Open-access “Travesti”, “mulher transexual”, “homem trans” e “não binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas

Travesti”, “Transsexual Woman”, “Trans Man” and “Non Binary”: Generation and Class Intersectionalities in The Production of Political Identities

Resumo

Este artigo aborda a construção de identidades políticas no movimento de travestis, mulheres transexuais e homens trans ao longo da última década no Brasil. Reúno diferentes materiais etnográficos a fim de localizar as transformações em tais construções, principalmente em relação ao modo como os marcadores sociais de classe e geração aparecem na polarização entre uma “fixidez” e uma “fluidez” de gênero no campo político. O material utilizado nesta análise é composto por observações de encontros ativistas, entrevistas com lideranças do movimento e observações do ativismo na internet. Organizo a análise a partir de situações de conflito, nas quais dois encontros são de especial interesse: o XVI Encontro Nacional de Travestis e Transexuais (2009) e o I Encontro Nacional de Homens Trans (2015), momentos marcados pela disputa em torno das categorias identitárias em questão.

Movimento Social; Identidade; Gênero; Classe Social; Geração

Abstract

This article is based on an ethnographic analysis of the construction of political identities in the movement of travestis, transsexual women and trans men, or simply trans movement, over the last decade in Brazil. My efforts go towards bringing together different ethnographic materials in order to highlight the changes in such processes, especially in relation to how class and generation social markers appear in the polarization between a gender “fixity” and “fluidity” claimed in identity conformations in the political arena. The material used in this analysis is basically composed by observations of activists meetings, interviews with leaders of the movement and observations of activism on the Internet. The starting points of the analysis are conflict situations in the social movement. In this regard, two meetings are of particular interest. The first is the XVI National Meeting of Travestis and Transsexuals (2009), when there was an intense debate to formalize a “political definition” of the categories “travesty” and “transsexual” from the social movement. The second is the First National Meeting of Trans Men (2015), when activists held a long debate on the “political identity” of the movement. In this case, the disagreement arose when a group of young people expressed that the category “trans man” did not encompass their gender experience, since they recognized themselves as “non-binary”.

Social Movement; Identity; Gender; Social Class; Generation

Introdução

Acho que sou um Pokémon.1 Quando era novinha me chamavam de viado, depois virei uma bichinha pintosa, depois travesti. Agora, para chegar ao topo da evolução tenho que virar transexual.

Essa frase foi dita por uma travesti no contexto do debate sobre a diferenciação entre travestis e transexuais no XII Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros (EBGLT) realizado de 8 a 11 de novembro de 2005, em Brasília-DF, momento que também marcava o surgimento do Coletivo Nacional de Transexuais (CNT). A situação satirizada nessa fala me colocou a questão de como, nas diferentes trajetórias de pessoas que vivem e manifestam socialmente uma ruptura da matriz heterossexual, surgem as identidades políticas travesti e transexual.

Este artigo é baseado no material de campo produzido ao longo de minhas investigações de mestrado e doutorado.2 Trata-se de uma análise etnográfica da construção de identidades políticas no movimento de travestis, mulheres transexuais e homens trans, ou simplesmente movimento trans3, ao longo da última década, no Brasil. Meu esforço vai no sentido de reunir diferentes materiais etnográficos a fim de localizar as transformações em tais construções, principalmente em relação ao modo como os marcadores sociais de classe e geração aparecem na polarização entre uma “fixidez” e uma “fluidez” de gênero reivindicadas nas conformações identitárias no campo político. O material utilizado nesta análise é composto basicamente por observações de encontros ativistas, entrevistas com lideranças do movimento4 e observações do ativismo na internet.

Opto por organizar a análise a partir de situações de conflito internas ao movimento. Nesse sentido, dois encontros são de especial interesse. O primeiro é o XVI Encontro Nacional de Travestis e Transexuais (ENTLAIDS), realizado em dezembro de 2009 no Rio de Janeiro, quando houve um intenso debate para a formalização de uma “definição política” das categorias “travesti” e “transexual” a partir do movimento social. O segundo é o I Encontro Nacional de Homens Trans (ENAHT), realizado em março de 2015 em São Paulo, quando os ativistas presentes realizaram um longo debate sobre a “identidade política” do movimento. Nesse caso, a discordância surgiu quando um grupo de jovens expressou que a categoria “homem trans” não os abarcava, pois se reconheciam como “não binários”.

Outros debates e conflitos poderiam ser escolhidos, como o longo processo de mudança na concordância de gênero em relação à categoria “travesti” (deixando de ser “o travesti” para ser “a travesti”); a divulgação e a oposição ao uso da categoria “transgênero”; o surgimento das primeiras pré-organizações políticas de homens trans fazendo uso da categoria médica “FTM” (Female to Male Transsexual); ou ainda, os debates em torno do uso da categoria “transhomem”.5 Entretanto, as distinções entre “travesti”/“mulher transexual” e “homem trans”/“não binário”, centrais nos encontros citados, possibilitam uma comparação na forma como os marcadores sociais de classe e geração operam diferentes valores e significados numa polarização entre uma suposta maior “fluidez” ou “fixidez” de gênero atribuída às diferentes conformações identitárias.

A existência de um campo de possibilidades identitárias está inserida numa complexa rede de saberes e poderes. Logo, a emergência de uma categoria não é aleatória ou inocente, assim como as escolhas ou autoidentificações com determinada categoria não são plenamente livres. Nas sessões seguintes, apresento cada um dos conflitos em torno das identidades políticas dentro de seus respectivos contextos históricos e políticos.

1. “Travesti” X “Mulher Transexual”

A necessidade política de uma definição das categorias “travesti” e “mulher transexual” no XVI ENTLAIDS estava inserida tanto num processo de rupturas políticas dentro do movimento, como também na crescente demanda de representação em novos canais de interação sócio-estatal envolvidos diretamente com a elaboração de políticas públicas para essa população.6

Na segunda metade da década de 1990, três situações marcam a entrada da categoria “transexual” e “trans” no vocabulário militante. A primeira delas é o surgimento do Movimento Transexual de Campinas (MTC), a partir de pacientes do Hospital de Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (HC-Unicamp); um grupo com forte inclinação “pedagógica” no que diz respeito à transexualidade, por meio do recurso a literaturas oriundas da psicanálise e da sexologia (processo facilitado pelo maior capital cultural e escolaridade dessas ativistas em relação ao movimento de travestis hegemônico na época). Nesse processo, um novo termo, também importado da sexologia, é incorporado ao vocabulário militante, ao lado do conceito de orientação sexual: a identidade de gênero. A segunda situação foi o intercâmbio com ativistas estrangeiras que sugeriam fortemente a utilização de categorias internacionais como “transexual” e “trans”.7 Por fim, nesse período, inicia-se uma popularização do vocabulário médico-psiquiátrico e a disponibilização de tecnologias de “mudança de sexo” nos serviços públicos de saúde, uma vez que, em 1997, as cirurgias de transgenitalização deixam de ser consideradas crime de mutilação e passam a ser realizadas em caráter experimental em alguns hospitais universitários do país, segundo a Resolução 1482/97 do Conselho Federal de Medicina (CFM).

No final de 2005, é fundado o Coletivo Nacional de Transexuais (CNT)8, que teve papel central na construção da política do processo transexualizador no âmbito do Sistema Único de Saúde.9 Houve, nos anos seguintes, um afastamento progressivo de muitas das ativistas do CNT dos espaços do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) para uma aproximação de espaços institucionais de políticas para mulheres, como no caso da participação de muitas ativistas na elaboração do “Plano de Enfrentamento da Feminização da Aids e outras DSTs”, assim como de espaços de militâncias feministas.10 Tal afastamento foi alvo de críticas e acusações de divisionismo do movimento. A metáfora de que após a cirurgia “elas atravessam o arco-íris, pegam o pote de ouro e vão embora” foi repetidas vezes utilizada por ativistas travestis como acusação da falta de compromisso político daquelas que se identificavam como transexuais.11

Nesse processo, surge a expressão “mulheres que vivenciam a transexualidade”12, que chegou a ser utilizada pelo então Ministro da Saúde José Gomes Temporão, na abertura da I Conferência Nacional GLBT em 2008. O debate acerca da inexistência de uma identidade transexual e a afirmação de uma identidade feminina levou, em 2008, à transformação do coletivo numa outra rede, a ARACÊ13 – Rede Social em Direitos Humanos, Feminismos e Transexualidade, que não existe mais.

A transposição de distinções entre identidades coletivas politicamente articuladas para categorias burocráticas de sujeitos dentro do aparelho de Estado não é irrelevante. Um dos efeitos desse processo pode ser visto nas campanhas realizadas pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA, fundada em 2000, é a principal organização do movimento em nível nacional) em parceria com o Departamento de DST, AIDS e Hepatites Virais do Ministério da Saúde.14 Apesar de ser mais comum a referência ao dia 29 de janeiro como “Dia da Visibilidade Trans”, tais campanhas trazem a expressão “Dia da Visibilidade das Travestis”. Isso se deu devido à verba destinada às travestis figurar sob a rubrica destinada à categoria “gays, travestis e outros HSH” nas políticas de enfrentamento à epidemia do HIV/AIDS, ao passo que a categoria “mulher transexual” já estava alocada no “Plano de Enfrentamento da Feminização da AIDS e outras DSTs”, cuja verba era significativamente inferior.

Essa separação também teve efeito sobre alguns canais de interação sócio-estatal, principalmente sobre os conselhos de políticas públicas para LGBT. Tais conselhos são, em sua maioria, compostos por representantes escolhidos a partir das diferentes categorias identitárias reconhecidas dentro do movimento LGBT. Assim, com a oficialização de uma nova categoria, “mulher transexual” ou “transexual”, um novo assento é criado na maioria deles. O que pode ser percebido como um processo de adaptação do Estado a uma demanda de um movimento social acaba se configurando como um processo reflexivo. Como bem aponta Silvia Aguião (2014), ao mesmo tempo que uma identidade coletiva encontra espaço de reconhecimento na burocracia estatal, esta mesma burocracia propulsiona a formação e a organização dessa identidade coletiva.

A partir do afastamento, e posterior dissolução do CNT, uma parte dessas ativistas estreita laços com a ANTRA. É, então, no sentido de aparar as arestas do conflito e de ocupar os espaços de interação sócio-estatal destinados à população trans (principalmente aqueles relacionados ao Processo Transexualizador do SUS e às políticas de enfrentamento à epidemia do HIV/AIDS) que acontece o XVI ENTLAIDS.

Nesse encontro, a ativista Fernanda Moraes15, que se identifica como mulher transexual, fez uma exposição impressionante sobre a história das definições da transexualidade a partir da sexologia e da psiquiatria, demonstrando um grande domínio dos termos. Em sua exposição, houve um grande destaque para a escala de transexualidade de Harry Benjamim16, o que despertou grande interesse da plateia. Ao final do debate, era possível ouvir algumas pessoas utilizando categorias dessa escala para se identificarem, ora num tom mais satírico, ora numa atitude de reflexão e compreensão de si a partir daquele vocabulário. Fernanda foi procurada por algumas participantes que queriam saber mais sobre a cirurgia e o processo transexualizador. Uma delas chegou a perguntar quem poderia dizer se ela é uma transexual, mesmo não querendo fazer a cirurgia, e se ela deveria procurar um psicólogo para ter certeza. Coincidentemente ou não, essas eram garotas mais novas que portavam seus notebooks com adesivos brilhosos das princesas da Disney® e roupas que, pelo menos aparentemente, demonstravam um poder aquisitivo maior.

A essa cena, somo as declarações de uma interlocutora travesti que sinaliza uma distinção entre travestis e transexuais na forma como as famílias enquadravam a dissidência de gênero em crianças e adolescentes. Na percepção dela, dois modelos de história de vida se repetiriam:

A impressão que dá é que as travestis... elas são oriundas de uma classe mais popular. As transexuais geralmente... quando você faz um desenho da onde ela vem, se você fizer o mapa da onde saiu essa transexual. Ela vem de uma classe média... de média para cima. A travesti, ela vem de uma classe social mais baixa. [...] e a classe baixa, ela é menos tolerante, entendeu? Então, se a família descobre um menino muito feminino, muito afeminado, ele... simplesmente corta, não aceita, vai embora. Se você não quer ser homem, você vai embora da família. Acabou. E aí quando esse menino sai, ele vai procurar pares para se identificar e ele acaba se identificando com esse grupo que se autodenomina travesti. A transexual, também... quando tem um menino que está se descobrindo e tal. Essa família de classe média... ela não faz esse corte já num primeiro momento. No primeiro momento é um psicólogo, e quando vai para o psicólogo, existe a questão do CID-10, transexualismo, é doente, vamos tratar. Pode ser uma cura, pode não ser... vamos ver o que a gente faz. Então existe uma tolerância para essa outra figura, que quando conhece o grupo parecido com ela, vai se identificar com o grupo que se autodenominam transexuais (Janaína Lima, entrevista em 04/07/2010, grifo nosso).

Levanto a hipótese de uma distinção na origem da atribuição do estigma (ou do desvio)17 entre travestis e transexuais. Enquanto as primeiras são pervertidas a partir do olhar moral da sociedade, as segundas são incorporadas numa categoria médico-psiquiátrica. É evidente que a incorporação dos diferentes rótulos na construção da identidade tem suas repercussões e possivelmente constituirá trajetórias distintas. Ser um desviante moral, como no caso de travestis, implicará no manejo e na negociação constante com a oficialidade e a constituição de redes sociais associadas à marginalidade. Enquanto ser um desviante “mental”, como no caso de transexuais, implicará uma incorporação total ou parcial de uma experiência de gênero medicalizada18, que provavelmente passará por um processo de construção identitária em interlocução com os saberes e práticas médicas.

A justificativa de menor procura médica, ou psicológica, pelas classes populares não pode ser resumida a uma questão de poder aquisitivo. Luc Boltanski (2004), a partir da análise do consumo médico por classe social, desenvolve o conceito de necessidade médica, que seria o principal condicionante da busca por cuidados médicos. Tal necessidade não é uma necessidade primária que se buscaria satisfazer de imediato, na ausência de obstáculos como a possibilidade de pagamento dos serviços prestados. Sensações semelhantes são classificadas de formas diferentes e experimentadas com maior ou menor intensidade conforme a classe social. A aptidão para selecionar, analisar e descrever determinada sensação como algo que merece atenção médica é função de uma competência médica, que por sua vez é condicionada pelo capital cultural do indivíduo, ou da família, assim como pela sua hexis corporal. Ao utilizar as considerações do sociólogo, não pretendo dizer que a experiência de ruptura da matriz heterossexual (ou do sistema de sexo-gênero) trata-se de uma sensação mórbida, mas que em função da hexis corporal e do capital cultural das diferentes classes sociais, essa situação pode ser descrita pelo próprio indivíduo ou por sua família como um “transtorno sexual” ou “safadeza”. Não se trata de cristalizar as distinções identitárias em termos de classe social, o que poderia gerar uma gama de desdobramentos abusivos e autoritários, mas marcar como tais processos são sistematizados nos discursos ativistas.

Ser medicamente rotulado pode trazer o privilégio da desresponsabilização por sua condição, algo que diferencia o desviante “mental” do desviante moral. Nesse ponto, devo lembrar que os imorais e pervertidos são sempre julgados socialmente como responsáveis por sua condição, logo, merecedores de toda sorte de desgraças e violências que os acometa, como no caso das travestis. Por outro lado, o doente é passível de compaixão e, ao mesmo tempo que não é responsável por seu desvio, tem como obrigação se engajar na tentativa de melhora e colaborar com a ação do médico. Nesse sentido, o alívio é resultado da nomeação do sofrimento, da objetivação de uma experiência subjetiva. Consequentemente, é possível pensar que na medida em que o diagnóstico de “transexualismo”19 alivia o sofrimento, ele também prescreve e delimita um lugar de doente e uma determinada performance feminina à transexual; de forma semelhante, o lugar marginal e abjeto resultante da injúria à travesti delimita uma performance feminina distinta.

Tenho a impressão que a definição das identidades pode ter um poder prescritivo de uma “profecia autorrealizadora”, dependendo de quem profere a sentença. No meio do XVI ENTLAIDS, houve a visita de uma celebridade para determinado setor da comunidade travesti: Luana Muniz, que me foi descrita como “dona de todo o patrimônio da Augusto Severo à Mem de Sá”, numa clara alusão às principais ruas de prostituição de travestis na Lapa, Rio de Janeiro, e também à sua função de cafetina/protetora das travestis que lá trabalham. Em uma breve saudação ao encontro, Luana diz: “Ser travesti é ser ousada, ter o prazer de transgredir o que dizem que é normal”.20

A associação da prostituição à identidade travesti também aparece inserida numa distinção entre modelos de feminilidade. Enquanto as travestis são as “ousadas” que demonstram uma “feminilidade pombagira”21, as transexuais representariam uma “feminilidade burguesa”22, recatada e delicada. Outra distinção, também com base na prostituição, aparece: o corpo. Apesar de os processos de transformação corporal de travestis serem muitas vezes compartilhados por transexuais, estas, possivelmente devido ao maior grau relativo de medicalização, parecem construir seus corpos dentro de um modelo mais próximo do que julgam “natural”. Por outro lado, as transformações corporais de travestis, comumente julgadas como exageradas, parecem ser requisitos profissionais para a prostituição.23 Nesse sentido, penso que os elementos corporais, as performances femininas e as possibilidades de trabalho compõem um mesmo conjunto de características vinculadas a diferentes “rotinas ilegítimas”, para usar um termo de Becker.24 Entretanto, é possível questionar se as “rotinas” produzem corpos, performances e identidades, ou se a própria rotulação é que conduz a tais “rotinas” que, por sua vez, pressupõem determinados corpos e performances. A rotulação marginal de “travesti” parece produzir uma “rotina” que implica um determinado corpo e uma determinada feminilidade, enquanto a rotulação psiquiátrica de “transexual” parece produzir outra “rotina” que produzirá corpos e feminilidades distintas.25

Até esse momento, levantei alguns pontos de deslizamento entre as identidades travesti e transexual que poderiam ser sintetizados nas relações com a moralidade e com a medicalização. Acompanhei de perto as considerações de Marcos Benedetti sobre tais diferenças. Conforme o autor:

As transexuais dominam uma linguagem médico-psicológica refinada, apóiam-se em escritos científicos dessas disciplinas (muitos deles já desacreditados nos seus próprios campos acadêmicos) para explicar e demonstrar seu modo de ser, evidenciam as diferenças entre sua condição e a das travestis por meio de argumentos e razões fundamentadas nas noções de patologia e desvio, creem-se doentes e deduzem que o tratamento e a cirurgia podem ser o instrumento de correção ou de ajustamento de seu corpo à sua personalidade. Essas concepções estão relacionadas à origem de classe. As informantes que se autoidentificam como transexuais possuem, via de regra, maior escolaridade; têm, portanto, acesso a bibliografias técnicas sobre o assunto com mais facilidade e situam-se mais próximas socialmente das explicações institucionais e científicas sobre a questão (Benedetti, 2006:113).

Porém, devemos estar atentos a possíveis transformações desse panorama. Benedetti escreve no momento que se iniciam os procedimentos transexualizadores em hospitais públicos do Brasil, ainda em caráter experimental. Em 1997, o Conselho Federal de Medicina retira o caráter de crime de mutilação para as chamadas cirurgias de “mudança de sexo”, restringindo a sua realização em caráter experimental a alguns hospitais universitários do país. Desde então, o número de pacientes que se definem como transexuais e buscam tal serviço vem aumentando. Tais procedimentos foram normatizados pela Portaria GM no1.707 de 18 de agosto de 2008, retirando o caráter experimental das cirurgias em mulheres transexuais (MtF, Male to Female), como a neovulvocolpoplastia (Arán; Murta, 2009). Em setembro de 2010, o CFM retirou o caráter experimental das cirurgias de caracteres sexuais secundários em homens transexuais (FtM, Female to Male), como a mastectomia ou mamoplastia masculinizadora e a histerectomia, através da Resolução CFM nº 1.955/2010. Já em 2013, há uma ampliação e redefinição do processo transexualizador por parte do Ministério da Saúde a partir da Portaria GM n. 2.803, de 13 de novembro. Desde então, o processo passa a, formalmente, incluir travestis (apenas para os procedimentos relacionados à hormonização), e os procedimentos relacionados aos homens trans (cujo caráter experimental havia sido suspenso pelo CFM em 2010) passam a fazer parte da tabela de procedimentos abarcados no processo transexualizador.

Já no trabalho de Berenice Bento (2006), realizado em parte no âmbito hospitalar, muitas são as pacientes do processo transexualizador oriundas das classes populares. Acredito, então, que o acesso à informação médico-psicológica e aos serviços de saúde especializados são pontos fundamentais, mas não determinantes, no deslizamento entre as identidades travesti e transexual. Levando em consideração as elaborações de Boltanski (2004) sobre a relação entre posição social e o saber médico, podemos pensar que as pacientes entrevistadas por Bento (2006) não teriam a mesma tendência que pessoas das classes altas em incorporar mais facilmente o vocabulário e a lógica médica. Neste sentido, a afirmação da autora acerca da não existência de uma identidade transexual, com base em relatos de pacientes que desejam realizar cirurgias de transgenitalização no sistema público de saúde, poderia estar relacionada com o menor grau de medicalização das classes populares. Assim, voltaríamos a considerar que a posição social, o capital cultural a ela associado e, consequentemente, o grau de compreensão e assimilação do vocabulário médico serão decisivos na transformação do diagnóstico de “transexualismo” na identidade transexual.

Sobre os elementos envolvidos na produção da “transexualidade”, Márcia Arán afirma que:

Pode-se dizer que a fundamentação deste fenômeno [a transexualidade] na atualidade está baseada em dois dispositivos distintos. O primeiro diz respeito ao avanço da biomedicina na segunda metade do século passado – principalmente no que se refere ao aprimoramento das técnicas cirúrgicas e ao processo de terapia hormonal – que fez do desejo de “adequação” sexual uma possibilidade concreta. O segundo concerne à forte influência da sexologia, na construção da noção de “identidade de gênero” como uma “construção sociocultural”, independentemente do sexo natural ou biológico (Arán, 2006:50, grifo no original).

O primeiro dispositivo, o acesso às biotecnologias, que se encontra atualmente disponível em hospitais públicos, parece produzir corpos distintos daqueles construídos pelo silicone líquido moldado pelas mãos das bombadeiras26, numa espécie de busca por uma maior naturalidade. O segundo dispositivo, a incorporação da noção de “identidade de gênero”, está relacionado a um tipo específico de leitura acadêmica ou de autoajuda, e também às intervenções dos profissionais psi do processo transexualizador, a fim de esclarecer o suposto “transtorno sexual” às pacientes, o que também implica numa busca pelo fim da ambiguidade. Assim, é importante pensar no processo pelo qual tais dispositivos se tornam ferramentas sociais e culturais de produção de identidades sexuais e políticas, o que me parece ter relação com a hipótese de dependência do capital sociocultural na construção da identidade transexual.

A ativista Janaína Lima, falando sobre as definições de travesti e transexual no movimento, faz uma associação interessante na qual a posição social implicaria em diferentes caminhos – a prostituição ou a medicalização – que levariam a diferentes possibilidades de relação com o corpo:

O que está construído culturalmente? Travesti é esse grupo de pessoas, transexual é esse grupo de pessoas. Coincidentemente ou não, travesti é esse grupo de pessoas que depende de fazer programa para sobreviver ou que já dependeu em algum momento [...] Logo, se fez programa conseguiu quebrar uma parede de inibição, então ela é uma pessoa totalmente desinibida para com seu corpo. Então faz qualquer coisa pelo dinheiro. Ela vira uma chavezinha. Então a partir do momento em que ela vai para a cama com um cliente, ela sabe que ela precisa do dinheiro e o cliente precisa do corpo dela. Então vai usar orelha, nariz, boca, pênis, bumbum. Aí esse outro grupo de pessoas que houve uma tolerância maior, que veio de uma classe... ela já partiu para um outro né... uma pessoa mais coitada, mais doente, tal. Você entende o que eu estou falando quando falo doente, né? Eu falo porque estou me referindo ao CID-10. Então houve essa tolerância maior e ela não teve tanta necessidade de ir diretamente para a rua. Logo, ela nunca quebrou essa barreira de inibição e é uma pessoa totalmente inibida com o seu corpo. Ela já não aceita... não aceitava, não entendia algumas coisas diante de seu corpo, né? E a... a justificativa para essas pessoas é que elas são mulheres, isso o CID-10 fala, são mulheres presas num corpo masculino e faz a adequação que é a cura, e beleza. Então aquilo é tão colocado que ela acredita piamente naquilo... se você fizer uma consulta em relação ao acompanhamento de transexuais no HC, você vê, é uma mulher tão tradicional que a transexual precisa ser extremamente tradicional. Precisa ser aquela mulher padrão que você não encontra mais hoje em dia. Então... e ela cresceu com aquilo, e aí quando chega isso dentro do movimento... é algo que você define. E aí você fecha dentro do movimento que travestis são pessoas que fazem mudanças corporais, bi-bi-bi e bó-bó-bó, caixinha de fósforo, e... não têm problema com o pênis. Transexuais são pessoas que fazem mudanças corporais, bi-bi-bi e bó-bó-bó... que têm uma necessidade de fazer uma alteração na genitália. Então, você percebe que você fecha no sexo? Sexo biológico... é onde você fecha a diferença. Parece que é só isso (Janaína Lima, entrevista em 04/07/2010, grifo nosso).

De um lado, nas classes populares, haveria uma menor tolerância a tal dissidência, que seria percebida como “safadeza” ou “pecado”, resultando na expulsão da pessoa de casa. A pessoa, normalmente adolescente, encontraria refúgio na casa de uma cafetina, e teria ao mesmo tempo a possibilidade e a obrigação de uma construção corporal dentro de espaços de prostituição. O universo da prostituição, por sua vez, seria catalisador de uma maior aceitação do corpo e consequentemente do pênis. É nesse circuito que surgiriam as travestis.27 Por outro lado, nas classes médias e altas, haveria uma maior tolerância à dissidência de gênero na medida em que seria percebida como algum tipo de problema de ordem psicológica ou médica. Assim, as famílias recorreriam a profissionais de saúde como solução ao problema. Decorreria, então, um processo de medicalização da experiência de trânsito de gênero, que, orientada pela lógica das teorias psi, geraria uma inibição corporal, sendo o pênis parte central desse processo. Nesse circuito surgiriam as mulheres transexuais.

A relação com o pênis e consequentemente a demanda ou não por cirurgias de transgenitalização são recorrentemente utilizadas como fator de distinção entre as duas identidades. Uma participante do XVI ENTLAIDS faz a diferenciação, nesse mesmo sentido, ao dizer:

Eu na minha cabeça sempre fui transexual, depois que eu conheci meu corpo, eu percebi que não, que eu era travesti. Eu não tenho problema nenhum com meu pinto. Pra mim, a diferença está lá, se sentir bem com o pinto ou não (diário de campo, 07/12/2009).

Na final da fala de Janaína, a crítica está na valorização da relação com o pênis que reiteraria a diferenciação das pessoas com base no “sexo biológico”. Reitera, assim, a lógica biologizante e morfológica do corpo com base no sistema de sexo-gênero que é, para setores do movimento (e da academia), justamente o que deveria ser desconstruído.

Paradoxalmente, as formulações do Coletivo Nacional de Transexuais já excluíam as intervenções cirúrgicas do rol de pré-requisitos da transexualidade, colocando-as como uma possibilidade. Essa formulação se encontra também no glossário de uma publicação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) de 2007:

Transexualidade: “contexto vivencial que se refere a um indivíduo com identidade de gênero caracterizada por uma postura afirmativa de autoidentificação, solidamente construída e confortável nos parâmetros de gênero estabelecidos (masculino ou feminino) independente e soberano aos atributos biológicos de nascença sexualmente diferenciados. Essa afirmativa consolidada traduz-se numa não identificação com esses atributos e pode, eventualmente, se transformar em desconforto ou estranheza diante dos mesmos, a partir de condições socioculturais adversas ao pleno exercício da vivência da identidade de gênero constituída. Isso pode se refletir na experiência cotidiana de autoidentificação ao gênero feminino – no caso das mulheres que vivenciam a transexualidade (que apresentam órgãos genitais classificados como masculinos no momento em que nascem), e ao gênero masculino – no caso de homens que vivenciam a transexualidade (que apresentam órgãos genitais classificados como femininos no momento em que nascem). A transexualidade também pode, eventualmente, contribuir para o indivíduo que a vivencia objetivar alterar cirurgicamente seus atributos físicos (e até genitais) de nascença para que os mesmos possam ter correspondência estética e funcional à vivência psicoemocional da sua identidade de gênero vivencialmente estabelecida (ABGLT, 2007:11, grifo nosso).

Nesse mesmo glossário, encontra-se a seguinte definição para o termo travesti, dessa vez fornecida pela ANTRA:

Travesti: Pessoa que nasce do sexo biológico masculino ou feminino, mas que tem sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico de nascença, assumindo papeis de gênero diferentes daqueles impostos pela sociedade. Muitas travestis modificam seus corpos através da hormonioterapia, aplicações de silicone e cirurgias plásticas, porém vale ressaltar que isto não é regra para tod@s (ABGLT, 2007:11, grifo nosso).

Ambas as definições me parecem muito próximas, com duas diferenças mais relevantes. Primeiramente, a ausência de menção a intervenções cirúrgicas a nível genital na definição de “travesti” (mencionam-se apenas “cirurgias plásticas”). Em segundo lugar, a maior elaboração teórica do termo “transexualidade” sem que ele implique numa identidade transexual.

A retirada do pré-requisito de demanda pela redesignação genital para configuração da identidade de mulher transexual, proposta por determinadas organizações, não foi bem vista por outros setores do movimento. Pude ouvir algumas falas indignadas durante um debate sobre o processo transexualizador realizado no XVI ENTLAIDS: “Mas, no começo, o que elas queriam não era só a cirurgia? Agora fala que isso não é fundamental, palhaçada!”. Outras tratavam da polêmica em tom irônico: “Agora descobri que sou transexual (risos). É, meu problema não é genital, é identidade social (risos)” (diário de campo, 08/12/2009).

Outra posição que parece se associar em algum nível à diferença com base na demanda pela redesignação genital coloca certa ambiguidade inerente à identidade travesti. Como afirmam as ativistas Majorie Marchi e Keila Simpson, que se identificam como travestis:

Eu brinco que a travesti é uma pororoca, é o encontro dos gêneros, aonde o gênero feminino prevalece, mas ela é criada numa identidade única, eu não sou uma mulher. Eu fui criada, meus valores morais, éticos e tudo, foram criados dentro do gênero masculino, com uma perspectiva masculina e adaptados em algum momento à minha identidade feminina que, embora sempre estivesse ali, não era usufruída, eu não usava minha identidade feminina, eu estava ali, mas não me identificava porque não me era permitido (Majorie Marchi, entrevista em 29/09/2010, grifo nosso).

Eu não queria muito fazer uma definição exata, até porque eu sou avessa a essa questão de definição. Eu não vejo diferença nenhuma quando a gente está junta. Claro que eu não vejo nenhuma diferença. A gente carece e tem necessidade das mesmas coisas. Mas há um fator que determina que transexuais são diferentes de travestis.[...] Nós não temos nenhuma divergência entre sexo psicológico e sexo biológico, e as transexuais têm isso. Então, eu acho que é isso que diferencia somente. As transexuais não convivem bem com seu sexo psicológico em divergência com o biológico e as travestis convivem com isso numa boa, muito, muito bem (Keila Simpson, entrevista em 18/06/2010, grifo nosso).

Nesse processo de diferenciação, devemos ter em mente que a emergência da categoria “transexual” é mais recente, e que, para se afirmar, teve que se diferenciar de uma categoria “travesti” pré-existente. Porém, a própria categoria “travesti” não surgiu em um discurso que a diferenciava politicamente da categoria “homossexual”. Pelo contrário, a identidade política “homossexual”, e posteriormente “gay”, é que se diferenciou da categoria “travesti”.28 Tudo se passa como se o outro abjeto que detêm os elementos mais poluidores de uma “identidade deteriorada” fossem jogados num mesmo lugar: o/a travesti. Seguindo as considerações de Bauman (2005) e Hall (2006), a identidade só se produz na diferença, logo a emergência da identidade transexual colocou o desafio de definição do que é uma travesti.

Assim, a ambiguidade por si só não garante um alicerce para a definição. Afinal como a instabilidade poderia fornecer alguma estabilidade para a categoria? Aparece, então, a ideia de um caráter permanente das transformações corporais como requisito da identidade travesti, como apresenta a definição consensuada no XVI ENTLADS, segundo relato de Majorie Marchi, organizadora do encontro: “A travesti é uma construção de gênero feminina, oposta ao sexo biológico, seguida de uma constituição física de caráter permanente, que identifica-se na vida social, familiar, cultural e interpessoal através desta identidade”.

Para fechar esta sessão, trago uma fala que praticamente encerrou os debates sobre a diferenciação identitária no XVI ENTLAIDS: “Sou uma travesti transexual, não nego meu passado nem meu futuro”. Samantha Wolkan foi a autora dessa frase. Ela era membro do Transgrupo Marcela Prado, de Curitiba. Por anos ela se reconheceu como travesti, e, naquele momento, após a realização da cirurgia de transgenitalização, ela se diz uma “travesti transexual”, e não uma “mulher transexual”. Cito esse exemplo, porque em meio a diversas polêmicas com relação à delimitação da população que deveria compor esse movimento a partir de uma definição rígida dos atributos que comporiam uma identidade “travesti” ou “transexual”, as possibilidades de reconfiguração identitária e os usos políticos delas são múltiplos e imprevisíveis.

3. “Homens Trans” X “Não Binários”

A recente entrada dos homens trans no cenário político parece ter relação com múltiplos fatores.29 Primeiramente, a existência do processo transexualizador no SUS há alguns anos possibilitou maior acesso às tecnologias de alteração corporal. Temos também o próprio avanço das tecnologias de comunicação virtual que potencializou os contatos sociais, não somente para trocas de experiências e informações, mas também para articulação política. E, finalmente, o próprio processo geral de cidadanização de diferentes dissidentes das normas de gênero e sexualidade permitiu maior visibilidade das experiências de homens trans, que passaram a tornar públicas suas histórias, como é o caso de João W. Nery, que publicou em 2011 sua autobiografia intitulada Viagem Solitária. A obra de João W. Nery, assim como suas entrevistas em programas de grande audiência na TV brasileira, vem contribuindo para a construção de uma espécie de modelo de vida que guarda alguma relação com a ideia de “orgulho gay”, disseminada nos primórdios do movimento homossexual.30

Ainda na formação do CNT, em 2005, estavam presentes dois ativistas que se reconheciam como homens trans: Alexandre Peixe e Régis Vascon. Ambos, que depois viriam a integrar o Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT), tiveram suas construções político-identitárias em diálogo com o debate de mulheres transexuais e com ativistas estrangeiros, com especial destaque para o argentino Mauro Cabral. Ainda que no começo dessa movimentação fosse mais comum a utilização da categoria “homem transexual”, aos poucos ela foi substituída por “homem trans”. Esse processo está relacionado a dois fatores simultâneos. Primeiramente, o uso cada vez mais frequente da categoria “trans” seja como abreviação de “transexual”, seja como categoria englobante das diferentes identidades, como no uso de “pessoas trans”. Em segundo lugar, os homens trans foram o setor do movimento mais comprometido com as campanhas pela despatologização das identidades trans e consequente retirada do diagnóstico de “Transtorno de Identidade de Gênero” ou “Transexualismo” dos manuais médicos e psiquiátricos. Nesse sentido, havia por trás da substituição de “transexual” por “trans” uma crítica ao processo de medicalização da diversidade e/ou dissidência de gênero expressa em suas formas de vida.

A primeira organização especificamente de homens trans foi fundada em julho de 2012. A Associação Brasileira de Homens Trans (ABHT) teve vida curta em virtude de uma séria de conflitos políticos internos. O resultado das discordâncias internas foi a construção de outra organização nacional liderada por ativistas que faziam parte da ABHT. A articulação para a criação do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) teria se iniciado no Encontro de Homens Trans do Norte e Nordeste, em junho de 2013, em João Pessoa. E, nesse mesmo ano, o IBRAT já se apresentava publicamente em outros espaços do ativismo, fazendo seu lançamento político no XX ENTLAIDS realizado em setembro de 2013, em Curitiba. Na tentativa de não incorrer em posturas políticas criticadas na condução da ABHT, os ativistas envolvidos na construção do IBRAT buscaram uma maior aproximação de organizações já consolidadas de travestis e transexuais. Desse modo, o instituto se configurou como um “Núcleo de Homens Trans” da ANTRA.

Ao longo da segunda metade de 2013 e do ano de 2014, o IBRAT foi aos poucos substituindo a ABHT em termos de incidência e representação política no cenário nacional, inclusive nos canais de interação sócio-estatal. Um resultado dessa articulação foi o reconhecimento oficial dos homens trans como sujeitos políticos de um mesmo movimento de travestis e transexuais no IX Encontro Sudeste de Travestis e Transexuais, realizado em dezembro de 2014, em São Paulo. Ao final desse encontro, decidiu-se que o nome oficial do movimento seria: “movimento de travestis, mulheres transexuais e homens trans”. Entretanto, a escolha da categoria “homens trans” como identidade política desse coletivo, a constar em documentos oficiais, demandas por políticas públicas e nas interlocuções com as identidades femininas do movimento trans foi alvo posterior de polêmica e disputas.

Em março de 2015, aconteceu o I Encontro Nacional de Homens Trans (ENAHT), organizado pelo IBRAT nas dependências da FFLCH-USP. Um dos primeiros debates desse encontro foi sobre a “identidade política” do movimento. Houve uma intensa disputa entre duas categorias identitárias: “homem trans” e “não binários”, que por vezes também aparecia como “transmasculinos”. A discordância surgiu quando um grupo de jovens expressou que a categoria “homem trans” não os abarcava, pois os mesmos se reconheciam como “não binários”. O uso dessa categoria, importada de noções de países de língua inglesa como “non binary person”, era estranho e novo para a grande maioria dos ativistas presentes. Em certo momento do debate, um desses jovens explicou o que era ser “não binário” da seguinte forma: “Entre o ‘homem’ e a ‘mulher’ existem vários gêneros; ser não binário é estar em qualquer ponto entre os polos”. Este mesmo ativista explicitou uma séria de categorias de “não binários”, sendo quase todas em língua inglesa. Em seu discurso, também se destacava o uso de categorias comuns em produções acadêmicas próximas à teoria queer, como “corpos abjetos” e “performatividade de gênero”. E, novamente, reiterava que a categoria homem não o abarcava. Nesse sentido, o grupo defendia o uso da categoria “transmasculino” como um guarda-chuva que englobaria diferentes expressões de “transmasculinidades”, como “homens trans” e “não binários”.

Por outro lado, os defensores da categoria “homem trans” como identidade coletiva e política do movimento argumentavam a necessidade de operar categorias já existentes e que fossem inteligíveis para o poder público a fim de facilitar os processos de negociação de políticas públicas e conquistas de direitos. O que a princípio poderia ser interpretado como uma disputa entre uma posição mais “democrática” e “englobante” da diversidade de expressões de gênero presentes no encontro versus uma posição mais pragmática em vista das interações sócio-estatais, foi se mostrando mais nuançada e atravessada por outros marcadores sociais da diferença.

Em alguns momentos mais acirrados do debate, alguns jovens que se identificavam como “não binários” acusavam ativistas mais velhos de reiterarem o machismo e o binarismo de gênero em suas performances de masculinidade. Em certo ponto, um jovem dizia: “Na minha cabeça, homem é uma coisa ruim, não consigo me identificar como homem”. Era possível também perceber que alguns desses ativistas tinham trajetórias políticas vinculadas a grupos lésbico-feministas no passado, de forma que as possibilidades de reconfiguração da categoria “homem” não seria tarefa tão simples. Nesse contexto, um ativista (com cerca de 40 anos, que também participou do ativismo lésbico-feminista) argumentou: “Homem é uma categoria semântica aberta e não é propriedade de ninguém”. Mesmo assim, o debate continuou sem muito consenso.

O ponto mais dramático dessa disputa se deu após a acusação feita por um jovem de que aqueles que se utilizavam da categoria “homem trans” (e implicitamente seriam aqueles que faziam uso de testosterona há mais tempo) eram detentores do “privilégio da passabilidade”. O que ele expressava era que as pessoas que ali poderiam ser categorizadas como “binárias”, ou seja, com uma performance de gênero e construção corporal que permitissem que não fossem percebidas como trans, teriam algum tipo de privilégio. Os ânimos se exaltaram e houve alguns relatos intensos de violência extrema, incluindo estupros e espancamentos, por alguns dos ativistas acusados de terem o “privilégio da passabilidade”.

Algumas considerações sobre essa disputa são necessárias. O grupo de ativistas que se autoidentificava como “não binários” era majoritariamente jovem (entre 18 e 22 anos), branco, de grandes centros urbanos (Rio de Janeiro e São Paulo) e de camadas médias e altas (segundo alguns interlocutores). Essa autoidentificação implicava a categorização de todos os outros como “binários”, o que por si só se tornava um problema, pois muitos ali argumentavam que “binário” seria uma idealização do próprio sistema de classificação de gênero e que nenhuma experiência trans poderia ser completamente binária. Por outro lado, os ativistas acusados de ter o “privilégio da passabilidade” que relatavam violências sofridas eram majoritariamente negros, da periferia dos centros urbanos, das camadas baixas e com configuração etária mais ampla.

Considerando os riscos de interpretações abusivas sobre tal debate, me detenho apenas em localizar algumas possibilidades de análise. Em certa medida, aqueles que constroem sua masculinidade nas periferias ou em áreas de maior risco de violência física não possuem um “privilégio”, mas talvez uma “necessidade” de maior passabilidade como forma de defesa pessoal, considerando que certa “fluidez” na expressão de gênero seria mais aceitável em contextos urbanos de camadas médias e altas. Além disso, essa disputa abre a possibilidade de um debate mais amplo sobre a influência de outros marcadores sociais na produção de múltiplas masculinidades. Foi, então, necessária uma série de conversas paralelas ao longo do encontro para que os ânimos se acalmassem e fosse possível produzir um consenso no qual se manteve “homem trans” como categoria geral a ser utilizada principalmente nos canais de interação sócio-estatal. Ao passo que nos documentos e produções internas do movimento se usariam as categorias “homens trans” e “transmasculinos” juntas.

4. Considerações Finais

É importante ressaltar a distância temporal entre os dois recortes etnográficos. Muitas coisas mudaram na arena do ativismo trans ao longo dos últimos anos. Uma parcela dessas transformações pode ser percebida em duas chaves de políticas públicas: o processo transexualizador e os inúmeros decretos municipais e resoluções de conselhos universitários autorizando o uso do nome social por pessoas trans no ambiente escolar. Por um lado, o processo transexualizador vem possibilitando uma reconfiguração na vida de pessoas trans não apenas pelo oferecimento das tecnologias de transformação corporal, mas fundamentalmente pela sanção estatal da possibilidade de tais transformações, o que tem efeitos concretos e simbólicos. Por outro lado, o uso do nome social no ambiente escolar tem possibilitado a diminuição na evasão escolar e consequentemente o aumento na escolaridade média da população trans, perceptível inclusive na criação de coletivos universitários trans (algo impensável dez anos atrás).

Se, em 2009, o pertencimento a camadas médias e altas levava a um posicionamento identitário que reivindicava uma maior “fixidez” de gênero, mais recentemente, algumas experiências ativistas contestam tal prerrogativa, ainda que não a descredenciem por completo. Algumas ativistas jovens, mais recentes na arena política a partir de suas intervenções nas redes sociais da internet, passam a se identificar como “travesti” apesar de sua origem nas camadas médias e altas de centros urbanos.31 Um ponto central nesse novo cenário, que também afeta a construção das identidades masculinas dentro do ativismo trans, é uma mudança na literatura acionada para as elaborações políticas. Entre o final dos anos 1990 e o início dos 2000, era recorrente o recurso a uma literatura psicanalítica, psicológica e sexológica. Tal literatura dava sentido a certas existências por meio da categoria “transexual”, principalmente àquelas que não conseguiam se reconhecer (e não queriam ser reconhecidas) na categoria “travesti”, imbuída de valorações morais negativas (marginal, prostituta, vulgar, desviante, imoral, indecente, etc.). Tais valorações não desapareceram do repertório social do estigma. O que mudou foi a literatura acionada na busca de sentido para as experiências de gênero, passando para várias produções das Ciências Sociais, com especial destaque para aquelas alinhadas à teoria queer; e que, por vezes, reivindica e ressignifica a categoria estigmatizada para a luta política que também se opera numa disputa de linguagem. Não à toa, portanto, alguns pontos de tensão entre as gerações estão na oposição entre percepções mais fluídas ou mais estanques das construções do gênero.

Nesse sentido, a ambiguidade atribuída às categorias “travesti” e “não binário” não segue o mesmo sentido. No primeiro caso, a ambiguidade está inserida num regime de visibilidade que passa por ideias de “truque”, “falsidade”, “quase mulher”, etc; ao mesmo tempo que carrega a pressuposição de uma impossibilidade somática e/ou psíquica de trânsito completo, ou seja, nunca se será uma mulher “de verdade”, logo se será sempre “travesti”. Já no segundo caso, a ambiguidade se configura como o objetivo político final da construção identitária, seja por uma recusa política e subjetiva à categoria “homem”, seja pelo caráter revolucionário atribuído a essa posição a partir das novas literaturas acionadas.

Quando atravessada por considerações de classe (e consequentemente de lugar de moradia e de vulnerabilidades sociais), a ambiguidade ganha novos contornos. Se por um lado, a explicitação de uma identidade ou condição travesti coloca a pessoa num lugar de risco cotidiano de vida, como mostram os altos índices de assassinatos de travestis no Brasil, por outro lado, tal revelação proposital do estigma simultaneamente evita a possibilidade de violência de um cliente ou potencial amante32, que não poderá se dizer enganado, e ainda confere algum tipo de poder (mesmo que através das associações do estigma à criminalidade) e proteção para a travesti. Essa situação nos leva às considerações de Mary Douglas sobre pureza e perigo:

Admitindo-se que a desordem estraga o padrão, ela também fornece os materiais do padrão. A ordem implica restrição; de todos os materiais possíveis, uma limitada seleção foi feita e de todas as possíveis relações foi usado um conjunto limitado. Assim, a desordem por implicação é ilimitada, nenhum padrão é realizado nela, mas é indefinido seu potencial para padronização. Daí por que, embora procuremos criar ordem, nós simplesmente não condenamos a desordem. Reconhecemos que ela é nociva para os modelos existentes, como também que tem potencialidade. Simboliza tanto perigo quanto poder (Douglas, 1976:117).

Assim, a ambiguidade travesti também possui seu poder, ainda que num uso reverso das valorações estigmatizantes. Entretanto, o mesmo não parece acontecer no espectro das masculinidades trans nas classes populares. Pare esses homens trans das periferias urbanas, a ausência de ambiguidade é a possibilidade de proteção e segurança. Nesse ponto, um delicado, porém necessário, debate se coloca: a inevitável diferença nas possibilidades sociais de pessoas trans a partir dos diferentes pontos de partida e chegada no processo de “transição de gênero”. Não se tratam daqueles processos de socialização primária tão em voga em discursos feministas conservadores. Mas das expectativas e respostas sociais àquilo que é grossamente percebido como “um homem que vira mulher” e “uma mulher que vira homem”. Assim, não é possível que as posições frente à “fixidez” ou “fluidez” de gênero se manifestem de forma igual no espectro masculino e feminino das experiências trans. Mesmo se guiarmos nosso pensamento pelos extremos do binarismo de gênero, à “mulher”, enquanto categoria idealizada, está disponível um espectro maior de feminilidades que varia da “santa” à “puta”. Enquanto, para o “homem”, também como categoria idealizada, o espectro de masculinidades é bem mais reduzido, sendo pequenos desvios suficientes para a exclusão de um sujeito de tal categoria, seja ela operada por si mesmo ou por terceiros.

Classe e geração aparecem, conforme explicitado ao longo deste texto, como os marcadores sociais privilegiados na construção de posições sociais diversas a partir das quais se acionam diferentes discursos e matrizes explicativas de gênero e do fazer política. A complexidade das interconexões e cruzamentos nas produções de identidades políticas não é passível de uma explicação linear e definitiva. As movimentações e transformações sociais relacionadas aos diferentes marcadores em jogo estão em constante disputa em diferentes arenas da vida social que também se interseccionam, como o ativismo, a ciência, a burocracia estatal, as políticas públicas, etc.

O que se passava, portanto, naqueles encontros não era necessariamente um debate em torno de qual a melhor categoria identitária a ser utilizada pelos e pelas ativistas, mas a expressão de tensões internas que simbolizavam a dificuldade na produção de reconhecimento recíproco de marcadores de raça, geração, regionalidade e classe.33 Logo, expressar trânsitos de gênero não era um arco de compreensão do sistema de opressões e estigmas suficiente para garantir a unidade do grupo sem se levar em consideração a intensidade sentida ou percebida de tais trânsitos, assim como os constrangimentos aos mesmos a partir de diferentes marcadores sociais da diferença.

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  • Silva, Hélio R. S. Travesti: a invenção do feminino. Rio de Janeiro, Relume-Dumará; ISER, 1993.
  • 1
    Pokémon ou Pocket Monsters são personagens de um video game que posteriormente foram retratados em histórias em quadrinhos, desenhos animados e filmes. Resumidamente, são criaturas ou monstros que evoluem e adquirem diferentes formas.
  • 2
    Realizadas no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), contando com financiamento do CNPq e FAPERJ (mestrado) e da CAPES (doutorado).
  • 3
    Há um relativo consenso político no uso da categoria pessoas trans como englobante das diversas expressões identitárias, assim como no uso de movimento de travestis, mulheres transexuais e homens trans como forma de explicitar os diferentes sujeitos políticos do movimento ou de movimento trans como forma de sintetizar tais sujeitos.
  • 4
    Essas entrevistas foram realizadas no curso do mestrado e abarcaram apenas os conflitos inerentes ao espectro feminino das identidades políticas.
  • 5
    Tratei desses conflitos em diferentes trabalhos, a saber: Carvalho (2011, 2015) e Carvalho & Carrara (2013, 2015).
  • 6
    Para uma discussão mais profunda sobre a produção de identidades coletivas em relação com a construção de canais de interação sócio-estatal dentro do espectro LGBT, ver Aguião (2014).
  • 7
    A relação entre a categoria “travesti” e um debate sobre identidade nacional já aparece no trabalho de Don Kulick (2008). Bruno Barbosa (2015), por sua vez, também aponta essa relação em comparação a uma visão mais transnacional na construção da identidade “transexual”, o que trata como um conflito entre uma “transglobalização” e um “culturalismo travesti”. Reconheço que a mirada pela perspectiva da trocas nacionais e internacionais possa ser um caminho produtivo na análise desses conflitos, entretanto não seguirei por esse caminho por uma escolha analítica.
  • 8
    Já nesse momento aparecem os primeiros homens trans no cenário político, ainda que sua organização mais consistente e com maior visibilidade só tenha vindo a acontecer no início da década atual.
  • 9
    Por processo transexualizador compreendo todos os serviços credenciados junto ao Ministério da Saúde que disponibilizam procedimentos em diferentes níveis de complexidade com a finalidade de ofertar tecnologias de transformação corporal a pessoas trans.
  • 10
    Parte das ativistas do CNT também esteve envolvida na demanda por participação de travestis e mulheres transexuais no X Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em 2005, em São Paulo.
  • 11
    A literatura que se dedica a pensar as dinâmicas de constituição do movimento LGBT, desde seus primórdios, já aponta disputas e “rachas” em torno de categorias identitárias como constitutivas do próprio movimento (Macrae, 1990; Facchini, 2005).
  • 12
    Algumas interlocutoras falam também de outra expressão: “mulheres que vivenciam aquilo que chamam de transexualidade”.
  • 13
    Segundo uma interlocutora, Aracê “é uma palavra em Tupi-Guarani que significa o alvorecer com o cantar dos pássaros”.
  • 14
    Para uma análise de tais campanhas, ver Carvalho (2015).
  • 15
    Os nomes de ativistas foram mantidos por se tratarem de falas públicas. No caso das entrevistas, foi uma exigência das entrevistadas que seus nomes não fossem alterados, por se tratarem de entrevistas sobre posicionamentos políticos e não sobre a intimidade das pessoas. Destaco também que essas ativistas são atualmente figuras históricas no movimento, com longa trajetória militante.
  • 16
    Harry Benjamin foi um dos sexólogos pioneiros nos estudos sobre transexualidade, e chegou a estabelecer uma escala para definir “variâncias” da transexualidade, incluindo seis tipos: pseudo travesti, travesti fetichista, travesti verdadeiro, transexual não cirúrgico, transexual de intensidade moderada e transexual de alta intensidade. Nota-se que travestis e transexuais se dispõem sobre uma mesma escala, na qual a diferença é apenas de grau.
  • 17
    Aqui me remeto às elaborações de Erving Goffman (2008) sobre estigma e carreira moral e de Howard Becker (2008) sobre desvio e carreira desviante. O uso das palavras “desvio” e “desviante” é datado e, apesar das conotações morais que assume no senso comum, tem um propósito na sociologia e na psicologia social pós-guerra; hoje poderíamos pensar em termos de experiências, performances e vivências de gênero “dissidentes”, ou seja, que em algum momento escapam à norma. Entretanto, optei pela manutenção dos termos originais utilizados pelos autores, compreendendo o desvio como sinônimo de dissidência ou diferença.
  • 18
    Utilizo aqui o conceito de medicalização proposto por Peter Conrad (2007:4): “‘Medicalization’ describes a process by which nonmedical problems become defined and treated as medical problems, usually in terms of illness and disorders”.
  • 19
    No momento em que esta pesquisa foi realizada, a categoria mais comumente usada era “Transtorno de Identidade de Gênero” em consonância com o DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais). Após a revisão para o DSM-5, o diagnóstico passou a ser “Disforia de Gênero”. Ainda assim, nos serviços de saúde é recorrente o uso da categoria “transexualismo”, conforme consta na 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10).
  • 20
    A presença de Luana Muniz no encontro gerou uma série de relatos de superação pessoal com a saída da prostituição. Ao longo das falas e dos aplausos, algumas militantes se afastavam para o fundo do auditório e outras saíam com uma nítida expressão de desconforto com a situação. A prostituição é um tema delicado e as relações das militantes com o assunto é, por vezes, ambígua. Por mais que se diga, repetidas vezes, que o problema não é a prostituição em si, mas o fato de ela ser a única possibilidade de sobrevivência econômica para a maioria das travestis e transexuais, muitas expressam desagrado com o status conferido a algumas cafetinas e/ou donas de pensão.
  • 21
    Pombagira é uma entidade característica de cultos afro-brasileiros, conhecida por sua sensualidade lasciva e sua ousadia ao lidar com os homens. Vários relatos a descrevem como o espírito de uma prostituta.
  • 22
    O termo “feminilidade burguesa” é utilizado por Leite Jr (2008).
  • 23
    Esse corpo volumoso, considerado exagerado, também é recorrente em figuras icônicas da sensualidade feminina nas classes populares cariocas, como as cantoras de funk e passistas de escolas de samba.
  • 24
    “Expressa de maneira mais geral, a questão é que o tratamento dos desviantes lhes nega os meios comuns de levar adiante as rotinas da vida cotidiana acessíveis à maioria das pessoas. Em razão dessa negação, o desviante deve necessariamente desenvolver rotinas ilegítimas” (Becker, 2009:45).
  • 25
    Luma Nogueira de Andrade (2016), ao analisar sua trajetória pessoal como uma travesti docente numa universidade pública, classifica como “mulheramento” o processo de pressão por parte da comunidade acadêmica para que ela mesma se identifique como “trans” ou “transexual” ao invés de “travesti”, numa alusão aos processos de “branqueamento” de pessoas negras com uso de categorias como “moreno”.
  • 26
    Bombadeiras é a termo utilizado para designar as pessoas (normalmente travestis mais velhas) que modelam os corpos de outras travestis com a aplicação de silicone industrial em diferentes partes do corpo.
  • 27
    Aqui cabe lembrar que um dos principais critérios médicos na confirmação do diagnóstico de transexualismo é a repulsa pelos órgãos sexuais e a vontade constante de amputá-los.
  • 28
    “João Antônio de Souza Mascarenhas esteve como membro do Triângulo Rosa e participante do movimento gay, proferindo palestras nas plenárias das Subcomissões dos Direitos e Garantias Individuais, e na dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, respectivamente, em 20 de maio e 24 de junho de 1987. Nas duas ocasiões, afirmou que haveria na sociedade uma confusão entre o homossexual e o travesti, o que para o movimento gay seria um grande erro. Há, segundo ele, o homossexual comum e há o travesti, que em muitos casos são prostitutos e acabam se envolvendo com pequenos furtos ou drogas. A imagem predominantemente atribuída ao homossexual, na verdade corresponderia ao travesti e esta aproximação atrapalharia o movimento organizado.” (CÂMARA, 2002: 57, grifo no original)
  • 29
    Para um histórico mais completo sobre a organização política de homens trans, ver Ávila (2014) e Carvalho (2015).
  • 30
    Alguns ativistas falam do livro Viagem Solitária como um marco histórico e afirmam terem passado a se engajar na política do movimento trans após lerem o livro. Os efeitos da visibilidade pública alcançada por João W. Nery guarda semelhança com o efeito positivo sobre travestis e mulheres transexuais que teve o grande destaque de Roberta Close, décadas atrás, na mídia brasileira.
  • 31
    Uma análise dessas novas experiências está em Carvalho (2015) e Carvalho & Carrara (2015).
  • 32
    Como explicitado nos trabalhos de Silva (1993), Kulick (2008) e Benedetti (2005).
  • 33
    Outros trabalhos, ainda que com campos empíricos e perspectivas analíticas diferentes, já se voltaram para aspectos da interseccionalidade entre outros marcadores, tais como sexualidade, gênero, classe, geração e raça na dinâmica de constituição e afirmação de identidades políticas dentro do espectro “LGBT”. Entre estes, destaco Almeida & Heilborn (2008), Barbosa (2013) e Aguião (2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    21 Nov 2016
  • Aceito
    04 Set 2017
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