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Nem sagradas nem profanas, apenas trabalhadoras: o trabalho-ciborgue de surrogates

Resumo

O presente artigo analisa a prática de surrogacy , na qual uma mulher gesta um bebê para terceiros, dando ênfase ao processo laboral-gestacional dessas mulheres, chamadas “ surrogates ”. Objetivando apresentar essas gestantes como figuras bastante híbridas, utilizo o ciborgue de Haraway (2016) como recurso heurístico. O estigma da compensação financeira das surrogates é considerado a partir de contribuições teóricas do trabalho sexual – juntamente com as metáforas da dramaturgia de Goffman (1996) – buscando debater como o perfil idealizado de quem a surrogate deve ser remete à figura da moral ideal da mulher santa. Seu processo de trabalho gestacional é analisado como uma forma híbrida de trabalho produtivo e trabalho relacional, demonstrando como surrogates negociam limites entre os mundos hostis de Zelizer (2011) de mercado e intimidade. Concluo que surrogates vivem entre esses dois mundos e, de diferentes formas, negociam seus limites, ao mesmo tempo que convivem com o perfil idealizado que se espera delas.

Surrogacy; Trabalho; Gênero; Estigma

Abstract

This paper analyzes the practice of surrogacy, in which a woman carries someone else’s baby, focusing on the gestational-labor process of these women, called “surrogates”. To present them as hybrid figures, I use Donna Haraway’s concept of cyborg as a heuristic resource. The stigma of the financial compensation for surrogates is analyzed through theoretical contributions about sex work – along with Goffman’s theatrical metaphors – to discuss how the idealized role of who a surrogate should be is linked to the ideal morality of a sacred woman. The gestational labor process is analyzed as a hybrid form of productive and relational work, demonstrating how surrogates negotiate limits between Zelizer’s hostile worlds of market and intimacy. The findings I have presented suggest that surrogates live between two worlds and, in different ways, negotiate their limits, while they live with the idealized role that people expect of them.

Surrogacy; Labor; Gender; Stigma

Introdução

O presente artigo visa analisar a prática de surrogacy (popularmente conhecida como “barriga de aluguel”), na qual uma mulher – chamada de surrogate – gesta um bebê para outrem, podendo ser essa atividade gestacional remunerada ou não. Se remunerada, a compensação financeira da surrogate traz consigo dilemas éticos e morais, como mercantilização do corpo feminino e exploração e coerção de mulheres vulneráveis. Objetivando demonstrar que essas mulheres são figuras híbridas e bastante contraditórias, analiso o processo de trabalho da surrogate , o estigma de sua compensação financeira e o perfil idealizado que se espera delas.

Em um primeiro momento, apresento a prática de surrogacy e seus debates sociais, empregando a figura do ciborgue de Donna Haraway como recurso heurístico, com o intuito de situar surrogates em um contexto de apagamento de fronteiras entre trabalho e não trabalho, reprodutivo e produtivo, gestação e maternidade, natureza e artificialidade. Posteriormente, abordo o estigma do dinheiro em atividades que utilizam o corpo feminino como ferramenta de trabalho, empregando contribuições teóricas da temática de trabalho sexual e analisando os pontos comuns que este possui com o trabalho gestacional desempenhado por surrogates . Ainda, debato como o estigma faz com que essas gestantes tentem se encaixar no perfil idealizado de mulher altruísta, que envolve conceitos como sacrifício, doação, generosidade e honra. Este debate utiliza as metáforas da dramaturgia de Goffman (1996)GOFFMAN , Erving . A Representação do Eu na vida cotidiana . 7ª ed. Petrópolis , Vozes , 1996 . para tratar das fachadas que essas mulheres podem usar para manterem seu papel.

Em seguida, analiso de forma breve algumas categorias teóricas que tentam definir o que surrogacy é, salientando como categorias fechadas dificilmente comportariam a hibridade dessas mulheres. Analiso a possibilidade da atividade gestacional da surrogate ser categorizada como uma atividade produtiva – com contribuições de Lewis (2017LEWIS , Sophie . Cyborg Labour: Exploring Surrogacy as Gestational Work . Tese (Doutorado em Geografia) , University of Manchester , Manchester , 2017 . , 2019LEWIS , Sophie . Full Surrogacy Now: Feminism Against Family . Londres , Verso , 2019 . ), Russell (1994)RUSSELL , Kathryn . A Value-Theoretic Approach to Childbirth and Reproductive Engineering . Science & Society , v. 58 , n. 03 , 1994 , pp. 287 - 314 . e da teoria marxista do valor – considerando esse um debate necessário, mas ainda incompleto para comportar a hibridade desta prática. Esta análise é complementada pelo conceito de trabalho relacional de Zelizer (2011)ZELIZER , Viviana . A Negociação da Intimidade . Petrópolis , Vozes , 2011 . , que demonstra como surrogates transitam entre os mundos hostis de mercado e intimidade e rompem com concepções dualistas. Por fim, analiso esse modelo híbrido de trabalho – que chamo de “trabalho ciborgue” – como um modelo que, se não contempla a experiência vivida por todas as surrogates, ao menos consegue contemplar um número considerável de vivências entre os diferentes tipos de negociação de limites entre mercado e intimidade.

Surrogacy e o ciborgue: entre corpo natural e corpo artificial

As dificuldades reprodutivas representam grande obstáculo na realização do projeto parental de diversas pessoas, limitação cada vez mais passível de ser enfrentada com o avanço da medicina e das técnicas de reprodução assistida (TRA), conjunto de técnicas que auxiliam o processo de reprodução humana – como fertilização in vitro 1 1 Técnica de fecundação extracorpórea na qual o óvulo e o espermatozoide são previamente retirados de seus doadores e unidos em um meio de cultura artificial em vidro especial ( Frazão, 2000: 3). – e técnicas complementares como doação de gametas e surrogacy , que surgiu para abrir o leque de alternativas para mulheres férteis, do ponto de vista de viabilidade de seus óvulos, com problemas médicos que impeçam ou contraindiquem a gestação em seu próprio útero, bem como em casos de união entre pessoas do mesmo sexo e pessoas solteiras ( Graziuso, 2018GRAZIUSO , Bruna . Úteros e fronteiras: gestação de substituição no Brasil e nos Estados Unidos: um estudo comparado . Florianópolis , Tirant Lo Blanch , 2018 . ).

Surrogacy (também conhecida no Brasil como gestação de substituição, barriga de aluguel e barriga solidária) pode ser definida como uma prática na qual um embrião, fecundado com o material genético dos pais intencionais 2 2 Os detentores do projeto parental, ou seja, aquelas pessoas que efetivamente desejam criar esse bebê, são chamados de pais intencionais. É comum ouvir o termo “pais genéticos”, porém nem sempre os pais intencionais são pais genéticos, podendo haver o envolvimento de doadores de gametas. Assim, utilizo o termo genérico “pais intencionais” (que engloba “mãe intencional” e “pai intencional”). ou de doadores, é implantado no útero de uma mulher (chamada de “ surrogate” ) alheia a esse projeto parental, geralmente 3 3 Existem dois tipos de surrogacy: tradicional e gestacional. A tradicional ocorre quando a surrogate utiliza o próprio óvulo para a fecundação, ou seja, ela possuirá vínculo genético com o embrião. A gestacional ocorre quando a surrogate recebe um embrião já fecundado com gametas de terceiros, não possuindo assim vínculo genético com o mesmo, apenas atuando efetivamente como gestante. Em decorrência das possíveis implicações psicológicas de a surrogate possuir vínculo genético com o embrião que gesta, a prática já não é mais tão comum, sendo que a maioria das clínicas de fertilização optam por trabalhar apenas com surrogacy gestacional ( Trimmings; Beaumont, 2013 ). Para o presente trabalho, o termo surrogacy será utilizado como sinônimo de surrogacy gestacional. não tendo qualquer ligação genética com o embrião que gestará. A prática pode ser classificada como altruísta ou comercial, recebendo a surrogate , nesse último caso, uma compensação financeira pela gestação propriamente dita.

As técnicas de reprodução assistida trazem consigo debates sociais oriundos de novas relações entre pessoas engajadas na prática de trazer uma criança ao mundo. Não são mais apenas dois contribuintes de material genético dando origem a um embrião por meio de relações sexuais, mas sim sujeitos plurais: pais intencionais, médicos, doadores de gametas e surrogates , isso apenas para citar os potenciais participantes humanos. Há ainda a tecnologia que permite a cisão – e, por que não, terceirização – desse processo. A prática também gera questionamentos sobre construção social da maternidade e a importância simbólica da gestação, razão pela qual surrogates são seguidamente rotuladas como “mães biológicas” ( Luna, 2002LUNA , Naara . Maternidade desnaturada: uma análise da barriga de aluguel e da doação de óvulos . cadernos pagu ( 19 ), Campinas, SP , Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp , 2002 , pp. 233 - 278 . ). Contudo, o termo “mãe biológica” é bastante criticado por autoras como Teman (2010)TEMAN , Elly . Birthing a Mother: The Surrogate Body and The Pregnant Self . Berkeley , University of California Press , 2010 . , em seu estudo sobre surrogacy em Israel. As gestantes entrevistadas não utilizam o termo “mãe”, mas sim expressões como “forno” ( oven ), “incubadora” ( incubator ) ou “estufa” ( greenhouse ) para definir suas particulares situações:

Shahar, trinta e dois anos, já era mãe de cinco crianças quando deu à luz aos gêmeos de seu casal. Quando narrou sua experiência, Shahar utilizou outra metáfora desumanizadora: “Eu apenas estou gestando os bebês, eu não tenho nenhuma relação com eles. Quer dizer, eu dei vida a eles, porque sem mim eles não teriam nascido, visto que a mãe intencional não podia gestá-los. Apenas alguém com um útero, e um bom útero, poderia gestar as crianças para ela. Então eu fui escolhida... eu apenas os segurei na minha barriga, como uma incubadora. Eu fui sua incubadora por nove meses! No momento em que eles nasceram, eu terminei meu trabalho, e era isso 4 4 “ Shahar, thirty-two, who was already a mother of five when she gave birth to twins for her couple. While narrating her experience, Shahar applied another seemingly dehumanizing metaphor: I am only carrying the babies, I don’t have any part in the issue…I mean, I gave them life, because without me they would not have life. Because the intended mother couldn’t carry them. Only someone with a womb, a good womb, could hold the children for her. So, I am the one…I just held them in my belly, like an incubator. I was the incubator for nine months! And the second that they were born, I finished the job and that was it”. ( Teman, 2010TEMAN , Elly . Birthing a Mother: The Surrogate Body and The Pregnant Self . Berkeley , University of California Press , 2010 .: 32, tradução e grifos nossos).

Da fala dessa surrogate é possível observar dois tópicos de análise essenciais da prática de surrogacy: a complexa classificação corporal de natureza e artificialidade – combinada com mecanismos de objetificação de seus úteros (analogias de “forno”, “incubadora” e “estufa”) – e a definição da gestação como trabalho. À primeira vista, um enquadramento da prática como trabalho pode contrastar com os conceitos geralmente conectados à surrogacy, como “amor”, “caridade” e “vocação”. Surrogates são efetivamente figuras híbridas e bastante contraditórias. Essa hibridade pode ser trabalhada por meio do uso da figura do ciborgue de Haraway (2016)HARAWAY , Donna J. A Cyborg Manifesto: Science, Technology and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century . In: HARAWAY , Donna J. Manifestly Haraway . Minneapolis , University of Minnesota Press , 2016 , pp. 03 - 90 . como recurso heurístico. Na teoria de Haraway, o ciborgue é um “organismo cibernético, híbrido de humano e máquina, natureza e cultura, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção” (Haraway, 2016:40, tradução nossa) que nos auxilia na compreensão de um mundo no qual essas distinções fazem cada vez menos sentido.

É exatamente nesse contexto de apagamento de fronteiras que as surrogates se inserem, pois tencionam diversos conceitos preestabelecidos, como distinções entre trabalho e não trabalho, reprodutivo e produtivo, maternidade e gestação. Entre tantas contradições, como definir quem é a surrogate? Seria ela a mãe biológica? Uma prestadora de serviços gestacionais? Uma mulher caridosa que auxilia outros na busca pela parentalidade? Uma figura híbrida sem precedentes? Lewis (2017)LEWIS , Sophie . Cyborg Labour: Exploring Surrogacy as Gestational Work . Tese (Doutorado em Geografia) , University of Manchester , Manchester , 2017 . foi a primeira teórica a utilizar a figura do ciborgue para buscar soluções aos embates conceituais desse peculiar trabalho gestacional. Em sua concepção, a surrogate é um ciborgue, “um dos monstros que surgem quando se rompem fronteiras, categorias, identidades e relações” ( Lewis, 2017LEWIS , Sophie . Cyborg Labour: Exploring Surrogacy as Gestational Work . Tese (Doutorado em Geografia) , University of Manchester , Manchester , 2017 .: 45, tradução nossa).

São também mulheres que transitam entre os conceitos de autonomia e controle: seus corpos são controlados por médicos, clínicas e pais intencionais, seguindo um rígido protocolo de medicamentos 5 5 O protocolo de medicamentos tem início geralmente cinco semanas antes da transferência do embrião e pode durar até 16 semanas após esta. Entre os medicamentos que podem ser utilizados, estão doxiciclina (antibiótico utilizado no início do processo para tratar possíveis infecções pélvicas leves); lupron (hormônio que impede a ovulação da surrogate , dando ao médico controle de seu ciclo); estrogênio (hormônio para engrossar a parede uterina e auxiliar posteriormente na implantação do embrião); progesterona (hormônio que segue a preparação do útero para o embrião após o uso do estrogênio); aspirina (para aumentar as chances de implantação); tetraciclina (antibiótico usado após a transferência do embrião para evitar rejeição); medrol (esteroide que suprime o sistema autoimune e aumenta as chances de uma implantação bem sucedida) e vitaminas pré-natais. O protocolo engloba medicamentos orais, injetáveis e supositórios. Fonte: Surrogate.com [ https://surrogate.com/surrogates/pregnancy-and-health/list-of-medications-involved-in-surrogacy/ - acesso em: 25 out. 2020]. , voltado exclusivamente para uma implantação bem-sucedida do embrião, com possíveis efeitos colaterais para o corpo da surrogate . Porém, ao mesmo tempo que são controladas, também reivindicam controle, não apenas de seus corpos, mas principalmente de suas emoções: gestar um bebê que não será seu implica um preparo psicológico que começa antes mesmo da gestação, tendo cada surrogate uma estratégia particular para criar esse distanciamento emocional.

Entre natureza e artificialidade, encarar o processo gestacional de surrogacy como artificial é também uma estratégia para separar gestação de maternidade, corpo do self. Surrogates israelenses ( Teman, 2010TEMAN , Elly . Birthing a Mother: The Surrogate Body and The Pregnant Self . Berkeley , University of California Press , 2010 . ) criam verdadeiros mapas corporais para separarem partes do corpo que estão momentaneamente desconexas do self (corpo artificial) durante a gestação e partes ainda conectadas ao self (corpo natural). Assim, útero e gestação pertencem ao corpo artificial, enquanto self e maternidade 6 6 A parentalidade em surrogacy não será debatida no presente artigo, pois geralmente está mais relacionada a debates sobre pais intencionais. Contudo, algumas diferenciações são necessárias. Surrogates israelenses demonstram uma abordagem bastante naturalista de maternidade, geralmente ressaltando a natureza do embrião e sua conexão genética com a mãe intencional. No modelo israelense de surrogacy, a questão religiosa tem extrema importância: tanto pais intencionais quanto a surrogate necessitam ser israelenses e judeus. Logo, é também uma questão étnica e de fortalecimento da identidade nacional, somado à importância da figura da “mãe judia” na cultura do país ( Graziuso, 2018 ). Por outro lado, surrogates estadunidenses encaram a intenção (Strathern, 2014), não a genética, como base da parentalidade de pais intencionais. Contudo, é possível perceber que surrogates , de uma forma geral, conectam suas próprias experiências maternas aos seus corpos naturais. Essa abordagem não me parece uma negação à ideia de maternidade como socialmente construída, mas sim uma mera estratégia de proteção de seu self , uma barreira emocional que ajuda na desconexão com o feto e na afirmação de que não são mães dos bebês que gestam. seguem intactos ( Berend, 2016BEREND , Zsuzsa . The Online World of Surrogacy . New York , Berghahn , 2016 . Ebook Kindle . ), pertencentes ao corpo natural. Para Viviani (2020)VIVIANI , D . Surrogacy: The Apotheosis of Control . Italian Sociological Review 10 ( 3 ), 2020 , pp. 631 - 654 . , essa divisão entre natural e artificial é a apoteose do controle de surrogates , o que mostra a incrível capacidade dessas mulheres de controlarem seus corpos e emoções.

Nessa prática híbrida, por mais que o rompimento da gestação como afirmação da maternidade seja uma consequência importante, a questão ainda mais controversa está na figura da surrogate -ciborgue como trabalhadora. As atividades gestacionais dessas mulheres não costumam ser percebidas como trabalho, principalmente em decorrência da diminuição de regulamentações estatais que permitem a sua remuneração ao longo dos últimos anos 7 7 Atualmente, a prática comercial é permitida na Ucrânia, Rússia (apenas para casais heterossexuais), Colômbia, Georgia e em alguns estados dos Estados Unidos. Ao longo dos últimos anos, alguns países permissivos baniram a prática, como Tailândia, Índia e México ( Graziuso, 2018 ). . Considerando que nem toda atividade laboral é remunerada – mas igualmente ponderando a inevitável relação entre trabalho e remuneração – destaca-se o quanto a prática de surrogacy altruísta (não remunerada) segue sendo encarada como um ato de generosidade e amor, que objetiva auxiliar pessoas com dificuldades reprodutivas na formação de suas famílias, enquanto a forma comercial (remunerada) 8 8 Importante ressaltar que não considero surrogacy altruísta e surrogacy comercial como opostos, definindo assim que surrogates remuneradas não possuem motivações também altruístas. Contudo, essas são as nomenclaturas oficialmente utilizadas para diferenciar as práticas nas quais surrogates são remuneradas daquelas em que não são remuneradas, razão pela qual são reproduzidas no presente trabalho. traz consigo dilemas como exploração e coerção de mulheres vulneráveis e mercantilização do corpo feminino ( Panitch, 2013PANITCH , Vida . Surrogate Tourism and Reproductive Rights . Hypatia , v. 28 ( 2 ), 2013 , pp. 274 - 289 . ). Há uma constante tentativa de encaixar surrogates em um dos lados do binarismo “amor x dinheiro”, como se fosse possível categorizar – de forma tão fechada – uma figura híbrida como a surrogate -ciborgue, que rompe com estruturas dualistas. Para tratar desse binarismo, analisarei o estigma da compensação financeira por atividades que utilizam o corpo como ferramenta de trabalho – com contribuições teóricas da literatura sobre trabalho sexual – e como o perfil idealizado de mulher altruísta é defendido até mesmo por surrogates como grupo.

A sagrada e a profana: estigma, representações e a moral ideal

Estudos sobre trabalho sexual trazem importantes lições e paralelos com o trabalho gestacional. Tanto o trabalho sexual de trabalhadoras do sexo quanto o trabalho gestacional de surrogates envolvem o uso do corpo feminino como ferramenta de trabalho e geram discussões sobre a possibilidade de compensação financeira. De acordo com Mac e Smith (2018)MAC , Juno ; SMITH , Molly . Revolting Prostitutes: The Fight for Sex Worker’s Rights . Londres , Verso , 2018 . , o movimento pelos direitos das trabalhadoras sexuais no Reino Unido possui especial ligação com o movimento International Wages for Housework Campaign” 9 9 Campanha Internacional de Salários por Trabalho Doméstico (tradução nossa). , criado na Itália em 1972 por um coletivo de feministas marxistas, com o objetivo de revelar a naturalização do trabalho doméstico e a sua condição de não remunerado ( Federici, 2012FEDERICI , Silvia . Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction and Feminist Struggle . New York , PM Press , 2012 . ). Da mesma forma que o trabalho sexual, o trabalho reprodutivo e gestacional utiliza seios, útero e vagina como ferramentas de trabalho.

O sexo e a reprodução são atividades que melhor ilustram o fenômeno chamado “madonna-whore dichotomy” ( Kahalon et al., 2019KAHALON , Rotem et alii . The Madonna-Whore Dichotomy Is Associated With Patriarchy Endorsement: Evidence From Israel, the United States and Germany . Psychology of Women Quarterly , v. 43 , n. 3 , maio 2019 , pp. 348 - 367 . ) – a dicotomia entre as figuras da “mulher-santa” e da “mulher-promíscua”, a “sagrada” e a “profana” – que consiste em enxergar o corpo em apenas dois contextos que não poderiam existir mutualmente: como corpo sexualizado (objeto sexual) ou como corpo maternal (sagrado). Nesta compreensão, surrogates remuneradas não são trabalhadoras, mas meras vítimas, praticando uma atividade laboral degradante por extrema necessidade financeira. Há um forte estigma específico da compensação financeira, razão pela qual surrogates não remuneradas podem não sofrer do mesmo, pois sem compensação não haveria venda do corpo, apenas uma louvável atividade altruísta.

Da mesma forma que as trabalhadoras do sexo, a imagem estereotipada da mulher que vende seu corpo como mercadoria gera um pânico moral 10 10 Um pânico moral ocorre quando uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas surge e acaba sendo definido como uma ameaça aos valores e interesses sociais ( Cohen, 2002 ), como é o caso de surrogacy . A consolidação do argumento que surrogacy é “venda de bebês” em Nova York na década de 1990 – que deu origem a uma legislação proibitiva da prática em 1992 – teve forte relação com pânico moral, gerado por disseminação de notícias falsas ( fake news ) com o apoio da imprensa local, com destaque para a capa do jornal The New York Times em 1988 com o título “É venda de bebês e é errado” (The New York Times, 1988). Notícias falsas foram usadas para causar tumulto, reforçando uma notícia constantemente reproduzida na época, porém jamais comprovada, de que Nova York havia se tornado “a capital de surrogacy da nação”, e estimava-se que “40% de todos os contratos comerciais do país são celebrados em Nova York”. As fontes desses supostos dados jamais foram informadas ( Graziuso, 2018 ). , respondido por meio de legislações proibitivas que buscam abolir a mercantilização, mas não o trabalho. Dentro da fantasia paternalista, uma mulher que utiliza o corpo como ferramenta de trabalho precisa ser resgatada. Lewis (2019)LEWIS , Sophie . Full Surrogacy Now: Feminism Against Family . Londres , Verso , 2019 . afirma que a compensação financeira da surrogate é o verdadeiro problema para os defensores da criminalização de surrogacy , visto que organizações 11 11 Stop Surrogacy Now é a organização internacional abolicionista mais conhecida, que enquadra a prática de surrogacy comercial como exploração de mulheres pobres e venda de bebês. Fonte: Stop Surrogacy Now [ https://www.stopsurrogacynow.com/ - acesso em: 27 nov. 2019]. que lutam pelo fim da prática surgiram exatamente quando algumas surrogates passaram a ser remuneradas:

De nove entre dez vezes, pode apostar que as pessoas são contrárias a uma microárea da economia contemporânea, porque é um trabalho produtivo que envolve úteros e orifícios, assim como lóbulos frontais e mãos. A fixação com o que há dentro dos corpos femininos deveria ser o maior indicativo ( Lewis, 2019LEWIS , Sophie . Full Surrogacy Now: Feminism Against Family . Londres , Verso , 2019 .: 53, tradução nossa).

Por essa razão, mesmo mulheres que são remuneradas por suas atividades gestacionais tentam se encaixar no perfil idealizado de uma surrogate altruísta: sacrifício, doação, generosidade e honra, características condizentes com uma figura de “mulher-santa”, sagrada e maternal. Para Berend (2016)BEREND , Zsuzsa . The Online World of Surrogacy . New York , Berghahn , 2016 . Ebook Kindle . , a “moral ideal” das surrogates é consistente com a análise de Goffman (1988)GOFFMAN , Erving . Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada . 4ª ed. São Paulo , LTC , 1988 . de grupos estigmatizados: o notável estigma de surrogacy comercial pressiona surrogates a apresentarem uma generosidade idealizada para se encaixarem no perfil desejado. Utilizando a dramaturgia e suas metáforas de atores, palcos e plateias, Goffman (1996)GOFFMAN , Erving . A Representação do Eu na vida cotidiana . 7ª ed. Petrópolis , Vozes , 1996 . já tratava de como o indivíduo, em suas interações sociais, se esforça para passar uma impressão adequada do que se espera em uma determinada situação. Assim, a surrogate precisa manter a representação idealizada de seu papel 12 12 Necessário tirar o peso da metáfora teatral de Goffman, muitas vezes encarada de forma excessivamente literal e não metafórica, como se surrogates representassem um falso papel. Dizer que existe um perfil idealizado não significa que este é falso, muito pelo contrário: “quando dizemos pejorativamente que uma pessoa fez uma ‘verdadeira atuação teatral’, podemos estar insinuando que ela mostrou mais que o cuidado habitual e empregou mais do que a intenção e continuidade habituais na apresentação daquilo que ostensivamente não é, de forma alguma, uma atuação. Seja como for, requer-se aqui alguma ajuda terminológica para aliviar o fardo que a palavra ‘atuação teatral’ carrega” ( Goffman, 2012: 168). , o que significa abandonar ou esconder tudo aquilo que não seja compatível com ela.

Nesta lógica, a representação da surrogate é uma projeção do que ela quer que os outros vejam. Reconhecer essa projeção não significa dizer que o altruísmo desta em realizar sua atividade gestacional é falso, apenas que esse altruísmo é um elemento que ela quer tornar visível em suas interações sociais, podendo esconder outros elementos que não quer incluir em sua representação, como por exemplo pode ser o caso da estigmatizada compensação financeira. Goffman (1996)GOFFMAN , Erving . A Representação do Eu na vida cotidiana . 7ª ed. Petrópolis , Vozes , 1996 . chama de “fachada” a ferramenta que utilizamos para manipular a impressão idealizada que queremos passar para nossos observadores. Se desejamos manter a impressão idealizada, nossa fachada precisa ser condizente com nosso papel. Chamarei a fachada 13 13 Ao apresentar o conceito de “fachada”, Goffman (1996) cita como exemplo os médicos que ocultam seus erros – para criar uma fachada ideal de infalibilidade – e donos de estabelecimentos comerciais que, em épocas de racionamento, ocultam seus sacrifícios para manter uma fachada de normalidade e assim não perderem seus clientes. Dessa forma, além de ocultar as relações contratuais, surrogates podem fazer uso da fachada para ocultar sentimentos que julgam ser incompatíveis com o seu perfil idealizado: podem sentir raiva dos pais intencionais em alguma ocasião, arrependimento, apego e saudade do bebê após o parto, etc. de surrogates de “véu da caridade”.

O uso do termo “véu” remete à tentativa de invisibilizar certos elementos da atividade gestacional de surrogates – como compensação financeira e bônus contratuais, por exemplo –, reforçando valores familiares e altruístas, condizentes com a moral ideal de seu papel. A fachada pode até mesmo ser utilizada em interações sociais entre surrogates , nas quais o perfil idealizado é fortemente cobrado: Berend (2016)BEREND , Zsuzsa . The Online World of Surrogacy . New York , Berghahn , 2016 . Ebook Kindle . , em seu estudo do fórum estadunidense “Surro Moms Online” , faz uso das metáforas teatrais de Goffman para explicar a busca pela moral ideal:

Altruísmo e o compromisso em “nutrir vida” são traços ideais de uma ótima surrogate . Mulheres competem pelo mais alto posto de moralidade, não apenas em relação a seus casais [pais intencionais], mas principalmente em relação às demais surrogates . Ainda que suas histórias sejam geralmente sobre os pais intencionais, as verdadeiras rivais – bem como a verdadeira plateia – são suas colegas surrogates . Sua tarefa é ser uma mulher generosa, altruísta, que se sacrifica, enquanto as outras surrogates são seu elenco de apoio e, ao mesmo tempo, suas competidoras. Essas “ performances” , para utilizar o termo de Goffman, embora às vezes contenciosas, ajudam essas mulheres a definirem a moral ideal de surrogacy . São performances discursivas nas quais elas se esforçam para viverem de acordo ( Berend, 2016BEREND , Zsuzsa . The Online World of Surrogacy . New York , Berghahn , 2016 . Ebook Kindle . , s.p., tradução nossa).

Santas e profanas, altruísmo e dinheiro, estigma e véu: entre tantas contradições, teóricos constantemente tentam enquadrar a prática, propondo categorizações passíveis de responder a eterna pergunta de quem a surrogate é. Autoras como Federici (2019)FEDERICI , Silvia . Beyond the Periphery of the Skin: Rethinking, Remaking and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism . New York , PM Press , 2019 . categorizam a prática como uma forma de exploração – considerando a surrogate a mãe biológica do bebê que gesta, que vende seu útero e seu filho 14 14 Em entrevista concedida para o jornal El Pais em setembro de 2019, ao ser questionada sobre surrogacy , Silvia Federici respondeu: “É uma abominação. Não se vende somente um útero, vende-se também um bebê. Não se pode vender outra pessoa. A gestação sub-rogada (sic) é produzir uma pessoa somente para vendê-la, sem responsabilizar-se por ela. Nos Estados Unidos há um mercado subterrâneo não regrado de famílias que têm bebês sub-rogados que nascem com malformações, o produto não é perfeito, ou não é do sexo desejado, e os fazem circular pela Internet” ( Moraleda, 2019 ). Federici traz informações alarmantes sobre a prática, mas não cita fontes que comprovem sua veracidade. Em seu novo livro “Beyond the Periphery of the Skin” , Federici define a surrogate como mãe biológica e traz novas afirmações sem apresentar fontes, como ao declarar que “há evidências que algumas crianças nascidas por surrogacy são canalizadas ao mercado de órgãos” ( Federici, 2019 , n.p., tradução nossa) [“there is evidence that some surrogate children are channeled to the organs market”]. –, enquanto teóricas da bioética como Tong (1997) defendem um modelo de surrogacy meramente altruísta, sem remuneração da surrogate, pois essa seria uma forma de mercantilização de seus corpos. Enquanto uma categoria trata essas mulheres como vítimas, a outra romantiza a atividade gestacional e naturaliza o trabalho feminino como não pago.

Tentando se desvencilhar dessas categorias problemáticas, há teóricas que categorizam a prática como uma forma de trabalho: Lewis (2019)LEWIS , Sophie . Full Surrogacy Now: Feminism Against Family . Londres , Verso , 2019 . propõe um modelo de trabalho produtivo (trabalho clínico e de cuidado) que possui a função principal de garantir direitos a essas mulheres gestantes. Nessa lógica, quanto mais nítida a percepção de trabalho, mais evidente se torna a discussão dos direitos e condições de trabalho dessas mulheres, como direito à remuneração justa, direito à compensação extra em caso de repouso prolongado, direito de negar intervenções médicas e negociar cláusulas contratuais, entre outros.

Sua análise do processo gestacional de surrogacy o diferencia do processo gestacional clássico, em que uma mãe gesta seu próprio filho. Para teóricas da reprodução social como Arruzza; Bhattacharya e Fraser (2019), não há dúvidas de que o processo gestacional clássico (chamado de trabalho reprodutivo 15 15 Federici (2012) salienta que, em um momento inicial, “trabalho reprodutivo” era o termo empregado para todo tipo de trabalho doméstico, exercido dentro do núcleo familiar. Contudo, no presente artigo, utilizarei o termo “trabalho reprodutivo” para tratar apenas da atividade gestacional de uma mulher que gesta seu filho, diferenciando essa atividade do trabalho gestacional de surrogates . ) não se encaixaria na categoria de trabalho produtivo: uma condição fundamental do trabalho produtivo é a produção de mercadorias para a venda e obtenção de lucro. Contudo, em surrogacy , a surrogate vende a sua força laboral, sua capacidade de gestar, sendo um processo consideravelmente diferente do trabalho reprodutivo em seu conceito clássico. Ao mesmo tempo que se considera essas diferenças, uma categorização de trabalho produtivo, por si só, pode ser ainda demasiadamente fechada para contemplar a figura híbrida que é a surrogate. Assim, apresentarei inicialmente uma análise de surrogacy como trabalho produtivo, para posteriormente apresentar contribuições passíveis de contemplar as contradições da figura surrogate -ciborgue.

Produzindo bebês: surrogacy e o processo de trabalho na teoria marxista

O trabalho gestacional de surrogates raramente é enquadrado como uma forma de produção ativa, pois não se compreende que surrogates produzem valor. Lewis (2019)LEWIS , Sophie . Full Surrogacy Now: Feminism Against Family . Londres , Verso , 2019 . cita como exemplo o fato de que quando uma surrogate sofre um aborto espontâneo, há perda de valor: sua agência tentará negar-lhe grande parte de sua remuneração. Para então dissertar sobre a produção de valor no processo de surrogacy , utilizarei a teoria do valor de Marx (2011b). Quando trata da força laboral, Marx diz que esta é o próprio trabalho: “o comprador da força laboral a consome, fazendo com que seu vendedor trabalhe” (Marx, 2011b:188). Assim, Marx compreende a força laboral como uma mercadoria cujo uso produz valor, como lecionam Renault, Duménil e Lowy (2010):

É preciso tomar seriamente o fato de que Marx vê a força laboral como uma mercadoria, ou seja, um objeto de utilidade e um valor. A força de trabalho é comprada para ser empregada; a utilidade da força de trabalho para aquele que a adquire é o trabalho; seu valor é o tempo de trabalho necessário para a sua “produção”, no sentido muito particular de produção dos meios de subsistência do trabalhador e de sua família. (...) como ocorre com toda mercadoria, a força de trabalho tem um preço, o salário (Renault; Duménil; Lowy, 2010:247).

Em surrogacy , a surrogate vende sua força laboral, sua capacidade de gestar, que é comprada pelos pais intencionais. A utilidade da força laboral para quem a adquire é o trabalho, desejável por esse casal (ou pessoa solteira em projeto parental solo) que, por alguma razão, necessita de uma mulher para gestar seu filho. Já o valor é o tempo de trabalho necessário para sua produção, sendo a compensação financeira da surrogate o preço de sua força laboral. Dessa forma, sua força laboral não é apenas mercadoria útil e desejável, mas é também detentora de valor.

Mas surrogacy definitivamente não é um trabalho bem remunerado. Dados do ano de 2014 indicam que surrogates estadunidenses recebem remuneração entre 20 mil e 55 mil dólares, enquanto surrogates ucranianas – país que também permite a prática comercial – recebem entre 13 mil a 37 mil dólares (Hague Conference On International Law, 2014). Os valores podem parecer justos para alguns – e para outros elevados –, mas não quando analisado o valor da hora trabalhada. A atividade gestacional possui jornada de trabalho de 24 horas por dia, sete dias da semana, por um período de 37 a 42 semanas – considerando o termo inicial e tardio para o parto –, com a exceção de partos prematuros. Por exemplo, se uma surrogate estadunidense recebe compensação financeira de 30 mil dólares por uma gestação de 40 semanas, ela trabalhará 168 horas por semana, em um total de 6.720 horas por toda a gestação, recebendo apenas 4,46 dólares por hora trabalhada, abaixo do valor mínimo por hora trabalhada determinada por lei federal nos Estados Unidos, que é de 7,25 dólares (U.S. Department Of Labor, 2019).

Quanto ao processo de trabalho da surrogate, este pode ser dividido em três momentos: atividade laboral propriamente dita, seu objeto de trabalho e seus meios de trabalho (Marx, 2011b). A atividade laboral é sempre orientada a um fim, que no caso é o nascimento com vida do bebê dos pais intencionais. Seu objeto de trabalho é o embrião implantado em seu útero, e seu corpo pode ser encarado como seu meio de trabalho. A atividade de produção não faz parte do mundo externo, sendo parte do próprio corpo da trabalhadora. O processo de trabalho ocorre dentro de seu corpo, com materiais metabolizados pelo organismo da gestante. A energia da mulher é utilizada para produzir modificações dentro do corpo, ou seja, fora do mundo externo. Assim, as ferramentas de trabalho não são desconectáveis do corpo feminino: pessoa e ferramentas se fundem ( Tabet, 2005TABET , Paola . Natural Fertility, Forced Reproduction . In: LEONARD , Diana ; ADKINS , Lisa . Sex in Question: French Materialist Feminism . Londres , UK Taylor & Francis Inc ., 2005 , pp. 111 - 182 . ).

Para Tabet (2005)TABET , Paola . Natural Fertility, Forced Reproduction . In: LEONARD , Diana ; ADKINS , Lisa . Sex in Question: French Materialist Feminism . Londres , UK Taylor & Francis Inc ., 2005 , pp. 111 - 182 . , o que chama de “capacidade reprodutiva” pode ser vendida, como qualquer força laboral. A mulher que aceita gestar o filho de terceiro é dona da sua própria força laboral e, consequentemente, de sua própria pessoa. A compra e venda de sua capacidade reprodutiva é acordada por um tempo fixo – ou seja, a duração da gestação – o que distingue uma cessão temporária da sua capacidade (em que o dono dessa capacidade segue sendo dono) de uma transferência completa dessa capacidade. A temporariedade dessa cessão e a necessidade de remuneração são elementos chave para surrogacy não ser mais uma forma de apropriação da mulher, pois mantém a mulher como detentora da sua força laboral, optando por vendê-la quando e da forma que quiser dentro do universo contratual.

Após análise, o processo de trabalho da surrogate parece possuir certa similaridade com um processo de trabalho produtivo. A atividade laboral dessa trabalhadora – com o auxílio do corpo, seu meio de trabalho – opera uma transformação no embrião, seu objeto de trabalho, seguindo uma finalidade concebida desde o início: o produto final, que é o bebê. O processo de trabalho se extingue no produto, mas o processo de produção como um todo não termina, pois ainda resta a segunda parte da produção: o processo de valorização. É nessa fase que os debates entre trabalho produtivo e reprodutivo surgem. Seria seu trabalho produtivo, reprodutivo ou, ainda, prestação de serviços?

Russell (1994)RUSSELL , Kathryn . A Value-Theoretic Approach to Childbirth and Reproductive Engineering . Science & Society , v. 58 , n. 03 , 1994 , pp. 287 - 314 . salienta como a visibilidade da inclusão do trabalho gestacional específico de surrogates no mercado capitalista gerou uma equivalência entre reprodução e trabalho produtivo. Marx (2011b) fazia a distinção entre objetos produzidos diretamente para uso – e que acidentalmente ou ocasionalmente se tornavam mercadoria – e objetos produzidos especificamente para se tornarem mercadoria, que possuem valor de troca. A reprodução sempre foi vista como um trabalho que produz valor de uso, mas não valor de troca, pois o produto-bebê não seria destinado à venda como mercadoria. Assim, um bem produzido e não oferecido no mercado não seria mercadoria, assim como um bem adquirido e possuído para uso privado também não seria mercadoria (Renault; Duménil; Lowy, 2010).

Quando bens e serviços são produzidos para uso, sua troca não é esperada, e as atividades envolvidas em criá-los ocorrem de maneira não regulada pela troca. O trabalho envolvido só é valorizado no ato da troca, que cria uma equivalência temporária. Para Russell (1994)RUSSELL , Kathryn . A Value-Theoretic Approach to Childbirth and Reproductive Engineering . Science & Society , v. 58 , n. 03 , 1994 , pp. 287 - 314 . , quando a gestação é integrada no mercado capitalista de forma visível – como ocorre em surrogacy –, ela assume características do processo produtivo de mercadorias. Surrogates produzem para troca, pois recebem pagamento, realizam o processo produtivo e entregam o produto final. Contudo, a conclusão não é tão simples.

Podemos compreender que o produto do trabalho gestacional da surrogate possui valor de troca justamente por alienar seu valor de uso: ela não ficará com o produto de seu trabalho para si, sendo os pais intencionais os verdadeiros consumidores do valor de uso. Porém, no processo de produção capitalista, a força de trabalho é comprada a um preço proporcional a seu valor, mas é capaz de criar mais valor (chamado de “mais-valia”). A mais-valia é a fonte de todas as outras rendas, salvo o salário (preço da força laboral). Na atividade gestacional, é difícil vislumbrar esse sobrevalor, pois a compensação financeira parece ser integralmente o preço da força laboral da surrogate .

Contudo, é possível vislumbrar a mais-valia em processos de surrogacy intermediados por agências. As agências de intermediação são responsáveis pelo match entre surrogate e pais intencionais, não sendo essa intermediação sempre legalmente obrigatória (existem surrogates independentes), mas bastante comum, pois acredita-se que surrogates agenciadas passam por rigorosos critérios de seleção. Não existem dados oficiais sobre os valores cobrados por agências pela intermediação, mas estima-se que são em torno de 25 a 30 mil dólares nos Estados Unidos ( Alvarez; Fernandez, 2019ALVAREZ , Natalia ; FERNANDEZ , Sandra . Surrogacy Cost Breakdown: Agency and Gestational Carrier Fees . 2019 [ https://babygest.com/en/cost/ - acesso em: 30 nov. 2019 ].
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). Assim, a agência estipula um valor para o processo produtivo do bebê, ao mesmo tempo que estipula o valor do trabalho da surrogate . A diferença entre estes dois valores é a mais-valia. O lucro da agência é diretamente relacionado à atividade gestacional da surrogate .

Nesta lógica, agências exploram mais-valia, pois sabem que o processo produtivo do bebê possui um valor maior que aquele pago à surrogate por sua força laboral. Essa diferença de valor é a mais-valia e o lucro, que as agências reinvestem nelas mesmas, constituindo capital constante e ampliando ainda mais a atividade e a disponibilidade do produto-bebê aos pais intencionais, consumidores do valor de uso. As agências passam a controlar o capital variável necessário (quantia investida em trabalho) para produzir a mercadoria. Portanto, o ajuste do preço do trabalho gestacional prestado pelas surrogates , neste caso, não é pensado por elas mesmas.

A particularidade do processo produtivo da surrogate fica mais evidente quando comparado o trabalho desta com o trabalho reprodutivo clássico. Apesar da necessidade de se considerar o interesse estatal na produção de pessoas e, consequentemente, de força laboral, não existe exatamente um comprador da força laboral dessa trabalhadora reprodutiva clássica, bem como ela não é remunerada por sua atividade. Por mais que sua atividade deva ser reconhecida como trabalho, é inegável que o processo de trabalho é diferente do processo de trabalho da surrogate . Seu trabalho reprodutivo produz valor de uso, mas não valor de troca.

Russell (1994)RUSSELL , Kathryn . A Value-Theoretic Approach to Childbirth and Reproductive Engineering . Science & Society , v. 58 , n. 03 , 1994 , pp. 287 - 314 . , que analisou surrogacy como um processo produtivo há mais de 20 anos, acreditava que o trabalho gestacional de surrogates não havia se tornado completamente um processo produtivo, pois o processo de valorização é incompleto. Existem impasses, como a dificuldade em mensurar o valor de troca para produtos gestacionais, em especificar o tempo total de trabalho para produção – considerando que o tempo gestacional é variável – e também em comparar esse processo com outros processos de trabalho que ocorrem na economia capitalista.

Todavia, o principal problema de tratar a atividade gestacional como um processo produtivo ainda é moral. Passamos muito tempo refutando argumentos que dizem ser surrogacy venda de bebês para, depois, passar a tratar do processo de valorização do bebê como produto final – e, consequentemente, como mercadoria. Contudo, parece evidente que o pagamento está relacionado à venda da força laboral da surrogate . Os pais intencionais são compradores de sua capacidade de gestar, pagando pelo tempo necessário de produção, não pelo produto final.

A mesma analogia pode ser feita para tratar de médicos especializados em reprodução assistida: a compensação financeira destes está vinculada ao seu trabalho de fertilização in vitro , não ao bebê em si. Porém, enquanto surrogates são chamadas de vendedoras de bebês, médicos são glorificados como heróis, que auxiliam pais intencionais na formação de suas famílias. Além de uma questão moral, a polêmica compensação financeira de surrogates é também uma questão de gênero. Lewis (2019)LEWIS , Sophie . Full Surrogacy Now: Feminism Against Family . Londres , Verso , 2019 . salienta que pode ser uma melhor estratégia concordar com os argumentos de que o bebê é uma mercadoria. Ele é visto como “propriedade” dos pais intencionais, ele é o produto de um processo gestacional e é, muitas vezes, objetificado por surrogates como estratégia de distanciamento emocional. Assim, compreender que há sim um grau de objetificação pode ser útil para os debates sobre os conflitos morais de surrogacy .

Há ainda que considerar a diferença entre o processo de valorização na gestação de surrogacy de uma mãe que vende seu próprio filho. Em um trabalho reprodutivo clássico, o produto resultado do processo de trabalho possui valor de uso. Sem moralizar a decisão de uma mãe de vender seu filho, este é um produto produzido para uso que acidentalmente se tornou uma mercadoria. Não foi produzido especificamente para se tornar mercadoria. A força laboral dessa mãe, sua capacidade de gestar, não foi vendida para um comprador específico como ocorre em surrogacy , sendo assim o pagamento referente exclusivamente ao bebê, não ao trabalho gestacional. Em surrogacy , como já analisado, surrogates produzem especificamente para troca. Não é acidental, mas planejada, uma atividade produtiva com um determinado fim.

Ainda, podemos discutir se a atividade laboral das surrogates se assemelharia com a prestação de serviços, considerando assim a mera prestação de serviços gestacionais. Quando o dinheiro é trocado diretamente por trabalho, “compra-se o trabalho como serviço, o que de modo geral não passa de uma expressão para o valor de uso especial que o trabalho proporciona como qualquer outra mercadoria” (Marx, 2011a:398). Porém, há de se considerar que a atividade gestacional não é um fim em si, pois o objetivo é a produção de um produto final (bebê). Essa atividade pode ser comparada com outros sujeitos engajados na prática de trazer uma criança ao mundo, como médicos – especialistas em reprodução assistida, obstetras, etc. – e advogados responsáveis pelos trâmites legais. Suas atividades são um fim em si mesmo, por isso são prestadores de serviços. Caso a surrogate sofra um aborto espontâneo, não há qualquer perda de valor para estes prestadores. O médico, por exemplo, receberá a mesma compensação financeira pela fertilização in vitro , mesmo que infrutífera e, se frutífera, mesmo que o feto não venha a nascer com vida. Por outro lado, a surrogate terá redução significativa de sua remuneração caso o feto não venha a nascer com vida.

A análise de surrogacy como um trabalho produtivo é de extrema importância, pois precisamos discutir como essas mulheres são alienadas do produto de seu trabalho, como devem ser remuneradas por suas extensas jornadas de trabalho e, principalmente, como a moralidade e o estigma afetam apenas o seu trabalho gestacional, não o trabalho de médicos, clínicas, agências e advogados envolvidos na prática. Contudo, pensar no trabalho da surrogate apenas como uma forma de trabalho produtivo não contempla toda sua hibridade e corre o risco de categorizá-la, de forma fechada, em um dos lados do binarismo “amor X dinheiro”. Ainda, esse modelo sozinho desconsidera a existência de um perfil idealizado de sacrifício, doação, generosidade e honra no qual muitas surrogates tentam se encaixar. Apresentarei possíveis combinações desse modelo com o modelo de trabalho relacional de Zelizer (2011)ZELIZER , Viviana . A Negociação da Intimidade . Petrópolis , Vozes , 2011 . , destacando que esta é apenas uma possível categorização híbrida entre outras que podem existir para definir a prática de surrogacy.

Mercado e intimidade: transitando entre mundos hostis

Entre concepções dualistas, surrogacy envolve relações de mercado (discutem cláusulas contratuais, negociam remunerações extras, recebem pagamento), mas também relações de intimidade (criam laços de afeto com os pais intencionais, em diferentes graus). Surrogates se esforçam para demarcarem as fronteiras entre esses dois tipos de relação, que são também duas definições morais de surrogacy que competem entre si ( Berend, 2016BEREND , Zsuzsa . The Online World of Surrogacy . New York , Berghahn , 2016 . Ebook Kindle . ). Essas negociações entre os campos morais são melhor compreendidas por meio do conceito de “trabalho relacional” de Zelizer (2011)ZELIZER , Viviana . A Negociação da Intimidade . Petrópolis , Vozes , 2011 . , que estabelece boas combinações entre transações econômicas e afetivas.

Há um esforço considerável para negociar significados e limites em relações que envolvam intimidade e transações financeiras. A associação híbrida entre mercado e intimidade – chamados por Zelizer de “mundos hostis” – está conectada não apenas ao estigma da compensação financeira, mas ao medo de que esses mundos hostis não deveriam se misturar ( Majumdar, 2018MAJUMDAR , Anindita . Conceptualizing Surrogacy as Work-Labour: Domestic Labour in Commercial Gestational Surrogacy in India . Journal of South Asian Development , 13 ( 2 ), 2018 , pp. 1 - 18 . ). Por essa razão, o uso do já citado “véu da caridade” como uma fachada é compreensível. O véu se torna um instrumento que demarca as fronteiras entre os dois mundos, como um verdadeiro manto que oculta as relações de mercado na representação idealizada das surrogates .

Algumas surrogates buscam um equilíbrio entre os dois mundos, destacando a forte conexão criada com os pais intencionais, ao mesmo tempo que definem suas atividades gestacionais como trabalho e negociam cláusulas contratuais. Outras buscam uma relação mais racional, limitando o grau de intimidade na relação com pais intencionais. Por fim, há surrogates que focam mais na relação afetiva construída com os pais intencionais e ocultam as relações contratuais, perfil esse mais compatível com a moral ideal que se espera de uma surrogate .

O trabalho relacional de surrogates envolve um balanço entre altruísmo e autoproteção, entre dar e receber. Porém, na representação idealizada de seu papel, há uma linha tênue entre altruísmo e exploração: Berend (2016)BEREND , Zsuzsa . The Online World of Surrogacy . New York , Berghahn , 2016 . Ebook Kindle . traz relatos negativos de surrogates que precisaram de repouso absoluto durante a gestação, necessitando de auxílio para tarefas domésticas e cuidado com os filhos, valores extras não incluídos em seus contratos. O repouso prolongado levou uma surrogate a perder o emprego, sem ter em seu contrato cláusula que a compensasse por isso. Na metáfora do véu, o uso deste se torna consideravelmente preocupante quando a surrogate deixa de enxergar por completo um dos mundos hostis: sem proteção contratual, o altruísmo pode facilmente virar exploração.

As fronteiras entre esses dois mundos são particularmente difíceis em trabalhos de cuidado pagos ( Zelizer, 2011ZELIZER , Viviana . A Negociação da Intimidade . Petrópolis , Vozes , 2011 . ), categoria na qual surrogacy pode se encaixar. O cuidado pode ser definido como trabalho que abrange um conjunto de atividades materiais e de relações que consistem em oferecer uma resposta concreta às necessidades dos outros ( Kergoat, 2016KERGOAT , Danièle . O Cuidado e a imbricação das relações sociais . In: ABREU , Alice Rangel de Paiva ; HIRATA , Helena ; LOMBARDI , Maria Rosa . Gênero e Trabalho no Brasil e na França: Perspectivas Interseccionais . São Paulo , Boitempo , 2016 , n.p. ). Há um gênero no cuidado, seja ele terceirizado ou em âmbito familiar, sendo as mulheres as principais responsáveis por esse tipo de atividade. Em uma sociedade capitalista na qual o valor do trabalho é demonstrado monetariamente, um trabalho considerado feminino raramente é tratado como produção ativa, sendo o trabalho de cuidado visto como uma forma de alívio ao sofrimento humano, seja esse sofrimento de um idoso doente ou de um casal com dificuldades reprodutivas.

Lewis (2017)LEWIS , Sophie . Cyborg Labour: Exploring Surrogacy as Gestational Work . Tese (Doutorado em Geografia) , University of Manchester , Manchester , 2017 . enquadra a prática de surrogacy como uma forma de produção de cuidado justamente para tencionar essa categoria, na qual as mulheres são as principais trabalhadoras e suas atividades são constantemente definidas como “vocação” e “auxílio”, o que justifica suas precárias remunerações. Porém, a compreensão de trabalho de cuidado produtivo não contempla todas as peculiaridades da prática sem o auxílio do conceito de trabalho relacional de Zelizer (2011)ZELIZER , Viviana . A Negociação da Intimidade . Petrópolis , Vozes , 2011 . . Esta faz uma leitura da inserção do dinheiro na vida cotidiana sob um viés relacional que atenta as interações sociais e trocas econômicas, principalmente, sendo necessário atribuir equivalência monetária, nos casos moralmente difíceis de se definir valor de troca – como nos que envolvem um bebê.

A “tensão entre o econômico e aspectos supostamente inalienáveis e inegociáveis da vida e das relações humanas” (Freire, 2014:266) colidem com os códigos de moralidade e vão de encontro com as razões de surrogacy incomodar tanto: há um apagamento de fronteiras entre os mundos hostis de mercado e intimidade, pois a surrogate realiza uma atividade gestacional (considerada sagrada) em troca de compensação financeira (considerada profana), tendo ainda como produto desse processo um bebê. Não é à toa que muitas surrogates buscam a moral ideal – focando nas relações de afeto que criam com pais intencionais – enquanto ocultam as relações de mercado da prática por meio do uso do véu da caridade. Contudo, como já analisado, o uso do véu pode se tornar perigoso quando a surrogate deixa de enxergar um dos mundos hostis e resta contratualmente desprotegida, dando margem à exploração de agências e pais intencionais, bem como sujeita a complicações arriscadas para si e sua família, como perda de emprego em decorrência de repouso prolongado não remunerado.

É por essa razão que a noção de trabalho precisa estar presente, partindo de uma construção de trabalho produtivo demasiadamente fechada para uma construção de trabalho produtivo relacional – um trabalho ciborgue – que tenciona uma visão de mundo dualista entre economia e relações íntimas. Mesmo essa construção bastante híbrida não é capaz de contemplar as experiências de todas as surrogates , mas considera a constante negociação de limites e demarcações fronteiriças que estas fazem entre os mundos hostis.

Algumas negociam mais seus limites, vivendo entre os dois mundos, mas apresentando leve preferência por um: essa pode ser uma surrogate remunerada que tenha como principal motivação a criação de laços com os pais intencionais; outra pode ter uma motivação mais financeira, criando laços com os pais intencionais, embora imponha limites nesta relação. Outras aceitam o apagamento de fronteiras entre os dois mundos, vivenciando confortavelmente tanto as relações de mercado quanto as relações de intimidade durante suas jornadas. Nenhum posicionamento é moralmente superior ao outro, e todos esses podem ser contemplados em um modelo de trabalho ciborgue (produtivo e relacional).

Surrogates são ciborgues que vivem entre dois mundos hostis enquanto tentam negociar limites e demarcações fronteiriças entre eles. A experiência de cada surrogate é única, e elas ainda convivem com o perfil idealizado de quem uma surrogate deve ser (sacrifício, doação, generosidade e honra), este reforçado pela sociedade, por suas agências e até mesmo pelas próprias surrogates como grupo. Espera-se dela vocação para sua atividade, amor pelo que faz, mas distanciamento o bastante para não se apegar ao bebê. Alienada do produto do seu trabalho, ela suporta todos os riscos de sua atividade laboral pouco valorizada, trabalhando 24 horas por dia, 7 dias por semana, até o processo gestacional ser finalizado. Ainda assim – diferentemente do que muitas feministas abolicionistas da prática pregam –, elas não querem ser salvas e resgatadas por legislações paternalistas.

Surrogates -ciborgue nos ensinam que suas atividades gestacionais são difíceis de definir e enquadrar, o que as tornam ainda mais interessantes. Em um mundo em que fronteiras fazem cada vez menos sentido, essas trabalhadoras parecem não se importar com toda a polêmica na qual estão inseridas. Questionadas por conservadores e feministas, essas mulheres não querem ser vítimas nem vilãs para nenhum deles. São trabalhadoras que transitam entre categorias de reprodução e produção, natureza e artificialidade, mercado e intimidade. Sagradas para alguns, profanas para outros. Como nos ensinou Haraway (2016)HARAWAY , Donna J. A Cyborg Manifesto: Science, Technology and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century . In: HARAWAY , Donna J. Manifestly Haraway . Minneapolis , University of Minnesota Press , 2016 , pp. 03 - 90 . , entre humanas e máquinas, realidade e ficção, o ciborgue é sobre o poder de sobreviver – um caminho para sair do labirinto de dualismos –, agarrando suas ferramentas para marcar o mundo, o mesmo mundo que as marcou como diferentes.

Conclusão

A surrogate -ciborgue é uma trabalhadora que apaga fronteiras sem escolher um lado entre os dualismos de corpo e máquina, natureza e artificialidade, trabalho e não trabalho. Exercendo uma atividade muitas vezes ligada a conceitos como “amor”, “vocação” e “caridade”, são mulheres que têm seus corpos controlados por médicos, clínicas e pais intencionais, ao mesmo tempo que também reivindicam controle de seus corpos e emoções, separando corpos artificiais de corpos naturais. Constantemente enquadradas em um dos lados do binarismo “amor X dinheiro”, surrogates são definidas ora como vítimas – praticando uma atividade degradante por desespero financeiro –, ora como santas, se não remuneradas por suas atividades gestacionais.

Há um forte estigma de sua compensação financeira, debate que conta com muitas lições oriundas da literatura do trabalho sexual, entre eles a dicotomia das figuras de “mulher-santa” e “mulher-promíscua”, entre sagrado e profano. Contudo, a dicotomia acaba por gerar políticas abolicionistas – tanto do trabalho sexual quanto de surrogacy –, ignorando a necessária discussão de direitos trabalhistas para essas profissionais, marginalizando cada vez mais seus trabalhos enquanto segue remunerando os demais agentes envolvidos na prática, punindo apenas as mulheres trabalhadoras.

O estigma faz também com que mulheres remuneradas tentem se encaixar no perfil idealizado de surrogate altruísta, que contempla os conceitos de sacrifício, doação, generosidade e honra. A moral idealizada é cobrada principalmente pelas surrogates como um grupo, que tentam constantemente manter a representação idealizada de seu papel. Para tanto, contam com o uso de fachada – que chamo de “véu da caridade” –, que tenta invisibilizar certos elementos da atividade gestacional enquanto reforça elementos condizentes com a moral ideal.

A análise do processo gestacional de surrogates como trabalho produtivo auxilia na diferenciação da prática do trabalho reprodutivo clássico, de mulheres que gestam seus próprios filhos. Essa diferenciação demonstra como a surrogate vende sua força laboral, passa por uma extensa jornada de trabalho – na qual comporta todos os riscos – e, no final, é alienada do produto de seu trabalho. Sua atividade gestacional efetivamente possui elementos condizentes com trabalho produtivo, considerando ainda que não é uma mera prestadora de serviços, pois sua atividade gestacional não é um fim em si mesmo, tendo como objetivo a produção de um produto final, que é o bebê.

Contudo, o modelo de trabalho produtivo sozinho não comporta a hibridade da surrogate , ao mesmo tempo que desconsidera a existência de um perfil idealizado no qual muitas surrogates tentam se encaixar. Uma categorização híbrida é possível por meio do conceito de trabalho relacional, no qual se negocia significados e limites em relações que envolvam intimidade e transações financeiras. Neste contexto, o uso do “véu da caridade” como fachada faz ainda mais sentido, pois há um desejo de ocultar as relações de mercado e destacar as relações de intimidade na representação idealizada das surrogates . O modelo híbrido de trabalho relacional produtivo é chamado de trabalho ciborgue, apresentando este como um modelo que contempla uma variedade de experiências diferentes de surrogates, ou seja, diferentes graus de negociação de limites entre os dois mundos hostis. Sejam surrogates as que dão mais destaque às relações de intimidade, às relações de mercado ou as que aceitam o apagamento de fronteiras entre os dois mundos, esse modelo não considera nenhum posicionamento moralmente superior. Enquanto figuras tão complexas, surrogates não são vítimas nem vilãs, nem sagradas e nem profanas, apenas trabalhadoras.

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  • ZELIZER , Viviana . A Negociação da Intimidade . Petrópolis , Vozes , 2011 .
  • 1
    Técnica de fecundação extracorpórea na qual o óvulo e o espermatozoide são previamente retirados de seus doadores e unidos em um meio de cultura artificial em vidro especial ( Frazão, 2000FRAZÃO , Alexandre Gonçalves . A Fertilização In Vitro: uma nova problemática jurídica . Revista Navigandi ano 4 , n. 42 , Teresina, PI , 2000 .: 3).
  • 2
    Os detentores do projeto parental, ou seja, aquelas pessoas que efetivamente desejam criar esse bebê, são chamados de pais intencionais. É comum ouvir o termo “pais genéticos”, porém nem sempre os pais intencionais são pais genéticos, podendo haver o envolvimento de doadores de gametas. Assim, utilizo o termo genérico “pais intencionais” (que engloba “mãe intencional” e “pai intencional”).
  • 3
    Existem dois tipos de surrogacy: tradicional e gestacional. A tradicional ocorre quando a surrogate utiliza o próprio óvulo para a fecundação, ou seja, ela possuirá vínculo genético com o embrião. A gestacional ocorre quando a surrogate recebe um embrião já fecundado com gametas de terceiros, não possuindo assim vínculo genético com o mesmo, apenas atuando efetivamente como gestante. Em decorrência das possíveis implicações psicológicas de a surrogate possuir vínculo genético com o embrião que gesta, a prática já não é mais tão comum, sendo que a maioria das clínicas de fertilização optam por trabalhar apenas com surrogacy gestacional ( Trimmings; Beaumont, 2013TRIMMINGS , Katarina ; BEAUMONT , Paul . General Report on Surrogacy . In: TRIMMINGS , Katarina ; BEAUMONT , Paul . International Surrogacy Arrangements: Legal Regulation at the International Level . Oxford , Hart Publishing , 2013 , pp. 439 - 550 . ). Para o presente trabalho, o termo surrogacy será utilizado como sinônimo de surrogacy gestacional.
  • 4
    Shahar, thirty-two, who was already a mother of five when she gave birth to twins for her couple. While narrating her experience, Shahar applied another seemingly dehumanizing metaphor: I am only carrying the babies, I don’t have any part in the issue…I mean, I gave them life, because without me they would not have life. Because the intended mother couldn’t carry them. Only someone with a womb, a good womb, could hold the children for her. So, I am the one…I just held them in my belly, like an incubator. I was the incubator for nine months! And the second that they were born, I finished the job and that was it”.
  • 5
    O protocolo de medicamentos tem início geralmente cinco semanas antes da transferência do embrião e pode durar até 16 semanas após esta. Entre os medicamentos que podem ser utilizados, estão doxiciclina (antibiótico utilizado no início do processo para tratar possíveis infecções pélvicas leves); lupron (hormônio que impede a ovulação da surrogate , dando ao médico controle de seu ciclo); estrogênio (hormônio para engrossar a parede uterina e auxiliar posteriormente na implantação do embrião); progesterona (hormônio que segue a preparação do útero para o embrião após o uso do estrogênio); aspirina (para aumentar as chances de implantação); tetraciclina (antibiótico usado após a transferência do embrião para evitar rejeição); medrol (esteroide que suprime o sistema autoimune e aumenta as chances de uma implantação bem sucedida) e vitaminas pré-natais. O protocolo engloba medicamentos orais, injetáveis e supositórios. Fonte: Surrogate.com [ https://surrogate.com/surrogates/pregnancy-and-health/list-of-medications-involved-in-surrogacy/ - acesso em: 25 out. 2020].
  • 6
    A parentalidade em surrogacy não será debatida no presente artigo, pois geralmente está mais relacionada a debates sobre pais intencionais. Contudo, algumas diferenciações são necessárias. Surrogates israelenses demonstram uma abordagem bastante naturalista de maternidade, geralmente ressaltando a natureza do embrião e sua conexão genética com a mãe intencional. No modelo israelense de surrogacy, a questão religiosa tem extrema importância: tanto pais intencionais quanto a surrogate necessitam ser israelenses e judeus. Logo, é também uma questão étnica e de fortalecimento da identidade nacional, somado à importância da figura da “mãe judia” na cultura do país ( Graziuso, 2018GRAZIUSO , Bruna . Úteros e fronteiras: gestação de substituição no Brasil e nos Estados Unidos: um estudo comparado . Florianópolis , Tirant Lo Blanch , 2018 . ). Por outro lado, surrogates estadunidenses encaram a intenção (Strathern, 2014), não a genética, como base da parentalidade de pais intencionais. Contudo, é possível perceber que surrogates , de uma forma geral, conectam suas próprias experiências maternas aos seus corpos naturais. Essa abordagem não me parece uma negação à ideia de maternidade como socialmente construída, mas sim uma mera estratégia de proteção de seu self , uma barreira emocional que ajuda na desconexão com o feto e na afirmação de que não são mães dos bebês que gestam.
  • 7
    Atualmente, a prática comercial é permitida na Ucrânia, Rússia (apenas para casais heterossexuais), Colômbia, Georgia e em alguns estados dos Estados Unidos. Ao longo dos últimos anos, alguns países permissivos baniram a prática, como Tailândia, Índia e México ( Graziuso, 2018GRAZIUSO , Bruna . Úteros e fronteiras: gestação de substituição no Brasil e nos Estados Unidos: um estudo comparado . Florianópolis , Tirant Lo Blanch , 2018 . ).
  • 8
    Importante ressaltar que não considero surrogacy altruísta e surrogacy comercial como opostos, definindo assim que surrogates remuneradas não possuem motivações também altruístas. Contudo, essas são as nomenclaturas oficialmente utilizadas para diferenciar as práticas nas quais surrogates são remuneradas daquelas em que não são remuneradas, razão pela qual são reproduzidas no presente trabalho.
  • 9
    Campanha Internacional de Salários por Trabalho Doméstico (tradução nossa).
  • 10
    Um pânico moral ocorre quando uma condição, episódio, pessoa ou grupo de pessoas surge e acaba sendo definido como uma ameaça aos valores e interesses sociais ( Cohen, 2002COHEN , Stanley . Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and Rockers . New York , Routledge , 2002 . ), como é o caso de surrogacy . A consolidação do argumento que surrogacy é “venda de bebês” em Nova York na década de 1990 – que deu origem a uma legislação proibitiva da prática em 1992 – teve forte relação com pânico moral, gerado por disseminação de notícias falsas ( fake news ) com o apoio da imprensa local, com destaque para a capa do jornal The New York Times em 1988 com o título “É venda de bebês e é errado” (The New York Times, 1988). Notícias falsas foram usadas para causar tumulto, reforçando uma notícia constantemente reproduzida na época, porém jamais comprovada, de que Nova York havia se tornado “a capital de surrogacy da nação”, e estimava-se que “40% de todos os contratos comerciais do país são celebrados em Nova York”. As fontes desses supostos dados jamais foram informadas ( Graziuso, 2018GRAZIUSO , Bruna . Úteros e fronteiras: gestação de substituição no Brasil e nos Estados Unidos: um estudo comparado . Florianópolis , Tirant Lo Blanch , 2018 . ).
  • 11
    Stop Surrogacy Now é a organização internacional abolicionista mais conhecida, que enquadra a prática de surrogacy comercial como exploração de mulheres pobres e venda de bebês. Fonte: Stop Surrogacy Now [ https://www.stopsurrogacynow.com/ - acesso em: 27 nov. 2019].
  • 12
    Necessário tirar o peso da metáfora teatral de Goffman, muitas vezes encarada de forma excessivamente literal e não metafórica, como se surrogates representassem um falso papel. Dizer que existe um perfil idealizado não significa que este é falso, muito pelo contrário: “quando dizemos pejorativamente que uma pessoa fez uma ‘verdadeira atuação teatral’, podemos estar insinuando que ela mostrou mais que o cuidado habitual e empregou mais do que a intenção e continuidade habituais na apresentação daquilo que ostensivamente não é, de forma alguma, uma atuação. Seja como for, requer-se aqui alguma ajuda terminológica para aliviar o fardo que a palavra ‘atuação teatral’ carrega” ( Goffman, 2012GOFFMAN , Erving . Quadros da experiência social: uma perspectiva de análise . Petrópolis , Vozes , 2012 .: 168).
  • 13
    Ao apresentar o conceito de “fachada”, Goffman (1996)GOFFMAN , Erving . A Representação do Eu na vida cotidiana . 7ª ed. Petrópolis , Vozes , 1996 . cita como exemplo os médicos que ocultam seus erros – para criar uma fachada ideal de infalibilidade – e donos de estabelecimentos comerciais que, em épocas de racionamento, ocultam seus sacrifícios para manter uma fachada de normalidade e assim não perderem seus clientes. Dessa forma, além de ocultar as relações contratuais, surrogates podem fazer uso da fachada para ocultar sentimentos que julgam ser incompatíveis com o seu perfil idealizado: podem sentir raiva dos pais intencionais em alguma ocasião, arrependimento, apego e saudade do bebê após o parto, etc.
  • 14
    Em entrevista concedida para o jornal El Pais em setembro de 2019, ao ser questionada sobre surrogacy , Silvia Federici respondeu: “É uma abominação. Não se vende somente um útero, vende-se também um bebê. Não se pode vender outra pessoa. A gestação sub-rogada (sic) é produzir uma pessoa somente para vendê-la, sem responsabilizar-se por ela. Nos Estados Unidos há um mercado subterrâneo não regrado de famílias que têm bebês sub-rogados que nascem com malformações, o produto não é perfeito, ou não é do sexo desejado, e os fazem circular pela Internet” ( Moraleda, 2019MORALEDA , Alba . Silvia Federici: “O Feminismo Não é uma Escada para a Mulher Melhorar sua Posição” , El País , 2019 [ https://headtopics.com/br/silvia-federici-o-feminismo-n-o-e-uma-escada-para-a-mulher-melhorar-sua-posic-o-8551208 - acesso em: 25 set. 2019 ].
    https://headtopics.com/br/silvia-federic...
    ). Federici traz informações alarmantes sobre a prática, mas não cita fontes que comprovem sua veracidade. Em seu novo livro “Beyond the Periphery of the Skin” , Federici define a surrogate como mãe biológica e traz novas afirmações sem apresentar fontes, como ao declarar que “há evidências que algumas crianças nascidas por surrogacy são canalizadas ao mercado de órgãos” ( Federici, 2019FEDERICI , Silvia . Beyond the Periphery of the Skin: Rethinking, Remaking and Reclaiming the Body in Contemporary Capitalism . New York , PM Press , 2019 . , n.p., tradução nossa) [“there is evidence that some surrogate children are channeled to the organs market”].
  • 15
    Federici (2012)FEDERICI , Silvia . Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction and Feminist Struggle . New York , PM Press , 2012 . salienta que, em um momento inicial, “trabalho reprodutivo” era o termo empregado para todo tipo de trabalho doméstico, exercido dentro do núcleo familiar. Contudo, no presente artigo, utilizarei o termo “trabalho reprodutivo” para tratar apenas da atividade gestacional de uma mulher que gesta seu filho, diferenciando essa atividade do trabalho gestacional de surrogates .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    05 Maio 2020
  • Aceito
    17 Maio 2021
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