo do analfabeto. 1987. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1987.
  • GUIMARÃES, Sonia D. P. Antropologia e Educação: uma relação em pauta. Dissertação (Mestrado) Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.
  • GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Antropologia e educação: origens de um diálogo. Caderno Cedes, Campinas, v. 18, n. 43, p. 8-25, 1997.
  • LENOIR, Remir. Objeto sociológico e problema social. In: MERLLIÉ, Dominique et al. Iniciação à prática sociológica Petrópolis: Vozes, 1998.
  • LOVISOLO, Hugo R. A construção da modernidade: iluminismo e romantismo na educação popular. Rio de Janeiro, 1987. Tese (Doutorado) Pós Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1987.
  • NEVES, Delma P. Pobreza e humanismo salvador: mediações subjacentes. Dados, Rio de Janeiro, v. 50, n. 1, p. 117-158, 2007.
  • ______. Mediação social e mediadores políticos. In: NEVES, D. (Org.). Desenvolvimento social e mediadores políticos Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. p. 21-44.
  • ROCHA, Gilmar; TOSTA, Sandra. Antropologia e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
  • 1
    Os artigos de
    CP referidos ao longo deste artigo estão listados em quadro anexo com seu respectivo código para referência.
  • 2
    Embora o artigo de Castro e Franco tenha sido publicado no ano de 1980, para efeito de ordenação, relacionei-o à pesquisa de Goldberg, Barretto e Sá e Menezes (
    CP8), por se tratar de descrições sobre os movimentos de alfabetização.
  • 3
    Quanto aos conceitos citados, faço alusão à influência que Pierre Bourdieu exerceu, a partir dos anos 1960, sobre gerações de estudiosos que pesquisaram aspectos que relacionavam o sistema de ensino às diferenças de classe, sob formas específicas de dominação.
  • 4
    Vinculada aos artigos, a tese defendida em 1987 pelo autor apresenta um estudo pormenorizado da educação popular a partir dos paradoxos iluminista e romântico.
  • 5
    Filio-me à perspectiva metodológica empregada por Neves (2008) para compreender o sentido do termo mediação social.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Mar 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      Abr 2012
    • Aceito
      Nov 2013
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