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O rosto das diabas: bruxaria e subversão na cosmopolítica das Pombas-giras

The Face of Female Devils: Witchcraft and Subversion in the Cosmopolitics of Pomba-Giras

Resumo

Este artigo apresenta as manifestações descolonizadoras das Pomba-giras, analisando as suas ações nas giras de Quimbanda. A etnografia, junto ao diálogo com a perspectiva feminista decolonial, discute a Pomba-gira como uma potência de enfrentamento ao sistema colonial/patriarcal/moderno, que lhe atribui dimensões degradantes de rostidade. As (r)existências criadas por elas subvertem os baluartes ontológicos dualistas da modernidade/colonialidade, impostos aos povos e às mulheres por mais de cinco séculos.

Pomba-gira; Quimbanda; Rosto; Resistência; Perspectiva Decolonial

Abstract

This article presents decolonizing manifestations of Pomba-giras, analyzing their actions in the giras of Quimbanda . Based on ethnography and dialogue with a decolonial feminist perspective it discusses the Pomba-gira as a power used to confront the colonial/patriarchal/modern system, which sees their facial qualities in a degrading manner. The (r)existences created by the Pomba-gira subvert the dualistic ontological foundations of modernity/coloniality, imposed on peoples and women for more than five centuries.

Pomba-gira; Quimbanda; Face; Resistance; Decolonial Perspective

Introdução

Este artigo aborda as potências das Pombas-giras, mulheres dos coletivos afrorreligiosos, que contrapõem as concepções hegemônicas de gênero. Elas são cultuadas na Quimbanda e arrastam consigo legiões de espíritos que já estiveram no plano material. Essas actantes1 1 Para Latour (2004 ; 2012), os actantes são tanto humanos quanto extra-humanos (deuses, minerais, máquinas, animais, vegetais e diversos seres que interagem entre si). subvertem, de múltiplas formas, os padrões do regime ocidental de ser e de compor o cosmos, apresentando-se como uma inversão das santas da igreja católica.

As giras de Quimbanda constituem uma assembleia de actantes humanos e extra-humanos, que se aliam em determinado espaço com seus corpos e espíritos para operar coletivamente os poderes e as decisões de jurisdição cósmica, os axés . As Pombas-giras se reúnem e, por meio de seus porta-vozes/médiuns, trazem ao terreiro 2 2 Termo êmico que designa o local de culto. Vale ressaltar que todo vocábulo êmico estará grifado em itálico no decorrer do texto. as mulheres, as bruxas, a magia, a feitiçaria, os animais sagrados, os saberes botânicos e terapêuticos. Elas constituem uma cosmopolítica3 3 A cosmopolítica é um conceito proposto por Isabelle Stengers (2005) , em que o cosmos é traduzido em termos substancialmente e ontologicamente divergentes do universo e da natureza, que são colocados como objetos da ciência moderna. Tal cosmos é composto por relações entre diversos seres e mundos, que se conectam e articulam a realidade em diversos sentidos e direções, multiplicando diferenças. na qual os corpos se tornam espaços de resistência e as entidades espirituais formam uma assembleia multidimensional, participando das esferas sociais, operando seus poderes e saberes. Esses modos de existência são desprezados pela ordem hegemônica, pois diferenciam-se do padrão colonial/moderno, no qual as Pombas-giras são associadas ao diabo, a signos de desmoralização e degradação ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006. ).

Isso se conecta com a discussão do conceito de rosto proposta por Butler (2006BUTLER, Judith. Vida Precaria: el poder del duelo y de la violência. Buenos Aires, Paidós, 2006.: 17). Ela enuncia que o rosto da alteridade, produzido pelos discursos hegemônicos, estabelece a “extrema precariedade do outro”, permeada por lógicas de poder, saber e ser, em um juízo moral que outros fazem sobre o diferente. Além disso, a noção de rostidade, abordada por Deleuze e Guattari (2012)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.3, São Paulo, Editora 34, 2012. , remete a uma realidade dominante e de poder, em que os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata, que atribui aos povos a definição cristã do homem branco europeu, estabelecendo uma rostificação racista.

Essa classificação remete à colonialidade, que é perpetuada pelas instituições modernas – Estado, Ciência, Mídia, etc., provocando a “diferença colonial” entre o moderno e o não moderno ( Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v.22, n.3, Florianópolis, 2014, pp.935-952. ). Assim, foram produzidos rostos degradados para todas(os) aquelas(es) que não se encontram do lado das medidas padronizadas pelo eurocentrismo. Dessa forma, mulheres, povos indígenas, negros e outros sujeitos subalternizados – que possuíam outras epistemologias, corporeidades e políticas – foram caracterizados como malignos, diabólicos, primitivos e imorais ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).

As Pomba-giras se localizam na cosmopolítica afro-brasileira e no “lócus fraturado” da modernidade ( Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v.22, n.3, Florianópolis, 2014, pp.935-952. ), expressando multiplicidades de formas no mundo. Nos interessa entendê-las da maneira como elas mesmas se definem, conectadas às suas subjetividades, o que nos permite pensar na multiplicidade e fluidez de corporeidades, epistemologias e políticas. Reconhecem-se assim, “entidades que foram explicitamente banidas da existência coletiva por mais de um século de explicações sociais” e quinhentos anos de modernidade ( Latour, 2012LATOUR, Bruno. Reagregando o social: uma introdução à teoria do ator-rede. Salvador, Edufba, 2012.: 105).

Realizamos a etnografia em um terreiro de Quimbanda, Umbanda e Candomblé, localizado na Região Sudoeste do Paraná4 4 O nome e a localização do terreiro e do município em que a etnografia foi elaborada são omitidos. Além disso, são utilizados nomes fictícios para o sacerdote e dos demais médiuns integrantes do local, com a finalidade de preservar suas identidades. , por meio de observações durante quatro anos (desde março de 2016 até os dias atuais). As(os) interlocutoras(es) desta pesquisa são as(os) humanas(os) vinculadas(os) ao corpo de membras(os) do terreiro , denominado corrente , que conta com três cambones (secretárias dos Orixás) e seis médiuns de incorporação. Além disso, as Pombas-giras do pai de santo e das(os) médiuns também foram consultadas.

Entre as(os) actantes, no terreiro pesquisado, estão o Pai Guaraci, as(os) médiuns, as(os) consulentes, as Pomba-giras (a Pomba-gira Rainha das Sete Encruzilhadas, a Pomba-gira Maria Padilha, a Pomba-gira Maria Molambo, a Pomba-gira Maria Farrapo, a Pomba-gira das Matas e a Pomba-gira Capa-Preta), os Exus (Exu Capa-Preta e Exu Cobra), as encruzilhadas, o congá , a canjira , os trabalhos 5 5 Termo êmico que designa quaisquer atividades mágico-religiosas afro-brasileiras. , as experiências oníricas, os devires (devir-bruxa, devir-povo, devir-animal, devir-mulher, devir-mulher negra, devir-mulher indígena), entre outros. A etnografia dessas práticas e saberes mostra-se elementar para dialogar com filosofias e epistemologias do Terceiro Mundo ( Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, CLACSO, 2005. Colección Sur Sur, pp.117-142. ), valorizando seus saberes e promovendo o reconhecimento dessas alteridades.

Portanto, o presente artigo tem como objetivo analisar a agência das Pomba-giras, considerando as suas manifestações nas giras de Quimbanda, e discutir como estas criam formas de descolonização do sistema colonial/moderno/patriarcal. No decorrer do texto, será possível entender a “rostificação” degradante que foi atribuída a elas e aos povos não modernos e, ao mesmo tempo, compreender como as Pombas-giras contrapõem-se a esse sistema por meio de suas cosmopolíticas.

Genocídio e epistemicídio de povos e mulheres na colonialidade/modernidade

No período que antecede o colonialismo, os entes extra-humanos faziam parte do cotidiano dos povos, compondo suas cosmo-ontologias. Com a ascensão da modernidade/colonialidade, no século XV, foram instituídas racionalidades e normatividades eurocêntricas, que estabeleceram um desenvolvimento civilizacional em uma perspectiva evolucionista6 6 A interpretação eurocentrada das relações entre sociedade e natureza, assentada sob polaridades, como europeu/não europeu, pré-capital/capital, primitivo/civilizado, tradicional/moderno, etc., cedeu legitimidade científica ao pensamento do evolucionismo social mediante a naturalização das disparidades hierárquicas nas relações de poder entre os “modernos” e os “arcaicos” ( Lander, 2007 ). . Nesse contexto, as experiências, saberes, religiosidades, técnicas, ciências, medicinas, jurisdições, culinárias, políticas, corporeidades, musicalidades, histórias, memórias, linguagens, dentre outras dimensões das diversas sociedades do “novo mundo”, passaram a ser interpretadas como inferiores, primitivas, carentes e pré-modernas ( Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, CLACSO, 2005. Colección Sur Sur, pp.117-142. ).

Silvia Federici (2017)FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. analisa as consequências do colonialismo e da modernidade, apontando para os acontecimentos articulados do genocídio dos povos indígenas, da escravização de africanos, do cercamento de terras de camponeses e da caça às bruxas na Europa, que perpetuaram violências de dominação cultural, ontológica e política, impostas aos povos não modernos por relações de poder7 7 Para entender as relações de poder, evocamos Foucault (1997: 87-88), que as enuncia como uma “multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio que exercem e constitutivos de sua organização [...] um jogo que através de lutas e afrontamentos se transforma, reforça e inverte [...] o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis [...]. As relações de poder são imanentes às relações (econômicas, de conhecimento, sexuais, etc.)”. hegemônicas. Conforme a autora, esse sistema visava a transformar as mentes e os corpos dos povos dominados em recursos econômicos sob o controle do Estado, erradicando qualquer ameaça à reprodução do capitalismo.

Nesse contexto, ocorreram perseguições, violências e desumanizações das populações mencionadas, para as quais a magia era uma forma significativa de existência e resistência. Entre os séculos XV e XVII, as expressões mágico-religiosas desses povos foram combatidas pelos aparelhos ideológicos hegemônicos – morais, jurídicos e teológicos – e rotuladas como bruxaria, práticas demoníacas e bestiais ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).

Os saberes modernos estabeleceram o antropocentrismo, em que os seres extra-humanos foram classificados como natureza, emergindo um sistema de exploração e manutenção do capital, ocasionando a destruição dos sistemas locais de saber, subjugados por políticas de eliminação. A partir desse regime, o cosmo passa a ser definido por uma concepção mecanicista, fundamentada na divisão e separação ontológica entre humano e natureza ( Shiva, 2003SHIVA, Vandana. Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. São Paulo, Gaia, 2003. ; Quijano, 2005QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, CLACSO, 2005. Colección Sur Sur, pp.117-142. ).

A colonialidade/modernidade estabelece um discurso de verdade ( Foucault, 1997FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. Rio de Janeiro, Graal, 1997. ) por meio de suas instituições – midiática, estatal, militar, etc. Esse discurso produz classificações dos sujeitos, estabelecendo que um indivíduo dotado de rostificação branca/patriarcal/europeia é constituído de plena humanidade e racionalidade, enquanto que aqueles indivíduos que não correspondem a tal padrão são desumanizados e reduzidos a “objetos” ( Lander, 2007LANDER, Edgardo. Marxismo, eurocentrismo y colonialismo. 2007. ). Os rostos são julgados conforme esse modelo e aqueles que dele se distanciam são rejeitados ou eliminados ( Deleuze; Guattari, 2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.3, São Paulo, Editora 34, 2012. ), a exemplo das mulheres camponesas, indígenas e negras, que foram “rostificadas” como bruxas e associadas ao demônio cristão ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).

Nessa ótica dos saberes hegemônicos, as práticas de cura, do parto, de cuidado e de magia deveriam ser superadas, visto que eram consideradas como primitivas, irracionais e orientadas pela superstição ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ). Porém, os modos plurais de existência e de conhecimentos ancestrais dos diversos povos criaram formas de resistência, articulando práticas de saúde e bem-estar às suas comunidades.

Esses povos mantêm relações com divindades, espíritos, corpos celestes, tempos diversos, fenômenos meteorológicos, vegetais, animais, minerais, etc., partícipes do cosmos. Essas conexões envolvem um conjunto de saberes-fazeres, tais como ritos sacrificiais, incorporações, adivinhações, danças, musicalidades, pinturas, expressões eróticas, conhecimentos, manejos dos poderes curativos, produção de fármacos, unguentos, encantamentos, benzeduras, controle de natalidade, entre outros ( Ferretti, 2013FERRETTI, Sérgio. Repensando o sincretismo. 2. ed. São Paulo, Edusp; Arché Editora, 2013. ; Ramos 2016RAMOS, João Daniel Dorneles. A (cosmo)lógica das relações humano-animais nas religiões afro-brasileiras. Iluminuras, v.17, n.42, Porto Alegre, 2016, pp.166-189. ; Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).

Conforme Federici (2017)FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. , o protagonismo e o prestígio social das mulheres, que detinham os conhecimentos das artes mágicas, produziu temor nas elites, pelos poderes cósmicos e políticos que essas práticas mobilizavam. Portanto, as acusações de bruxaria, contra elas, da Inquisição na Europa e na América, foram compostas de denúncias de cópulas com demônios e animais, sacrifícios de crianças para o Diabo e sexualização excessiva dos seus corpos8 8 Em relação à criação de um pensamento que degradava a sexualidade das mulheres, os aparelhos ideológicos, do poder da Igreja, do Estado, da Imprensa, da Arte, etc. tornavam possíveis, simultaneamente, o cercamento de terras, de mentes e corpos, no sentido de docilizá-los para que se adequassem às necessidades industriais, transformando as mulheres e a natureza em recursos econômicos ( Federici, 2017 ). . Em ambos os continentes, uma mesma política hegemônica operou com idênticas técnicas de coerção, perseguição e aniquilação das resistências das populações locais e das mulheres, estabelecendo uma lógica que cria “a medida de valor e os instrumentos para o extermínio do que considera não-valor” ( Shiva, 1993SHIVA, Vandana. Reducionismo e regeneração: uma crise na ciência. In: MIES, Maria; SHIVA, Vandana (org.). Ecofeminismo. Lisboa, Instituto Piaget, 1993, pp.37-52.: 40).

Desse modo, o colonialismo e a emergência da sociedade moderna e capitalista são marcados pela forte perseguição às mulheres, visto que elas eram as principais lideranças sociais de suas comunidades camponesas. Nas dinâmicas de vida ameríndias, elas atuavam em ramos sacerdotais, medicinais, agrícolas, artesanais, entre outros, nos quais eram as porta-vozes das divindades, essenciais para a manutenção de seus territórios ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).

Em diferentes regiões do continente africano, durante a Antiguidade e a Idade Média, as sociedades eram matriarcais, como a Etiópia, que foi o primeiro país, após o Egito, a ser governado por uma rainha negra, onde a importância do papel político das mulheres era expoente. No Antigo Egito, onde o matriarcado teve maior duração cronológica, as mulheres eram representantes do sistema agrícola e transmitiam seus direitos políticos ao seu clã. No Império de Gana e diversos lugares da África negra, durante a Idade Média, as sociedades eram predominantemente matrilineares ( Diop, 2014DIOP, Cheick Anta. A unidade cultural da África negra: esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade clássica. Serra da Amoeira, Edições Pedago, 2014. ).

Segato (2012)SEGATO, Rita. Gênero e colonialidade: em busca de chaves de leitura e de um vocabulário estratégico descolonial. E-cadernos CES, n.18, 2012, pp.106-131. enfatiza que os papéis de gênero da sociedade moderna foram instituídos pelo sistema colonial, que privou as mulheres de suas atuações políticas e de seus conhecimentos, tratando-as como objetos e não como sujeitos de direito. Elas passaram a ser excluídas da participação nas arenas públicas da sociedade civil, suas vozes foram silenciadas e, com isso, grande parte da história – narrada pelos homens modernos – as desconsiderou, não as reconhecendo enquanto sujeitos políticos, históricos e epistêmicos ( Piscitelli, 2009PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In: ALMEIDA, Heloisa Buarque de; SZWAKO, José Eduardo (org.). Diferenças, igualdade. São Paulo, Berlendis & Vertecchia, 2009, pp.116-148. ). Cabe salientar que, dentro dessa estrutura, ser caracterizado como sujeito denota um aspecto crucial para a inclusão política legítima do indivíduo ( Butler, 2016BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2016. ).

Essa estrutura de poder, saber e ser colonial/moderna é alicerçada na ontologia dualista, que “rostifica” de modo degradante as mulheres e as exclui do direito à humanidade por lentes hierárquicas e ações opressoras. Esse padrão opera, de modo mais acentuado, para coletivos que se distanciam da chamada humanidade ideal por estarem situados em mais de uma das categorias de opressão, marcadas pela interseccionalidade de classe, raça e gênero. A partir do conceito de interseccionalidade, é possível perceber como, por exemplo, uma mulher negra é afetada negativamente, com maior força do que um homem negro ou uma mulher branca, por se diferenciar em gênero e raça, o que faz com que as avenidas de opressão tomem dimensões ainda mais complexas a partir dessas vozes inaudíveis ( Crenshaw, 2004CRENSHAW, Kimberle. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília, Unifem, 2004, pp.7-16. ).

Vale ressaltar que, no cruzamento de diversas categorias de “diferença colonial”, operam formas múltiplas de resistência, pois “onde há poder, há resistências” ( Foucault, 1997FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. Rio de Janeiro, Graal, 1997.: 90). Nesse sentido, o acionamento de subjetividades micropolíticas ou infrapolíticas se constitui enquanto “políticas de resistência, rumo à libertação, mostrando os potenciais que comunidades oprimidas têm de constituir significados que recusam” a organização social estruturada pelo poder hegemônico ( Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v.22, n.3, Florianópolis, 2014, pp.935-952.: 940). Conforme Escobar (2005)ESCOBAR, Arturo. O lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós-desenvolvimento? In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires, CLACSO, 2005. Colección Sur Sur, pp.69-86. , no chamado Terceiro Mundo, coletivos criam modos distintos de se relacionar com o cosmos, com a natureza e com a sociedade, diferenciando-se das formas de fazer política e ciência da modernidade.

Essas cosmo-ontologias e epistemologias podem ser apreendidas na potência da Pomba-gira, uma actante de rituais afro-brasileiros, originária das macumbas das favelas cariocas, que se proliferou nas mais diversas ramificações do multiverso afrorreligioso, arregimentando em si cruzamentos históricos de exclusão estrutural. Desse modo, na próxima seção analisamos a existência e participação dessa entidade nos terreiros , considerando como sua voz e seu protagonismo cosmopolítico mobilizam espíritos, magia, mulheres (negras, indígenas, prostitutas, pobres), homossexuais e toda uma gama de modos de existência que, em sua subjetividade descolonizadora9 9 No que diz respeito às subjetividades descolonizadoras, ver Silvia Rivera Cusicanqui (2010). , transgridem e subvertem os baluartes da modernidade ocidental.

O rosto das diabas: transgressão como liberdade

As Pombas-giras – enquanto entidades ligadas à Linha de Exu – emergem como actantes responsáveis pela encruzilhada e estabelecem conexões articuladas aos pontos-de-força , os lugares sagrados, tais como cruzamentos de ruas, matas, calungas (cemitérios), terreiros , corpos e mentes das(os) médiuns ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006. ; Ramos, 2020RAMOS, João Daniel Dorneles. O Povo da Rua: caminhos de uma estética da existência (da) na Religião Afro-brasileira. Revista Ilha, v.22, n.1, Florianópolis, 2020, pp.75-106. ). Elas se movimentam por meio de um grande território cosmopolítico nominado Linha de Quimbanda ou Linha de Esquerda, das quais emergem como forças regentes das regiões caóticas do cosmos, também cognominadas de planos umbralinos ou infernais10 10 Conforme Coppini (2017: 104): “o Inferno da Quimbanda não é um local astral punitivo, tampouco de paz e descanso eterno. Inferno é constante aprendizado, abertura de novos territórios [...] os fogos derretem as correntes que prendem nossos subconscientes ao limitado tempo/espaço”. . Coppini (2016b) alega que essa energia caótica, quando acionada pelos Exus e Pombas-Giras, rompe e transforma as estruturas lineares de tempo/espaço da sociedade, visto que tais entidades criam transgressões e subversões às dimensões morais, culturais e epistêmicas.

Por meio das nossas observações de campo – das incorporações das Pombas-giras e dos pontos-cantados –, além das narrativas das(os) interlocutoras(es), é possível averiguar que na Quimbanda essas potências transgressoras aparecem por meio de nominações tais como: bruxa, feiticeira, mulher de sete maridos, mulher de Lucifér , etc. Elas também são apresentadas pelas suas territorialidades: donas/rainhas do cabaré, da encruzilhada, da calunga, do inferno, da magia , etc. Suas imagens iconográficas retratam mulheres desnudas, algumas vezes com devires-animais (com chifres, cascos, rabos e asas) e representações de ossos, caveiras, tridentes e outros elementos. Como dizem no terreiro pesquisado, por meio dos pontos-cantados: ela tem o poder da magia e não rejeita ‘demanda’ 11 11 No vocábulo êmico, a demanda designa atividades espirituais que visam a defender os adeptos durante os conflitos na vida terrena. / na meia-noite, no meio-dia, a Pomba-gira ‘demanda’ feitiçaria .

Nos rituais de Quimbanda, as Pombas-giras se expressam em suas múltiplas formas subversivas e são ouvidas em toda sua plenitude, sem exclusão. Elas se movem pelo conflito, embate e transgressão, pois a Linha de Exu é a ação desterritorializante12 12 A desterritorialização é o “fenômeno no qual dois territórios se sobrepõem no tempo. Um se torna a imagem virtual do outro. As identidades tendem a se sobrepor e a se dissolverem para se reconstruírem momentaneamente mais adiante” ( Anjos, 2006: 33). dos actantes do cosmos. De acordo com Anjos (2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006.: 85), o padrão colonial/moderno de humanidade é subvertido por elas, e os comportamentos morais e binarismos se invertem e/ou desmoronam. Nas suas liturgias, manifestações por visões ou pelo plano onírico, elas “não param de multiplicar signos de fuga” dessa medida, criando corporificações contrárias ao que a ordem patriarcal requer que uma mulher seja – objeto dócil, delicado, dedicado ao lar, silencioso, etc.

As Pombas-giras foram rostificadas como bruxas13 13 De modo similar, a identificação das feministas com as bruxas foi adotada pelo movimento feminista como símbolo da revolta feminina e seu poder ( Federici, 2017 ). pelo colonialismo, com formas degradantes, satânicas e hipersexualizadas. Entre os afrorreligiosos, elas atuam como formas que exprimem intrepidez, independência e resistência, tal como afirmam os pontos-cantados: Ela é bruxa das almas, ela é um Exu, na boca do lixo é Maria Molambo / Foi condenada, pela lei da inquisição, para ser queimada viva, sexta-feira da paixão. O padre rezava, o povo acompanhava, quanto mais o fogo ardia, ela dava gargalhada .

Em certa ocasião, o Exu Tiriri do Pai Guaraci fez a afirmação: o Diabo não é tão feio como pintam , explicitando que as entidades de Esquerda – que são geralmente associadas ao demônio pelo cristianismo – trazem prosperidade, abertura de caminhos, sorte nas relações amorosas, conhecimentos e proteções diversas às(aos) suas (seus) médiuns. Desse modo, as(os) religiosas(os) afro-brasileiras(os) suplicam que elas lhes assegurem a boa fluidez dos seus caminhos, mostrando a intimidade e confiança que possuem com elas e suas atuações.

Para entendermos as Pombas-giras, é necessário que os aspectos colonizadores – que circunscrevem o pensar em categorias hierarquizadas, morais, binárias e evolucionistas – sejam subvertidos. O ponto-cantado da Pomba-gira Maria Molambo diz: o que você vê não é só lixo, por trás dele têm muito feitiço! , fazendo um enfrentamento daquilo que é definido como degradante e nocivo, como as formas eróticas que são consideradas bestiais e sombrias das Pombas-giras. Do ponto de vista das(os) afro-brasileiras(os), esses atributos são meios de potencializar seus poderes, corpos e agências sobre o cosmos pela multiplicidade ( Ramos, 2016RAMOS, João Daniel Dorneles. A (cosmo)lógica das relações humano-animais nas religiões afro-brasileiras. Iluminuras, v.17, n.42, Porto Alegre, 2016, pp.166-189. ).

Assim, essas entidades evocam as lutas e as resistências das mulheres que, por meio do riso e do deboche, enfrentaram e enfrentam opressões do poder hegemônico, confrontando-o em suas tentativas de docilizar e subjugar suas mentes e seus corpos. Elas expressam, sem pudor, a sexualidade da mulher, repleta de erotismo, liberdade, sedução e rebeldia ( Frisvold, 2011FRISVOLD, N. D. M. Pomba Gira & the Quimbanda of Mbùmba Nzila. Croydon, Scarlet Imprint 2011. ). São mulheres que conhecem os potenciais terapêuticos dos vegetais, animais, minerais, espíritos e astros, e desmantelam, com seus agenciamentos, o rosto branco ocidental normatizado pela violência por mais de cinco séculos de dominação colonial/moderna.

No terreiro , onde efetuamos as observações etnográficas, a rostificação está expressa pelos enredos tecidos no congá , que é a parte pública do templo, consagrado à Linha de Umbanda ou Linha da Direita, repleto de iconografias de santos católicos, que retratam o padrão-medida de humanidade do rosto branco, sincretizados com orixás nagôs. Em contraste, a canjira é a parte privada do terreiro , consagrada à Linha de Quimbanda ou Linha de Esquerda, onde existem os assentamentos dos Exus e das Pombas-giras, com suas corporeidades fora dos padrões de humanidade da colonialidade/modernidade.

Nesse embate cosmopolítico, opera-se a relação com rostos de santas(os) – que são integrados pelo grupo afro-religioso, adotando elementos normativos, associados ao homem branco, que reflete a perspectiva hegemônica –, em busca de legitimação da sociedade englobante. Ao mesmo tempo, há o acionamento da herança africana, que é transgressora e atualizada pelas Pombas-giras, Exus, Orixás e magia, por meio da qual emergem os devires mulher, bruxa, animal. Assim, os religiosos afro-brasileiros reinventam suas existências em um “lócus fraturado” ( Lugones, 2014LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, v.22, n.3, Florianópolis, 2014, pp.935-952. ) ou na “encruzilhada” ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006. ).

As incorporações da Linha de Quimbanda ocorrem no espaço público do congá , exprimindo uma relação cosmopolítica, na qual o regime cristão de representação do sagrado é subvertido e desmantelado em sua aspiração representante ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006. ). Diante dos rostos das(os) santas(os) brancas(os), o Pai-de-Santo Guaraci incorpora a Pomba-gira Rainha das Sete Encruzilhadas e passa a expressar um devir-mulher no homem, desterritorializando os padrões construídos socialmente sobre o corpo masculino e territorializando outras corporeidades e modos de ser. Afirma-se, assim, como mulher, vestindo saia vermelha e preta, bijuterias diversas, fumando cigarrilhas e bebendo champanhe ou licores, mostrando-se como “o inverso da santa da igreja” ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006.: 87). Nesse enredo, a Rainha das Sete Encruzilhadas articula uma cosmopolítica, por meio do protagonismo que assume em seu reino, gargalhando, fazendo feitiçarias, ensinando trabalhos para fluidez da vida sexual e da união amorosa (não apenas heteronormativa). Ela atende demandas , resolve embates e, para isso, deve ser paga com as libações solicitadas e deve lhe ser rendido o respeito.

A incorporação da Pomba-gira manifesta o devir, que, conforme Deleuze e Guattari (2008)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.4. São Paulo, Editora 34, 2008. , remete a multiplicidades e resistências, o devir-mulher, devir-povo (povo-da-rua), devir-bruxa, que é “uma experiência radical de alteridade: o ‘outro’ introduzido no ‘mesmo’” ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006.: 21). A cosmopolítica do devir ocorre quando o actante se desloca de si próprio, para ser afetado por outro ser, território, corpo e forma ( Goldman, 2006GOLDMAN, Marcio. Como funciona a democracia: uma teoria etnográfica da política. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2006. ). Nesse movimento é possível romper com “a identidade tida como substancial para construir outro território existencial” ( Ramos, 2016RAMOS, João Daniel Dorneles. A (cosmo)lógica das relações humano-animais nas religiões afro-brasileiras. Iluminuras, v.17, n.42, Porto Alegre, 2016, pp.166-189.: 185). Essa experiência pode ser entendida como afirmação da diferença, deslocando, constantemente, os padrões normativos hegemônicos.

Os actantes que se encontram na encruzilhada da Pomba-gira não se fundem como unidade, mas seguem como pluralidades ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006. ). Nessa concepção, “o conceito de devir ajuda-nos a pensar” que a Pomba-gira “está sempre num entre”, numa “multiplicidade de formas indiscerníveis”, expressas pelo seu agenciamento em diversos espaços, nos quais opera resistências políticas ( Ramos, 2016RAMOS, João Daniel Dorneles. A (cosmo)lógica das relações humano-animais nas religiões afro-brasileiras. Iluminuras, v.17, n.42, Porto Alegre, 2016, pp.166-189.: 184).

Estas ocorrem em um “lócus fraturado de tensionamentos nos quais a actante se relaciona com suas formas êmicas e com categorias hegemônicas, gerando epistemologias de fronteiras, desconectando-se dos princípios ocidentais. As Pombas-giras estabelecem o pensamento por meio de uma posição periférica que, pela sua diferença, se coloca em conflito direto com a perspectiva eurocêntrica ( Mignolo, 2008MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF–Dossiê: Literatura, língua e identidade, v.34, Niterói (RJ), 2008, pp.287-324. ).

As relações que subvertem o pensamento, o corpo e o cosmos não significam que nos terreiros não possam existir indivíduos que reproduzam violência, como o machismo ou interesses puramente mercantis, pois o poder hegemônico é estrutural e penetra em todos os lugares ( Foucault, 1997FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. Rio de Janeiro, Graal, 1997. ). Contudo, a potência das Pombas-giras efetua embates contra esses baluartes do pensamento ocidental, por meio de suas ações e intervenções transformadoras, que podem descolonizar os comportamentos dos seus médiuns porta-vozes em determinadas situações. Assim, o homem que no seu cotidiano é permeado por formas de pensar e agir alicerçadas no regime heteronormativo dominante, em giras de Quimbanda, ao incorporar uma Pomba-gira, é atravessado por um devir-mulher e devir-bruxa, que faz desmoronar, pelo menos no tempo-espaço daquela incorporação, a exaltação dos atributos machistas que noutros momentos pode expressar.

As Pombas-giras, assim como toda entidade arregimentada na Linha de Exu, trazem consigo a relatividade das medidas absolutas de humano e não humano, homem e mulher, certo e errado, bem e mal. Elas são de natureza plástica, fluída, estando de prontidão para se hibridizar em relações com aquelas(es) que irão lhes requerer pedidos. Quando uma Pomba-gira adentra na vida de um(a) médium, ambas(os) são afetadas(os), se modificam e são singularizadas(os) ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006. ).

A cosmopolítica das Pomba-giras: agenciamentos por meio dos trabalhos

Para as Pombas-giras, é importante que suas filhas e filhos 14 14 As filhas e filhos das Pombas-giras são todos aqueles que estabelecem vínculos amistosos com as mesmas a partir das relações que eclodem dentro de um terreiro . se mantenham regulares com os trabalhos mágico-religiosos realizados. Os tipos de trabalhosgiras, banhos de descarrego, defumações, oferendas, agrados, ebós, demandas , etc. endereçados a elas variam de acordo com as subjetividades das(os) iniciadas(os), consistindo em questões que envolvem abertura de caminhos amorosos, prosperidade, cura, justiça, entre outros aspectos.

Nesses trabalhos , as(os) adeptas(os) e Pombas-giras se aliam a uma assembleia de actantes de variadas ordens, tais como vegetais (roseiras, urtigas, espadas de São Jorge, comigo-ninguém-pode, mandrágoras, pimentas, frutas cítricas, figueiras, limoeiros, cana-de-açúcar, fumeiro-bravo); animais (galinhas, animais secos, insetos, raspa de ossos, raspa de chifres, ovos, mel); minerais (pólvora, pedras, ferro, enxofre); lugares (encruzilhadas, cemitérios, cruzeiros, matas, templos); e saberes mágico-religiosos.

A perspectiva de que os trabalhos são agenciamentos potentes para resolver problemas e influenciar eventos do mundo concreto é fundamental na cosmopolítica que constitui as relações do terreiro . Cada agenciamento é idiossincrático e pode requerer a aliança de diferentes actantes conforme as particularidades do intento que lhes articula. No processamento dos trabalhos contra opressões e demandas , as Pombas-giras convocadas tomam as dores de suas filhas e filhos como se fossem suas, promovendo uma cosmopolítica que aciona a justiça cósmica contra os agressores.

Por exemplo, uma consulente que frequenta o terreiro do Pai Guaraci, em determinada ocasião buscou auxílio no local para se livrar das perseguições e ameaças de um ex-marido. Entre os diálogos e encaminhamentos dessa questão junto às Pombas-giras e Exus nas giras , a Pomba-gira Maria Molambo, do médium Samael lhe solicitou realizar um trabalho numa encruzilhada fechada (em forma de “T”), com uma maçã vermelha, cujo tampão deveria ser retirado, bem como as sementes, para inserir o nome do agressor escrito nove vezes num papel, com epô (azeite de dendê) e pimenta em pó; nove lâminas deveriam ser cravadas sobre o nome, e após o tampão da maçã ser inserido novamente, ele deveria ser amarrado junto aos demais elementos com uma fita preta com nove nós e endereçado à Pomba-gira supracitada com nove velas pretas, nove cigarrilhas e um litro de marafo (cachaça). O procedimento indicava que a pessoa solicitasse que a entidade corra gira, ou seja, que invocasse a movimentação dos espíritos, com todas as suas almas, pedindo que o homem se esquecesse dela.

Todos os actantes aliados ao trabalho participaram dessa relação cosmopolítica, que foi efetuada para solicitar justiça e para findar uma situação indesejável de opressão. A Pomba-gira evocada se vale dos axés imanentes aos elementos participantes para somar força ao combate necessário. Foi explicitado pelo Pai de Santo que os actantes mobilizados no trabalho , como a maçã, dominam a cabeça do agressor, enquanto as lâminas cortam as perseguições, o epô , pimenta e o marafo lhe proporciona força ígnea para atuar em sua face de guerreira, as cores pretas permitem que ela esgote a situação adversa, e o número nove, pelo qual os componentes foram articulados, é evocado no terreiro quando se necessita encerrar determinados eventos. A encruzilhada fechada, além de ser um ponto-de-força das Pombas-giras por excelência, também promove o fechamento dos caminhos problemáticos, robustecendo o caráter do fim da circunstância indesejável. Isso corrobora com o argumento de Anjos (2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006.: 19) que afirma ser a encruzilhada “um ponto ambíguo na religiosidade afro-brasileira[...] porque ali tanto pode ser o começo, a abertura de um fluxo, quanto o fim de um território existencial”.

Coppini (2016a) menciona que as Pombas-giras Maria Farrapo e Dama da Noite podem ser evocadas em questões relacionadas à violência contra as mulheres como assédios sexuais e estupros, e se encontram de prontidão para punir fisicamente e espiritualmente os agressores. As Pombas-giras como Maria Farrapo e Maria Molambo são aludidas como mulheres negras que foram escravizadas no Brasil Colônia e que resistiram às agressões e humilhações coloniais e lograram suas liberdades com conhecimentos de feitiçaria, usados contra seus opressores, e que, libertas, conseguiram “sair pela vida, hora no cabaré, hora na rua, fizeram o que deveria ser feito” (Coppini, 2016a:478). Conforme Angela Davis (2016DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo, Boitempo, 2016.: 38), no tempo da escravidão nas Américas, as mulheres e homens negras(os) não eram diferenciados em termos de gênero no que diz respeito à opressão e às violências sofridas no trabalho; contudo, elas sofreram maiores aflições que os homens por meio da violência sexual. O estupro era uma arma de dominação e de repressão utilizada contra as mulheres no sistema escravagista, com o intuito de “aniquilar o desejo” das escravizadas “de resistir”, além de “desmoralizar seus companheiros”.

As Pombas-giras das Matas carregam a resistência das mulheres indígenas que foram oprimidas pelo patriarcado colonial e que se rebelavam contra as estruturas hegemônicas e machistas (Coppini, 2016a). Em toda a América houve resistências indígenas anticoloniais, nas quais as mulheres se tornaram guardiãs e sacerdotisas – como no caso da proteção aos huacas (deuses andinos relacionados à natureza: montanhas, florestas, rios, etc.) –, buscando refúgio contra o poder colonial nas punas (lugares mais elevados) para a prática da religião nativa ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).

As Pombas-giras articulam também um devir-animal, tal como atestam as experiências das(os) interlocutoras(es) pelo território onírico15 15 Tal como ocorre na cosmopolítica de coletivos ameríndios, as divindades eclodem em devires-animais no território onírico e transmitem conhecimentos, relações e informações diversas ( Mccallum, 1999 ). Entre os povos da Amazônia peruana, os indivíduos têm parceiros oníricos para se relacionar afetivamente, entre eles o boto-cor-de-rosa ( Belaunde, 2015 ). McCallum (2013) relata que entre coletivos ameríndios, em estado alterado de consciência, os animais tomam formas de humanos (homem-anta, homem-anaconda) para se relacionar sexualmente com os indivíduos da comunidade humana. Os exemplos mobilizados, apesar dos significados diferentes da lógica afro-brasileira, expressam que a interação de divindades e humanos, via território onírico, ocorrem em outras populações marginalizadas com diferentes ethos e epistemologias, como modos de comunicação que a modernidade não possui estruturas para entender. . A médium Iasmin relatou que sua Pomba-gira, denominada Capa-Preta, para lhe livrar de uma demanda , emergiu em sonho como uma grande serpente negra, que depois se transfigurou em um grande dragão alado que lhe transportava. A médium Esmeralda contou que lhe haviam endereçado uma demanda por via do Exu Cobra e, em território onírico, várias serpentes devoravam a carne de seu corpo. O médium Samael relata que, em uma noite, teve a experiência onírica de que seu Exu Capa Preta estava incorporado em si, nervoso, e que devorava cobras vivas; no dia seguinte, após acordar, deparou-se com uma foto de feitiço com uso de uma cobra postada por seus adversários em redes sociais, cuja legenda mencionava que esse fora um trabalho entregue a uma Pomba-gira da Linha das Cobras. Nesse particular, é pertinente mencionar que animais como cobras e aranhas pertencem às Pombas-giras e carregam seus axés e a eles se hibridizam de diversas formas.

Nessa conjuntura, a cosmopolítica afro-brasileira opera em um “lócus fraturado”, uma “encruzilhada”, um espaço desterritorializante de conflitos e tensões, no qual as(os) adeptas(os) resistem às violências impugnadas pela lógica colonial. Elas(es) descentralizam os lugares de fala, os modos de fazer política e produzem saberes e corpos que se opõem aos porta-vozes hegemônicos ( Biroli, 2018BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdade: limites da democracia no Brasil. São Paulo, Boitempo, 2018. ).

Nos terreiros , nos corpos das(os) médiuns e nos territórios oníricos, outras maneiras de vivenciar o cosmos se estabelecem. Nesses lugares, produzem-se resistência e multiplicidade que aliam potências humanas e extra-humanas, evocando “outras formas de fazer política que tomam os corpos como terminais das relações de alteridade” ( Ramos, 2016RAMOS, João Daniel Dorneles. A (cosmo)lógica das relações humano-animais nas religiões afro-brasileiras. Iluminuras, v.17, n.42, Porto Alegre, 2016, pp.166-189.: 172). Nesses espaços, desmoronam os postulados morais, discursivos, epistêmicos, construídos pela hegemonia da colonialidade/modernidade. O fato de essas manifestações e práticas não apresentarem nenhum padrão de humanidade ideal faz com que o racismo, as classes sociais e o binarismo de gênero sejam subvertidos ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006. ). A Pomba-gira traz o protagonismo das mulheres excluídas pela ordem hegemônica: bruxas, indígenas, negras e prostitutas.

Em vista disso, olhar, a partir da periferia, as mesmas formas que a modernidade ocidental despreza possibilita a emersão de novos significados de mundo, de formas, discursos, poderes e saberes ( Mignolo, 2008MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF–Dossiê: Literatura, língua e identidade, v.34, Niterói (RJ), 2008, pp.287-324. ). Na cosmopolítica da Pomba-gira, as formas de bem e mal, homem e mulher, sujeito e objeto, certo e errado, verdade e mentira, racional e irracional, humano e não humano são relativizados, pois não há polaridades absolutas nos parâmetros pelos quais as(os) religiosas(os) afro-brasileiras(os) constroem os seus mundos, que são fluídos e abertos. Assim, é na desterritorialização das medidas ideais de humanidade, por meio de uma prática radical de alteridade em relação ao sistema hegemônico, que a(o) religiosa(o) afro-brasileira(o) encontra a realização dos aspectos que circundam sua (r)existência humana.

Agradecimentos

Agradecemos às/aos pareceristas do artigo pelas importantes considerações e apontamentos realizados ao texto.

Referências bibliográficas

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  • STENGERS, Isabelle. The cosmopolitical proposal. In: LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (org.). Making things public: atmospheres of democracy. Cambridge, MIT Press, 2005, pp.994-1003.
  • 1
    Para Latour (2004LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru, EDUSC, 2004. ; 2012), os actantes são tanto humanos quanto extra-humanos (deuses, minerais, máquinas, animais, vegetais e diversos seres que interagem entre si).
  • 2
    Termo êmico que designa o local de culto. Vale ressaltar que todo vocábulo êmico estará grifado em itálico no decorrer do texto.
  • 3
    A cosmopolítica é um conceito proposto por Isabelle Stengers (2005)STENGERS, Isabelle. The cosmopolitical proposal. In: LATOUR, Bruno; WEIBEL, Peter (org.). Making things public: atmospheres of democracy. Cambridge, MIT Press, 2005, pp.994-1003. , em que o cosmos é traduzido em termos substancialmente e ontologicamente divergentes do universo e da natureza, que são colocados como objetos da ciência moderna. Tal cosmos é composto por relações entre diversos seres e mundos, que se conectam e articulam a realidade em diversos sentidos e direções, multiplicando diferenças.
  • 4
    O nome e a localização do terreiro e do município em que a etnografia foi elaborada são omitidos. Além disso, são utilizados nomes fictícios para o sacerdote e dos demais médiuns integrantes do local, com a finalidade de preservar suas identidades.
  • 5
    Termo êmico que designa quaisquer atividades mágico-religiosas afro-brasileiras.
  • 6
    A interpretação eurocentrada das relações entre sociedade e natureza, assentada sob polaridades, como europeu/não europeu, pré-capital/capital, primitivo/civilizado, tradicional/moderno, etc., cedeu legitimidade científica ao pensamento do evolucionismo social mediante a naturalização das disparidades hierárquicas nas relações de poder entre os “modernos” e os “arcaicos” ( Lander, 2007LANDER, Edgardo. Marxismo, eurocentrismo y colonialismo. 2007. ).
  • 7
    Para entender as relações de poder, evocamos Foucault (1997FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. Rio de Janeiro, Graal, 1997.: 87-88), que as enuncia como uma “multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio que exercem e constitutivos de sua organização [...] um jogo que através de lutas e afrontamentos se transforma, reforça e inverte [...] o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis [...]. As relações de poder são imanentes às relações (econômicas, de conhecimento, sexuais, etc.)”.
  • 8
    Em relação à criação de um pensamento que degradava a sexualidade das mulheres, os aparelhos ideológicos, do poder da Igreja, do Estado, da Imprensa, da Arte, etc. tornavam possíveis, simultaneamente, o cercamento de terras, de mentes e corpos, no sentido de docilizá-los para que se adequassem às necessidades industriais, transformando as mulheres e a natureza em recursos econômicos ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).
  • 9
    No que diz respeito às subjetividades descolonizadoras, ver Silvia Rivera Cusicanqui (2010).
  • 10
    Conforme Coppini (2017COPPINI, Danilo. Quimbanda: fundamentos e práticas ocultas II. São Bernardo do Campo, Ed. CapeLobo Esotérica, 2017.: 104): “o Inferno da Quimbanda não é um local astral punitivo, tampouco de paz e descanso eterno. Inferno é constante aprendizado, abertura de novos territórios [...] os fogos derretem as correntes que prendem nossos subconscientes ao limitado tempo/espaço”.
  • 11
    No vocábulo êmico, a demanda designa atividades espirituais que visam a defender os adeptos durante os conflitos na vida terrena.
  • 12
    A desterritorialização é o “fenômeno no qual dois territórios se sobrepõem no tempo. Um se torna a imagem virtual do outro. As identidades tendem a se sobrepor e a se dissolverem para se reconstruírem momentaneamente mais adiante” ( Anjos, 2006ANJOS, José Carlos Gomes. No território da linha cruzada: a cosmopolítica afro-brasileira. Porto Alegre, Editora da UFRGS/Fundação Cultural Zumbi dos Palmares, 2006.: 33).
  • 13
    De modo similar, a identificação das feministas com as bruxas foi adotada pelo movimento feminista como símbolo da revolta feminina e seu poder ( Federici, 2017FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo, Elefante, 2017. ).
  • 14
    As filhas e filhos das Pombas-giras são todos aqueles que estabelecem vínculos amistosos com as mesmas a partir das relações que eclodem dentro de um terreiro .
  • 15
    Tal como ocorre na cosmopolítica de coletivos ameríndios, as divindades eclodem em devires-animais no território onírico e transmitem conhecimentos, relações e informações diversas ( Mccallum, 1999MCCallum, Cecilia. Aquisição de gênero e habilidades produtivas: o caso Kaxinawá. Revista Estudos Feministas, v.7, n.1 e 2, 1999, pp.157-175. ). Entre os povos da Amazônia peruana, os indivíduos têm parceiros oníricos para se relacionar afetivamente, entre eles o boto-cor-de-rosa ( Belaunde, 2015BELAUNDE, Luisa Elvira. Resguardo e sexualidade(s): uma antropologia simétrica das sexualidades amazônicas em transformação. Cadernos de Campo, São Paulo, 2015, pp.538-564. ). McCallum (2013)MCCallum, Cecilia. Notas sobre as categorias “gênero” e “sexualidade” e os povos indígenas. cadernos pagu (41), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2013, pp.53-61. relata que entre coletivos ameríndios, em estado alterado de consciência, os animais tomam formas de humanos (homem-anta, homem-anaconda) para se relacionar sexualmente com os indivíduos da comunidade humana. Os exemplos mobilizados, apesar dos significados diferentes da lógica afro-brasileira, expressam que a interação de divindades e humanos, via território onírico, ocorrem em outras populações marginalizadas com diferentes ethos e epistemologias, como modos de comunicação que a modernidade não possui estruturas para entender.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2020
  • Aceito
    27 Out 2020
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