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Masculinidades e desempenho escolar: a construção de hierarquias entre pares1 1 O artigo deriva da pesquisa de mestrado de Cinthia Torres Toledo (2016), orientada por Marília Pinto de Carvalho e financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo n. 2014/11899-7.

Masculinities and school performance: the construction of hierarchies among peers

Masculinités et résultats scolaires: la construction de hiérarchies entre pairs

Masculinidades y desempeño escolar: la construcción de jerarquías entre pares

RESUMO

Buscando compreender as concepções coletivas de masculinidade entre os meninos e as possíveis implicações dessas concepções em seus desempenhos escolares, realizamos uma pesquisa etnográfica com crianças de aproximadamente dez anos de idade das camadas trabalhadoras, alunos/as de uma escola pública da cidade de São Paulo, utilizando observações e entrevistas. Identificamos que ser “bom aluno” não parecia contraditório para a afirmação da masculinidade daqueles meninos; ao contrário, o engajamento escolar era reconhecido como um aspecto positivo entre eles. Para ser “bom aluno”, no entanto, os garotos precisavam conseguir jogar nas relações de poder entre pares, valendo-se de práticas de masculinidades valorizadas, (re)construindo hierarquias escolares e sociais em suas interações.

Palavras chave:
Relações de Gênero; Masculinidade; Escolarização; Pesquisa Etnográfica

ABSTRACT

Seeking to understand the collective conceptions of masculinity among boys and the possible implications of such conceptions on their school performance, we conducted an ethnographic research with working-class students aged approximately ten years, from a public school in São Paulo city, Brazil, using observations and interviews. We identified that being a “good student” did not contradict the affirmation of the masculinity of those boys; on the contrary, school engagement was recognized as a positive aspect among them. Nonetheless, to be “good students”, boys needed to be able to play in the power relationships between peers, drawing on practices of valued masculinities, and (re)constructing school and social hierarchies in their interactions.

Keywords:
Gender Relationship; Masculinity; Schooling; Ethnographic Research

RÉSUMÉ

Souhaitant comprendre les conceptions collectives de la masculinité chez les jeunes garçons et leurs possibles incidences sur leurs résultats scolaires, nous avons effectué une recherche ethnographique, basée sur des observations et des entretiens, concernant des enfants d’environ 10 ans appartenant au milieu ouvrier dans une école publique de la ville de São Paulo. Nous avons identifié que le fait d’être “bon élève” ne semblait pas être en contradiction avec l’affirmation de leur masculinité et que, au contraire, l’engagement scolaire était perçu comme positif. Cependant, pour être “bons élèves”, les enfants devraient entrer dans le jeu des rapports de pouvoir entre pairs ayant recours à des pratiques de masculinités valorisées, et (re) construire des hiérarchies scolaires et sociales dans leurs interactions.

Mots-clés:
Rapports de Genre; Masculinite; Scolarite; Recherche Ethnographique

RESUMEN

Para tratar de comprender las concepciones colectivas de masculinidad entre los niños y las posibles implicaciones de dichas concepciones en sus desempeños escolares, realizamos una investigación etnográfica con niños de cerca de diez años de edad de las clases trabajadoras, alumnos/as de una escuela pública de la ciudad de São Paulo, por medio de observaciones y entrevistas. Identificamos que el ser “buen alumno” no parecía contradictorio para la afirmación de la masculinidad de los chicos; al contrario, el compromiso escolar era reconocido como un aspecto positivo entre ellos. Sin embargo, para ser “buen alumno” los chicos debían lograr jugar en las relaciones de poder entre pares a través de prácticas de masculinidades valorizadas, (re)construyendo jerarquías escolares y sociales en sus interacciones.

Palabras-claves:
Relaciones de Género; Masculinidad; Escolarización; Investigación Etnográfica

E partir da segunda metade do século xx, podemos identificar no Brasil um processo de “inversão do hiato de gênero”, ou seja, historicamente excluídas da educação formal, as mulheres passaram a apresentar indicadores educacionais superiores aos dos homens de um mesmo segmento de cor/raça (BELTRÃO; ALVES, 2009BELTRÃO, Kaizô Iwakami; ALVES, José Eustáquio Diniz. A reversão do hiato de gênero na educação brasileira no século XX. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 136, p. 125-156, jan./abr. 2009.; ROSEMBERG; MADSEN, 2011ROSEMBERG, Fúlvia; MADSEN, Nina. Educação formal e gênero no Brasil. In: BARSTED, Leila Linhares; PITANGUY, Jacqueline (Org.). O progresso das mulheres no Brasil (2003-2010). Rio de Janeiro: Cepia; Brasília: ONU Mulheres, 2011. p. 390-434.). Essa inversão sinaliza para a tendência de os meninos, sobretudo os garotos negros, apresentarem trajetórias de escolarização mais conturbadas, curtas ou marcadas por interrupções, exigindo para a sua compreensão uma análise de gênero que contemple também uma reflexão sobre masculinidades e educação.

Entendemos gênero como uma categoria de análise que nos permite perguntar como as diferenças sexuais são produzidas e mantidas nas instituições e práticas cotidianas (SCOTT, 1995SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.). Compreendemos, ainda, que gênero não se refere simplesmente a identidades individuais, mas também a uma maneira de organizar as relações sociais e atribuir sentido a tudo (HARDING, 1986HARDING, Sandra. The science question in feminism. Ithaca: Cornell University Press, 1986.). Para Raewyn Connell (1996CONNELL, Raewyn. Teaching the boys: new research on masculinity, and gender strategies for schools. Teachers College Record, v. 98, n. 2, p. 206-235, 1996.), as noções de masculinidade e feminilidade são invenções históricas que variam de acordo com os contextos sociais e culturais, podendo ser diversas também dentro de um mesmo grupo de pares, existindo, por exemplo, diferentes noções e formas de “fazer” masculinidade entre alunos. Para além da pluralidade, a autora considera fundamental reconhecer que diferentes práticas de masculinidade estabelecem relações hierárquicas entre si, em disputas constantes pela hegemonia2 2 A apropriação do conceito de hegemonia de Gramsci realizada por Connell tem sido alvo de discussão teórica. Para ver algumas ponderações sobre o tema, consultar Connell e Messerschmidt (2013). nas relações de gênero. Assim, as práticas de masculinidade envolveriam a subordinação das mulheres aos homens, bem como hierarquias e subordinação entre os homens em articulação com outras estruturas de poder, como relações de classe, raça e nacionalidade. Nessa concepção, portanto, para entender gênero é preciso ir além do gênero (CONNELL, 2005CONNELL, Raewyn. Masculinities. 2nd. California: University of California Press, 2005., p. 76), assim como é necessário dar relevância às relações estabelecidas entre diferentes configurações de masculinidade.

Connell (1996CONNELL, Raewyn. Teaching the boys: new research on masculinity, and gender strategies for schools. Teachers College Record, v. 98, n. 2, p. 206-235, 1996.) considera ainda que masculinidades existem em níveis coletivos e podem ser definidas e sustentadas em regimes institucionais, envolvendo relações de poder, divisão de trabalho, padrões de emoção e estruturas simbólicas. Nessa perspectiva, a instituição escolar não é simplesmente reprodutora de noções de masculinidade e feminilidade formadas em outras instituições, mas também um locus de produção de concepções de gênero em suas estruturas e práticas cotidianas. A agência de alunos e alunas em seus grupos de pares é uma das dimensões desse regime, envolvendo a assunção de que as crianças não são passivas em seus processos de socialização e considerando a importância do grupo na elaboração de concepções de masculinidade ou feminilidade. É nesse sentido que para a autora também existe uma ordem de gênero própria e dinâmica entre as crianças, na qual “os grupos de alunos/as, não os indivíduos, são portadores de definições de gênero”3 3 No original: “The peer groups, not individuals, are the bearers of gender definitions”. (CONNELL, 1996CONNELL, Raewyn. Teaching the boys: new research on masculinity, and gender strategies for schools. Teachers College Record, v. 98, n. 2, p. 206-235, 1996., p. 220, tradução nossa).

A importância do grupo para pensar a articulação entre concepções coletivas de masculinidade e a adesão ou não a práticas escolares pode ser encontrada de forma pioneira no trabalho de Paul Willis (1991WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991). Realizada na década de 1970, a obra é considerada um estudo clássico sobre a escolarização de jovens brancos do sexo masculino da classe operária inglesa, durante a transição do ensino secundário para o trabalho. Por meio de uma pesquisa etnográfica em uma escola masculina de um distrito industrial, o autor analisou a forma como alunos brancos que se autodenominavam “lads” (“rapazes”) produziam uma cultura contraescolar baseada na oposição à autoridade e na compreensão do trabalho escolar e mental como uma atividade feminina.

Os “lads” se opunham tanto aos professores quanto aos alunos “conformistas”, chamando estes meninos de “ear’oles” (“cê-dê-efes”), termo que fazia referência justamente à passividade e inferioridade daqueles meninos na percepção dos “lads”. Segundo Paul Willis (1991WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991, p. 14), era principalmente no âmbito sexual que os “lads” se consideravam superiores, vangloriando-se do “êxito” em suas relações heterossexuais, o que ressaltaria a adesão a uma “dominação masculina patriarcal e sexista existente dentro da própria cultura da classe operária”.

Por meio da ênfase no estudo da cultura, o autor demonstrou como os garotos da classe operária tomavam parte em sua própria “danação” ao aderirem a uma cultura de resistência à escola, o que acabava levando-os a processos de escolarização mais curtos e ao trabalho manual (WILLIS, 1991WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991). Embora a ênfase de sua pesquisa estivesse na reprodução de classe, o autor desenvolveu uma análise atenta a possíveis entrelaçamentos com o “patriarcado” (termo utilizado pelo autor) e, em menor medida, com hierarquias raciais.

Podemos ver a influência da perspectiva de Paul Willis na literatura anglófona sobre masculinidades e educação. Epstein (1998EPSTEIN, Debbie. Real boys don’t work: ‘underachievement’, masculinity, and the harassment of ‘sissies’. In: EPSTEIN, D. et al. (Ed.). Failing boys? Issues in gender and achievement. Philadelphia: Open University Press , 1998. p. 96-108.), por exemplo, apresenta um diálogo com trabalhos de outros autores que evidenciaram uma possível imagem de que meninos “de verdade” não poderiam demonstrar dedicação e esforço em relação às atividades escolares. Em sua pesquisa sobre a experiência de homossexuais na escola, as pessoas entrevistadas relataram diversas situações em que foram alvos de violência por demonstrarem interesse pelas atividades escolares, ou mesmo situações nas quais eram agentes dessa violência contra meninos que se dedicavam aos estudos, frequentemente insultando ou sendo insultados com qualitativos similares a “gay”. No mesmo artigo, a autora pondera que a identificação do trabalho escolar como feminino e as consequentes posturas de “resistência” à escola têm predominado em estudos sobre a escolarização de jovens da classe trabalhadora e apresenta indícios - presentes em suas entrevistas e em outras pesquisas - de que o trabalho escolar poderia ser identificado como feminino também por crianças e em escolas de elite, sugerindo uma profunda relação com a “heterossexualidade compulsória”, na qual a rejeição ao trabalho acadêmico como “feminino” poderia ser uma rejeição ao risco de ser considerado homossexual (EPSTEIN, 1998EPSTEIN, Debbie. Real boys don’t work: ‘underachievement’, masculinity, and the harassment of ‘sissies’. In: EPSTEIN, D. et al. (Ed.). Failing boys? Issues in gender and achievement. Philadelphia: Open University Press , 1998. p. 96-108.). A autora, sem apresentar afirmações conclusivas, indica a necessidade de se realizarem mais pesquisas no sentido de discutir a articulação entre desempenho escolar e masculinidades, levando em conta os efeitos da misoginia e do heterossexismo também na educação primária e não apenas entre alunos e alunas jovens da classe trabalhadora.

Ao lado da bibliografia anglófona, consideramos pesquisas realizadas anteriormente por uma das autoras desse artigo no contexto brasileiro. Em levantamento de teses e dissertações, Marília Carvalho (2012CARVALHO, Marília Pinto de. Teses e dissertações sobre gênero e desempenho escolar no Brasil (1993-2007): um estado da arte. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 1, p. 147-161, jan./abr. 2012.) identificou que muitas pesquisas tendiam a reiterar a explicação sobre o desempenho escolar inferior dos meninos, atribuindo-o a processos de socialização que os condicionariam a agir de modo mais “agitado”, “agressivo”, “indisciplinado”. Essa socialização, portanto, não formaria disposições compatíveis ao modo de funcionamento da escola e contribuiria para que os meninos apresentassem trajetórias escolares mais conturbadas. Em contraposição, as meninas supostamente seriam socializadas para serem “passivas”, “obedientes”, “quietas”, disposições que favoreceriam a adaptação ao funcionamento da escola e ao “ser aluna” (CARVALHO, 2012CARVALHO, Marília Pinto de. Teses e dissertações sobre gênero e desempenho escolar no Brasil (1993-2007): um estado da arte. Pro-Posições, Campinas, v. 23, n. 1, p. 147-161, jan./abr. 2012.).

A respeito dessa explicação, Carvalho (2003CARVALHO, Marília Pinto de. Sucesso e fracasso escolar: uma questão de gênero. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 185-193, jan./jun. 2003.) coloca como questionamento o fato de que, nos contextos de suas pesquisas, as professoras não mencionavam como bons alunos e alunas crianças passivas, mas sim aquelas que, segundo suas percepções, participavam ativamente das aulas. As meninas citadas como boas alunas e que possuíam um comportamento mais quieto eram entendidas como boas, apesar de serem pouco participativas, ou seja, esta característica não era considerada positiva pelas professoras na determinação de uma boa aluna. Também contrariando o estereótipo que associa a passividade à feminilidade e ao bom desempenho escolar, foi mencionado pelas professoras um maior número de meninos considerados bons alunos, a maioria deles percebida como brancos e todos destacados como ativos, críticos e participativos. Nestas escolas, os meninos geralmente eram indicados como alunos ou “excelentes” ou “muito complicados”, enquanto as meninas permaneciam num lugar mediano: “não são tão brilhantes, mas também não dão tanto problema” (CARVALHO, 2003CARVALHO, Marília Pinto de. Sucesso e fracasso escolar: uma questão de gênero. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 185-193, jan./jun. 2003., p. 189).

As professoras do ensino fundamental I também se referiam a um grupo significativo de meninos que seriam bastante rápidos na execução das tarefas, mas também bastante indisciplinados: assim que acabavam suas atividades, passavam a atrapalhar as outras crianças. A despeito da indisciplina desses garotos, a atitude deles parecia despertar nas professoras “admiração e aprovação”: “elas culpavam a si mesmas por não oferecer a eles estímulos suficientes” (CARVALHO, 2009CARVALHO, Marília Pinto de. Avaliação escolar, gênero e raça. São Paulo: Papirus, 2009., p. 52). Apesar da admiração em relação a esses meninos, práticas de masculinidades semelhantes pareciam incomodar as professoras quando desempenhadas por meninos menos “rápidos e espertos” ou quando os garotos assumiam uma postura de contestação das regras e enfrentamento da autoridade. Nesse sentido, a autora argumenta sobre a necessidade de conhecer as interações entre os meninos para compreender como alguns deles parecem conseguir acertar na “dose de masculinidade”, adotando posturas consideradas “masculinas” e ao mesmo tempo sendo bem avaliados por suas professoras, enquanto outros garotos parecem apresentar maiores dificuldades nessa articulação.

Tais pesquisas indicam a complexidade implícita na compreensão das diferenças de desempenho de meninos e meninas, para além das explicações baseadas no binarismo “atividade” e “passividade”. Nem o modelo de aluno/a ideal expresso pelas professoras, nem suas percepções sobre as dificuldades das crianças parecem corresponder plenamente a esta explicação, que precisa, então, ser nuançada. Esses levantamentos sinalizam também que nem todos os meninos enfrentam problemas durante a escolarização e que, naquele contexto, os meninos pareciam até mesmo corresponder, mais do que as meninas, ao ideal das professoras sobre quem são alunos excelentes.

Decidimos, portanto, pesquisar sobre meninos avaliados como “bons alunos” pelas professoras, uma vez que a presença destes meninos nos indica que há quem consiga

[...] articular algum tipo de afirmação da sua masculinidade com um desempenho escolar muito positivo do ponto de vista das professoras e indica também que precisamos ainda entender os múltiplos conceitos de masculinidade que circulam entre os nossos alunos. (CARVALHO, 2003CARVALHO, Marília Pinto de. Sucesso e fracasso escolar: uma questão de gênero. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 185-193, jan./jun. 2003., p. 189)

Optamos por estudar como meninos avaliados positivamente por suas professoras se relacionavam com as demais crianças da escola, em especial com outros meninos, tomando essas relações como indicadoras das concepções coletivas de masculinidade entre os alunos.

“Bom aluno” é um termo aqui utilizado para identificar meninos que, a partir da perspectiva de suas professoras, correspondiam às expectativas escolares. Não se trata de desconsiderar a variedade de concepções do que é ser ou não “bom aluno”, mas sim identificar alunos que, ao serem bem avaliados, apresentavam maiores probabilidades de estabelecer uma trajetória escolar positiva, admitindo que no contexto escolar as professoras determinam se as crianças são reprovadas ou aprovadas, encaminhadas para atividades de reforço escolar, assim como fornecem retornos formais e informais a crianças e familiares.

Considerando a literatura exposta anteriormente, adotamos como hipótese inicial a ideia de que o trabalho escolar poderia ser identificado como feminino e desvalorizado nas concepções coletivas de masculinidade das crianças. Em função dessa concepção, os meninos teriam que negociar um bom desempenho escolar perante seus pares, tarefa que deveria contribuir para uma maior probabilidade de apresentarem trajetórias escolares conturbadas. Nosso objetivo era compreender se a atividade escolar era entendida como uma atividade feminina entre os meninos e, nesse caso, analisar como os “bons alunos” articulavam a avaliação positiva de suas professoras e a interação em seus grupos de pares, buscando desvelar estratégias utilizadas pelos meninos na construção de um processo de escolarização positivo.

MENINOS “DE VERDADE” NÃO SÃO “BONS ALUNOS”?

Com tais objetivos realizamos uma pesquisa etnográfica em uma escola pública municipal, localizada na Zona Oeste da cidade de São Paulo. A escola atendia majoritariamente a crianças das camadas trabalhadoras, com renda familiar média de até dois salários mínimos. No mesmo prédio funcionavam os dois segmentos do ensino fundamental, nas modalidades regular e Educação de Jovens e Adultos, com aproximadamente 610 alunos e contando com um corpo de 49 professoras e professores.

Duas a três vezes por semana, acompanhamos o cotidiano escolar de uma turma de 4º ano do ensino fundamental, ao longo do segundo semestre de 2014, e de outra turma de 5º ano, durante o primeiro semestre de 2015. Havia em torno de 30 crianças por turma, sendo que um terço das crianças do 4º ano de 2014 estava na turma de 5º ano observada no ano seguinte. Foram realizadas 44 entrevistas com as crianças (25 meninas e 19 meninos)4 4 As crianças foram entrevistadas apenas mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelos responsáveis legais. Além da autorização formal, buscamos estar atentas à vontade das crianças de participarem das entrevistas, respeitando distanciamentos ou pedidos de não participação. durante os dois semestres de realização da pesquisa empírica. Também entrevistamos os professores polivalentes de cada uma das duas turmas, Alberto5 5 Os nomes dos sujeitos de pesquisa são fictícios. (4º ano) e Tatiana (5º ano), questionando como avaliavam as crianças, quem consideravam “bons alunos” ou “boas alunas” e solicitando que classificassem as crianças de acordo com as categorias de cor/raça do IBGE. Ao longo da pesquisa também foram aplicados questionários socioeconômicos aos familiares dos alunos/as e questionário de autodeclaração racial para as crianças. Imaginávamos encontrar duas situações entre os “bons alunos”: o estereótipo do “nerd” isolado dos demais garotos ou mesmo grupos de “nerds” isolados dos demais meninos, como na oposição entre “lads” e “ear’oles” de Paul Willis (1991WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991); e o caso de meninos que, embora pudessem se afirmar enquanto bons alunos e acertar na “dose de masculinidade”, deveriam negociar este lugar com dificuldade, valendo-se de prestígio derivado de outras dimensões e práticas de masculinidades, como o bom desempenho em esportes, ou de privilégios socioeconômicos e raciais repostos numa escala microssociológica. Assim, mesmo quando considerávamos a possibilidade de alguns “bons alunos” serem bem-sucedidos ao negociar o próprio desempenho escolar entre pares, prevíamos também identificar dificuldades e tensões nessa conciliação. Durante as observações buscamos ficar atentas a comentários e interações entre as crianças que nos informassem sobre o envolvimento dos meninos com as atividades escolares, as concepções de masculinidades entre os alunos e as relações entre diferentes configurações de práticas de gênero.6 6 Por razões de espaço, este artigo não aborda as interações entre as meninas Já nos primeiros dias de observação, começamos a perceber que Rafael e Daniel, os dois garotos destacados como “bons alunos” pelo professor Alberto, não enfrentavam muitos problemas entre seus pares. Ao contrário, pareciam ocupar um lugar de destaque positivo entre eles, mesmo falando abertamente que gostavam de estudar e fazer lição. Também não presenciamos comentários entre as crianças sobre uma suposta homossexualidade desses meninos e nem daqueles considerados “bons alunos” no ano seguinte.

Na turma de 5º ano havia um número maior de meninos considerados “bons alunos” por sua professora, Tatiana, entre eles Renato e Lucas. Em diferentes momentos presenciamos Renato falando que estudava em casa e recomendando ao seu colega, Lucas, que este precisa va estudar mais. Observando uma situação de interação entre os dois, ouvimos uma conversa em que demonstravam expectativa de vencer um campeonato de tabuada. Eles competiriam com outras crianças da turma e não entre si. Durante a conversa, Renato olhou para uma das pesquisadoras e pediu para torcer por Lucas naquela etapa da competição: “Vamos torcer pro bebê, bebê tem que virar homem”. A baixa estatura de Lucas era muitas vezes evocada por várias crianças, o que parece ter contribuído para que o menino fosse chamado de “bebê”. Apesar disso, é ainda mais significativo verificar que ganhar uma competição de matemática faria o colega “virar homem”, na perspectiva de Renato.

A partir de situações semelhantes, passamos a perceber que, para o conjunto dos meninos estudados, o engajamento escolar não parecia permeado de uma tensão explícita em relação ao julgamento dos pares. A interação entre Renato e Lucas parecia indicar até mesmo o oposto: uma associação possível entre masculinidade adulta (ainda mais valorizada do que a masculinidade infantil) e o bom desempenho em atividades escolares. Além disso, em diversas interações, independentemente do conteúdo ou da disciplina escolar, presenciamos meninos comemorando explicitamente quando acertavam perguntas ou exercícios, comparando notas de provas e valorizando as notas maiores, dedicando- se às tarefas e até mesmo competindo para ver quem estava certo sobre determinadas atividades. Situações de comemoração pelo desempenho positivo e de engajamento com o trabalho escolar podiam ser percebidas também entre meninos que não eram considerados “bons alunos”, embora fossem menos frequentes. Em nenhuma situação verificamos reações negativas ao envolvimento escolar.

“AQUELE ALUNO INTELIGENTE, MAS MEIO DESALERTADO”

De modo geral, todas as crianças ao serem questionadas sobre o que era ser um “bom aluno” ou uma “boa aluna” mencionaram a necessidade de ter um bom desempenho nas disciplinas, assim como de apresentar determinados comportamentos considerados positivos, como “respeitar o professor” e “não brigar”. A despeito das semelhanças entre as respostas das crianças, apenas entre “bons alunos” e “boas alunas” ocorreram respostas que, de diferentes maneiras, afirmavam a necessidade de conciliar o estudo e momentos de descontração, seja mencionando precisamente que poderia conversar na “hora certa”, seja afirmando que não poderia “ser muito bagunceiro” e “não gritar tanto” (grifos nossos). As respostas de meninos e meninas apresentam muitas semelhanças e não identificamos um padrão polarizado por sexo na percepção do que é ser “bom aluno” ou “boa aluna”. Como foi identificado em pesquisas já mencionadas em relação às professoras, ser “bom aluno” na perspectiva dessas crianças também não parecia atrelado à necessidade de adotar posturas de extrema dedicação ou passividade em sala de aula. A noção de “bom aluno” naquele contexto, portanto, parece ter espaço para meninos brincarem em sala de aula, conversarem, serem até “indisciplinados”, desde que conciliem essas práticas com o desenvolvimento das atividades escolares.

Admitindo essa maleabilidade em relação ao que é necessário fazer para ser considerado um “bom aluno”, é notável a maneira como Rafael falou de seu envolvimento com a escola. Mencionado como uma “sumidade” pelo professor Alberto, o garoto teria um “pensamento rápido”, “gostava de desafios”, “fazia as atividades rápido” e uma postura em sala que o professor considerava de “adulto”. Já na avaliação da professora Tatiana (5º ano de 2015), Rafael foi reconhecido como um aluno que se destacava principalmente por sua dedicação aos estudos, “um aluno muito, muito bom pelo tanto que ele se dedica, que ele tenta, que ele busca ajuda, que ele participa”. Também entre os meninos, o garoto foi citado como um aluno estudioso e que se envolvia com as atividades escolares: “Ele estuda bastante (...). Ele estuda tudo. E sempre que eu faço alguma coisa de errado, ele vai lá e corrige pra mim. Fala ‘tá errada’. Aí eu vou lá e faço de novo” (aluno Daniel sobre Rafael).

Apesar de a dedicação de Rafael ser reconhecida, no julgamento que o garoto fazia de si mesmo seu desempenho positivo estava atrelado, sobretudo, à percepção de si como um menino inteligente. Nas entrevistas,7 7 O aluno Rafael foi entrevistado uma vez em 2014 e uma vez em 2015 o garoto procurou dar destaque à sua prática de se envolver com as lições, mas ao mesmo tempo brincar e conversar com colegas de turma. Na segunda entrevista, ele foi ainda mais enfático ao falar sobre seu desempenho escolar:

Pesquisadora: Mais alguém (que bagunçava muito em sala de aula)?

Rafael (“bom aluno”): Eu vou ser honesto. Eu. Eu tava conversando na sala, quando a professora estava explicando as lições, ela pedia pra eu parar, eu não parava. Aí parece que nem passou pela minha cabeça ainda. Quando era amanhã eu continuava e a professora pedia pra eu parar.

Pesquisadora: Mas você acha que você é um mau aluno?

Rafael: Mau aluno eu acho que não. Todos esses anos, que o professor ou a professora falava pro meu pai, que falava pra mim eu não achava que eu era mau aluno, não. Só acho que eu sou aquele aluno inteligente, mas meio desalertado que bagunça muito.

Pesquisadora: Você acha que você bagunça muito?

Rafael: Muito, muito, não. Mas eu bagunço um pouco sim. Tipo quando a professora sai, eu saio do lugar, levanto e vou falar com fulano, volto e vou falar com aquele fulano, volto e sento na minha cadeira. Isso mais ou menos pra mim é bagunçar.

Pesquisadora: Entendi, mas você acha que você é inteligente?

Rafael: Inteligente eu acho que eu sou sim.

A percepção que Rafael tem de si é informada pela avaliação de suas professoras e professores ao longo dos anos. Ao se reconhecer como “aquele aluno inteligente, mas meio desalertado que bagunça muito”, parece evitar uma imagem estigmatizada de “bom aluno” e reforça a possibilidade de bagunçar e mesmo assim ser bem avaliado por suas professoras como um aluno “inteligente”. Aqui cabe retomar a consideração de Connell (2005CONNELL, Raewyn. Masculinities. 2nd. California: University of California Press, 2005., p. 164) sobre frequentemente associarmos como característica dominante da masculinidade a agressividade física, esquecendo de que a “razão” é socialmente considerada um atributo masculino. Ser “bom aluno” para os meninos estudados estava relacionado à possibilidade de ser percebido como inteligente, mas não como uma criança extremamente passiva ou isolada. Desse modo, os “bons alunos” não pareciam se encaixar em um estereótipo de “nerd”, tanto na nossa concepção quanto na das crianças. Uma pergunta que parece pertinente, portanto, é por que alguns meninos conseguem ser bem-sucedidos nesse empreendimento, enquanto outros parecem falhar?

QUEM É BOM ALUNO?

Becky Francis, Cristine Skelton e Barbara Read (2012FRANCIS, Becky; SKELTON, Christine; READ, Barbara. The identities and practices of high achieving pupils: negotiating achievement and peer cultures. London: Continuum, 2012.), autoras que estudaram alunos e alunas com alto desempenho escolar de diversas escolas de ensino secundário do Reino Unido, também afirmam que em suas pesquisas apenas um subgrupo pequeno dos jovens com “alto desempenho escolar” era considerado “nerd” por seus pares. Mais do que isso, muitos meninos com alto desempenho escolar eram bastante populares em suas escolas, e as características normalmente percebidas entre os jovens como importantes para torná-los populares eram altamente “generificadas”, tais como ser visto como heterossexual, apresentar habilidades nos esportes ou poder físico, ter habilidades interpessoais como o humor e ser percebido como inteligente (FRANCIS; SKELTON; READ, 2012FRANCIS, Becky; SKELTON, Christine; READ, Barbara. The identities and practices of high achieving pupils: negotiating achievement and peer cultures. London: Continuum, 2012., p. 107). Essas características pareciam amplamente reconhecidas em Rafael que, mais do que qualquer outro “bom aluno”, apresentava práticas de masculinidade bastante valorizadas entre as crianças, sendo considerado bonito e desejado como namorado por várias meninas, excelente atacante no futebol, bem-humorado, divertido e inteligente. Cabe destacar que, por mais que o professor Alberto e a professora Tatiana tenham avaliado outros meninos positivamente, Rafael era descrito de modo ainda mais elogioso, como uma “sumidade” e “impressionante” pelo professor Alberto, e como “o amor da minha vida” pela professora Tatiana.

Outros meninos considerados “bons alunos” não apresentavam todas essas características, mas conseguiam negociar diante de certo ideal. Como é o mais comum em nossa cultura, na escola estudada o futebol estava fortemente marcado como uma expressão de masculinidade, significado bastante evidente na exclusão das meninas dos jogos no momento do recreio e na valorização dos meninos que jogavam bem. Artur e Jorge - “bons alunos” e maus jogadores - conseguiam ser admirados e valorizados nas interações entre pares ao expressarem conhecimentos sobre jogos gráficos - características que dependiam também da possibilidade de ter um bom videogame em casa ou um computador com acesso à internet, o que marcava diferenças de poder de consumo entre as famílias dos meninos. Ser branco ou ter o tom de pele mais claro também parecia privilegiar Artur e Jorge nessas interações,8 8 Em 2014, Jorge foi heteroclassificado como branco pelo professor Alberto e se autoclassificou como pardo. Em 2015 também foi heteroclassificado como branco pela professora Tatiana e se autoclassificou como branco. Artur foi heteroclassificado e autoclassificado como branco em 2015 e só participou da pesquisa nesse segundo momento. especialmente no que dizia respeito a Artur, um dos poucos garotos loiros da escola. Chamava a nossa atenção a frequência com que Artur era convidado pelos colegas para participar das atividades e até situações em que parecia ser protegido por outros meninos. Em certa atividade, por exemplo, as crianças deveriam escolher uma personalidade negra para pesquisarem sobre suas vidas, mas só poderiam fazer tal escolha quando terminassem a atividade que estavam desenvolvendo. Antes mesmo de concluir sua lição, Artur disse em voz alta que gostaria de pesquisar sobre Pixinguinha. Instantaneamente a maioria dos meninos começou a falar para ninguém escolher o músico, assim como Rafael pediu para professora marcar na lousa a decisão de Artur, na tentativa de modificar o combinado sobre a ordem de escolha. Apesar de a professora não ter seguido o pedido de Rafael, ficou evidente a mobilização em torno de Artur. Nessa mesma turma, autoclassificado e heteroclassificado como preto pela professora Tatiana, Caio foi o último a escolher a personalidade que iria pesquisar, mas não recebeu nenhum tipo de mobilização semelhante dos outros meninos. O aluno, ao contrário, era frequentemente excluído das atividades ou brincadeiras em grupo, sofrendo com muitos insultos de cunho racial, como “macaco” e “Negrinho do Pastoreio”. Se a cor/raça dos meninos não era determinante exclusiva para a popularidade entre os alunos - existindo meninos brancos isolados e “maus alunos” -, na inter-relação com outras características, como práticas de masculinidades valorizadas, brancos pareciam tanto desfrutar de microprivilégios, quanto não precisavam lidar com situações frequentes de discriminação racial entre as crianças.

Assim, as práticas de masculinidades dos meninos bem avaliados pela professora Tatiana e pelo professor Alberto não eram idênticas, mas de modo geral todos eles pareciam bem-sucedidos nas negociações entre seus pares para apresentar configurações de práticas de gênero consideradas positivas entre as crianças, seja jogando futebol, mostrando interesse pelas meninas, seja pelo humor, por meio do conhecimento sobre jogos e tecnologias, pela prática de lutas fora da escola ou ainda pela percepção de que eram bonitos e inteligentes. Com nuances em relação a cada aluno, se não ocupavam uma posição de prestígio ou de destaque positivo entre os meninos, no mínimo, os “bons alunos” pareciam beneficiados pelo bom desempenho escolar em suas interações.

A AGÊNCIA DOS ALUNOS NA CONSTRUÇÃO DO DESEMPENHO ESCOLAR

Contrariando nossa expectativa inicial, muitos dos garotos desvalorizados nas interações entre pares e que pareciam ocupar uma posição hierárquica inferior nas relações de poder entre os meninos eram justamente aqueles considerados “maus alunos” ou, no mínimo, alunos sobre os quais apareciam muitas ressalvas na avaliação docente. “Maus alunos” frequentemente sentavam-se isolados dos demais meninos ou perto de algum outro também considerado “mau aluno” (sem chegar a constituir um grupo de “maus alunos”). Mesmo quando “maus alunos” estavam perto de “bons alunos”, muitas vezes aqueles garotos avaliados negativamente pareciam excluídos ou eram mais constantemente alvo de provocações e comentários negativos, em grande medida, proferidos por aqueles avaliados positivamente pelo professor ou pela professora. Raramente presenciamos situações em que meninos “bons alunos” ajudavam “maus alunos” com as tarefas escolares. Pelo contrário, pareciam bastante incomodados ao terem que fazer atividades juntos: quando precisavam trabalhar em dupla com um “mau aluno” simplesmente ficavam virados de costas a ele; outras vezes nem ao menos conversavam para a realização das tarefas; e reclamavam insistentemente por terem que fazer as atividades com aqueles garotos. Mesmo quando “maus alunos” se disponibilizavam para ajudar “bons alunos”, observamos movimentos de recusa da ajuda oferecida.

Esses movimentos pareciam indicar que os meninos avaliados positivamente pela professora ou pelo professor tendiam a se distanciar dos “maus alunos”, em uma dinâmica de acirramento do contraste. Tais movimentos, no entanto, não pareciam ocorrer simplesmente de acordo com o desempenho escolar - até mesmo porque o desempenho escolar parecia se configurar em meio a essas relações entre os meninos -, mas também de acordo com processos de diferenciação e hierarquização permeados pela articulação de desigualdades socioeconômicas,9 9 Como o grupo era bastante homogêneo quanto à renda familiar, as diferenças socioeconômicas e os processos de hierarquização decorrentes dessas diferenças pareciam sutis e uma análise mais nuançada certamente demandaria um referencial teórico mais atento às dimensões simbólicas de disposições de classe incorporadas pelos alunos e possivelmente mobilizadas nessas interações. de gênero e raça.

Denis, por exemplo, foi citado pela professora Tatiana como o aluno que mais precisava de ajuda e também parecia ser uma das crianças mais isoladas da turma, relatando na entrevista diversas tentativas frustradas de fazer amigos desde o 1º ano. Além de dificuldades com os conteúdos escolares, o garoto não gostava de jogar futebol e nos momentos de lazer muitas vezes se divertia realizando trabalhos manuais pouco valorizados entre os meninos, como dobraduras, construção de potes com palito de sorvete e pulseiras de elásticos. Também os meninos explicitamente considerados “femininos”, “gays” ou “viados” pelas crianças permaneciam bastante isolados dos demais alunos e nenhum deles foi avaliado positivamente pelo professor ou pela professora.

Se anteriormente citamos o desafio de acertar na “dose de masculinidade” pensando em determinados meninos avaliados como indisciplinados, também parecia existir o constrangimento para ser considerado “masculino” por seus pares e professores/as. Para o professor Alberto, por exemplo, Leonardo era um menino que poderia ser um aluno “avançado”, mas que estava “se perdendo”. As práticas de gênero de Leonardo pareciam constituir um dos motivos centrais para as ressalvas do professor. Frequentemente a suposta “feminilidade”, “homossexualidade” ou mesmo postura “efeminada” constituíam o tópico principal mobilizado pelo professor quando buscava referir-se ao garoto. As interações de Leonardo com as demais crianças eram permeadas por situações de exclusão e conflito que acabavam também por influenciar negativamente no envolvimento do garoto com as atividades escolares. Os meninos da turma sistematicamente o chamavam de “homem feminino”, falando “homem” em tom de voz alto e complementando com o “feminino” em forma de cochicho. Essa forma de estigmatizá-lo parecia desafiar a possibilidade de o professor repreender os meninos e Leonardo era frequentemente atrapalhado na realização de suas atividades por comentários ou provocações semelhantes.

ENTRE O PÁTIO E A SALA DE AULA: ARTICULAÇÕES ENTRE GÊNERO E RAÇA

Entrelaçada às configurações de práticas de gênero, tivemos indicações de que a cor/raça era um dos fatores mais marcantes de hierarquização entre os meninos. Essas hierarquizações não pareciam acontecer de acordo com o binômio branco/negro, mas sim por meio do acesso e da manipulação de características fenotípicas e simbólicas associadas à brancura, que permitiam a diferenciação entre as crianças, processo característico do racismo brasileiro conformado pela ideologia do embranquecimento (GUIMARÃES, 2009GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: 34, 2009.). Entre as diferentes características fenotípicas em jogo, a cor da pele parecia ser o elemento mais decisivo, sendo mais explícitas e frequentes as situações de discriminação ou de ofensa racial em relação às crianças com tom de pele mais escuro. Na situação a seguir poderemos ver João, único aluno na turma de 4° ano auto e heterodeclarado “preto”, em interação com Rafael, Daniel e Leandro. Rafael e Daniel eram considerados “bons alunos” pelo professor Alberto, enquanto Leandro e João foram classificados como alunos “medianos”. Também foram mobilizados elementos ligados à masculinidade e à heterossexualidade.

Após o recreio, Rafael (“bom aluno”) falava em tom de deboche e com um sorriso no rosto: “O Daniel deveria ganhar o prêmio de mais inteligente do mundo, do Brasil, de São Paulo, do [Nome da escola]”, em referência a um erro cometido por Daniel (“bom aluno”) durante uma aula sobre mitologia grega. Enquanto Rafael “tirava sarro” de seu colega, o professor distribuiu folhas de sulfite para que as crianças fizessem um desenho. Elas passaram a fazer seus desenhos, ao mesmo tempo em que conversavam, comentavam sobre seus trabalhos e davam risada uns dos outros. Daniel (“bom aluno”), por sua vez, desde o momento em que Rafael falou sobre o seu erro na aula anterior, passou a fazer a atividade em silêncio e avisou aos amigos que estava com dor de cabeça por ter sinusite. Mesmo num clima de conversa e brincadeira entre os alunos, Daniel continuava concentrado e rapidamente terminou a atividade.

Então Daniel começou a reclamar insistentemente para que o professor tirasse Leandro e João de perto dele porque os dois só conversavam. Leandro e João responderam aos comentários de Daniel afirmando que o garoto só estava reclamando dos dois porque estava bravo por ter cometido o erro na aula anterior. Mas outros garotos, incluindo Rafael (“bom aluno”), passaram a aderir à reclamação de Daniel, revezando-se entre criticar diretamente João e Leandro e levantar para reclamar com o professor. Após várias reclamações, o professor ameaçou colocar João no fundo da sala, sozinho, mas não fez nenhuma ameaça a Leandro. Mesmo após a ameaça do professor, Daniel, com o apoio de outros meninos, voltou a reclamar que João e Leandro não paravam de falar. Rafael (“bom aluno”) também repreendeu João e, indignado, João respondeu: “Quem disse? O professor mandou fazer a atividade e eu fiz quietinho”.

Repentinamente, o professor mandou João e Leandro saírem da sala e disse em voz alta que os meninos estavam passando a mão um no outro. Assim que o professor saiu com os garotos para levá-los à inspetoria, Rafael olhou para Daniel com um sorriso no rosto e começou a falar como se estivesse cantando:

- Sonhar, sonhar, sonhar... Você sonhou e eles foram para fora...

Quando os garotos voltaram para a sala, o professor finalizou a sua bronca afirmando: “vai ter que me respeitar como homem e como professor. Não vai ficar passando a mão um no outro”. Alguns dias depois do evento descrito, João contou à pesquisadora que o professor teria brigado porque ele estava brincando de “passar cartão” com Leandro, brincadeira que ocorre predominantemente entre meninos, na qual se tenta passar algo entre as nádegas da outra pessoa. Além de mostrar o quanto as concepções de gênero do professor podem interferir naquilo que deve ser repreendido, escolhemos descrever esse episódio porque nele é possível perceber que, antes da decisão do professor de colocar João e Leandro para fora da sala de aula, Daniel (“bom aluno”) fez muitas reclamações para ele. É justamente Daniel - considerado um “bom aluno” e que está em silêncio fazendo a atividade - que consegue a cumplicidade de outros meninos para criticar e reclamar sobre João e Leandro ao professor. Durante a crítica de Rafael (“bom aluno”) a João, parece igualmente relevante a resposta de João: “Quem disse? O professor mandou fazer a atividade e eu fiz quietinho”, indicando a valorização e também a reivindicação de ser um aluno que faz a atividade e se comporta.

Ainda é relevante para a discussão sobre masculinidades e desempenho escolar considerar a possibilidade de Daniel ter ficado em silêncio, dizendo que estava com dor de cabeça, justamente para se proteger dos comentários de que havia falado algo errado durante a aula, como João e Leandro interpretaram. Acertar é desejável para não ser ridicularizado entre os meninos, e a atitude de Daniel pode ser interpretada como um movimento para demarcar sua posição como um “bom aluno”, diferenciando-se de Leandro e João. A partir de suas reclamações, o foco das interações entre os meninos mudou do seu erro para a suposta indisciplina inaceitável de João e Leandro.

Podemos pensar que João e Leandro seriam colocados para fora da sala de aula em qualquer outra circunstância, uma vez que, na perspectiva do professor, seria inaceitável que os meninos passassem a mão no corpo um do outro. Além disso, o professor Alberto avaliava João como um aluno que tinha potencial para ser “avançado”, mas frequentemente fazia ressalvas em relação ao comportamento do aluno, afirmando que muitas vezes precisava tirá-lo da sala para conseguir dar aula. Em muitas situações observadas não conseguíamos entender o que motivava o professor a tomar essas atitudes. Talvez a explicação se relacione a uma postura já descrita na literatura, em que professores/as suspeitam rapidamente de meninos negros em situações de indisciplina coletiva, principalmente quando precisam agir de maneira rápida, sem conseguir analisar quem estava realmente bagunçando (CONNOLLY, 1998CONNOLLY, Paul. Racism, gender identities and young children: social relations in a mult-ethnic, inner-city primary school. London: Routledge, 1998.).

Além de um processo de discriminação racial do aluno pelo professor, a cena descrita anteriormente sinaliza também para a agência das crianças - incluindo aqui o protagonismo dos “bons alunos” - na situação que culminou com a retirada dos garotos da sala. A reação de Rafael, ao comentar que Daniel teria sonhado com isso, leva-nos a refletir sobre a influência das reclamações anteriores na construção da situação em que João e Leandro foram repreendidos. Caso a sucessão de reclamações não tivesse antecedido, no momento da brincadeira de “passar cartão” eles teriam sido repreendidos exatamente daquela maneira? O professor teria percebido a brincadeira ou estava em alerta justamente por causa das reclamações? Neste sentido, além do acirramento de contraste dos “bons alunos” em relação aos “maus alunos”, podemos ver a agência do grupo de pares na construção da avaliação docente e, consequentemente, do desempenho escolar das crianças. Assim, se há uma “dosagem de masculinidade” permitida, essa não é encontrada sozinha pelo aluno e nem determinada unicamente pelo/a professor/a, mas sim construída também nas relações de poder entre as crianças.

Além disso, a situação descrita nos ajuda a entender as relações contraditórias entre diferentes configurações de práticas de masculinidades, na medida em que João não correspondia exatamente ao exemplo de “mau aluno”, nem de criança isolada na escola. Pelo contrário, João era avaliado como um aluno com “potencial” pelo professor Alberto, que frequentemente destacava o fato de o garoto apresentar leitura fluente, participar das aulas e acertar exercícios. Além disso, João parecia reunir um conjunto de caraterísticas valorizadas enquanto práticas de masculinidade em seu grupo de pares: teve algumas namoradas ao longo do ano letivo e era valorizado por ser um excelente atacante no futebol. O próprio garoto se considerava amigo da maioria dos meninos:

Pesquisadora: Então, você gosta da escola por causa do futebol?

João: Não! Por causa dos meus amigos!

Pesquisadora: Por causa dos seus amigos, nem é por causa do futebol?

João: Não. Porque a gente interage bastante, mas a gente interage mais no futebol, porque quando a gente joga futebol é como se a gente falasse um com o outro. (grifo nosso)

Pesquisadora: Ah é? Por que você acha isso?

João: Porque no futebol a gente se comunica mais do que quando a gente não tá fazendo nada. Quando a gente tá na aula, eu tento conversar com alguém, mas alguém manda eu ficar quieto, porque senão o professor vai dar bilhete. (grifo nosso)

No excerto acima João reconhece se comunicar melhor com seus amigos durante o futebol do que em sala de aula, onde os outros alunos o reprimiam para ficar quieto, sinalizando tanto para a preocupação dos meninos em relação à avaliação do professor quanto para a agência dos alunos na afirmação daquilo que é supostamente correto ou errado em suas interações em sala de aula. Em sua entrevista, João também exalta muitas interações com Rafael (“bom aluno”) e outros meninos nos jogos de futebol, além de contar que frequenta a casa de Daniel (“bom aluno”) para jogar videogame e caminha com ele e outros garotos no trajeto para a escola e para casa.

A maioria dos alunos que estabelecia relações de amizade fora da sala de aula mobilizava essa rede de amizades também durante a realização das atividades em classe e João foi um dos poucos meninos requisitados em suas interações no pátio e na quadra, mas que em sala era sistematicamente excluído ou mesmo boicotado pelos demais meninos. Um dia uma das pesquisadoras tentou se aproximar e questionar o garoto sobre o motivo para estar sentado longe dos demais meninos. A princípio o aluno afirmou estar sozinho para o professor não reclamar que ele só ficava falando e, em seguida, complementou que os outros meninos o isolavam, não sabia o porquê, mas ele sempre era excluído.

Em sua entrevista quando questionamos João se ele era um “bom aluno”, o garoto respondeu que só lhe faltava uma coisa: falar menos. Mais do que esse reconhecimento, chama a atenção sua explicação de que falava muito em aula porque as pessoas não o escutavam:

Pesquisadora: Eu já vi o professor reclamando que você fala bastante.

João: Isso também é verdade.

Pesquisadora: E você concorda?

João: Concordo.

Pesquisadora: Você não acha que você fala o mesmo tanto que os outros meninos?

João: Não. Muito mais.

Eu: E o que você tanto fala durante a aula?

João: Sei lá. É que às vezes eu falo uma coisa, aí ninguém escuta, aí eu quero falar de novo, aí ele fica com raiva de mim.

João afirmou ainda que Daniel (“bom aluno”) frequentemente o criticava, mas que apesar disso o considerava “amigão mesmo”. Presenciamos Daniel criticando João enfaticamente em diversos momentos: ouvimos que João tinha mau hálito, teria um chulé insuportável, era chato e falava muito. No nosso julgamento, João estava sempre muito bem arrumado, até mesmo usando roupas mais caras do que o uniforme escolar, o que nos fazia estranhar os comentários negativos sobre a higiene do menino. Outras pesquisas têm abordado a ocorrência de crianças negras ofendidas como “fedidas”, com “mau hálito” ou “piolho” no espaço escolar (CAVALLEIRO, 2000CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Contexto, 2000.), e passamos a observar que, mesmo quando não havia insultos marcadamente raciais sendo proferidos, outros meninos “pretos” pareciam ser mais facilmente associados pelas demais crianças com diversas características negativas: eram chatos, erravam, estavam falando demais. No caso de João, essas associações contribuíam para que ele - mesmo apresentando muitas práticas de masculinidades valorizadas pelos meninos - expressasse também o sentimento de exclusão ou fosse alvo de críticas constantes.

Se anteriormente citamos o entendimento de Connell (2005CONNELL, Raewyn. Masculinities. 2nd. California: University of California Press, 2005.) de que a noção de razão foi historicamente construída nas sociedades ocidentais como uma das características da masculinidade hegemônica, caberia considerar também que o racismo enquanto estrutura ideológica tende a associar a população negra ao domínio do biológico - “Preto simboliza o biológico” (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008., p. 144). Desse tipo de associação, por exemplo, decorrem práticas discriminatórias nas quais são mobilizados termos como “macaco” ou referências a um suposto mau cheiro, situações vividas por João e outros alunos negros na escola. Não se trata aqui unicamente de pensar no efeito do racismo no desempenho escolar de meninos, mas também de buscar compreender possíveis articulações entre gênero e raça que nos permitam perceber nuances nos sentidos de ser menino na escola. Assim, é a partir de associações com o “biológico” que homens e meninos negros podem ser percebidos como não racionais em sociedades racializadas e racistas:

Mais do que qualquer outro grupo de homens em nossa sociedade, os homens negros são muitas vezes concebidos como sujeitos desprovidos de habilidades intelectuais. Sob a visão estereotipada do racismo e do sexismo que os veem como mais corpo do que mente, homens negros estão propensos a serem recebidos pela sociedade da supremacia branca capitalista, imperialista e patriarcal, como sujeitos que parecem ser idiotas ou, como nós que crescemos nos anos 1950 costumávamos dizer, pessoas lentas (isto é, pouco inteligentes). ( HOOKS, 2015 HOOKS, Bell. Escolarizando homens negros. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 677-689, dez. 2015. , p. 678)

Como João conseguia realizar as atividades escolares com facilidade, a persistência desse tipo de sentido sobre o que é ser menino negro ficava ainda mais evidenciada, seja quando o professor Alberto, embora considerasse que João tinha uma “abstração fora de série”, também afirmava que ele tinha “cara” de que seria jogador de futebol ou cantor de pagode, seja quando os colegas o chamavam para as partidas de futebol, mas apenas Rafael (“bom aluno”) o citou como uma possível companhia para realizar atividades escolares em grupo.10 10 Rafael escolheu João apenas para realizar atividades em grupo. Primeiramente escolheria Daniel (bom aluno) para fazer atividades em dupla e depois Gustavo B. (mau aluno) para fazer atividades em trio Nenhuma criança o mencionou como um “bom aluno”, mas ele também não foi citado como um “mau aluno” por nenhum dos meninos da turma.

Muito embora ser “bom aluno” não signifique simplesmente ser considerado “inteligente”, muitas vezes meninos classificados como “bons alunos” se percebiam ou eram percebidos como “inteligentes” pelas outras crianças. Diante das práticas recorrentes dos meninos “bons alunos” de se distanciarem e se diferenciarem dos “maus alunos”, parece que meninos negros podem constituir um alvo provável e frequente de práticas de hierarquização e diferenciação entre pares que acabavam por dificultar a eles o encontro da “dose de masculinidade” aceitável em aula. As relações raciais pareciam tornar o equilíbrio entre os mundos da “sala de aula” e do “pátio” muito mais desafiador para meninos negros e mais fácil para os brancos.

Tendo em vista que em um contexto de interação estruturado pelo racismo um dos sentidos de ser menino negro é a possibilidade de ser percebido como “mais corpo do que mente” (HOOKS, 2015HOOKS, Bell. Escolarizando homens negros. Revista Estudos Feministas , Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 677-689, dez. 2015., p. 617), parece plausível pensar a atitude de hostilidade de Daniel (“bom aluno”) em relação a João como algo maior do que uma “amargura” individual ou uma atitude discriminatória individual. Trata-se de um indicativo possível de que Daniel - autoclassificado como “pardo”, heteroclassificado como “pardo” pelo professor Alberto e preto pela professora Tatiana -, ao se entender como um “bom aluno”, também tinha que lidar com sentidos negativos do que é ser menino negro, recorrendo a uma conduta de diferenciação em relação aos colegas auto e heteroclassicados como

pretos. O mesmo podia ser pensado, por exemplo, em relação a Rafael (“bom aluno”) - autoclassificado como indígena, heteroclassificado como “pardo” pelo professor Alberto e “indígena” pela professora Tatiana -, que, em um processo de aproximação com a branquidade, frequentemente ressaltava o fato de seu cabelo ser liso, ridicularizando o cabelo de algumas meninas negras ou mesmo comparando o seu cabelo com o de outros meninos negros em momentos de conflito. Isto é, parece-nos que o fato de não serem vistos como brancos tornava mais premente a necessidade de meninos como Daniel e Rafael reforçarem sua diferenciação e suposta superioridade frente a João e outros meninos “pretos”, levando-os a ressaltar as hierarquias tanto racial quanto de desempenho escolar.

CONCLUSÕES

Podemos afirmar que, entre os sujeitos de nossa pesquisa, o trabalho escolar não era percebido como uma atividade feminina. Embora Epstein (1998EPSTEIN, Debbie. Real boys don’t work: ‘underachievement’, masculinity, and the harassment of ‘sissies’. In: EPSTEIN, D. et al. (Ed.). Failing boys? Issues in gender and achievement. Philadelphia: Open University Press , 1998. p. 96-108.) tenha sugerido que a associação entre trabalho escolar e homossexualidade poderia estar presente tanto entre jovens quanto entre crianças, assim como na classe trabalhadora e na elite, os meninos brasileiros de camadas populares que estudamos não relacionavam o fraco desempenho escolar com a masculinidade ou o bom desempenho escolar de meninos com a homossexualidade, associações presentes na literatura de língua inglesa (CONNELL, 1996CONNELL, Raewyn. Teaching the boys: new research on masculinity, and gender strategies for schools. Teachers College Record, v. 98, n. 2, p. 206-235, 1996.; DAVIS, 2001DAVIS, James Earl. Transgressing the masculine: African American boys and the failure of schools. In: MARTINO, W.; MEYENN, B. (Ed.). What about the boys: issues of masculinity in schools. Philadelphia: Open University Press, 2001. p. 140-154.; JACKSON, 1998JACKSON, David. Breaking out of the binary trap: boy’s underachivement, schooling and gender relations. In: EPSTEIN, Debbie et al. (Ed.). Failing boys? Issues in gender and achievement. Philadelphia: Open University Press , 1998. p. 77-95.; WILLIS, 1991WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991).

Nesse sentido, também não identificamos uma cultura contraescolar entre os alunos ou uma oposição entre grupos de alunos “conformistas” e “oposicionistas”, tal como entre os jovens estudados por Paul Willis (1991WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991). Parece-nos que o esforço analítico deve ser de evitar interpretações das relações entre “bons” e “maus alunos” de modo dicotômico e estático. Os “bons alunos” não estavam imunes a críticas nem fora das relações de poder. Ao longo do artigo, mencionamos, por exemplo, que Renato (“bom aluno”) tendia a criticar Lucas (“bom aluno”), dizendo que este precisava estudar mais. Também descrevemos uma situação em que Rafael (“bom aluno”) ridicularizou um erro de Daniel (“bom aluno”) ao afirmar ironicamente que este era “o mais inteligente”. Mas, diferentemente dos “maus alunos”, os meninos “bons alunos” pareciam dispor de mais recursos para se esquivarem de ofensas, até mesmo mobilizando uma rede de amizades maior. Diante da ameaça de ser considerado burro, por exemplo, Daniel conseguiu a cumplicidade de outras crianças para reclamar insistentemente sobre Leandro e João, culminando na retirada dos meninos da sala de aula pelo professor Alberto.

Nas entrevistas, os meninos considerados “maus alunos” foram muito menos citados por outras crianças como possível companhia para a realização de atividades escolares. Além disso, “maus alunos” também pareciam enfrentar mais dificuldades para interagir com “bons alunos” nos momentos de lazer. Nesse sentido, passamos a considerar que o não envolvimento com a aprendizagem está relacionado também a uma situação de dificuldades com a instituição escolar como um todo, incluindo as interações entre pares. Considerando as práticas de distanciamento e de acirramento do contraste entre “bons e maus alunos”, é possível afirmar uma dimensão relacional na percepção de si como um “bom aluno”, uma posição construída por meio da oposição àqueles que eram avaliados negativamente. Isto é, para perceber a si mesmo como um bom aluno e afirmar esse lugar na classificação de mérito no interior da turma, os “bons alunos” agiam demarcando diferenças, criticando e distanciando-se de relações com os “maus alunos”. A hierarquia interna à escola, cristalizada nas figuras do “bom” e do “mau aluno”, era bem conhecida das crianças, que não titubearam em apontar, nas entrevistas, os e as colegas que se encaixavam em cada um destes lugares, nem em explicar os motivos.

Assim, parece-nos que os alunos eram agentes em práticas de hierarquização com base em estruturas sociais mais amplas que tendiam a se converter em hierarquizações escolares das quais eles participavam ativamente. Nesse sentido, a hierarquia entre alunos não era estritamente meritocrática, mas se combinava com desigualdades sociais - especialmente as raciais, mas também distinções socioeconômicas - e com habilidades valorizadas como masculinas, como jogar bem futebol ou videogames e ser considerado bonito pelas meninas. Essas características se combinavam de diferentes maneiras, umas influenciando as outras num jogo de ida e volta, do micro ao macro, do intra ao extraescolar, do que é relativo ao aprendizado às demais relações que ocorrem dentro da escola.

Se para ser um “bom aluno” era necessário encontrar o equilíbrio entre a realização das atividades escolares e a participação em momentos de descontração, isto significava mais do que simplesmente saber brincar na hora certa. Era preciso também conseguir jogar nas relações de poder entre pares. Obrigados a lidar com hierarquias sociais e escolares que estruturavam o mundo ao seu redor, os alunos atuavam intensamente na construção e reconstrução dessas hierarquias, demarcando diferenças, aproximações e distanciamentos, definindo os lugares de cada um. Assim, o lugar de “bom aluno” não decorria estritamente da capacidade e desempenho de cada menino, mas sim da possibilidade de mobilizar o suporte dos colegas ou sofrer seu boicote, em situações que influenciavam até mesmo a percepção do professor e da professora sobre o desempenho de cada aluno.

REFERÊNCIAS

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  • JACKSON, David. Breaking out of the binary trap: boy’s underachivement, schooling and gender relations. In: EPSTEIN, Debbie et al. (Ed.). Failing boys? Issues in gender and achievement. Philadelphia: Open University Press , 1998. p. 77-95.
  • ROSEMBERG, Fúlvia; MADSEN, Nina. Educação formal e gênero no Brasil. In: BARSTED, Leila Linhares; PITANGUY, Jacqueline (Org.). O progresso das mulheres no Brasil (2003-2010) Rio de Janeiro: Cepia; Brasília: ONU Mulheres, 2011. p. 390-434.
  • SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
  • TOLEDO, Cinthia Torres. Ser menino e “bom aluno”: masculinidades e desempenho escolar. 2016. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.
  • WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador: escola, resistência e reprodução social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991

Notas

  • 1
    O artigo deriva da pesquisa de mestrado de Cinthia Torres Toledo (2016), orientada por Marília Pinto de Carvalho e financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo n. 2014/11899-7.
  • 2
    A apropriação do conceito de hegemonia de Gramsci realizada por Connell tem sido alvo de discussão teórica. Para ver algumas ponderações sobre o tema, consultar Connell e Messerschmidt (2013).
  • 3
    No original: “The peer groups, not individuals, are the bearers of gender definitions”.
  • 4
    As crianças foram entrevistadas apenas mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelos responsáveis legais. Além da autorização formal, buscamos estar atentas à vontade das crianças de participarem das entrevistas, respeitando distanciamentos ou pedidos de não participação.
  • 5
    Os nomes dos sujeitos de pesquisa são fictícios.
  • 6
    Por razões de espaço, este artigo não aborda as interações entre as meninas
  • 7
    O aluno Rafael foi entrevistado uma vez em 2014 e uma vez em 2015
  • 8
    Em 2014, Jorge foi heteroclassificado como branco pelo professor Alberto e se autoclassificou como pardo. Em 2015 também foi heteroclassificado como branco pela professora Tatiana e se autoclassificou como branco. Artur foi heteroclassificado e autoclassificado como branco em 2015 e só participou da pesquisa nesse segundo momento.
  • 9
    Como o grupo era bastante homogêneo quanto à renda familiar, as diferenças socioeconômicas e os processos de hierarquização decorrentes dessas diferenças pareciam sutis e uma análise mais nuançada certamente demandaria um referencial teórico mais atento às dimensões simbólicas de disposições de classe incorporadas pelos alunos e possivelmente mobilizadas nessas interações.
  • 10
    Rafael escolheu João apenas para realizar atividades em grupo. Primeiramente escolheria Daniel (bom aluno) para fazer atividades em dupla e depois Gustavo B. (mau aluno) para fazer atividades em trio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2018
  • Aceito
    25 Jun 2018
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