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Corpos urbanos: direito à cidade como plataforma feminista*

Urban Bodies: The Right to the City as a Feminist Platform

Resumo

Partindo da observação de que as teorizações sobre o urbano têm ocultado as questões de gênero e a luta histórica das mulheres na e pela cidade, abordamos os ativismos feministas e sua construção de uma agenda pelo direito à cidade – desde propostas de reforma urbana, até contribuições dos novos feminismos. Concluímos que os feminismos lutam sim por direito à cidade, demandando poder sobre o corpo, liberdade de circulação, acesso a serviços e espaços públicos, e cidades que não sejam planejadas apenas para um cidadão homem, branco e proprietário.

Direito à cidade; Reforma urbana; Feminismos; Corpos

Abstract

Based on the observation that theories about urban life have hidden gender issues and considering the historical struggle of women in and for the city, we examine feminist activisms and their construction of an agenda for the right to the city – considering urban reform proposals and contributions from new feminisms. We conclude that feminisms do struggle for a right to the city, demanding power over bodies, freedom of circulation, access to public spaces and services, and cities that are not planned only for citizens who are white male property-owners.

Right to the City; Urban Reform; Feminism; Bodies

Introdução

Cidades constituem um tema fundante da Sociologia. Sua emergência como ciência coincide com a rápida urbanização decorrente da revolução industrial na Europa e posterior replicação no mundo sob o signo da colonização. Tanto quanto as cidades, uma certa preocupação com a “questão da mulher”, ainda que desproporcional ao primeiro tema, foi igualmente objeto de interesse sociológico em todos os tempos. Este artigo intenta focalizar essas duas temáticas reunidas a partir de eventos da contemporaneidade, com ênfase no direito à cidade tal como formulado por teóricos e teóricas de referência e cotejado com as abordagens feministas. Nossos argumentos se movem na seguinte linha de reflexão: 1) breve localização da pesquisa; 2) recuperação das teorias que informam o direito à cidade; 3) elaboração da crítica feminista a partir de documentos centrais que formam o corpus da pesquisa e de discussões mais recentes no campo dos novos feminismos; e 4) considerações finais.

O interesse por essa pesquisa, realizada em 2016, parte de uma escuta atenta, tornada incômodo, em uma conferência em 2015. O palestrante, pesquisador de movimentos sociais, discutia a noção de direito à cidade a partir das mobilizações urbanas no Brasil desde as jornadas de junho de 2013. Localizando sua fala no Rio de Janeiro, fez referência a marcos espaciais do protesto, como a Cinelândia. Sentadas naquele auditório, sentimos surpresa e frustração. Isso pois o conferencista não mencionara nada sobre as milhares de mulheres que haviam tomado aquela mesma Cinelândia 24 horas antes. Marchavam com corpos pintados, bandeiras lilases e palavras de ordem contra Eduardo Cunha e o Projeto de Lei 5069/13, que propunha barrar parte da profilaxia de emergência (especificamente a chamada pílula do dia seguinte) para vítimas de violência sexual. A trajetória de uma Cinelândia ocupada, na versão do pesquisador, começava em 2013 e terminava nos protestos de “Não vai ter Copa”, em 2014. Certamente não parecia ser a mesma Cinelândia daquele novembro de 2015, ocupada sistematicamente pelas mulheres há uma semana, como parte do que imprensa e academia chamaram de “Primavera Feminista”. O conferencista não enxergava nos corpos feministas que tomaram as escadarias públicas do Rio de Janeiro o mesmo tipo de luta por direito à cidade que enxergava nos corpos mascarados de garotos anarquistas, e ele não estava sozinho em sua perspectiva. Muito ao contrário, sua fala se insere em uma longa tradição dos estudos da cidade, da sociologia urbana e das Ciências Sociais em geral, que desconsidera o caráter generificado1 1 Opção para o anglicismo gendered ou “marcado por gênero”. No decorrer do artigo grafamos alternativas tal como aparecem nas referências consultadas: genderizado, generificado. das relações sociais urbanas e invisibiliza manifestações urbanas conduzidas por mulheres e por pautas feministas.

As lentes da teoria social – por muito tempo produzida majoritariamente por homens – parecem não vislumbrar nas vidraças quebradas por sufragistas no século XIX, ou na nudez política das “vadias” do século XXI, algo como uma luta por direito à cidade e à cidadania. As análises sociológicas sobre os problemas e crises no espaço urbano não englobam ainda a especificidade das relações de trabalho para as mulheres, a feminização da pobreza, as características gendradas dos espaços e serviços públicos oferecidos na cidade (geralmente pensados apenas para homens), ou mesmo a constatação de que o medo e a insegurança que mulheres experimentam na cidade é de uma natureza peculiar. O risco de ter seu corpo violado tem por séculos restringido o acesso de mulheres ao espaço público, ao trabalho, ao lazer e à representação política. A utopia de um corpo feminino que se move livremente na cidade motivou uma série de marchas na última década, sob os nomes de Marcha das Vadias (SlutWalk em suas origens, no Canadá), Marcha das Margaridas, Marcha Mundial de Mulheres e Marcha das Mulheres Negras, além das mais recentes marchas feministas pela descriminalização do aborto na América Latina, e da Women’s March (Marcha das Mulheres) nos EUA e Europa.

De 2011 a 2015, a chamada Marcha das Vadias ocupou aquela Cinelândia e vários outros pontos das cidades brasileiras, pautando o direito de meninas e mulheres ocuparem a cidade sem medo, com slogans de impacto como “A rua é pública, o meu corpo não”. No entanto, insistimos, tais mobilizações não têm composto o quadro de movimentos que o palestrante de nossa anedota inicial e tantos outros consideram como exemplos paradigmáticos de lutas por direito à cidade. Alguns pressupostos contribuem para que os movimentos feministas sejam esquecidos no debate sobre o direito à cidade, como, por exemplo, a noção de que a questão das mulheres – em geral ainda compreendida como ligada ao corpo e à natureza – está na esfera do privado, do subjetivo e do particular (no imaginário popular, e inclusive acadêmico, uma esfera percebida como nãopolítica), enquanto o homem estaria por “natureza” na esfera do público e do político, da cultura e da civilização. Há, portanto, uma negação de que a política e a vida pública são corporificadas e, portanto, generificadas. Consequentemente, ignora-se o aspecto de gênero nas discussões sobre educação, saúde, transporte, lazer, trabalho e segurança pública nas cidades.

Todo o nosso trabalho de pesquisa foi orientado por uma perspectiva teórico-metodológica feminista. De acordo com Fonseca, Araújo e Magalhães (2001:1), uma metodologia e uma epistemologia feministas devem ser “politicamente comprometidas na identificação das condições sociais de desigualdade específicas das mulheres e na transformação das relações de gênero, de um ponto de vista das próprias mulheres e de suas perspectivas”. Fazer pesquisa de um ponto de vista feminista é questionar o imperialismo conceitual que define os problemas sociológicos, os instrumentos e suas conclusões, a partir da ideia de um sujeito abstrato masculino e branco (Smith, 1987SMITH, Dorothy. Women’s perspective as a radical critique of sociology. In: HARDING, Sandra. Feminism and Methodology. Indiana University Press, 1987, pp.84-96.). Acreditamos que uma metodologia feminista, ancorada em uma epistemologia feminista, deve estar atenta ao caráter não gender-neutral das análises sociológicas e se comprometer com a crítica das relações de gênero na produção das ciências. Tratando-se de pesquisa documental e bibliográfica, foram analisadas publicações teóricas, legislações e tratados nacionais e internacionais, publicações jornalísticas (impressas e online) e discursos produzidos pelas, e sobre, as manifestações aqui estudadas, em sítios específicos, blogs ou fanpages em redes sociais.

Para seguir com nossa reflexão sobre o papel do pensamento feminista no direito à cidade, conceituemos primeiro o que é feminismo. Dentre as muitas definições disponíveis, segundo Pilar Martinez:

Un feminismo es una teoría y una práctica sobre la solidaridad entre lãs mujeres y, quizá, también entre algunos hombres. Las feministas se plantean acabar, de un modo u otro, com la situación de explotación, opresión y subordinación que lós hombres ejercen sobre lãs mujeres (Martinez, 2010MARTINEZ, Pilar Rodríguez. Feminismos y solidaridad. Revista Mexicana de Sociología 72, n. 3, julio-septiembre, 2010, pp.445-466.:449).

Em 2015, uma estação alterou o ecossistema societário no Brasil. A chamada “Primavera feminista” levou mulheres a ocupar redes digitais e vias públicas com suas pautas. “As minas da linha de frente são zika”, afirmava uma animada adolescente negra chamada Marcela, em entrevista à Folha de S. Paulo sobre o protagonismo das meninas nas ocupações de escolas e nos protestos de rua contra a reorganização escolar proposta por Geraldo Alckmin na cidade de São Paulo. É possível entrever nas lutas de 2015 e 2016, as sementes de um projeto de cidade feminista, que transforma os alicerces das relações de gênero, raça e propriedade na cidade, e questiona o caráter desigual da distribuição de recursos e bens públicos. A importância de se pensar a cidade a partir de como o gênero constrói experiências e oportunidades urbanas diversas é muito bem sintetizada por Miranda:

A análise da relação entre gênero e espaços urbanos, do quotidiano das mulheres na cidade e da sua relação com essa mesma cidade tem sido negligenciada nos estados migratórios, mas revela-se um campo de reflexão fecundo. Apesar do espaço tantas vezes traduzir e revelar as próprias assimetrias, desigualdades e hierarquias sociais, a noção de espaço é uma noção criativa, que responde às pretensões de formas de vida múltiplas, alternativas, urbanas. O espaço configura oportunidades, proporciona escolhas e desafia as hegemonias de gênero (Miranda, 2014MIRANDA, Joana. Numa urbe genderizada: vivências dos espaços. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta Grossa, v. 5, n. 2, ago/dez 2014, pp.163-174.:174).

Direito à cidade: a trajetória de um debate e o lugar das mulheres

A discussão sobre a cidade ideal não é recente na história do pensamento. Sua genealogia remonta à A República, de Platão, escrita no século IV a.c. Façamos, portanto, um salto cronológico até o surgimento da sociologia urbana. As primeiras e mais relevantes contribuições para uma teorização do urbano surgem com Robert Park, da escola de Chicago, em 1925, na obra The city: suggestions for the investigation of human behavior in the urban environment; com Georg Simmel, em 1950, em seu clássico texto The metropolis and the mental life; e também com as contribuições de Louis Wirth, em 1938, em Urbanism as a Way of life2 2 No Brasil, os trabalhos de Otávio e Gilberto Velho contribuíram para a divulgação dessas abordagens. Conferir: Velho, Otávio (1976); Velho, Gilberto (2002, 1999, 1995, 1989). . O debate teórico sobre direito à cidade, propriamente, tem um salto qualitativo com as reflexões do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre, no contexto das lutas urbanas estudantis de maio de 1968 – em um primeiro momento contra o autoritarismo do modelo universitário e, posteriormente, contra todo o empreendimento bélico-capitalista-colonialista. Para o autor, o direito à cidade se exercita por meio da democracia direta e da cidadania radical, onde todos gozam de direitos civis e humanos iguais e onde esteja em questão o significado da “pertença” à uma comunidade política (2001). Lefebvre pensa a partir de categorias marxianas, argumentando que a cidade “para todos” deve ser aquela onde o valor de uso se sobrepõe ao valor de troca.

Para Henri Lefebvre (2001), existiriam duas categorias de direito à cidade. O primeiro seria o direito de usufruto do espaço urbano. Poder viver, trabalhar, ter lazer, se locomover e se representar na cidade seriam garantias desse direito. Já o segundo tipo se refere ao direito de participar nas decisões, no planejamento e na produção do espaço urbano. Esse seria o direito a uma autogestão popular do urbano, a partir da perspectiva do bem-estar coletivo e não dos lucros privados. Se para os homens não proprietários esse direito não tem sido garantido no modelo de gestão urbana capitalista, a situação para as mulheres – sobretudo as negras, de povos originários e/ou imigrantes– é ainda mais grave. Por muitos séculos elas estiveram alijadas de qualquer possibilidade de opinar sobre os usos e rumos do espaço urbano devido à restrição ao voto e à participação política formal. Lefebvre (2001) não traz em suas teorizações tal caráter generificado do problema urbano, embora curiosamente e de pouco conhecimento do público, a origem dos protestos estudantis na Paris de 1968 tenha muita relação com gênero. A primeira manifestação teve como mote a crítica à separação dos dormitórios femininos e masculinos na universidade, fato bem retratado no documentário Utopia e barbárie (2015), de Silvio Tendler.

Ao longo da última década, o geógrafo David Harvey retomou a discussão lefebvriana sobre direito à cidade, ancorado principalmente nas manifestações urbanas antirregime, como o movimento Occupy Wall Street, a Primavera Árabe, o movimento Indignados na Espanha, as lutas pela água na América Latina, entre outros. Para Harvey (2008HARVEY, David. The right to the city. New Left Review, 53, 2008, pp.23-40.:28), o direito à cidade é um direito humano coletivo e pode ser definido como:

muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização.

David Harvey (2008)HARVEY, David. The right to the city. New Left Review, 53, 2008, pp.23-40. define a vida urbana a partir de “relações sociais”. Tais relações incluem “estilos de vida”, “relação com a tecnologia” e “valores estéticos” como elementos importantes. Essa definição nos permite pensar como movimentos que reivindicam direito ao corpo e/ou a certos modos de vida e estéticas alternativas (movimento negro, feminista, LGBTQIA+, hippie, ecologista etc.) constituem lutas por um projeto de cidade outra. Em sintonia com a afirmação de Harvey, Vladimir Safatle sustenta ser impossível pensar em política sem as metáforas do corpo e a estética. “Na verdade, constituir vínculos políticos é indissociável da capacidade de ser sensivelmente afetado, de entrar em um regime sensível de aisthesis” (2015:23). A socialização de indivíduos através de determinados modos de vida ou estéticas particulares influencia diretamente os rumos urbanos e as políticas públicas. As canções; os instrumentos de percussão; o uso lúdico de chapéus, fantasias e faixas coloridas; as bandeiras; e as sempre presentes frases inscritas sobre a pele, são exemplos de como política, corpo e aisthesis são experimentados, significados e subvertidos na política urbana feminista. Ressaltamos que a produção de uma estética política feminista e antirracista não se restringe apenas ao momento do protesto de rua. Ela engloba a elaboração permanente de identidades a partir do consumo e da produção de publicações/revistas/fanzines, músicas, ilustrações, grafitagem, intervenções teatrais, roupas e acessórios, feiras e festas temáticas, batalhas de rap/hip-hop, entre outros exemplos de práticas culturais, artísticas e de consumo que assumem um caráter político feminista (Carmo, 2018CARMO, Iris Nery do. O rolê feminista: autonomia, horizontalidade e produção de sujeito no campo feminista contemporâneo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas, 2018.).

Aspectos estéticos têm tido razoável relevância nos novos ativismos urbanos. As máscaras de Guy Fawkes utilizadas por indivíduos relacionados ao hackativismo do grupo Anonymous de 2011 a 2013, os tecidos que cobrem os rostos indicando uma adesão à tática/identidade black-block, a estética Black Power (cabelos e vestimentas) nos movimentos antirracistas, ou os pañuelos verdes nas manifestações de mulheres latino-americanas pela descriminalização do aborto, são apenas alguns exemplos de como o corpo é importante na construção de identidades políticas nos atuais movimentos citadinos. Promovendo tal virada performativa, os movimentos urbanos dos últimos anos engajam-se, assim, em um “dissenso visual”, que tem como fundo um “dissenso político” (Tiburi, 2013TIBURI, Márcia. Direito visual à cidade: a estética da pixação e a cidade de São Paulo. Redobra, n. 12, 2013 [http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2013/12/redobra12_EN6_marcia.pdf. - acesso em: 07 jul 2021].
http://www.redobra.ufba.br/wp-content/up...
). Tomando a reflexão de Jordão H. Nunes, ancorada em Ervin Goffman, podemos afirmar que a estética e os modos de vida dissidentes, contra-hegemônicos, se tornam frames de protesto na contemporaneidade, uma vez que o frame é:

Um esquema interpretativo que orienta a percepção e a experiência dos indivíduos que, atuando seletivamente, identifica, pontua e codifica objetos, situações, experiências, eventos e sequências de ações presentes e pretéritas. Torna-se importante na análise da ação coletiva, já que é compartilhado por um certo número de indivíduos, que passam a direcionar suas orientações cognitivas, em diferentes níveis da experiência, no sentido de um comportamento social padronizado e orientado a certos objetivos (Nunes, 2013NUNES, Jordão Horta. Interacionismo simbólico e movimentos sociais: enquadrando a intervenção. Revista Sociedade e Estado, v. 28, n. 2, maio/agosto 2013.:272).

Para Mark Purcell (2003) e De Certeau (1984), a cidadania é performada nas atividades cotidianas dos sujeitos nos espaços urbanos. É a movimentação dos corpos que insere significados, “territorializa” a cidade. O elemento que transforma um “lugar” em “espaço” seria então a ação dos agentes passantes (walkers), aqueles que imprimem sentidos ali a partir do “conhecimento acumulado, memória e experiência corporal íntima” (De Certeau, 1984:94), no locomover-se diariamente por esses espaços urbanos. Logo, o conhecimento da cidade é um conhecimento corporificado, construído pela memória corporal. Se a cidadania e a pertença se constroem a partir da experiência do corpo e o corpo é significado pelo gênero, então a cidadania é uma experiência generificada, o que torna imperativo pensar também os feminismos como agentes de uma política urbana que luta por cidadania plena – em Lefebvre traduzida como uma luta por “direito à cidade”. Safatle afirma: “Não há política sem incorporação, pois só um corpo pode afetar o outro. Habitamos o campo político como sujeitos corporificados” (2015:134). Não há política sem corpos, não há corpos nãopolíticos e não há corpos não marcados pelo gênero. Essa é a mensagem que parecem nos sussurrar as manifestações feministas nas cidades.

Tovi Fenster (2005)FENSTER, Tovi. The right to the gendered city: different formations of belonging in everyday life. Journal of gender studies, v. 14, n. 3, 3 November 2005, pp.217-231., geógrafa israelense que discute gênero e direito à cidade, reafirma a importância do trânsito dos corpos na construção de sentidos na cidade, afirmando que o sentimento de pertença à urbe depende da relação física e afetiva do indivíduo com os espaços urbanos. Pensando a partir da teoria feminista, é necessário perguntar, portanto, quem são os sujeitos que, com corpos diversos, têm se sentido pertencentes aos espaços da cidade? Mulheres negras, mulheres trabalhadoras, adolescentes, transexuais, travestis, jovens de periferia, imigrantes, todos se sentem confortáveis, seguros e “legítimos” nas atuais cidades? Fernanda Sucupira e Taís Viudes de Freitas apontam para a “dessincronização entre a norma temporal dominante e os tempos das diversas atividades que fazem parte do cotidiano, sobretudo porque as mulheres são responsáveis pelo cuidado das pessoas e da casa” (2014:112). A incompatibilidade entre os tempos da cidade e os tempos das demandas de mulheres, crianças, idosos e pessoas com deficiência mostra como o projeto das cidades exclui a partir do gênero, da sexualidade, da raça e etnia, da classe, da geração etc.

Direito à cidade para além da academia

A discussão sobre a vida das mulheres na cidade começa ainda no século XIV com Christine de Pizan (1364-1430), em A cidade das damas. Na obra, Pizan imagina uma cidade onde viveriam apenas mulheres, as mulheres mais notórias de cada área do saber. Em 1791, Olympe de Gouges redigia a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã. A ideia de direito à cidade transcende as produções teórico-acadêmicas, tendo sido amplamente utilizada por ONGs, sociedade civil e Estado. No entanto, na maioria das vezes, essa abordagem esteve concentrada apenas nas pautas de habitação, renda e trabalho. De acordo com Maria da Glória Gohn (2007GOHN, Maria da Glória. Mulheres- atrizes dos movimentos sociais: relações político-culturais e debate teórico no processo democrático. Política e Sociedade, n. 11, out. 2007, pp.41-70.:59):

No campo das políticas públicas o tema das mulheres tem sido tratado de maneira fragmentada, como parte dos grupos sociais vulneráveis, em situação de risco, e integrado aos programas focalizados de “inclusão social” – chave política das políticas neoliberais para o trato da pobreza, desemprego e crescimento econômico, sob a rubrica de políticas que visam a promover a igualdade de oportunidades, tendo o mundo do trabalho como referência. As especificidades do “ser mulheres”, como forma de identificação pessoal e coletiva, como prática cultural de um modo de ser e prática política de sujeitos diferenciados – as atrizes em movimento, assim como suas posições no ordenamento da sociedade, continuam silenciadas e invisíveis.

No Brasil, o tema do direito à cidade aparece, de forma tangencial, nos artigos 183 e 184 da Constituição Federal de 1988, que regulamentam o chamado “usucapião” e a garantia da função social da terra, através da desapropriação de terra improdutiva para fins de reforma agrária. Em 2003, o ex-presidente Lula cria o Ministério das Cidades e também é aprovado o Estatuto das Cidades, com conteúdo que se restringe à regulamentação de usos da propriedade urbana. No V Fórum Social Mundial, em 2005, um importante documento é produzido, a “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”3 3 Carta completa disponível em: https://www.suelourbano.org/wp-content/uploads/2017/08/Carta-Mundial-pelo-Direito-%C3%A0-Cidade.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021. ,onde é possível ver avanços na preocupação com as desigualdades de gênero nas cidades. Os princípios que orientam a carta são assim colocados: exercício pleno da cidadania, gestão democrática, função social da propriedade, igualdade e não discriminação, proteção social de grupos vulneráveis, compromisso social do setor privado e impulso à economia solidária. A carta cita o respeito à pluralidade étnico-racial, sexual e cultural e demanda garantia de maior participação das mulheres no trabalho e na política formal. Algumas soluções apontadas na carta, para a garantia desses direitos, seriam a expansão das creches públicas e políticas afirmativas de cotas para representação das mulheres em instâncias eletivas. Demandas necessárias, certamente, porém que ainda pensam as mulheres a partir do lugar único de mães ou “donas de casa”.

Pensando a partir de uma agenda feminista, movimentos de mulheres em diversos países articularam plataformas específicas para o direito à cidade. Em 2004, para o World Forum of Women, no contexto do World Forum of Cultures, em Barcelona, foi produzido o documento “World charter for women’s right to the city”. O texto marca a importância do feminismo nas conquistas para os direitos das mulheres e propõe as seguintes ações para a garantia do direito da mulher à cidade: legislações afirmativas; reconhecimento formal de organizações locais de mulheres e feministas; institucionalização de departamentos de mulheres, com orçamentos independentes nos governos locais; ações que garantam a participação política das mulheres; políticas públicas que transformem a divisão sexual do trabalho; a elaboração de orçamentos sensíveis a questões de gênero; e o desenvolvimento de estatísticas e indicadores urbanos específicos de gênero. Os pontos mencionados na carta envolvem ainda habitação adequada, transporte público seguro para as mulheres, saneamento básico e campanhas públicas contra a violência de gênero. O documento foi utilizado na construção da Carta Mundial pelo Direito à Cidade.

No contexto brasileiro, diversos documentos foram produzidos por movimentos sociais de mulheres. Em 2002, aproximadamente cinco mil mulheres na Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, em Brasília, produziram o documento “Plataforma política feminista”, incluindo principalmente questões de terra e moradia. Em 2003, a “Plataforma feminista para a reforma urbana” é construída pelo Fórum Nacional da Reforma Urbana (criado em 1987 para atuação na constituinte de 1988). Essa plataforma apresenta diversos elementos para a inclusão das mulheres no rol de direitos já estabelecidos, discutindo também violência contra a mulher e transporte público, o que vai além do caráter meramente “patrimonial” da legislação anterior sobre cidades. Em 2005, mulheres paraenses preparam a “Agenda Feminista” para a II Conferência Nacional das Cidades, defendendo a inclusão dos pontos definidos na “Plataforma Política Feminista” de 2002 e no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres em futuras plataformas da reforma urbana. Já em 2011, movimentos do Norte e Nordeste elaboram a “Plataforma das Cidades Periurbanas”, objetivando, em suas palavras, “Estabelecer referências para o reconhecimento das cidades periurbanas e apresentar propostas para sua incorporação à Política Nacional do Desenvolvimento Urbano (PNDU)” (Plataforma..., 2011:43).

A cartilha “Mulheres em ação nas cidades periurbanas”, produzida pela Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) em 2011, em Recife, traz de forma didática e sensível os problemas urbanos que mais afetam as mulheres de cidades de médio e pequeno porte (periurbanas), e também algumas propostas para superar tais desigualdades de gênero. Particularidades regionais devem ser consideradas quando pensamos no direito à cidade. O acesso a recursos e à possibilidade de definir políticas locais não é o mesmo para moradoras de capitais do Sudeste e para moradoras do interior do Centro-Oeste. É importante ressaltar que quando falamos em direito à cidade não devemos pensar apenas nas grandes metrópoles. Pequenos municípios, inclusive os de caráter semirrural ou rural, devem ser contemplados em nossas reflexões. Outro ponto importante trazido pela cartilha da FASE é a importância de pensar a diversidade entre as mulheres e suas demandas. Mulheres ribeirinhas, indígenas ou quilombolas têm suas pautas e desafios específicos para uma vida nas cidades, grandes ou pequenas. Gênero, sexualidade, raça, etnia, classe e geração atravessam as possibilidades de existência das diferentes mulheres no urbano, porém é possível pensar em atravessamentos que indicam uma experiência coletiva desses sujeitos mulheres, marcada por violências e restrições na cidade. Como descrito no seguinte trecho da Cartilha “Mulheres em ação nas cidades periurbanas”:

A violência de gênero reforça a violência urbana e é reforçada por ela. Para as mulheres, não há lugar seguro; não há lugar de acolhimento. Porém, casa e praça formam uma dupla face de sonhos para conquistar para aquelas que ainda lutam por reconhecimento de seu lugar de sujeito. A casa como lugar do acolhimento e da intimidade; a praça como símbolo do espaço público a ser conquistado: lugar que produz tensão, medo e, ao mesmo tempo, desejo, pois, para as mulheres, a praça traduz o sonho de liberdade (Fase, 2011:30).

A urbe generificada

Embora a saída do campo para as grandes cidades tenha trazido para as mulheres algum grau de liberdade no anonimato das multidões, isso não significou a desconstrução do par “mulher-casa-trabalho reprodutivo” versus “homem-rua-trabalho produtivo”. Mesmo indo para o mercado de trabalho formal, as mulheres continuaram e continuam excluídas da praça pública, física e metaforicamente, além de suportarem o peso de uma segunda ou terceira jornada. Tovi Fenster (2005)FENSTER, Tovi. The right to the gendered city: different formations of belonging in everyday life. Journal of gender studies, v. 14, n. 3, 3 November 2005, pp.217-231. argumenta que as normas culturais na cidade estabelecem lugares de “pertença” e “despertença” para as mulheres, o que é válido também para as juventudes pobres e para negros e negras. Haveriam lugares permitidos e lugares proibidos. No caso das mulheres, o juiz é o homem adulto, que teria permissão social para “sancionar” a mulher que trespassa essas linhas imaginárias, agredindo-a verbalmente ou sexualmente. Vítimas de estupro são julgadas pelo local e horário onde estavam. Como destaca Fenster (2005)FENSTER, Tovi. The right to the gendered city: different formations of belonging in everyday life. Journal of gender studies, v. 14, n. 3, 3 November 2005, pp.217-231., o corpo seria o primeiro espaço construído culturalmente, sendo o corpo da mulher construído a partir das noções de limite, segredo e culpa.

Rossana Brandão Tavares (2015)TAVARES, Rossana Brandão. Uma cidade indiferente: espaço generificado de resistência à cidade-mercadoria. Sessões temáticas ST 10. XVI Enanpur. Espaço, planejamento e insurgências. Anais. Belo Horizonte, v. 16, n. 1, 2015 [http://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/1638 – acesso em: 07 jul. 2021].
http://anais.anpur.org.br/index.php/anai...
e Joseli Maria Silva (2003)SILVA, Joseli Maria. Um ensaio sobre as potencialidades do uso do conceito de gênero na análise geográfica. Revista de História Regional 8(1), Verão 2003, pp.31-45. apontam para a genderização tanto da noção de espaço quanto da noção de urbano. A perspectiva de gênero (e, portanto, de generificação/genderização) que foi adotada nesta pesquisa é consoante com a definição oferecida por Silva: “Gênero é o conjunto de ideias que uma cultura constrói do que é ser mulher e ser homem e tal conjunto é resultado de lutas sociais na vivência cotidiana” (2003:36). Quando se pensa no planejamento das metrópoles, a construção de políticas de mobilidade, habitação ou mesmo lazer são pensadas a partir das necessidades e usos que os homens fazem da cidade. Tavares (2015TAVARES, Rossana Brandão. Uma cidade indiferente: espaço generificado de resistência à cidade-mercadoria. Sessões temáticas ST 10. XVI Enanpur. Espaço, planejamento e insurgências. Anais. Belo Horizonte, v. 16, n. 1, 2015 [http://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/1638 – acesso em: 07 jul. 2021].
http://anais.anpur.org.br/index.php/anai...
:2) argumenta que:

Uma das questões fundamentais na teoria feminista e de gênero é a histórica imposição de um modelo de existência reinventado cotidianamente pelos processos de dominação e questionado por feministas, não só através do discurso, mas também através da busca de práticas transformadoras que colocam em xeque o ideal feminino (ou de mulheres). A própria ideia socialmente construída de espaço urbano, de forma geral, coloca as mulheres em um lugar marginal e dito feminino: o espaço doméstico (espaço privado); enquanto os homens estão em um lugar central, considerado naturalmente masculino: o espaço público, sinônimo de espaço urbano pela visão hegemônica dominante.

Tovi Fenster (2005)FENSTER, Tovi. The right to the gendered city: different formations of belonging in everyday life. Journal of gender studies, v. 14, n. 3, 3 November 2005, pp.217-231. e Ana Falú (2014) defendem que uma plataforma para o direito das mulheres à cidade deve ser muito mais ampla do que as preocupações arquitetônicas e de serviços que a atual noção de direito à cidade indicam. Falú (2014) inclui entre os pontos de uma agenda para a dignidade das mulheres nas cidades: a defesa da diversidade cultural, os direitos sexuais e reprodutivos, o direito a oportunidades de lazer e a superação da divisão sexual do trabalho. A autora discute como uma abordagem “maternalista”, que pensa as necessidades das mulheres nas cidades apenas enquanto mães, ainda é predominante nas políticas públicas e mesmo nas discussões da esquerda sobre reformas urbanas. De forma semelhante à Falú (2014), Silva problematiza o espaço construído, afirmando que uma visão racionalista que separa os espaços urbanos em “áreas comerciais, industriais e residenciais acentua a divisão do trabalho entre os sexos” (2007:120), o que reflete a predominância de uma perspectiva masculina no planejamento urbano. Dessa forma, Silva sustenta que o objetivo de uma geografia feminista, e podemos estender tal pressuposto para uma sociologia urbana feminista, deve ser “compreender como o sujeito feminino é construído dentro das estruturas de dominação sócio-espaciais” (2003:37). Esse “controle espacial”, conforme Massey (1994)MASSEY, Dorren. Space, place and gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1994., é um elemento constituinte do gênero, que opera simbolicamente, ou através da ameaça real de violência, caso a mulher transgrida o espaço de confinamento da casa e do trabalho. Massey (1994)MASSEY, Dorren. Space, place and gender. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1994. discute em sua obra Space, place and gender como as próprias noções de local x geral estão associadas ao feminino x masculino, retomando uma discussão que tem sido bastante presente na crítica feminista da ciência. A própria ideia de que os “estudos de gênero” ou a teoria social feminista seriam abordagens periféricas na sociologia nos indica essa oposição construída entre feminino-local-particular versus masculino-geral-universal (Souza-Lobo, 2011), que delimita espaços públicos “para mulheres” e espaços gerais (para os homens).

O confinamento das mulheres em certos espaços, certos horários e dentro de certas possibilidades limitadas de cidadania, nos mostra, portanto, como as cidades são generificadas/ genderizadas. Mas as cidades também são racializadas. A experiência da mulher negra nas metrópoles é uma experiência de privação ainda maior de liberdades, de cidadania, de direito ao corpo e de acesso a bens e serviços. Pensando com Patricia Hill Collins, é possível dizer que a experiência da mulher negra, mesmo nascida e criada em uma determinada cidade, é a experiência de uma “outsider within” (1991), de uma quase estrangeira. Lélia Gonzalez, em seu clássico “Racismo e sexismo na cultura brasileira” discute as relações raciais na cidade:

Desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são as moradias saudáveis, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento que vão desde os feitores, capitães do mato, capangas, etc, até à polícia formalmente constituída. Desde a casa grande e do sobrado até os belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, invasões, alagados e conjuntos habitacionais (...) dos dias de hoje, o critério tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço (...) No caso do grupo dominado o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias. Além disso, aqui também se tem a presença policial; só que não é para proteger, mas para reprimir, violentar e amedrontar. É por ai que se entende porque o outro lugar natural do negro sejam as prisões. A sistemática repressão policial, dado o seu caráter racista, tem por objetivo próximo a instauração da submissão (Gonzalez, 1980:232).

Como desenvolvido até aqui, ao pensar o urbano, não se deve perder de vista que as relações sociais de gênero, sexualidade, raça, etnia, classe e geração são consubstanciais e coextensivas. Ou seja, a experiência da mulher negra na cidade entrelaça essas categorias que não podem ser separadas ou somadas, mas sim pensadas como se reproduzindo e se coproduzindo mutuamente como nós constitutivos (Kergoat, 2010KERGOAT, Daniele. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos Estudos, 86, março 2010, pp.93-103.; Hirata, 2014HIRATA, Helena. Gênero, classe e raça. Interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, jun. 2014, pp.61-73 [https://www.scielo.br/j/ts/a/LhNLNH6YJB5HVJ6vnGpLgHz/?format=pdf⟨=pt. – acesso em: 07 jul. 2021].
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).

Tomando como base o conceito de direito à cidade como reinvenção do espaço de acordo com desejos e corporalidades, notamos que tanto o movimento feminista, quanto o movimento negro e LGBTQIA+ têm lutado para alterar a paisagem urbana há séculos, exibindo corpos que resistem e contrariam a norma heterossexual, a hegemonia branca e a sujeição feminina, ocupando de forma “clandestina” espaços reservados àqueles considerados “nãomarcados”. Importante notar, por exemplo, o trabalho pioneiro de Néstor Perlongher em O negócio do Michê, que trata dos territórios habitados pelo circuito do desejo e da comercialização de serviços sexuais entre homens nas ruas da cidade de São Paulo. Valendo-se, entre outros, do conceito de “regiões morais”, de Robert Ezra Park (1864-1944), Perlongher elabora uma análise cuidadosa e atenta das trocas materiais e simbólicas estabelecidas entre homens, cujas relações – cliente/michê – são marcadas por clivagens de classe, idade, sexualidade e raça, incidindo diretamente na produção de identidades funcionalmente “contrastivas”, embora, até certo ponto, fluidas. Essas relações se dão nos labirintos da cidade com suas divisões intrínsecas à organização socioespacial, e também moral, de áreas urbanas numa metrópole moderna. Ou seja, os corpos não são livres para habitar qualquer espaço para qualquer propósito, o que mostra como os habitantes das cidades têm encontrado historicamente formas de romper e transcender as hierarquias impostas pela lei (real e simbólica), a despeito dos riscos que tais práticas incorrem. O trabalho de Perlongher realça essa dinâmica da “geografia do sexo” quando recorre a Robert Park.

Esses indivíduos desafiam o afeto predominante nas metrópoles de acordo com Bauman (2009)BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro, Zahar, 2009., o medo, e inauguram outros afetos a partir de novos e ousados lugares e identidades políticas. Os corpos que imprimem sentidos nas cidades não são os corpos “universais” de uma suposta cidadania abstrata – noção já questionada pela crítica decolonial – mas sim corpos de carne, osso, gênero, raça, etnia, classe, sexualidade, geração etc. (Davis, 2018DAVIS, Angela. A liberdade é uma luta constante. São Paulo, Boitempo, 2018.).

A rua e a rede: feminismos urbanos e novos ativismos

Em 2011, acontecia em São Paulo a primeira “Marcha das Vadias” no Brasil. Entre 2011 e 2015, a marcha entrou no calendário anual de várias cidades brasileiras. Durante a marcha, as participantes frequentemente deixavam os seios à mostra, pintavam os corpos com dizeres feministas, entoavam canções, faziam performances e cirandas, utilizavam fantasias diversas e carregavam bandeiras lilases ou cartazes com frases sobre violência sexual, violência doméstica, assédio, objetificação dos corpos das mulheres e direito ao aborto (Gomes; Sorj, 2014GOMES, Carla; SORJ, Bila. Corpo, geração e identidade: a Marcha das Vadias no Brasil. Revista Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, maio/agosto 2014.). O direito de fruição do próprio corpo e de que ele não seja controlado pelo Estado, pela ciência médica ou pela religião está no núcleo de todas essas pautas, vide slogans repetidos em praticamente todas as marchas, como “Meu corpo, minhas regras” ou “A cidade é pública, meu corpo não”. Julia P. Zanetti (2011)ZANETTI, Julia Paiva. Jovens feministas do Rio de Janeiro: trajetórias, pautas e relações intergeracionais. cadernos pagu (36), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.47-75. defende que se compreenda a Marcha das Vadias dentro do mesmo escopo dos levantes urbanos bastante juvenis que tomaram as ruas do mundo no período, como a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, entre outros. Bem mais recentemente, observamos fenômeno semelhante nos protestos antirracistas nos Estados Unidos em 2020, com uma juventude negra tomando as ruas com uma estética de protesto bastante peculiar. O Black Lives Matter é também um movimento por direito à cidade, pela possibilidade de existir e de se movimentar pela cidade sem o risco de ser vitimado(a) por uma necropolítica4 4 Conceito desenvolvido por Achille Mbembe em Crítica da razão negra (2018). Refere-se ao exercício de um poder (sobretudo estatal) que regula quem vive e quem morre (ou quem terá mais probabilidade de viver ou morrer), a depender de marcadores de cor e classe. racista de segurança pública.

Na “mitologia” liberal sobre a origem da sociedade, as mulheres jamais foram consideradas signatárias do contrato social, possuindo apenas uma cidadania parcial e condicionada. Mulheres ainda precisam afirmar seus corpos, direitos e demandas particulares para garantir sua participação como players nas deliberações políticas. Em 14/09/2011, o coletivo Blogueiras Feministas publicou texto online, de Bárbara Lopes, sob o título “O corpo é meu, a cidade é nossa”. O ano de 2011, como já mencionado, foi o ano de nascimento da Marcha das Vadias, e já no primeiro parágrafo Lopes argumenta que o movimento pauta também o direito à cidade, “além do direito de não ser estuprada”. Partindo do discutido até agora e da posição de diversas feministas que pensam cidades, poderíamos dizer que o direito de não ser estuprada não é diferente do direito à cidade, mas sim uma manifestação dele. Quando as mulheres têm sua mobilidade restringida pelo medo da violência de gênero, estão limitadas as suas possibilidades de sociabilidade na cidade. A blogueira discute adicionalmente como o próprio formato da Marcha das Vadias reflete uma retomada da cidade pelas mulheres, uma vez que elas ocupam as ruas. “Ao andar a pé a mulher está sujeita ao assédio das cantadas grosseiras; no transporte público, ao abuso sexual; no carro, aos xingamentos e preconceito sobre sua capacidade de dirigir”, afirma. A leitura do texto mencionado nos permite concluir que a Marcha das Vadias nasce já como uma luta por direito das mulheres à cidade, sendo isso percebido conscientemente e verbalizado por suas participantes, como Bárbara Lopes. No contexto da marcha, o slogan “o meu corpo me pertence” não é um slogan que se opõe à ideia de coletivismo, mas sim uma defesa de que as mulheres tenham condições mínimas para entrar no jogo democrático e usufruir de cidadania plena.

Em artigo de Alana Moraes (2012:s.p.) na página oficial da Marcha Mundial das Mulheres, intitulado O direito à cidade também é uma luta feminista, a autora sustenta que homens e mulheres são desigualmente afetados por “problemas comuns”:

Sem acesso à cidade e ao espaço público nós ficamos cada mais aprisionadas aos espaços do trabalho e da casa, do mercado e do lar, da produção e da reprodução. Pouco nos resta e nos é permitido vivenciar nossa cidade, ruas, museus, reuniões de bairro, peça de teatro na esquina, ocupação da praça. Precisamos de uma cidade onde possamos nos reconhecer e para isso é fundamental um sistema de transporte público de qualidade, ciclovias seguras e de uma cidade sem violência.

Em 28/07/2015, Débora de Araújo (militante do Levante Popular da Juventude) argumentou de forma análoga no artigo A mulher e o direito à cidade, publicado também na página do coletivo Blogueiras Feministas. O direito à cidade seria um direito coletivo, mas as mulheres não usufruiriam dele, pois não possuem direito individual ao próprio corpo, sendo objetos permanentes de violações na cidade e no espaço doméstico. Débora de Araújo discute em seu texto uma polêmica que ganhava a mídia à época da publicação: o vagão-rosa. O projeto de instituir espaços só para mulheres em metrôs e ônibus em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília foi apresentado como solução para a insegurança e abusos vivenciados por mulheres. No entanto, a proposta é vista por Araújo e por grande parte das feministas mais jovens como uma medida que segrega as mulheres e não resolve o problema. A autora afirma:

A resposta do poder público poderia ser diferente, fossem as mulheres de fato ouvidas na questão. Poderia ter investido dinheiro em campanhas educativas sobre machismo e violência sexual, aumento das linhas do metrô de modo a comportar todos os usuários de maneira razoável, funcionários treinados para lidar com o problema, maior segurança etc. (s.p)

O transporte coletivo, ao lado da moradia e dos serviços de saúde e de educação são questões que afetam profundamente as mulheres na cidade, principalmente as pobres e responsáveis pelo cuidado de crianças, idosos e doentes. Em cartilha da ONG SOS Corpo (Instituto Feminista para a Democracia – Recife), um texto intitulado Direito à moradia e à cidade para nós mulheres traz a questão da habitação, saneamento básico, acesso à terra e mobilidade urbana como pautas essenciais ao feminismo. As mulheres teriam a tarefa de transformar a “cidade-mercado” em “cidade como espaço coletivo, com justiça ambiental e para o bem-viver” (s.p). A luta por direito à cidade conduzida pelos feminismos é, enfim, uma luta para desmasculinizar o espaço, tornando-o seguro para nossos corpos e subjetividades, sendo uma luta pelo próprio reconhecimento de que os espaços são generificados e de que isso produz desigualdades. Para Tavares (2015TAVARES, Rossana Brandão. Uma cidade indiferente: espaço generificado de resistência à cidade-mercadoria. Sessões temáticas ST 10. XVI Enanpur. Espaço, planejamento e insurgências. Anais. Belo Horizonte, v. 16, n. 1, 2015 [http://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/1638 – acesso em: 07 jul. 2021].
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:2), “as práticas sociais de gênero no espaço e as performances de seus corpos desvendam processos de resistência, os quais chamamos de espaços generificados de resistência, resultando de uma tensão por justiça social”. Nessa medida, podemos afirmar que mobilizações como a Marcha das Vadias tensionam o espaço, denunciam o caráter generificado da cidade, surpreendem e subvertem a ordem, com corpos não “comportados” que abrem brechas de resistência na agenda e no espaço público.

Cidadanias digitais e primaveras

Em 2015, o mês de novembro foi surpreendido pela fertilidade explosiva de uma “Primavera Feminista”. Debates sobre assédio, machismo na mídia e práticas racistas tomaram as redes sociais e veículos de imprensa. Atos feministas surgiam de norte a sul do país. Tendo como estopim o já mencionado Projeto de Lei 5069/13, do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, marchas com milhares de mulheres ocorreram em inúmeras capitais. “A pílula fica; Cunha não” e o tradicional “Tirem seus rosários de nossos ovários” davam o tom da oposição à pauta ultraconservadora.

A pauta da igualdade de gênero tomou de assalto o debate público nos últimos anos, principalmente nos meios digitais. Ferreira (2015)FERREIRA, Carolina Branco de Castro. Feminismos web: linhas de ação e maneiras de atuação no debate feminista contemporâneo. cadernos pagu (44), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu, Unicamp, janeiro-junho de 2015, pp.199-228. aponta como as ferramentas digitais contribuíram e contribuem para a construção de feminismos web, a partir de uma tecnopolítica e de práticas horizontais, multimodais e comunitárias (2015, p. 2015). A partir de 2015, hashtags como #meuprimeiroassédio, #chegadefiufiu e #meuamigosecreto obtiveram milhares de compartilhamentos nas redes sociais com denúncias diversas. Na medida em que o feminismo se impõe na agenda nacional cada vez mais, o direito à cidade também é pautado. A pesquisa5 5 Resultados da pesquisa disponíveis no endereço: https://thinkolga.com/ferramentas/pesquisa-chega-de-fiu-fiu/. Acesso em: 7 jul. 2021. “Chega de fiufiu”, realizada pela ONG Think Olga em 2013 com 7.762 mulheres, mostrou que 81% das entrevistadas já deixaram de fazer alguma coisa (ir a algum lugar, passar na frente de uma obra, sair a pé) por medo de assédio, e 90% já trocaram de roupa pensando no lugar em que iam por medo de serem assediadas. Os resultados apontaram ainda que 98% dos assédios aconteciam na rua, sendo 64% nos meios de transporte. De acordo com matéria publicada na página “Feminism Urbana”, 85% das pesquisadas também responderam já terem sido tocadas no corpo contra sua vontade no espaço público, 68% já foram agarradas pelo braço em baladas e 54% já ouviram ofensas e xingamentos na rua. Os dados nos mostram que claramente o assédio e o abuso como demonstrações de poder promovidas por homens na cidade limitam a ocupação do espaço público por mulheres.

O avanço da agenda conservadora culminou na queda da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e na eleição do político de extrema-direita Jair Bolsonaro. No entanto, a tentativa de conter avanços na igualdade de gênero divide espaço com a ascensão e projeção dos feminismos. Desde 2015, o inverno conservador se antagoniza com uma “Primavera das Mulheres”. Em 2016, a publicação de uma matéria elogiosa sobre Marcela Temer, na Revista Veja, com o título “Bela, recatada e do lar”, produziu uma grande reação feminista, por ser a antítese do que esses movimentos defendem. O que os editores da Revista Veja pareciam dizer, enfim, é que a “mulher ideal” seria aquela que reúne os três qualificadores mencionados. Imediatamente, milhares de mulheres tomaram as redes com textos e fotos críticas ao “bela, recatada e do lar”. Uma jovem postava uma foto com roupa curta, bebendo ao ar livre em uma praça da cidade e acrescentava a legenda “bela, recatada e do lar”. Outro grupo de mulheres postava fotos em uma estrada, viajando e fazendo topless e mais uma vez lá estava a legenda “bela, recatada e do lar”. Inúmeras mulheres se juntaram à irônica e jocosa campanha postando fotos em festas, praias, ruas, bares, praças públicas e outros pontos da cidade. Em São Paulo e no Rio de Janeiro foram realizados dois atos de rua sob o título “Bela, recatada e do lar”, com críticas tanto ao machismo representado na mídia, quanto ao governo de Michel Temer. Marcela Fuentes argumenta que “O digital é hoje uma parte integral dos atos de protesto” (2015:2). A autora acrescenta que esse novo modelo força a academia a repensar “as noções de corporeidade para além do corpo biológico”, na medida em que “as performances online expandem as maneiras em que a performance é redefinida como um evento corporificado, ao vivo e in loco”.

A campanha e as marchas relacionadas ao “bela, recatada e do lar” se constituíram evidentemente como lutas das mulheres por direito à cidade. A noção de uma mulher “do lar” retoma a separação entre espaço público para os homens e espaço da casa para as mulheres, restringindo sua mobilidade e participação política, e mantendo a sobrecarga de trabalho doméstico e de cuidados sobre as mulheres de cada núcleo familiar. Como sustentado por Tavares (2015TAVARES, Rossana Brandão. Uma cidade indiferente: espaço generificado de resistência à cidade-mercadoria. Sessões temáticas ST 10. XVI Enanpur. Espaço, planejamento e insurgências. Anais. Belo Horizonte, v. 16, n. 1, 2015 [http://anais.anpur.org.br/index.php/anaisenanpur/article/view/1638 – acesso em: 07 jul. 2021].
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:8):

Procuramos brechas para existirmos na cidade. Achamos brechas quando ousamos sair de bermudas nas ruas no início do século XX, ou mesmo de minissaias na década de 60. Ousamos votar, estar nas ruas trabalhando, ousamos ser donas de nosso sistema reprodutivo, ousamos falar, gritar e chorar em público por nossas perdas, pela violência que sofremos, ousamos existir segundo o que acreditamos ser a existência em nosso tempo. Isso nada mais é que resistir.

Em novembro de 2015, durante o caldeirão de mobilizações feministas, outro evento importante representou a luta das mulheres negras pelo direito à cidade: A I Marcha das Mulheres Negras, realizada nas ruas de Brasília em 18/11, encerrando-se no Congresso Nacional. A violência da repressão de grupos de direita à marcha, com xingamentos e inclusive disparos para o alto com arma de fogo, mostrou como as mulheres negras que ocupam as ruas e praças da cidade incomodam a ordem branco-centrada e masculinista de nossa sociedade. O mito da democracia racial esconde a sistemática exclusão de negros e negras do lugar da cidadania e do direito à cidade. Quando as mulheres negras reivindicam direito à cidade, elas reivindicam direito à própria vida, a existir e transitar sem o risco de seu extermínio. É imperioso repensar o debate sobre cidades que se tem feito até agora, de forma a de fato incluir mulheres, negras e negros, LGBTQIA+, indígenas, quilombolas, migrantes e tantos outros sujeitos. A perspectiva para uma vida digna e plena nas cidades deverá ser multiversa, corporificada e construída coletivamente por cidadãos e cidadãs.

Considerações finais

Discutimos ao longo deste artigo como ONGs, fóruns, organizações e movimentos feministas diversos, organizados ou “autônomos”, responderam à cegueira de gênero das teorias e propostas sobre e para o urbano nas últimas décadas, trazendo novas atrizes e demandas para a perspectiva de direito à cidade. Esses ativismos, ao produzirem documentos importantes e inaugurais como plataformas feministas para o direito à cidade, afirmaram o caráter generificado da vida citadina e incluíram as pautas das mulheres na agenda política municipal, nacional e internacional. Refletimos também sobre como movimentos feministas têm abordado o direito da mulher à cidade a partir de novos ativismos, a exemplo do protesto ou ocupação de prédios públicos, das intervenções digitais, e do (art)ivismo e da performance, adotando novas estéticas e modos de vida, que desafiam as fronteiras simbólicas e excludentes das cidades.

Uma análise do caleidoscópio de ações feministas aqui descritas aponta para a relevância de diferenças geracionais e espaciais. Temos desde propostas e plataformas gestadas dentro de espaços do feminismo “profissional”, institucionalizadas em ocasiões e lugares como conferências, conselhos, ONGs, secretarias municipais/estaduais e fóruns, até ações cuja natureza é nomeada pelas próprias participantes como mais “autônoma”. No caso das jovens feministas que compuseram ações recentes mais descentralizadas, parece haver uma desconfiança generalizada das instituições. A política de articulação com o Estado parece ter sido, assim, substituída em grande parte por uma orientação agonística (Mouffe, 2013MOUFFE, Chantal. Feminismo, cidadania e política democrática radical. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (org.). Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo, Editora Horizonte, 2013, pp.265-281.), onde os grupos fazem oposição permanente ao Estado, denunciando os problemas que atingem as mulheres, mas sem desejar a condição de coelaboradoras ou cogestoras de políticas públicas (Carmo, 2018CARMO, Iris Nery do. O rolê feminista: autonomia, horizontalidade e produção de sujeito no campo feminista contemporâneo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Unicamp, Campinas, 2018.). Como os estudos sobre a coexistência geracional nos feminismos mostram, a duração de cada uma dessas manifestações não institucionalizadas, tende a ser muito mais curta, com percursos móveis e participação de sujeitos não fixa, ou seja, as agentes não permanecem as mesmas por longo tempo, o que dá uma enorme capilaridade e vitalidade ao movimento, mas também traz dificuldades em relação à organicidade e permanência para demandas que exigem trabalho organizado de longo prazo.

Os espaços de atuação feminista institucionalizada, por mais que sejam teoricamente abertos à participação de novos agentes, funcionam com hierarquias específicas, que indicam quais sujeitos participarão e quais estarão envolvidos no processo de criação dos documentos (geralmente as mais “experientes”, detentoras de certos cargos ou mandatos de representação). Isso implica em dizer que mulheres jovens e inexperientes nos repertórios da política formal dificilmente conseguem acessar esses espaços deliberativos (Gonçalves, 2016GONÇALVES, Eliane. Renovar, inovar, rejuvenescer: processos de transmissão, formação e permanência no feminismo brasileiro entre 1980-2010. Revista Brasileira de Sociologia, vol. 4, n. 7, 2016, pp.341-370 [https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5896091 – acesso em: 07 jul 2021].
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; Zanetti, 2011ZANETTI, Julia Paiva. Jovens feministas do Rio de Janeiro: trajetórias, pautas e relações intergeracionais. cadernos pagu (36), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2011, pp.47-75.; Adriao; Melo, 2009; Gonçalves; Freitas; Oliveira, 2013).

Nas expressões dos feminismos negros já se pode falar em três gerações – mulheres negras, jovens negras feministas e feministas interseccionais –, sendo este terceiro grupo aquele que, segundo Flávia Rios e Regimeire Maciel, “além da dimensão do gênero e da raça, também acenam com maior destaque para a dimensão da sexualidade e da periferia como “lugar” da política”, periferia essa “entendida enquanto territorialidade”, lugar de construção de suas identidades e sociabilidades (Rios; Maciel, 2018:s.p.).

O gap geracional é bastante perceptível quando olhamos para o conteúdo das plataformas feministas examinadas no texto. Embora sejam bastante eficazes em contemplar as relações de gênero, classe, raça, região e etnia, a listagem de demandas ainda não contemplam plenamente as pautas mais caras às jovens que se engajaram na “Primavera Feminista”. Os conteúdos nesses textos parecem pressupor uma mulher adulta e mãe, tendo como principais temas o trabalho, o casamento e a violência dentro dele, e a maternidade. Questões muito relevantes para os novos feminismos, como o direito à livre sexualidade, as estéticas alternativas, a objetificação midiática do corpo da mulher a partir de padrões considerados opressores (“ditadura da magreza”, padrão de beleza orientado para a branquitude etc.), o assédio, o acesso a métodos de contracepção e o direito ao aborto (surpreendentemente não nomeado na maioria das plataformas feministas lidas para esta pesquisa) aparecem ainda de forma periférica nas propostas e plataformas discutidas.

A ausência ou presença de certos temas não é a única diferença percebida entre as formas feministas de reivindicação por direito à cidade. Divergências dentro dos próprios temas também se evidenciam. Na Plataforma Feminista da Reforma Urbana, documento produzido em 2003, há pontos controversos. O fórum defendeu à época, por exemplo, espaços exclusivos para mulheres no transporte público, a fim de garantir segurança contra abusos. O tema do “vagão rosa”, implantado nas cidades do Rio de Janeiro e Recife, provocou, no entanto, uma grande reação negativa entre feministas mais jovens. Boa parte dos argumentos recentes são enfaticamente contrários aos vagões separados para mulheres, afirmando que eles na verdade restringem o direito da mulher à cidade e naturalizam relações opressoras de gênero, segregando homens e mulheres em vez de debater porque os homens as estariam assediando no transporte público. O texto Porque nós mulheres negras devemos ser contra o vagão rosa, de Andreza Delgado, publicado na página Blogueiras Negras, afirma, por exemplo:

Não quero ser desonesta com você companheira negra periférica que pega transporte público, que é tratada como mercadoria todos os dias, mas quero que você entenda que na lógica do transporte, tanto faz seu conforto companheira, tanto faz se você vai ser assediada ou não, o que importa é o lucro, a catraca sendo girada, nessa lógica toda é mais fácil para o patrão, pintar um vagão de rosa e colocar nós mulheres dentro (isso seguindo a lógica de que nós todas usuárias vamos caber dentro dele no horário de pico) do que contratar mais funcionários, do que investir em propagandas anti-machismo, anti-assédio, treinar suas/seus funcionárix. Já parou para pensar que se o metrô ou ônibus não estivesse lotado nós sofreríamos menos abusos? Não é um vagão rosa que vai nos salvar de sermos abusadas, quero que você entenda companheira, que além dessa luta ser contra o vagão, contra o machismo, essa luta também é por transporte de qualidade e para todxs (Delgado, 2014:s.p).

Outro motivo apresentado para a recusa dos vagões separados foi a questão das pessoas transexuais e travestis. Poderia haver constrangimento e violência contra esses grupos caso essas pessoas fossem lidas como estando no vagão errado. É preciso ressaltar que o tema da identidade de gênero também não é contemplado suficientemente nas propostas e plataformas feministas oficiais elaboradas há mais tempo, vinculadas a um feminismo mais institucionalizado. As pessoas travestis, transexuais ou não binárias não estão suficientemente presentes ainda nas páginas de tais documentos, o que não significa necessariamente que as agentes envolvidas na elaboração destes documentos no passado não tenham refletido e advogado pelo tema mais recentemente.

O exemplo do debate sobre o vagão exclusivo para mulheres nos mostra que o movimento feminista, como qualquer movimento social, não é homogêneo e que projetos para a cidade ideal estão em disputa. Há diferenças geracionais, regionais, de classe, de raça, de sexualidade e de etnia dentro do debate feminista, que se refletem em perspectivas políticas diversas sobre como deve ser a vida nas cidades, sobre quais devem ser as estratégias de luta para conquistar tais utopias urbanas, e sobre quem são os agentes que podem participar dessa luta; e há também espaço para a reflexão, para a permanente reelaboração desses conceitos através do tempo. O que podemos afirmar, a partir da pesquisa aqui realizada, é que os feminismos, jovens ou mais maduros, organizados ou autônomos, diversos como são, reivindicam e sempre reivindicaram direito à cidade.

Com a eleição do ultraconservador Jair Bolsonaro, as estratégias não institucionalizadas de mobilização tendem a aumentar, enquanto o tradicional advocacy praticado pelos feminismos desde a redemocratização enfrentará dificuldades e terá que se reconfigurar, uma vez que parece haver pouquíssima permeabilidade para o diálogo e colaboração com movimentos sociais no governo atual. Se no Poder Executivo feministas experientes perdem lugar, por outro lado, a ação no Legislativo parece ter se tornado uma alternativa desejável atualmente para jovens feministas. O relevante número de candidaturas e a eleição de diversas deputadas jovens, assumidamente feministas, em 2018, indica que parcela dos novos feminismos passou a enxergar uma necessidade de compor o Estado. Ao que tudo indica, a luta feminista pelo direito à cidade e à cidadania plena entrou em um estágio que exigirá toda forma de estratégia, organização e mobilização contra os inúmeros retrocessos potenciais que se avizinham.

Referências bibliográficas

  • ADRIÃO, Karla Galvão; MÉLLO, Ricardo Pimentel. As Jovens feministas: sujeitos políticos que entrelaçam questões de gênero e geração? Anais... Encontro da Associação Brasileira de Psicologia Social, 2009.
  • BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro, Zahar, 2009.
  • BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2015. 350 p.
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Sites consultados

  • 1
    Opção para o anglicismo gendered ou “marcado por gênero”. No decorrer do artigo grafamos alternativas tal como aparecem nas referências consultadas: genderizado, generificado.
  • 2
    No Brasil, os trabalhos de Otávio e Gilberto Velho contribuíram para a divulgação dessas abordagens. Conferir: Velho, Otávio (1976); Velho, Gilberto (2002, 1999, 1995, 1989).
  • 3
  • 4
    Conceito desenvolvido por Achille Mbembe em Crítica da razão negra (2018). Refere-se ao exercício de um poder (sobretudo estatal) que regula quem vive e quem morre (ou quem terá mais probabilidade de viver ou morrer), a depender de marcadores de cor e classe.
  • 5
    Resultados da pesquisa disponíveis no endereço: https://thinkolga.com/ferramentas/pesquisa-chega-de-fiu-fiu/. Acesso em: 7 jul. 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2019
  • Aceito
    15 Jul 2020
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