Resumo
Este texto reconstrói a trajetória de constituição paulatina de uma política antigênero fabricada pelo Vaticano e seus aliados no contexto das conferência das Nações Unidas dos anos 1990 e começo dos anos 2000. Também examina, de maneira breve, o papel desempenhado pela América Latina na dinâmica geopolítica que naquele momento ocorreu em torno a questões de gênero e sexualidade.
Feminismo; Gênero; Sexualidade; Nações Unidas; Política do Religioso; Vaticano; América Latina
Recupero neste texto reflexões apresentadas no Colóquio Internacional Gênero Ameaça(n)do (UERJ, outubro de 2017). Fui motivada a escrevê-lo quando li uma série de artigos que resgatam as condições nas quais, nos anos 1990, tomou corpo, na arena das Nações Unidas, a pauta transnacional de repúdio ao “gênero”, cujos efeitos deletérios assistimos hoje nos mais diversos contextos nacionais (Butler, 2004; Case, 2017; Garbagnolli, 2017; Mikolsci; Campana, 2017:723-745; Viveros, 2017:220-241). Eu havia examinado essa trajetória em duas oportunidades anteriores (Corrêa; Petchesky; Parker, 2008; Corrêa, 2009), baseando-me na análise desenvolvida por Girard (2007), mas também em observações pessoais, pois acompanhei de perto vários desses debates: a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro (1992) ou Eco 92, a Conferências de População e Desenvolvimento do Cairo (CIPD, 1994) e a IV Conferência Mundial das Mulheres de Pequim (IV CMM, 1995), e as Revisões +5 e mais 10 da CIPD e da IV CMM (1999, 2000, 2004 e 2005).
Minha primeira observação é que na literatura acima mencionada, há várias discrepâncias quanto à cronologia de gestação dos ataques ao gênero. Predomina a versão de que os ataques a gênero se deram no processo da IV CMM, mas há quem identifique a Conferência do Cairo ou a ECO 92 como sendo o momento inicial dessa saga. Isso decorre de que essas conferências se deram numa sequência intensa, na qual as definições sobre reprodução, gênero e sexualidade foram condensadas de maneira cumulativa, suscitando a cada etapa novos movimentos reativos e não é fácil rastrear esses meandros sem ter estado neles. Pensei, portanto, que podia ser interessante revisitá-los como contribuição aos esforços que têm sido feito para reconstruí-los.1
Primeiros sinais de fogo: Nova Iorque, março de 1995
Em março de 1995, cheguei à sede das Nações Unidas em Nova Iorque para participar da etapa final do Comitê Preparatório da IV CMM de Pequim. Na semana anterior, havia terminado a Cúpula de Desenvolvimento Social de Copenhague, onde nós, feministas envolvidas com essas conferências desde a Rio 92, organizamos uma greve de fome para assegurar a inclusão no documento final de menções aos impactos negativos dos programas de ajuste estrutural nos países do Sul global. Também gravamos no texto a linguagem adotada na Conferência Internacional de Direitos Humanos de Viena (1993), que afirma os direitos das mulheres como direitos humanos, assim como definições do Cairo sobre saúde e direitos reprodutivos, mesmo quando essas definições tivessem sido sistematicamente atacadas pela Santa Sé e seus aliados no processo negocial. Além disso, nele incluímos muitas referências a gênero, em especial no que diz respeito à divisão sexual do trabalho entre homens e no âmbito da reprodução social. Mas naquele momento, essa terminologia não foi objeto de maior controvérsia.
Ao chegar em Nova Iorque, contudo, a primeira coisa que me disseram é que gênero estava entre colchetes: ou seja já não era mais uma definição consensual. Fui informada que os debates estavam paralisados porque as/os diplomatas que coordenavam as negociações não estavam preparadas/os para os acirrados embates que haviam proliferado em torno a terminologia de gênero e outros temas polêmicos. Numa das salas de trabalho, assisti um delegado do Sudão exigir, vigorosamente, o “colcheteamento” da palavra e ser apoiado por outros países islâmicos, sem que a coordenadora da sessão conseguisse conter seu longo e agressivo discurso. Nessa cena, as mãos nem tão invisíveis do Vaticano eram detectáveis, pois embora a Santa Sé não tenha se manifestado, as delegações de Honduras, Nicarágua e El Salvador, seus aliados fieis, apoiaram a posição sudanesa. Essa tensão inesperada em torno a gênero também parecia confirmar que, tal como suspeitávamos, estava em curso uma inédita e preocupante aproximação entre o Vaticano e os estados islâmicos.2
Segundo Girard (2007), naquela que foi a terceira e última semana do Comitê Preparatório, tão logo a terminologia de direitos sexuais e orientação foi incorporada ao texto em negociação, a Santa Sé, apoiada por Sudão, Malta e Honduras, solicitou que gênero ficasse entre colchetes e exigiu do Secretariado uma definição precisa do seu conteúdo. Em paralelo, gênero era virulentamente atacado nos espaços em que se movimentavam as organizações da sociedade civil envolvidas com o processo que levaria a Pequim.
Tão logo deixei a sala onde o debate acima descrito continuava, Joan Ross Frankson, feminista caribenha da equipe da WEDO3, me falou do panfleto “contra gênero” que havia sido distribuído, uns dias antes, aos delegados (especialmente do Sul global) por uma organização da direita católica norte-americana: a Coalizão das Mulheres pela Família, liderada pela jornalista Dale O’Leary (autora do livro A agenda de gênero, publicado em 1997). O panfleto adulterava um artigo clássico de Anna Fausto Sterling sobre intersexualidade (Fausto-Sterling, 1993:20-25) para argumentar que, ao usar o termo gênero, as feministas (“em geral homossexuais”, segundo o texto), reivindicavam a existência de cinco gêneros. Joan, indignada, me disse:
Essa gente nefasta não apenas fez desandar a negociação, como nos ofendeu. Como podem dizer que as feministas querem ter cinco gêneros? Nós sabemos bem que gênero é o que explica a desigualdade entre homens e mulheres em todas as esferas da vida.
Ao refletir sobre o episódio, alguns anos mais tarde, Rosalind Petchesky lembrou como o panfleto da Coalizão pela Família havia deixado muitas feministas presentes no Comitê Preparatório – que nunca haviam lido Gayle Rubin, Judith Butler ou Fausto Sterling – perplexas: “Fomos provocadas a explicar gênero para nós mesmas e para os outros” (Girard, 2007:338).
Antes, durante, depois
É preciso retroceder um pouco no tempo para compreender melhor como e porque essa crise eclodiu na etapa final da rota à Pequim. Nos debates oficiais da Eco 92, nem gênero, nem sexualidade, nem direito ao aborto estiveram em pauta. O Documento do Rio incluía a definição clássica de igualdade entre os sexos e a tensão negocial se deu em torno a questões que hoje podem parecer muito prosaicas: o direito ao planejamento familiar e o termo “saúde reprodutiva” que pouco antes havia adentrado a conversação entre estados membros da ONU pelas mãos da OMS.
Por mais convencional que possa parecer, essa foi a pauta que suscitou ataques e manobras políticas por parte dos representantes da Santa Sé, que reativaram a controvérsia histórica Norte vs. Sul em torno a políticas de controle populacional, produzindo uma oposição discursiva entre pobreza e direito ao desenvolvimento, de um lado, e controle da fecundidade de outro. Esse jogo foi facilitado pela posição de algumas redes ambientalistas globais que, na preparação para o Rio de Janeiro, haviam defendido o controle demográfico como medida necessária para proteção da natureza. Em consequência, durante as negociações, em muitos momentos, a pauta feminista de autonomia reprodutiva ficou espremida por esse jogo de forças. Ao assistir a essa cena, várias das redes feministas que estavam no Rio de Janeiro concluíram que era crucial incidir sobre a agenda da CIPD, programada para 1994 no Cairo, de modo a evitar um desastre político de grandes proporções.4
Essa decisão, tomada no calor do Aterro do Flamengo, está na origem da complexa dinâmica de embates que transcorreu ao longo dos dois anos de preparação para o Cairo, da qual resultaram definições e recomendações de política que são hoje alvos principais das multifacetadas cruzadas contra gênero. Nesse trajeto, por primeira vez, o termo gênero foi gravado num documento intergovernamental5, legitimou-se conceito de direitos reprodutivos; o aborto foi reconhecido como grave problema de saúde pública; recomendaram-se políticas universais de educação em sexualidade e afirmaram-se as muitas formas de família. Entretanto, e muito significativamente, em nenhum momento dos árduos embates do Cairo o termo gênero foi objeto de maior controvérsia.
Isso se deve em parte a que, como bem diz a própria O’Leary (2008), no processo da CIPD, a Santa Sé e seus aliados foram tomados pela tarefa de conter o duplo reconhecimento do aborto como problema de saúde e das múltiplas formas de família. Um esforço que, contudo, não teve bons resultados já essas definições ficariam gravadas no documento final. Mas também penso que não houve maior polêmica em torno ao conceito de gênero porque, como bem disse minha amiga Joan, a terminologia então legitimada denotava, fundamentalmente, a desigualdade entre homens e mulheres, não implicava as muitas “confusões da sexualidade”.
Case (2017) sugere que gênero chegou ao Cairo pelas mãos das feministas norte-americanas que atuavam no campo jurídico, o que é parcialmente correto.6 Mas na minha observação, o gênero “do Cairo” vinha do campo gênero e desenvolvimento cujas fronteiras extrapolavam os EUA: gênero como camada cultural sobreposta ao sexo biológico e que ordena papéis e esferas do masculino e do feminino, tal como pensado por autoras como Caroline Moser, Gita Sen e Naila Kabeer. Entretanto, é preciso dizer, por muitos outros lados a atmosfera do Cairo estava impregnada de sexualidade.
Já no primeiro Comitê Preparatório, em abril de 1993, ativistas lésbicas incluíram em suas demandas para a conferência a não discriminação por orientação sexual, sendo apoiada por alguns países.7 Na sequência, discutiu-se exaustivamente a sexualidade adolescente e, sobretudo, os direitos sexuais. Embora essa definição não tenha sido incluída no texto final, a CIPD deixaria no seu rastro o sentimento de que havia sexo demais no documento final.8 Essa erupção inevitável – já que, como bem diz Foucault (1999), o sexo se situa na interseção entre a gestão populacional e as disciplinas do corpo – foi o que originou a crise do Terceiro Comitê Preparatório para a IV CMM. Segundo Gloria Careaga, pesquisadora e ativista mexicana, a partir do Cairo, as redes internacionais de mulheres lésbicas fizeram um brutal investimento para que a sexualidade não fosse soterrada em Pequim:
Antes do Cairo não havia entre nós uma discussão profunda sobre direitos sexuais... Havia muita confusão sobre o conceito. As mulheres heterossexuais achavam que esse era assunto das lésbicas e as lésbicas achavam que era um problema só das heterossexuais. Nós lésbicas sentimos que tínhamos a responsabilidade de defender os direitos sexuais (no processo da IV CMM) (Girard, 2007:323).
Butler (2007:190) capta com precisão essa conjuntura quando, ao analisar o ataque a gênero que se materializou em Nova Iorque, afirma:
Não é para mim uma surpresa que o Vaticano tenha se referido a possibilidade de inclusão dos direitos das lésbicas (no texto) como anti-humano. Isso talvez seja verdade. Admitir as lésbicas no domínio do universal pode desfazer o humano, ao menos nas suas formas atuais, mas também implica em imaginar o humano para além de seus limites convencionais.
Os ataques de março de 1995 não tinham como alvo o gênero, tal como havia sido inscrito no documento do Cairo, mas sim a proliferação de sexualidades e gêneros que se deu no seu entorno. Curiosa e significativamente, apesar desse furor, na própria IV CMM, uma vez mais, o termo não seria objeto de maiores controvérsias. Ao final da negociação, a Santa Sé fez uma declaração de reserva segundo a qual o gênero deveria ser “compreendido como estando ancorado na identidade sexual biológica” (United Nations, 1995). Mas no próprio processo negocial, o Vaticano e seus aliados estiveram suando a camisa em outras frentes. Por exemplo, a definição de Viena de que os direitos das mulheres são direitos humanos foi sistematicamente contestada em nome das teses de João Paulo II sobre o gênio feminino e a dignidade das mulheres. O Vaticano também fez todo o possível para impedir a aprovação dos parágrafo sobre revisão de leis punitivas do aborto, sobre educação sexual das meninas; sobre direitos sexuais das mulheres e, sobretudo, da linguagem sobre orientação sexual do capítulo sobre direitos humanos. Porém uma vez mais a Santa Sé perdeu quase todas essas batalhas, exceto a inclusão do temo orientação sexual que foi derrotada por uma pequena margem de votos na última plenária da conferência.
Passado quase um quarto de século, ao revisitar a cena de Pequim me perguntei o que haveria acontecido entre março e setembro de 1995 que poderia explicar esse recuo tático da Santa Sé em relação ao gênero. Não tenho respostas definitivas. Eventualmente, a nota tautológica do grupo criado pelo Secretariado da IV CMM para definir gênero, segundo a qual o termo seria interpretado na Plataforma de Ação com base no seu uso ordinário, tenha apaziguado, temporariamente, o Vaticano. Ou talvez, as demais frentes de embates se fizeram tão árduas que o gênero foi relegado a um segundo plano. Mas é possível levantar a hipótese de que, apesar da ira nova-iorquina, os intelectuais vaticanos não haviam ainda amadurecido plenamente sua posição sobre gênero, tendo optado por usar nos embates de Pequim as premissas clássicas da antropologia teológica da complementaridade e o direito à vida.
Esse recuo seria, porém, temporário. Em 1999 e 2000, nos processos de Revisão +5 da CIPD e da IV CMM, gênero seria frontalmente atacado do começo até o fim das negociações. Sempre que o termo surgia no debate, questões eram levantadas quanto ao seu significado e as delegações mais diversas pediam sua eliminação dizendo que ele remetia a homossexualidade, pedofilia e outras “perversões sexuais”. Vale lembrar que, quando essas negociações ocorreram, dois textos fundacionais da cruzada contra gênero já haviam sido publicados em inglês: o Sal da Terra (Ratzinger, 1997) e a Agenda de Gênero (O’Leary, 1997, 2008).
Essas negociações foram muito mais árduas do que as do Cairo e de Pequim. Entre outras razões, porque a lógica de posicionamento do Grupo dos 77 e China – bloco que agrupava os países do Sul global – havia sido alterada. Entre 1992 e 1999, o G77 só operou como bloco em relação a temas econômicos, ficando os países membros do grupo liberados para tomar posições individuais em relação a outros temas. Já o modus operandi adotado nas negociações da CIPD + 5 e da IVV CMM + 5 determinava votação em bloco em relação a todas as matérias e constituiu um obstáculo enorme para as questões de gênero, sexualidade e reprodução. Essa alteração decorreu de dinâmicas cruzadas. De um lado, o impacto da crise asiática de 1999 que havia levado os países do Sul a posições mais duras. De outro, era evidente a insidiosa influência da Santa Sé através de seus aliados que àquela altura incluíam alguns países islâmicos com razoável peso político no bloco.9
Embora essa nova aliança (Unholy Alliance, como foi chamada pelas feministas) estivesse muito organizada e tenha muitas vezes lançado mão de táticas espúrias para perturbar as negociações, o Vaticano foi, de novo, derrotado, inclusive no que diz respeito ao termo gênero, extensivamente usado nos documentos finais. Estou convencida de que esse novo fracasso político da Santa Sé foi o que alavancou o investimento teológico contra o gênero que iria tomar forma em anos subsequentes. Seus exemplos mais significativos são Léxicon de Termos Ambíguos e Discutidos sobre a Vida Familiar e Ética (2003) e na Carta dos Bispos da Igreja Católica sobre a Colaboração dos Homens e das Mulheres na Igreja e no Mundo (2004).
América Latina como alvo
Espelhando o escopo milenar de presença e ação da Igreja Católica, a cruzada contra o gênero foi, desde sempre, transnacional. Gestada nas altas esferas das arenas intergovernamentais e da elaboração teológica, ela hoje se manifesta em todo mundo, mas com especial intensidade na Europa e na América Latina (Corrêa, 2017; Mikolsci; Campana, 2017; Patternotte; Kuhar, 2017). No contexto europeu, seu surgimento no começo dos anos 2010 causou perplexidade – especialmente na Europa ocidental – em razão da cultura secular consolidada e por que a União Europeia, desde os anos 1990, vem se projetando mundialmente como um modelo de democracia sexual e de gênero, não raramente com efeitos problemáticos em razão dos traços neocoloniais desses discursos e das práticas políticas a eles associadas (Abbas, 2012).
Já na América Latina, eu diria que experimentamos uma síndrome de denegação. O extenso e profundo legado colonial do Catolicismo e os impactos da expansão evangélica dos últimos vinte anos nos fizeram interpretar a recente ira contra gênero como “mais do mesmo”, ou seja, apenas como mais uma nova onda de ataque religioso dogmático contra as pautas democráticas de gênero e sexualidade.10 Eu mesma, só realizei mais completamente a escala e profundidade do que estava se passando quando me deparei com a dinâmica simultaneamente em curso na Europa. Hoje, depois de alguns episódios de “tormenta perfeita”, para usar a interpretação de Serrano (2017), em que os ataques a gênero se articularam de maneira visceral com processos macropolíticos como no caso do Referendum de Paz na Colômbia, das conexões dos ataques a Judith Butler e as disputas eleitorais brasileiras de 2018 (Pereira da Silva, 2017), e das eleições presidenciais na Costa Rica (Murillo, 2018) penso que é urgente investigar e compreender melhor o que que há de novo nessas escaramuças, mesmo quando elas proliferam em camadas culturais, politicas e religiosas muito antigas e sedimentadas.
Nessa moldura, é importante reconhecer que embora essas cruzadas só tenham tomado corpo nos cinco últimos anos, a região está no radar do Vaticano e de seus aliados há muito mais tempo. Em 1997, O’Leary (2008), analisando a “conspiração feminista global” deu grande atenção às posições feministas latino-americanas. No seu texto predominam referências ao feminismo norte-americano, e são feitas pouquíssimas menções ao feminismo europeu, mas várias páginas são dedicadas à América Latina, sendo analisados os resultados da conferência de São Bernardo (1990), assim como documentos do CLADEM. E toda uma seção é dedicada à exegese das elaborações da feminista mexicana Marta Lamas sobre gênero.11
Essa ênfase não é improcedente. Primeiro, porque foram inequívocas as transformações políticas, culturais e intelectuais do gênero e da sexualidade que tiveram lugar na região na última quadra do século 20. Adicionalmente, entre as feministas do Sul global que participaram das conferências dos anos 1990, as latinas eram, de fato, as que estavam mais familiarizadas com as teorias críticas de gênero e sexualidade.
Mais importante, contudo, foi, ao meu ver, a alteração do jogo geopolítico. Desde as primeiras etapas do caminho ao Cairo ficou evidente que o “rebanho” dos Estados latino-americanos, a começar por Brasil e México, estava se desgarrando muito rapidamente da influência do Vaticano em relação a questões, para ele, viscerais como família, reprodução, gênero, sexualidade. Tal deslocamento facilitou os consensos Norte-Sul em torno a esses temas, especialmente nos processos de Revisão +5 em 1999 e 2000, quando a América Latina liderou uma rebelião contra a regra da votação em bloco em relação a todos temas estabelecida no G77. Criou-se então novo grupo negocial nomeado Some Latin American, African and Caribbean Countries (SLAACC) que asseguraria os consensos finais, inclusive no que diz respeito a gênero. Ao final da Revisão Pequim +5 eu e a feminista indiana Gita Sen interpretamos esse giro como uma promessa inspiradora: no futuro seriam construídos consensos mais sólidos vinculando justiça social, justiça de gênero e justiça erótica no chamado Sul global. Estávamos equivocadas, portanto la lucha continua.
Referências bibliográficas
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1
Numa clave mais pessoal, importa fazer este registro antes que minhas memórias pessoais sobre esses enredos se percam.
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2
Ao longo das duas semanas na Cúpula de Desenvolvimento Social, nós feministas havíamos observado, com apreensão, muitas conversas laterais entre representantes do Vaticano e de estados islâmicos, e suspeitávamos que poderia estar em curso uma aproximação estratégica inédita entre esses atores. Para compreender essa preocupação é preciso lembrar que, ao longo do processo da CIPD, não se verificou uma atuação articulada entre a Santa Sé e os estados islâmicos. Nesse processo, o Vaticano fez todo o possível para pressionar os países latino-americanos, seus aliados históricos, e quando a estratégia deixou de funcionar, como será detalhado a seguir, fez dos países Centro-Americanos – El Salvador, Nicarágua e Honduras – seus porta-vozes, e passou a estabelecer conexões com países africanos. No caso do mundo islâmico, por sua vez, observou-se grande flexibilidade com relação aos temas controvertidos da CIPD. O Egito, como país hospedeiro da conferência, fez todo o possível para ela fosse bem sucedida e, por mais surpreendente que possa parecer, a delegação iraniana teve um papel fundamental na aprovação da linguagem relativa.
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3
Women, Environment and Development Organization, rede internacional criada e coordenada por Bella Abzug que teve um papel muito importante no trabalho feminista de advocacy para as muitas conferências do chamado Ciclo Social da ONU.
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4
Um relato mais fino e detalhado sobre o que passou no Rio deve também incluir a intensidade e a visibilidade dos temas de população, reprodução e direitos humanos no Fórum Global paralelo à conferência oficial que acontecia no Aterro do Flamengo. Não apenas a questão População e Direitos das Mulheres foi um tema principal do Planeta Fêmea, a tenda feminista, como aí se produziu um tratado feminista sobre políticas de população. Um ano mais tarde, no 1 Comitê Preparatório para a CIPD seria lançada a Women’s Declaration on Population Policies, que seria revista e aprimorada na Conferência sobre Saúde Reprodutiva que aconteceu no Rio de Janeiro, em janeiro de 1994.
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5
No estágio inicial do processo, a terminologia usada na minuta de documento era “status das mulheres”, categoria amplamente utilizada nos debates demográficos para explicar variações culturais de níveis de fecundidade. Não foram nada triviais os embates que tivemos para que essa terminologia fosse abandonada, pois nosso foco não era a fecundidade, mas sim as relações de poder e desigualdade de gênero nos planos micro e macro que a determinam.
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6
A autora cita, por exemplo, decisões da juíza Ruth Ginzburg.
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7
EUA e Suécia, num primeiro momento.
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8
Frase ouvida na conversa entre dois delegados africanos e que citei em outras oportunidades.
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9
Egito, Paquistão e Irã, países que contam com diplomacia altamente qualificada, mas também Argélia, Marrocos e Sudão. Na revisão de Pequim + 5, em várias oportunidades, vimos delegados desses países em conversação contínua com as ONGS da direita religiosa norte-americana. E, posteriormente, soubemos que os custos da delegada iraniana eram cobertos por uma dessas organizações.
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10
Suspeito ainda que o significado transnacional, a escala e efeitos potenciais desses ataques foram de algum modo ofuscados pelos ganhos jurídicos e legais da última década, especialmente as leis decisões jurídicas sobre o matrimonio igualitário. Tanto assim que, em grande medida, nos passou desapercebido o discurso de Rafael Corrêa de 2013 que, pode-se dizer, deflagrou da cruzada contra o gênero na região.
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11
Marta Lamas e Gertrude Mongela, coordenadora da IV CMM, são as únicas feministas do Sul global mencionadas no texto.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Jun 2018 -
Data do Fascículo
2018
Histórico
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Recebido
05 Mar 2018 -
Aceito
05 Abr 2018