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As formações discursivas da experiência de gênero*

The Discursive Formations of Gender Experience

Resumo

Inspirada pela noção foucaultiana de “formação discursiva e através de uma perspetiva transnacional, recorro ao arquivo digital Nonbinary wiki 1 1 Disponível em: https://nonbinary.miraheze.org/wiki/Main_Page . Acesso em: 7 de novembro de 2022. para aprofundar a moralidade no gênero. A alternativa não binária (i.e. não exclusivamente feminina ou masculina) revela os processos de estabilização do sistema discursivo porque ilustra como a redefinição das experiências implica repartições distintas do que é significação e significante. Entre as fronteiras legitimadas e i/legítimas dessas experiências, verificam-se conjuntos articulados e difusos sobre o que pode e deve ser o gênero, que delimitam e produzem diálogos Nós/Outros e Incluídos/Excluídos. Logo, a problemática ideológica beneficiará se considerarmos todas as tentativas de validação discursiva do gênero e respectivas des/configurações e reconfigurações normativas.

Gênero; Não binário; Formação discursiva; Configuração normativa

Abstract

Inspired by the foucaultian notion of “discursive formation” and from a transnational standpoint, I draw upon the digital archive Non binary wiki 2 to deepen gender morality. The non-binary alternative (i.e. not exclusively feminine or masculine) shows stabilization processes of the discursive system by illustrating how the redefinition of experiences implies distinct partitions of what is signification and signifier. Between authorized and il/legitimate boundaries of those experiences there are articulated and diffuse sets of what may and should be gender, which delimit and bring forth Us/Others and Included/Excluded dialogues. Therefore, the ideological problematic will benefit from considering all attempts of gender discursive validation and their normative de/configurations and reconfigurations.

Gender; Non-binary; Discursive formation; Normative configuration

A formação discursiva “legitimada”: ideologia de gênero ou um gênero de ideologia?

Serão os contributos dos estudos de gênero “ideológicos” ou “totalitários”? A visibilidade mediática desta acusação, já apontada no contexto académico, foi pautada por inúmeros episódios demonstrativos de uma retórica autoritária contra a “ideia” de gênero. Guerras de gênero, que polarizam opiniões e se intensificam (em número e importância) tanto ao nível transnacional como ao nível nacional, nomeadamente no Brasil e em Portugal.2 2 Entre muitos episódios, temos a vinda de Judith Butler a São Paulo em 2017 (polémica que foi alvo de surpresa e debate nesta revista), as declarações da Ministra Damares Alves (como na sua tomada de posse “menino veste azul e menina veste rosa”), o caso dos blocos de atividades binários da Porto Editora, o pedido de revisão de constitucionalidade da lei portuguesa de autodeterminação da identidade de gênero (aprovada em 2018) subscrito por 86 deputados da Assembleia da República. Episódios distintos, mas com efeitos mediáticos e de discussão pública relevantes, dividindo opiniões sobre (o que pode/deve ser) o gênero e, frequentemente, colocando o ónus na “proteção” das crianças e na “neutralidade” dos “espaços pedagógicos”. No seio académico emergiu a preocupação com as potenciais implicações de um retrocesso e o uso crescente destas outras ideias como uma arma de oposição política a direitos recentemente conquistados ( Torres, 2019TORRES, Anália. Sessão de Abertura. II Congresso Internacional do CIEG, Lisboa, 2019. ; Miskolci, 2018MISKOLCI, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018, e185302 [https://doi.org/10.1590/18094449201800530002 - acesso em: 7 nov. 2022].
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; Cornejo-valle; Pichardo, 2017CORNEJO-VALLE, Mónica; PICHARDO, J. Ignacio. La ‘Ideología de Gênero’ frente a los derechos sexuales y reproductivos. El Escenario Español. cadernos pagu (50), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2017, e175009. ). Estes debates públicos ilustram particularmente os pressupostos morais contidos nas práticas e conceções de gênero em uma época de maior contestação da legitimidade. Distintos horizontes de expectativa e espaços da experiência genderizada são limitados por confrontos entre o senso-comum ou doxa (i.e. crença comum, opinião popular) e o conhecimento científico atualizado. As margens de manobra para contestar esse conhecimento têm se beneficiado do favorecimento da dúvida e da crítica permanente dos fatos e das descobertas (tomados frequentemente como meras opiniões e juízos de valor).

Torna-se por isso pertinente considerar, em linha com Michel Foucault, a interdependência entre o que pode e o que deve ser dito e as conjunturas sócio-históricas em que se inscrevem as formações discursivas ( Foucault, 1981FOUCAULT, Michel. The Order of Discourse. In: YOUNG, Robert (ed.). Untying the Text: A Post-Structuralist Reader. Boston, London & Henley, Routledge & Kegan Paul Ltd., 1981, pp.48-78.: 52; 2008:43). Ou seja, os conjuntos articulados que formam o “campo dos possíveis” de um dado tema e espaço comum; que estabelecem as condições de repartição e de existência de um sistema discursivo, passível de descrição, ordenação, regularidade. Defendo que este instrumento heurístico permite compreender melhor os processos ideológicos – i.e. as convicções e princípios que caracterizam o pensamento (pessoal e coletivo) – porque, ainda que o poder seja disperso, existem níveis de centralidade da sua força ( Giacomoni; Vargas 2010GIACOMONI, Marcello Paniz; VARGAS, Anderson Zalewski. Foucault, a arqueologia do saber e a formação discursiva. Veredas - Revista de Estudos Linguísticos, 14 (2), 2010, pp.119-29. ; Eagleton, 1991EAGLETON, Terry. Ideology, an Introduction. London, Verso, 1991. ).3 3 Face à recusa específica do termo “ideologia” por Foucault (2008: 43), por estar carregada de “condições e consequências”, sugiro uma definição ampla. Pressuponho que é preciso considerar tanto a ideologia face ao seu contexto discursivo (quem fala o quê, quando e para quê) como as premissas enraizadas nas ideias que formam epistemologicamente a realidade. Ao contrário de uma metafísica absoluta ou de um relativismo moral, procuro realizar uma análise objetiva dos modos como a moralidade afeta a realidade. Sobre as diferentes definições de ideologia (nem sempre compatíveis entre si) ver Terry Eagleton (1991) . São precisamente as dinâmicas de poder distribuídas pelas várias instâncias que circunscrevem, mantêm e/ou reforçam, com diferentes graus de variabilidade, as prescrições e descrições contidas na realidade enunciada. Neste âmbito, a questão que se tem levantado, efetivamente, é a de saber em que medida a acusação de ideologia de gênero é, em si, um “gênero de ideologia”?

A problemática ideológica é, aliás, um “velho problema” para os estudos de gênero e vem sendo abordada desde pelo menos os anos 1980 ( Connell; 1987CONNELL, Raewyn W. Gender and Power: Society, The Person and Sexual Politics. Cambridge, Polity Press, 1987. ; Scott; 2008SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: CRESPO, Ana Isabel et al. (ed.). Variações sobre sexo e gênero. Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp.49-77. ). Concretamente, os processos de naturalização e justificação das diferenças entre pessoas têm base em uma divisão em dois grupos diametralmente opostos. Uma separação entre macho/homem/masculino e fêmea/mulher/feminino, mantida com base num modelo biomédico dual e através de um processo de “purificação cognitiva”, que naturaliza essa oposição e faz corresponder sexo a gênero, não concedendo outras possibilidades interpretativas. Categorias agrupadas e vistas como correspondentes , apesar das evidências de assimetria entre as práticas, as posições e os seus efeitos; entre as possibilidades interpretativas e as materialidades corporais; dos graus relativos de autonomia em que se distribuem diversos posicionamentos e modalidades para (des)fazer o gênero (Aboim; Vasconcelos; Merlini, 2018; Collin, 2008COLLIN, Françoise. Estes estudos que “não são tudo”. fecundidade e limites dos estudos feministas. In: CRESPO, Ana Isabel et al. (ed.). Variações sobre sexo e gênero. Lisboa, Livros Horizonte, 2008, pp.35-48.: 38).

As regras com que “naturalmente” identificamos, fazemos e organizamos o gênero são inclusive conhecidas desde os Estudos em Etnometodologia, de Harold Garfinkel (1967)GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, 1967. , e, somadas aos contributos desenvolvidos, têm permanecido estruturantes: “só existem dois sexos/gêneros”, “só se pode ser de um ou de outro”, “o sexo precede o gênero” ( Garfinkel, 1967GARFINKEL, Harold. Studies in Ethnomethodology. Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, 1967. ; Ekins; King, 2006; Butler, 1999BUTLER, Judith. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. 2nd ed. London & NY, Routledge, 1999 [https://doi.org/10.1057/fr.1991.33 - acesso em: 7 nov. 2022].
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; 2004; West; Zimmerman, 1987WEST, Candace; ZIMMERMAN, Don H. Doing Gender. Gender & Society 1 (2), 1987, pp.125-51 [http://www.jstor.org/stable/189945 - acesso em: 7 nov. 2022].
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; 2009). Em diferentes contextos, especialmente os ditos “ocidentais”, estas normas estão socialmente enraizadas, definem o limite e são especificadas a partir da sua transgressão4 4 Defino transgressão de gênero como “uma prática complementar aos interditos sociais que, num dado tempo e espaço, estabelecem e prescrevem os modos de reconhecimento das diferenças de gênero” ( Merlini, 2020: 209). . Não será, portanto, extraordinário que sejam explicitadas em documentos eclesiásticos como “Homem e Mulher os criou”. Particularmente as conceções sobre a diferença “antropológica” e sobre a “naturalidade” da oposição sexuada, a par da ênfase na família heteronormativa ou, inclusive, na essencialização do feminino (como tendo um valor singular e único nos cuidados ao outro):

(…) ideologia genericamente chamada de gender (...) nega a diferença e a reciprocidade natural de homem e mulher. Prevê uma sociedade sem diferenças de sexo, e esvazia a base antropológica da família. Esta ideologia leva a projetos educativos e diretrizes legislativas que promovem uma identidade pessoal e uma intimidade afetiva radicalmente desvinculadas da diversidade biológica entre homem e mulher. A identidade humana é determinada por uma opção individualista, que também muda com o tempo (Congregação para Educação Católica, 2019:3).

Não sendo novidade, a explicitação de uma argumentação contrária ao “ gender ” na educação, por esta entidade do Vaticano, baseada em preceitos heteronormativos e enquadrada como uma “via de diálogo”, emerge como uma afirmação ou ordenação do discurso bem “cronometrada”.5 5 Publicação digital, disponível em cinco línguas e dirigida às escolas. O período em que este texto foi publicado (fevereiro/2019) coincide com outras afirmações de posicionamento por parte de organizações supranacionais (como a ONU, a UE, a OMS, a Anistia Internacional, etc.) relativamente à identidade e à expressão de gênero . Entre as principais, está o reconhecimento da OMS, que anunciou em junho de 2018 a despatologização da identidade de gênero na nova edição do ICD - International Classification of Diseases(a ser adotada em maio de 2019), que tem contribuído para agilizar mudanças jurídico-legais, face aos compromissos estabelecidos por diversos países ao nível supranacional. O excerto citado suscita, aliás, poucas dúvidas sobre esta associação de acontecimentos. O uso do termo gender (gênero, em inglês) em todas as edições pode ser visto como um recurso estilístico intencional, a par de um argumento retórico sobre a neutralização da diferença que é igualmente estratégico, na medida em que esta formação discursiva (ortodoxa) constitui uma tentativa de contrariar a própria diversidade existente e as adequações necessárias ao reconhecimento da mesma. A par dos conhecidos posicionamentos da Igreja Católica Apostólica Romana, têm emergido também movimentos conservadores noutros campos, especialmente o político e o biomédico.6 6 Um exemplo conhecido é o American College of Pediatricians , representado pelo Dr. Paul R. McHugh que tem desenvolvido diversos estudos para refutar a “base neurobiológica” da identificação de gênero. O comprometimento de associações públicas com os valores morais dóxicos favorece o enviesamento das perspectivas sobre a diversidade existente e pode-se enquadrar como tentativa de controle de identidades e costumes socialmente enraizados porque se baseia num reforço (absoluto) do antagonismo legitimado. Na medida em que as ideias morais, crenças, visões ou juízos são o resultado de práticas sociais e convenções – logo, socialmente construídas – não se devem conceptualizar como falsas ou verdadeiras, mas sim como modos de definir e valorizar o que é bom ou mau ( Abend, 2008ABEND, Gabriel. Two Main Problems in the Sociology of Morality. Theory and Society ,37 (2), 2008, pp.87-125 [https://doi.org/10.1007/s11186-007-9044-y - acesso em: 7 nov. 2022].
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, 88; Hitlin; Vaisey, 2013HITLIN, Steven; VAISEY, Stephen. The New Sociology of Morality. Annual Review of Sociology, 39 (1), 2013, pp.51-68 [https://doi.org/10.1146/annurev-soc-071312-145628 - acesso em: 7 novembro 2022].
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)

Nesse sentido, documentar e aprofundar cientificamente os pânicos morais gerados e os tipos de estratégias de manutenção do poder sobre as formações discursivas – e as suas convenções implícitas – é uma necessidade ( Miskolci, 2018MISKOLCI, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. cadernos pagu (53), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018, e185302 [https://doi.org/10.1590/18094449201800530002 - acesso em: 7 nov. 2022].
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). Por outro lado, a promoção efetiva de um diálogo informado tem também de considerar formações discursivas alternativas e saber em que medida estas alteram ou permitem compreender a existência de outras convenções e configurações normativas de gênero. Defendo que a problematização ideológica poderá, portanto, ser melhor entendida se considerarmos os modos como as várias formações discursivas repartem, ordenam e articulam significação e significante. Discutir como diferentes valores, significados e normas resultam em re/configurações específicas da experiência genderizada contribui para uma abordagem crítica, rigorosa e comprometida com o conhecimento científico. Para tal, tomo como caso ilustrativo o único arquivo digital colaborativo – ou wiki – exclusivamente dedicado ao tema não binário no ciberespaço.7 7 Segundo o Wiki Índex, esta era a única plataforma intitulada como “ Nonbinary ” no período de recolha de dados desta investigação, que decorreu até 2018. Descrevo em seguida as razões da sua escolha. Por ciberespaço, entendo uma arena social específica onde se estabelecem experiências e partilhas online , podendo constituir-se como um espaço de inter-relações preliminares, complementares ou divergentes das relações offline , face a face ( Marciano, 2014 ).

Formações discursivas i/legítimas: emancipar o «gênero» e a alternativa não binária

A crescente visibilidade de movimentos e reivindicações de transformação dos parâmetros de apropriação, interpretação e atribuição do gênero tem contribuído para desestabilizar e renovar os seus significados. Essas transformações baseiam-se em paradigmas concorrentes que têm demonstrado gradualmente o quanto os critérios de definição antagónica reduzem a complexidade e a variabilidade dos marcadores sexuados ( Montañez, 2017MONTAÑEZ, Amanda. Beyond XX and XY: The Extraordinary Complexity of Sex Determination. Scientific American, 2017 [https://www.scientificamerican.com/article/beyond-xx-and-xy-the-extraordinary-complexity-of-sex-determination/ - acesso em: 7 nov. 2022].
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; Callahan, 2009CALLAHAN, Gerald N. Between Xx and Xy: Intersexuality and the Myth of Two Sexes. Chicago, Chicago Review Press, 2009 ; Fausto-Sterling, 2000FAUSTO-STERLING, Anne. Sexing the Body. Gender Politics and the Construction of Sexuality. New York, Basic Books, 2000 ) e das alternativas culturais da experiência de gênero.8 8 O fenómeno transgênero (recorrendo à sua designação contemporânea) remete para a diversidade de práticas genderizadas e para diferentes pertenças que têm sido uma parte “persistente” de várias sociedades ao longo do tempo e do espaço ( Stryker, 2008 ). Nomeadamente nas tradições culturais Hindus (as pessoas conhecidas como Hijras na Índia e no Nepal; e como Khawaja’saras no Paquistão), Maori (na Polinésia existem diversas identificações, nomeadamente as Fa’afafine ; na Nova Zelândia são conhecidas como Whakawahine ), Zapotecas ( Muxes e Biza’ah no México), etc. Descobertas baseadas em contributos científicos “mais congruentes com a realidade” ( Elias, 2002ELIAS, Norbert. Teoria Simbólica. Oeiras, Celta Editora, 2002. ), que permitem questionar e reformular os princípios instituídos: as convenções sociais que historicamente organizam as pessoas em dois grupos opostos, baseadas fundamentalmente na sobreposição entre as características fisiológicas e biológicas ( sexo ) e as interpretações e práticas ordenadas segundo essa classificação ( gênero ). Neste âmbito, as Comissões Internacionais de Direitos Humanos da ONU e da União Europeia (UE) avançam para um paradigma jurídico-legal de emancipação do gênero nos termos da auto/indeterminação, reconhecendo a identidade de gênero como direito inalienável ( Badgett; Sell, 2018BADGETT, M. V. Lee; SELL, Randall L. A Set of Proposed Indicators for the LGBTI Inclusion Index. New York, 2018. ; ICJ, 2017ICJ (International Commission of Jurists), The Yogyakarta Principles Plus 10 - Additional Principles and State Obligation on the Application of International Human Rights Law in Relation to Sexual Orientation, Gender Expression and Sex Characteristics to Complement the Yogyakarta Principles, 10 November 2017 [https://www.refworld.org/docid/5c5d4e2e4.html – acesso em: 7 nov. 2022].
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). São mudanças, não para um vazio, mas sim por causa da pluralidade existente, cuja sensibilização tem tido uma “perceptibilidade” crescente ( Goffman 1988GOFFMAN, Erving. Estigma. Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro, LTC - Grupo Editorial Nacional, 1988. , 58) com muitos motivos e revisitações ( Carvalho, 2018CARVALHO, Mario. “Travesti”, “Mulher Transexual”, “Homem Trans” e “Não Binário”: interseccionalidades de classe e geração na produção de identidades políticas. cadernos pagu (52), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018 [https://doi.org/10.1590/1809444920100520011 - acesso em: 7 nov. 2022].
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; 2019; 2016; Shapiro, 2015SHAPIRO, Eve. Gender Circuits. New York & London, Routledge, 2015. ; Hines; Sanger 2010HINES, Sally; SANGER, Tam. Transgender Identities. Towards a Social Analysis of Gender Diversity. London & NY, Routledge, 2010. ; Stryker, 2008STRYKER, Susan. Transgender History. Berkeley, Seal Press, 2008. ; Ekins; King, 2010).

É neste âmbito que o movimento Não Binário (desde pelo menos 2012) tem contribuído tanto para consolidar as agendas de emancipação do «gênero» como para uma autonomia relativa do ativismo transgênero no contexto transnacional ( Reed, 2019REED, Terry. The Gender Recognition Act Discussion, 2019 (GIRES). London, GIRES, Gender Identity Research and Education Society [https://www.gires.org.uk/the-gender-recognition-act-discussion- july-2019/ - acesso em: 7 nov. 2022].
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; Gires; Nina Perger, 2019PERGER, Nina. Everyday Life of Individuals with Non-Binary Gender and Sexual Identities. European Sociologist, Sociology Beyond Europe, n. 43, 2019 [https://europeansociology.org/european-sociologist/issue/43/from-esa/b9c48e16-f352-421c-bbb2-536e316a970d - acesso em: 7 nov. 2022].
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; Aboim, 2020b). Existem muitas pessoas que se consideram transgênero e não binárias, mas os termos podem ser alvo de apropriação independente e nem sempre implicam uma politização.9 9 As pessoas transgênero e as pessoas não binárias convergem na desidentificação com a categoria de gênero atribuída à nascença, na experiência de não pertencer a um gênero e nas trajetórias vividas entre as possibilidades i/legítimas de fazer o gênero. Podem divergir na apropriação e interpretação das categorias, nas modalidades práticas de des/fazer o gênero e nos posicionamentos assumidos (sobretudo privilegiando o antagonismo ou a não exclusividade). O termo “não binário” pode, aliás, ser usado pelo menos de três formas diferentes: como movimento ativista, como forma de autoidentificação e/ou como termo aglutinador ou chapéu-de-chuva ( umbrella term ) para designar um conjunto de identidades de gênero. As principais causas do ativismo não binário envolvem, implícita ou explicitamente, uma recusa das convenções sociais dominantes10 10 Como o direito à privacidade na identificação (institucional) com o gênero, separação das esferas biomédica e jurídico-legal na determinação do gênero, direito à autodeterminação das transformações corporais, linguagem e formas de tratamento neutras. Neste artigo recorro ao sistema “Ile” quando há referência a pronomes não binários e/ou traduções de palavras originalmente neutras em outras línguas. Esta linguagem inclusiva (ou não binária) é recente e começou a ser usada na língua portuguesa a partir de 2013, encontrando-se ainda em fase de estabilização. , configurando e afirmando alternativas. Importa por isso compreender como as possibilidades não binárias implicam outros consensos, como as divisões se refazem a partir das transgressões, produzindo novas premissas e modos de valorizar o gênero. Aprofundar, portanto, em quais formações discursivas emergem destas alternativas e de que modo convocam transformações da formação dominante no sistema discursivo.

Parte de uma investigação qualitativa, os resultados aqui apresentados baseiam-se no estudo dos discursos não binários no ciberespaço por meio de uma análise de conteúdo temática ( Cohler; Hostetler, 2003COHLER, Bertram J.; HOSTETLER, Andrew. Linking Life Course and Life Story: Social Change and the Narrative Study of Lives over Time. In: MORTIMER, Jeylan T.; SHANAHAN, Michael J. (ed.). Handbook of the Life Course. New York, Kluwer Academic Publishers, 2003, pp.555-76. ) e de uma perspectiva transnacional ( Burawoy, 2000BURAWOY, Michael. Introduction: Reaching for the Global. In: BURAWOY, Michael et al. (ed.). Global Ethnography: Forces, Connections, and Imaginations in a Postmodern World. Berkeley, Los Angeles & London, University of California Press, 2000, pp.1-40. ; Guarnizo; Smith, 1998GUARNIZO, Luís Eduardo; SMITH, Michael Peter. The Locations of Transnationalism. Comparative Urban and Community Research, 6, 1998, pp.3-34 [https://doi.org/10.4324/9781351301244-1 – acesso em: 7 nov. 2022].
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). O aprofundamento das lógicas de nomeação, das divisões e lutas em torno das identidades de gênero, a sua politização e os diversos horizontes presentes permitiram desmontar criticamente os imaginários existentes. Com o estudo do Nonbinary wiki foi possível compreender os enunciados alternativos das experiências de gênero e situá-los num contexto discursivo específico, exemplificando assim como se tem estruturado o campo de nomeação do gênero não binário.

Este arquivo digital é um caso ilustrativo na compreensão das formações discursivas não-binárias tanto pelo número de páginas ou entradas com conteúdos como pelos vários empreendimentos realizados por um grupo ativo de membros/es na recolha de recursos e informações (enciclopédicas) específicas sobre o tema. A seleção justificou-se principalmente pelo tipo de formato, pela sua antiguidade, constante atualização e pela quantidade de informação disponível, partilhada e construída numa lógica participativa. Nonbinary Wiki pode ser descrita como uma plataforma de edição colaborativa (ou comunidade digital) que começou a ser construída em 2012, mesmo antes da sua maior disseminação e da bandeira do orgulho “não binário” ter uma representação simbólica nas várias marchas LGBTQI.11 11 De fato, a difusão do termo e do léxico não binário começa a partir de 2014 – o ano em que adquire uma bandeira própria e, paralelamente, o ano em que a revista Time magazine denomina de “ transgender tipping point ” nos Estados Unidos da América ( Shapiro, 2015: 27). É também em 2014 que se torna mais visível a proliferação de descritivos identitários e novas formas de nomear o gênero, distintas e singulares, que se distanciam de uma visão antagónica e binária das categorias (exclusivas) de feminino ou masculino. Em fevereiro do mesmo ano, o Facebook norte-americano disponibilizou 50 novas categorias de gênero além de masculino ou feminino. Nesse mesmo mês, a comunidade não binária da rede social norte-americana Tumblr realizou um apelo generalizado à representação das pessoas não-binárias e criou um conjunto de pronomes personalizados ( Nounself pronouns ). É também em fevereiro de 2014 que a bandeira do orgulho não-binário foi criada – da autoria de Kye Rowan, utilizadorie do Tumblr de 17 anos, com o objetivo de representar as pessoas que não se identificavam com a bandeira genderqueer , criada por Marilyn Roxie em 2011 (enquanto representação paralela e não em sua substituição: http://thejasmineelf.tumblr.com/flagfaq ). 2014 é também o ano de mandato em que foram tomadas mais medidas de proteção dos direitos “LGBT” pelo presidente Barack Obama, nos EUA, anunciando simbolicamente junho desse ano como o “mês do orgulho LGBT”.

Sendo desde outubro de 2016 um local de consulta sobre o tema, o desaparecimento provisório deste wiki – entre dezembro de 2016 e janeiro de 2017 – levou-me à construção de uma breve cronologia e procura de compreensão das dinâmicas online , com base nas informações dispersas em secções de edição e comentário e em outros fóruns específicos. E a rápida detecção da sua breve ausência no ciberespaço sugere que este wiki tem importância para a comunidade não binária. Apesar de só dispormos de estatísticas sobre membros/es registrados/es e não sobre a sua audiência, as pistas recolhidas pressupõem que esta enciclopédia/plataforma partilhada online é tanto fonte de consulta e referência como de construção e luta histórica do movimento.

Tanto quanto me foi possível saber, esta comunidade foi fundada por um pequeno grupo de pessoas e era liderada por ume ativista britânique muito pró-ative em várias comunidades ( online e offline ) no Reino Unido12 12 O que explica o maior número de entradas com informações sobre o Reino Unido que encontrei, comparativamente a outros países incluídos neste arquivo digital. . No período de recolha e análise13 13 Realizei a recolha final de entradas com conteúdo e uma seleção de talks , históricos, estatísticas e listagens deste wiki entre 19 e 21 de fevereiro de 2018. Das 69 categorias listadas no arquivo, 36 correspondiam a conteúdos e 33 remetiam para a sua manutenção e utilização. Pela sua inconsistência (com múltiplas categorias relacionadas) e por haver um conjunto de categorias em desuso ou isoladas, optei por uma nova classificação das 237 páginas de conteúdo. A reclassificação resultou em 4 grandes categorias (I. Conceções e Símbolos ; II. Identidades e Expressões ; III. Reconhecimento e Visibilidade ; e IV. Recursos Práticos ) e organizou a análise de conteúdos. Esta breve apresentação não dispensa, obviamente, a consulta do arquivo para aprofundamento e atualização, uma vez que se trata de um conjunto de recursos dinâmicos que são alvo de edição frequente. Para o estudo completo consultar Merlini (2019). , o arquivo passou a ser liderado por 2 ativistas com origens distintas e, presumivelmente, também a residirem na Europa. Aumentou de 22 para 71 membros/es com funções de gestão e utilizadoras/os/ies ativas/os/es na edição e manutenção. Uma comunidade online que se compromete com:

Nonbinary Wiki é um wiki dedicado à visibilidade, educação e defesa [advocay] do não-binário, argumentando [arguing] pelo acesso igual a emprego, serviços e tratamento médico para aqueles/elas/iles que não se encaixam [don’t fit] no binário de gênero (Nonbinary Wiki Contributors, 2018).14 14 Tradução própria do original em inglês. As expressões assinaladas entre chaves referem-se à contextualização ou aos termos usados, para revelar a opção de tradução feita. Procurei traduzir o sentido mais próximo do significado contextual quando não existe um termo equivalente direto na língua portuguesa. Todas as citações subsequentes foram traduzidas. No original: “Nonbinary Wiki is a wiki devoted to the nonbinary visibility, education and advocacy, arguing for equal access to employment, services and medical treatment for those who don't fit the gender binary.”

Para além da sensibilização para o tema não binário, apelavam à colaboração da comunidade em diversas redes sociais (como a Reddit e o Twitter) e planejavam a expansão deste projeto para outras línguas. O arquivo contém uma listagem exaustiva de todos os descritivos identitários não binários com o duplo objetivo de mostrar a diversidade existente e de fornecer um leque de possibilidades para as pessoas encontrarem a sua ou as suas definições de gênero.15 15 Contabilizei um total de 166 categorias e/ou termos chapéu-de-chuva, tendo em conta as suas características e descrições, bem como as sobreposições existentes. Este arquivo tem também entradas sobre descritivos identitários binários e paralelos ou provisórios (que remetem para o questionamento da identificação de gênero). Sendo alvo de um processo de triagem e validação, a maior parte destes descritivos tem uma entrada própria, estatísticas de utilização (recolhidas pelo Gender Census , uma pesquisa realizada anualmente pela comunidade) e símbolos específicos de orgulho. Considerando a multiplicação categórica e a afirmação do movimento, especialmente a partir da década de 2010, esta comunidade preocupava-se com a classificação e fiabilidade dos descritivos identitários, aferindo a sua frequência e significados, explicitando orientações acerca da sua validade e/ou popularidade, bem como de quem os utilizava. Ocupadas/os/es na coconstrução de um arquivo sério e informado, passível de disseminação generalizada sobre o tema não binário, é visível o esforço desta comunidade digital em fazer sentido e estabilizar a proliferação de descritivos identitários não binários no ciberespaço16 16 É pertinente relembrar que as transformações nas conceções e práticas de gênero também se beneficiaram das (novas) possibilidades tecnológicas baseadas na comunicação pela palavra escrita, que incitam à auto apresentação estilizada (em anonimato ou não), à redefinição criativa de si, permitem uma construção partilhada dos sentidos do gênero e dos seus scripts, etc. . Privilegiando uma análise dos processos de construção e legitimação normativa das alternativas de gênero, baseio-me num retrato específico desta comunidade digital cujas pistas poderão ser exploradas em outras fontes online .

As formações discursivas do Nonbinary wiki

Os padrões globais que identifiquei no arquivo podem ser enquadrados como alternativas de repartição discursiva porque fundamentados num refazer das diferenças de gênero com base em outros parâmetros e critérios avaliativos (West; Zimmerman, 1989). Por um lado, são conjuntos dispersos cujas ordenações competem entre si, como veremos. Por outro lado, os seus alinhamentos sugerem um objeto de enunciação totalizante que recorre à identidade de gênero como principal mecanismo de legitimação e valorização. Posicionando-se tanto para fora como para dentro da comunidade através de definições bem demarcadas, em diferentes entradas do arquivo encontramos uma matriz moral construída discursivamente por intermédio da sugestão de regras específicas de etiqueta nas interações ( online e offline ), do questionamento cuidadoso das pertenças de gênero e da necessidade de autoatribuição. Processos de demarcação baseados principalmente na separação valorativa entre binário/não binário, comportando distintas prescrições e descrições.

Binário ou não binário? A nova dicotomia do “outro que não é como nós”

Podendo ser compreendida como um produto social, esta (nova) dicotomia encerra duas grandes configurações normativas de gênero. É uma construção investida na divisão Nós/Outros que nomeia um inimigo comum. Nas trincheiras “binárias” o gênero é valorizado pela exclusividade, assume um significado antagónico e rege-se pela norma que naturaliza a diferença entre fêmea/mulher/feminino e macho/homem/masculino. Nas trincheiras “não binárias” o gênero é valorizado pela complexidade, assume um significado continuum (ininterrupto) e rege-se em grande medida pelas normas da semelhança e do gênero para si (ou como sentimento de si).

A formação discursiva não binária toma a referência binária como ponto de partida para o questionamento do gênero e para afirmar uma posição distintiva e crítica. Transporta nos vocábulos a negação desse mesmo referente, sendo necessário conhecer o contorno ou perímetro (neste caso o binário) para ser possível reconhecer e compreender o que é que se distancia dele – o núcleo ou a substância. O binário – que tem apagado a existência de outras possibilidades de gênero – é a norma da qual se retiram as linhas de demarcação. E a única possibilidade de resistência passa pela inversão do discurso (à la Foucault), tratar a diversidade de gênero como norma e a exclusividade como marginal. Contrariar a relação assimétrica de poder especificando a exclusividade binária como a transgressão. O alinhamento e construção do sentido de pertença desta comunidade digital assenta particularmente em elementos discursivos que enfatizam a tomada de consciência crítica face ao binário e aos efeitos de apagamento da diversidade não binária. Uma mudança que nivela e desalinha as formações discursivas binária e não binária, deslegitimando a primeira em várias direções.

Enquanto centro hegemónico legítimo contestado, é nas referências ao binário que melhor vemos a emergência da alternativa não binária por causa dos significados específicos conferidos na re/construção das possibilidades interpretativas das posições e práticas sociais. Mesmo advertindo que consideram as identidades binárias válidas (desde que não sejam entendidas como as únicas existentes), o modo como são apresentadas pela comunidade concorre para a transversalidade e expansão do não binário. Os critérios de especificação e reconhecimento são alargados para incluir outras possibilidades de experiência de gênero. Por exemplo, m ulher é definida como uma das identidades binárias reconhecidas (tal como menina ou senhora) que geralmente suscita o uso de pronomes femininos (ela/dela). Mas, para além de não ser necessário ser-se cisgênero para se ser mulher e se poder ser parcialmente (demi) mulher, há também um alerta ao fato de nem todas as pessoas que adotam pronomes femininos (por exemplo, não binárias) se identificarem com esta categoria e que nem todas as pessoas que são “percebidas” como mulheres se auto identificam desse modo. A atribuição de gênero adequada como mulher depende, portanto, da prática normativa de reconhecimento do gênero não binário, da auto identificação como principal meio, uma atribuição informada e baseada no modo como cada pessoa se autodefine.

Por sua vez, por meio de noções comunitárias como MOGII17 17 Sigla anglófona usada como alternativa da sigla LGBTQI, Marginalized Orientations, Gender Identities, and Intersex. , da referência a culturas e formas de discriminação, encontramos alinhamentos com outros ativismos e a construção de um sentido de pertença baseado na partilha de opressões. Nos descritivos identitários é referida a especificidade cultural ou o caráter contestado de um dado termo e recomendações para outros “mais pacíficos”. É condenada a prática de apropriação cultural – i.e. o ato de se apoderar sobre elementos de uma cultura específica (que lhe pertencem) – e todas as formas de “essencialismo”, de “colonização” e de “patriarcado” patentes na cultura “ocidental”. O gênero binário vai sendo desconstruído, portanto, através de um mosaico discursivo composto criticamente, num diálogo implícito, que enfatiza a liberdade individual e o direito à privacidade. Por exemplo, o binarismo é definido como uma “ideia errada de senso-comum” (que só existem dois gêneros), mas também como um aspecto do colonialismo e imperialismo ocidental. Ou seja, como uma forma específica de sexismo e opressão que envolve racismo e preconceito cultural. Em uma só definição estão contidos elementos distintos que permitem um alinhamento com outros movimentos e, simultaneamente, delinear a fronteira em relação a um inimigo comum: o outro que não é como nós, que é colonizador, imperialista, fóbico e discriminatório.

A deslegitimação do binário e construção de sentido de pertença desta comunidade baseia-se numa construção discursiva fundada na relação assimétrica entre nós-outros que questiona a capacidade de representação e a real legitimidade do binário de gênero e os seus mecanismos de “branqueamento”. Uma atenção aos processos de apropriação cultural que eliminaram sistemas diferentes da vivência e atribuição do gênero e um distanciamento da formação discursiva binária – das suas práticas classificatórias e dos seus modos exclusivos e antagónicos, tal como ilustrada no início desse artigo.

Aqui, a defesa do reconhecimento da diversidade – e da sua multiplicação categórica – está em grande medida dependente do gênero como sentimento de si, da primazia da linguagem e dos meios cibernéticos. Porém, a construção normativa encerra diferentes níveis e baseia-se igualmente em fontes comunitárias que estão em tensão para definir a experiência não binária. As diferentes valorizações e hierarquizações de descritivos identitários, as prescrições dirigidas à própria comunidade e os encaminhamentos para comunidades específicas do contexto LGBTQI evidenciam lutas e controvérsias quanto ao uso dos termos e das possíveis agendas englobadas por estes movimentos. A experiência de gênero não binária contém, aliás, repartições dispersas. Subdivisões que concorrem na definição dos significados, valores e normas preconizados pela alternativa. Vertentes que congregam três grandes tipos de descrição de identidades não binárias, posicionamentos específicos face ao binário, mas também modos de valorização e hierarquização. Excetuando uma noção consensual de representação do gênero como um continuum , o conteúdo do espectro é contextualmente variável e está em grande medida relacionado com três grandes tipos de descrições dos gêneros não binários. Podendo ser vistos como facetas que se sobrepõem, desdobram ou evidenciam de forma intermitente ou não binário, concorrem de maneiras diferentes para o que é aceito e expectável por parte de quem não se posiciona exclusivamente nas conhecidas categorias antagónicas.

A vertente cumulativa: gêneros misturados ou um yin-yang alternativo

A definição não binária cumulativa corresponde a um total de 16 descritivos identitários e pauta-se pela valorização da diversidade e da multiplicidade da pertença e experiência genderizada. Estas categorias caracterizam-se por descrições que partem da classificação binária (masculino/feminino) para diversificar, recorrendo a definições de gênero “entre”, “parciais” ou “múltiplos”.18 18 Três descritivos na categoria “entre” ( Intergender, Ambigender, Androgyne ), sete descritivos na categoria parcial ou Demigender ( Demigirl ; Demiboy ; Demiguy ; Demienby ; Deminonbinary ; Demifluid ; Demiflux ) e seis descritivos na categoria múltiplo ou Multigender ( Bi-gender ; Tri-gender ; Polygender ; Pangender ; Genderfluid ou Fluid gender ; Genderflux ). No Gender Census de 2018, este era o conjunto de descritivos mais populares à escala global e no Reino Unido. Num total de 11.278 participantes, em que mais de metade usa um a quatro termos diferentes para autodescrever o seu gênero, 25% identificou-se como Genderfluid/Fluid gender ; 11% como Androgyne e 11% como Demigender . O significado de gênero nesta vertente é “ in-between ” o masculino e o feminino, podendo pressupor, ou não, uma trajetória de aproximação a um dos polos ou uma oscilação entre a masculinidade e a feminilidade. Este conjunto de categorias identitárias enfatiza dualidades e alternativas baseadas numa redefinição do gênero como “fluído” ou “estático”, “mais” ou “menos” intenso, balizado por lógicas de hibridização da masculinidade e/ou feminilidade. É um posicionamento híbrido face ao binário socialmente instituído porque compreende práticas de transformação baseadas na sua mistura. Por exemplo, no caso do descritivo intergender – uma das entradas mais detalhadas neste conjunto de categorias identitárias – são referidas as diferentes suscetibilidades da comunidade no uso dessa categoria desde os anos 1990 e os seus dois significados mais habituais. Mantendo uma separação clara entre identidade, expressão e características sexuadas, neste descritivo encontramos alertas para o respeito pelas pessoas intersexo que poderão ser ofendidas pelo recurso a um termo tão semelhante por parte de pessoas “diádicas”. Contudo, dependendo das transformações corporais realizadas, este termo poderá ser usado também por estas, desde que se afirmem como pertencendo “entre” ou a ambos os gêneros binários.

A redefinição do gênero por meio da afirmação simultânea da masculinidade e da feminilidade também ocorre nos descritivos que enfatizam a parcialidade, i.e. uma ligação mesmo que ténue ao gênero. O descritivo Demiboy, por exemplo, refere à conexão parcial à masculinidade, independentemente do gênero atribuído à nascença. Possibilita a pertença a outros gêneros, podendo neste caso referir-se a modos de identificação aproximados, mas não exclusivamente masculinos (ou completamente binários). Já no caso dos descritivos que definem a multiplicidade no gênero vemos maior ênfase da fluidez e/ou fluxo, consideradas por esta comunidade como dimensões separadas. A entrada referente ao Genderfluid do arquivo, por exemplo, refere que este termo se autonomizou a partir dos anos 2010 e que a sua definição depende de quem a usa. É uma dimensão da identidade de gênero que pode ser cíclica; imprevisível; autocontrolada ou não; influenciada ou não por fatores internos e/ou externos. Enquanto a fluidez se refere ao sentido de pertença a uma ou mais identidades de gênero, o fluxo remete para a variação percentual, presença e multiplicidade dessas pertenças (por exemplo, 10% feminina e 90% masculina ou 50% andrógina e 50% masculina).

No seu conjunto, a concepção cumulativa não binária reforça a definição do gênero como estado interior , que pode ser variável conforme os dias/momentos da vida, independente dos modos de expressão. Apesar da ausência de consenso na comunidade quanto à definição de androginia19 19 Etimologicamente, androginia é uma palavra grega ( andrós-: homem e –gunaikós: mulher) que refere a pertença a ambos. O seu uso como categoria da prática – i.e. os termos quotidianos em uso nas experiências sociais, diferente dos termos aplicados ao estudo de um dado objeto social ou categoria de análise (Brubaker; Cooper, 2000:4) – assume dois sentidos contraditórios nesta comunidade digital. Tanto se refere à ausência como à mistura de marcadores de gênero femininos e masculinos, e enquanto expressão pode estar associada ou não à identificação não binária. , este conjunto de descritivos (no seu leque de possibilidades relativamente aberto) tem implícita a ideia de fusão ou mistura de marcadores estereotipicamente masculinos e femininos. Enquadra-se numa orientação semiótica que parte dos símbolos de gênero tradicionais (e da oposição M/F) para a reconstrução de novos símbolos e bandeiras.20 20 Por exemplo, a cor lavanda resulta da mistura de rosa e azul e a cor verde é o oposto da lavanda. Incluindo-se claramente no movimento de expansão das bandeiras e símbolos da comunidade LBTQI+, desde o início das marchas do orgulho, este wiki é pertinente na importância que a comunidade confere aos símbolos de gênero para superar a semiótica tradicionalmente associada ao binário (♀♂). Mediante uma lógica agregadora ( splicing ), os sistemas de representação são combinados e aprofundados, resultando em novos sistemas (algo como Masculino+Feminino+“Z”). A expansão do gênero é enfatizada, especialmente pelo não conformismo a estereótipos e convenções dominantes, multiplicando-se as possibilidades a partir da ambiguidade ou da versatilidade. Esta configuração normativa amplia os horizontes e espaços da pertença através do significado cumulativo e continuado do gênero e, ao implicar um reconhecimento parcial da possibilidade de não pertença, concorre para uma maior aceitação. Na medida em que concebe o gênero a partir da sua complementaridade, tem a potencialidade de transformar o binário a partir de uma convenção que reconhece a possibilidade de fazer o gênero de modo ambivalente ou ambíguo. No fundo, é por intermédio da coexistência (parcial, múltipla, fluida) do feminino e do masculino que se contraria a exclusividade binária e as suas práticas separatistas.

A vertente negativa: a pessoa em detrimento do gênero

A definição não binária negativa compreende um total de 18 descritivos identitários e assume um significado de renúncia do gênero que valoriza a universalidade e a neutralidade. Estas categorias caracterizam-se por descritivos promotores do abolicionismo dos marcadores binários socialmente reconhecidos.21 21 Do total de identidades de gênero consideradas válidas por esta comunidade digital, dezesseis descritivos enquadram-se na categoria de neutralidade ou Agender ( Anongender ; Apogender ; Agenderfluid ; Agenderflux ; Cancegender ; Genderblank ; Gendernull ; Null gender ; Gendervoid ; Genderless ; Genderfree ; Librafluid ; Oneirogender ; Non-gendered ; Neutrois ; Gender Neutral ) e dois na categoria opositiva ou negativa ( Epicene ; Antigender ou Ungender ). Com alguma popularidade, deste conjunto de categorias destacam-se Agender com 26% e Neutral com 15%, no Gender Census de 2018. O significado de gênero nesta vertente está entre a presença ou ausência, podendo implicar uma oposição ou uma negação. Ou seja, o gênero é renunciado por meio de um descritivo que constitui em si mesmo uma identidade representativa. Essa redefinição negativa do gênero pode pressupor uma eliminação dos marcadores da feminilidade e da masculinidade ou pode pressupor uma renúncia a partir desses mesmos marcadores.

No primeiro caso, a neutralidade do gênero advém da falta de distinção, a renúncia passa por uma representação da indefinição do gênero. Por exemplo, o descritivo identitário Gendervoid é definido nesta comunidade como “ um gênero consistindo do vazio (também/originalmente usado para significar a mesma coisa que sem gênero [genderless] )” . Noções sobre vazio e ausência, explicitadas por vários descritivos e que consideram o gênero através da neutralidade ou sem gênero. Na entrada dedicada ao descritivo Agender , há um questionamento sobre se este termo descreve uma falta de identidade ou uma identidade sobre a falta. São salientados problemas associados à representação não binária como não existindo ou estando desconectada do gênero. Neste contexto, a comunidade distingue entre concepções prescritivas e descritivas das identidades de gênero, reforçando a necessidade de tratar a experiência de gênero como uma questão privada que respeite os modos como as pessoas a descrevem.

Por sua vez, no caso da negação do gênero através da oposição, a anulação é realizada pela rejeição. Por exemplo, Antiboy é definido como a negação da masculinidade, o oposto de rapaz. Ungender é semelhante, refere-se ao desfazer do gênero, Ungirl não é sem gênero, mas sim o negativo do feminino. Neste caso, a comunidade alerta para o fato de o termo anglófono “ ungender ” ser usado por vezes como misgender , ou seja, uma atribuição equivocada ou desadequada do gênero de alguém. Nestes descritivos verificam-se posicionamentos face ao binário de gênero a partir da recusa da atribuição de gênero, captando um aspecto comum às trajetórias de gênero migratórias (Ekins; King, 2006). A diferença nesta vertente é tratar-se de uma categoria que toma essa rejeição, à nascença ou ao longo da vida, como modo de representação identitária. Ou seja, procura contrariar os símbolos tradicionais por meio do reforço da contradição, seguindo também a orientação semiótica atrás referida.

Tal como na vertente cumulativa, este conjunto de categorias confere uma primazia à linguagem e enquadra-se numa concepção identitária de “estado interior”. Além de variável, o gênero pode ser negado ou anulado. A hostilização do referente binário a partir do não , baseado na anulação de marcadores genderizados e que tem como principal referência Christie Elan-Cane, considerade ume des promotories do não binário mesmo antes do termo surgir. Uma vertente negativa que redefine o gênero pela universalização do “humano” ou da “espécie humana”, em detrimento de uma elevação das diferenças sexuadas. Em nome da semelhança, é questionada a utilidade dos marcadores legais de gênero e/ou reivindicada a possibilidade de não se ser de nenhum gênero. No fundo, uma convenção baseada na quebra de reconhecimento social do antagonismo binário e da sua exclusividade em benefício de um reconhecimento do humano. Uma noção de humanidade que concorre para abolir o binário através da sua anulação e/ou neutralização, com potencial para ampliar o leque de possibilidades de expectativa de não pertença ou de pertença à pessoalidade. Não obstante, esta alternativa contribui sobretudo para nivelar as pertenças existentes, na medida em que não invalida as pertenças exclusivas e as reifica, subdividindo as alternativas de atribuição, apropriação e interpretação da experiência genderizada.

A vertente separatista: emancipar (ilimitadamente) o gênero

A definição não binária separatista totaliza pelo menos 117 descritivos considerados válidos pela comunidade digital e pauta-se por uma afirmação de independência e abstração do gênero que valoriza a experiência como singular, privada e indecifrável.22 22 Exemplos de descritivos que se inserem em categorias deste tipo são Maverique, Aporagender, Other gender, Xenogender, Neurogender . Por terem um carácter mais individualizado e corresponderem a pertenças mais difusas o seu número de representantes é reduzido, com frequências tendencialmente abaixo de 0,5% (≈ 56 identificações) no Gender Census de 2018. Estas categorias caracterizam-se por uma noção de gênero como “externo” à classificação dicotómica e podem ser agrupadas em três tipos diferentes de descrições dos modos de identificação: i) “independentes”, ii) “ xenogenders ” e iii) “ neurogenders ”. Radicalizando o posicionamento face ao binário, este modo divergente de identificação investe na desestabilização através da expansão criativa e (completamente) alternativa. Em um espectro que se pauta pela maior ou menor autonomia em relação ao binário, que procura ultrapassá-lo com alternativas “distantes”.

Ao contrário dos descritivos agrupados no tipo negativo , os descritivos “independentes” definem a experiência por meio de uma noção de autonomia e positividade de gênero. Um modo de identificação ou posicionamento de fora: “ um gênero presente, mas separado/diferente ” – e não uma nomeação por oposição ao feminino e ao masculino, neutra ou entre o masculino e o feminino (como na vertente cumulativa). Recusando-se a ideia de “ terceiro gênero ” por ser inapropriada e colonialista23 23 Ainda que, por vezes, outras entradas do arquivo refiram que este termo classificatório pode ser usado nos processos de legitimação externa, nomeadamente as leis do marcador indeterminado e as opções de registo de dados em formulários e outros documentos. Para aprofundamento consultar Aboim (2020a). , Maverique, Aporagender, Aliagender e Other Gender são descritivos que partilham a possibilidade de experienciar o gênero produtivamente. Modalidades criativas de categorização da identidade de gênero que apresentam instruções claras sobre o uso autodeterminado e a “apropriação” (indevida) de quem consulta o arquivo à procura de se definir.

Também os “ xenogenders ” e os “ neurogenders ” procuram descrever as experiências alternativas através de processos de abstração e/ou externalização, mas neste caso procuram afirmar a ininteligibilidade ou apoiam-se em elementos completamente dissociados do gênero. A desestabilização dos significados concretiza-se mediante uma conjugação com elementos da natureza, personagens fictícias, fantasia, “ otherkin ”, patologias/neuro divergências, formas geométricas, matemática, etc. Construções alternativas ao sistema binário que procuram expandir o não binário de modo criativo. A justificação explicitada nos descritivos agrupados como “ Xenogender ” ( xeno – estrangeiro) é a seguinte:

Quando as pessoas falam em gênero não binário, frequentemente descobrem que não há palavras para as suas experiências. Isto chama-se uma lacuna [gap] lexical. De modo a preencher a lacuna lexical este wiki assume “xenogender” como um termo chapéu-de-chuva para uma categoria inteira de gêneros não binários que são definidos por características que não têm qualquer [whatsoever] relação com «feminino» ou «masculino» (Nonbinary Wiki Contributors, 2018).24 24 Original: “ When people talk about nonbinary gender, they often find that there aren’t any words for their experiences. This is called a lexical gap. In order to fill a lexical gap this wiki takes up “xenogender” as an umbrella term for ann entire category of nonbinary genders that are defined by characteristics with no relation whatsoever to “female” or “male ”.”

O primado linguístico e a necessidade “lexical” para referir o gênero além do binário são elementos constantes neste arquivo. Mas, apesar de convergirem no preenchimento de “lacunas”, os 76 descritivos não binários classificados como “ xenogenders ” têm um alcance mais amplo do que os 37 classificados como “ neurogenders ”, especificamente associados a neuro divergências. Por exemplo, o descritivo do primeiro grupo, Gendercosm, é definido como:

Uma identidade de gênero que abrange e supera os limites da terra/sociedade, mas não incorpora os gêneros existentes na sociedade; uma identidade de gênero tão grandiosa e vasta [grand and huge] que não pode ser explicada por palavras. O oposto de “gendervoid” (Nonbinary Wiki Contributors, 2018).25 25 Original: “ A gender identity encompassing and surpassing the limits of the earth/society, but doesn’t incorporate existing genders from society; a gender identity so grand and huge it cannot be explained by words. The opposite of gendervoid ”.

Por sua vez, o descritivo Anxiegender é definido como um gênero afetado pela ansiedade e tem esta divergência como palavra-chave. Com particularidades específicas, os modos de identificação incluídos na vertente separatista do não binário englobam descrições, criativas e/ou sentimentais, que se fundamentam na “materialidade dos sentimentos” e na recusa do essencialismo biológico, re/definindo o gênero como indecifrável e pessoal/autêntico. Enquadram-se numa variante semiótica de representação do gênero que se distancia completamente dos símbolos tradicionais, que inova por meio de uma lógica divisória ou decomposta ( splitting ): a decomposição de um dado sistema lógico em outros sistemas (algo como Gênero [Não Binário] = Y ou K ou @ ou 0 ou… ).

Para além da insistência na indecifrabilidade, a ausência de indicações específicas quanto ao uso de pronomes pessoais ou de expressões de gênero em cada um destes descritivos concorre para uma consideração do “gênero” em abstrato, distante da “prestação de contas” habitual ( West; Zimmerman, 2009WEST, Candace; ZIMMERMAN, Don H. Accounting for Doing Gender. Gender & Society 23 (1), 2009, pp.112–22 [https://doi.org/10.1177/0891243208326529 - acesso em: 7 nov. 2022].
https://doi.org/10.1177/0891243208326529...
; 1987). Uma vez que a maioria destes descritivos e respectivas bandeiras foi elaborada por cibernautas, esta associação do gênero a características particulares dignas de “celebração” (como ter um gênero “independente”, “musical”, “congelado”, “celestial”, “ansioso” ou “numérico”) parece apontar para uma prática frequente no ciberespaço: a da “estilização” de aspectos pessoais como forma de identificação e demonstração de pertença a um ou mais grupos identitários. O contexto do ciberespaço parece, aliás, mais propício a uma idealização do gênero “à medida”, que pouco se refere às conhecidas desigualdades de gênero ou à sua politização. Para Xie (2015)XIE, Jasmine. Deconstructing and Developing Gender: The Nonbinary Search for Identity. Dietrich College Honors Theses, 2015 [https://doi.org/10.1184/R1/6684089.v1 - acesso em: 7 nov. 2022].
https://doi.org/10.1184/R1/6684089.v1...
, as possibilidades “ilimitadas” de descrição do gênero não binário só são possíveis em discussões internas da comunidade, constrangidas pelo seu acesso online . A autora enquadra este tipo de descritivos entre uma procura, contextual e temporária, de captar aspectos ilusórios do gênero e uma manifestação da frustração com a narrativa de gênero dominante. Uma ilegibilidade intencional que representa a reivindicação de um direito: o de recusar o acesso ao gênero, à necessidade percebida de ter um gênero legível. Acrescento, que outra das consequências (intencional ou não) é a desestabilização do sistema de classificação de gênero e das práticas de atribuição, interpretação e apropriação binárias.

No fundo, este “grito” multiplicado é uma forma de abalar estruturas e gerar normas idiossincráticas, ancoradas numa relação divergente face ao binário. Uma posição radical que não se compromete com a esfera social e que sublinha a individualização da pertença de gênero, em grande medida estilizada pelas possibilidades proporcionadas pelas novas tecnologias de comunicação e informação.26 26 Nos conteúdos sobre pronomes, encontramos por exemplo um encaminhamento para o website Pronoun Island que, além de demonstrar como se usam pronomes alternativos, permite adicionar um “ virtual badge ” com o pronome associado aos vários perfis pessoais no ciberespaço, como o Facebook ou a Wikipédia. Neste arquivo digital, os pronomes e títulos pessoais neutros (especialmente de língua inglesa) são alvo de uma grande atenção através de retratos históricos, informações sobre como usar e o seu uso por diferentes celebridades também no contexto offline . Verifica-se, portanto, que pese embora o ciberespaço constitua uma arena privilegiada para a manifestação de identificações não binárias existem inter-relações e eventualmente continuidades com outras esferas da vida social. Em linha com Marciano (2014) , defendo a importância de explorar as aproximações e distâncias entre diferentes espaços e horizontes da experiência (Merlini, 2016). Baseia-se numa lógica de reconhecimento a posteriori , fundada unicamente na norma da auto atribuição e que traduz a primazia da experiência de gênero como dado, em detrimento da experiência como resultado . Uma re/definição do gênero que contém, contudo, (im)possibilidades raramente compatíveis com as diversas modalidades para (des)fazer o gênero nos quotidianos “desconectados” face a face. Importa, por isso, retomar em que medida estes e outros horizontes de expectativa e espaços da experiência genderizada dialogam e implicam distintos reconhecimentos.

Reconhecer o gênero (para si e em si)

Face ao exposto, podemos avançar com algumas considerações globais sobre as diferentes valorizações e repartições da experiência de gênero a partir da formação discursiva não binária. A descrição da alternativa não binária toma como elementos chave a distinção entre gênero e sexo e a maleabilidade que o gênero acarreta enquanto construção social. Através de uma separação rigorosa e enfatizada entre identidade de gênero (ou “estado interior”), pronomes pessoais, expressão de gênero e características sexuadas, a comunidade digital analisada acima re/define o gênero como adaptável e extremamente individualizado, independentemente do seu reconhecimento social . As diferenciações encontradas no wiki sublinham, particularmente, a maior ou menor importância concedida ao gênero e o seu carácter plástico e variável. E são posicionamentos também motivados pela necessidade de segurança e de circunscrição/restrição identitária, cuja revelação ou expressão poderá ser contextualmente adequada. Enquadram-se, portanto, em um esforço de legitimação, de estabilização dos sentidos e de construção partilhada, assumido por este projeto digital. Ilustrando o ativismo não binário, este wiki propõe deslocamentos efetivos à formação discursiva dominante por meio de um ethos construído para fora e para dentro da comunidade, e que estabelece a fronteira entre o binário e a sua superação.

Com efeito, dependendo dos significados e valorizações que atribuímos ao gênero; dos parâmetros que usamos para interpretar as práticas e dos modos como nos apropriamos do gênero, encontramos diferentes configurações normativas. Na vertente cumulativa, partimos da classificação binária para diversificá-la, ancorando-se as experiências de gênero na versatilidade e ambiguidade. No caso da vertente negativa, é a partir da neutralidade ou rejeição que vemos a procura de anulação dos marcadores e codificações binárias, com ênfase na universalização do humano e da semelhança. Por fim, a vertente separatista afirma o indecifrável e abstrato na experiência de gênero, procurando especialmente a criatividade e desestabilização das convenções existentes. Se considerarmos todos os significados e alternativas existentes, diríamos que se pode pertencer/tornar/fazer o gênero de modo antagónico (ou binário ), complementar, múltiplo ou indeterminado . Mas a tensão entre os posicionamentos exclusivos ou não exclusivos implica diferentes níveis de reconhecimento e remete-nos para um diálogo entre o gênero para si e o gênero em si . Ou seja, a diversidade existente tem de ser vista a partir da sua componente social e isso coloca diferentes questões quanto ao reconhecimento coletivo e democrático das diferenças.

O gênero em si – a estrutura fundada por um conjunto de práticas e arranjos materiais – contém elementos plurais passíveis de serem atribuídos, apropriados e interpretados em diferentes modalidades, mas com um referente hierarquizante que ordena e demarca os horizontes de expectativa e os espaços de experiência. Um centro hegemónico contestado, mas cujas convenções dominantes são socialmente prevenidas e mantidas a partir das suas transgressões (complementares). Os processos sociais de reconhecimento do gênero estão baseados fundamentalmente na formação discursiva binária, seus processos de purificação cognitiva e naturalizações. Numa interpretação dominante da transgressão de gênero através das ausências binárias (i.e. da oposição entre masculino ou feminino), que responsabiliza sobretudo quem não cumpre as expectativas de exclusividade. Exigências que isolam e pressionam as pessoas não binárias para corresponder a (ou transformar as) práticas conhecidas. Precisamente porque tende a reforçar o antagonismo e a descredibilização, a transposição ou afastamento de um posicionamento de gênero socialmente reconhecível não poderá, portanto, limitar-se à comunicação e articulação de cada um/a/e, quando o desejar. Para além dos riscos na primazia identitária e linguística, conferida particularmente pelo Nonbinary wiki , uma rejeição absoluta das convenções sociais instituídas exclui o gênero em si e a sua pluralidade.

O gênero para si, e/ou como sentimento de si, tem-se tornado cada vez mais visível por intermédio da especificação de identificações de gênero e da multiplicação dos descritivos de experiências alternativas. Podendo ser entendida como uma alternativa discursiva de legitimação do gênero (não exclusivo), este posicionamento crítico emerge a partir da contestação da exclusividade e do “binarismo”, apresentando diferentes “facetas” que estão em tensão para definir a experiência não binária. São três vertentes que desdobram, desalinham e sobrepõem os significados e valores que distinguem e especificam o gênero, configurando normativamente diferentes possibilidades de reconhecimento. Em linha com Pearse e Connell (2016)PEARSE, Rebecca; CONNELL, Raewyn W. Gender Norms and the Economy: Insights from Social Research. Feminist Economics, 22 (1), 2016, pp.30-53 [https://doi.org/10.1080/13545701.2015.1078485 – acesso em: 7 nov. 2022].
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, podemos ver estas possibilidades como modos consensuais de fazer (e valorizar) o gênero, provenientes de espaços alternativos da experiência (passada, presente e futura) que representam formas de articulação e comunicação do gênero coexistentes. Mas, ser-se reconhecível como humana/o/e, como versátil ou ambígua/o, ou não ter gênero atribuído a priori implica processos de ordenação e demarcação com critérios e parâmetros distintos. São formas múltiplas de legitimar o gênero que, no entanto, requerem diferentes compreensões e interpretações e, ao comportar distintos valores e significações, apelam a diferentes transformações da formação discursiva dominante, provocando distintamente a sua ideologia “conservadora”.

Um dos principais obstáculos na inclusão da alternativa não binária passa, precisamente, pela discrepância interpretativa que força o secretismo e/ou estigmatização das pertenças alternativas. Nesse sentido, a maior visibilidade do movimento não binário na esfera pública não corresponde à sua aceitação efetiva, não havendo uma compreensão automática dos diferentes vetores de sentido, dos parâmetros pelos quais se regem os diferentes significados, valores e normas. E, porque as diferentes vertentes não binárias se constroem como incompatíveis – através de classificações, arranjos e reforços específicos da diferença de gênero – são configurações normativas com uma menor capacidade de organização e resistência. Uma produção de fronteiras (multiplicadas) que tem, por isso, resultado sobretudo na privatização e individualização da experiência de gênero, minando as potenciais alianças rumo à emancipação do gênero. A contestação do poder hegemónico requer um compromisso e responsabilização coletiva. Tanto Connell (2009)CONNELL, Raewyn W. Accountable Conduct: ‘Doing Gender’ in Transsexual and Political Retrospect. Gender and Society, 23 (1), 2009, pp.104–11 [https://doi.org/10.1177/0891243208327175 - acesso em: 7 nov. 2022].
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como Butler (2004)BUTLER, Judith. Undoing Gender. New York, Routledge, 2004. apelam precisamente para a necessidade de políticas de aliança que reconheçam a necessidade de transformar as possibilidades genderizadas. A aceitação generalizada da complexidade das experiências de gênero, na sua pluralidade, implicaria reconhecer critérios democráticos que respeitem as diferenças e configurações normativas alternativas. Procurando prevenir mais pânicos morais, concluo relembrando que as vidas não binárias coexistem com os constrangimentos do – e são subordinadas ao – mundo organizado e dividido em dois e que a sua inclusão dificilmente eliminará a possibilidade de pertença exclusiva. Como incluir o não binário implicará, portanto, não só em “questionar os valores para a invenção do Outro” ( Miskolci, 2005MISKOLCI, Richard. Do desvio às diferenças. Teoria & Pesquisa, 47, 2005, pp.9–41 [https://doi.org/10.4322/tp.v1i47.43 – acesso em: 7 nov. 2022].
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), como também saber em que medida as diferenças podem ser valorizadas ao nível supra . Um horizonte que é tão diverso como global e um espaço do qual te(re)mos igualmente experiência.

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  • 1
    Disponível em: https://nonbinary.miraheze.org/wiki/Main_Page . Acesso em: 7 de novembro de 2022.
  • 2
    Entre muitos episódios, temos a vinda de Judith Butler a São Paulo em 2017 (polémica que foi alvo de surpresa e debate nesta revista), as declarações da Ministra Damares Alves (como na sua tomada de posse “menino veste azul e menina veste rosa”), o caso dos blocos de atividades binários da Porto Editora, o pedido de revisão de constitucionalidade da lei portuguesa de autodeterminação da identidade de gênero (aprovada em 2018) subscrito por 86 deputados da Assembleia da República. Episódios distintos, mas com efeitos mediáticos e de discussão pública relevantes, dividindo opiniões sobre (o que pode/deve ser) o gênero e, frequentemente, colocando o ónus na “proteção” das crianças e na “neutralidade” dos “espaços pedagógicos”.
  • 3
    Face à recusa específica do termo “ideologia” por Foucault (2008FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. 7aed. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2008.: 43), por estar carregada de “condições e consequências”, sugiro uma definição ampla. Pressuponho que é preciso considerar tanto a ideologia face ao seu contexto discursivo (quem fala o quê, quando e para quê) como as premissas enraizadas nas ideias que formam epistemologicamente a realidade. Ao contrário de uma metafísica absoluta ou de um relativismo moral, procuro realizar uma análise objetiva dos modos como a moralidade afeta a realidade. Sobre as diferentes definições de ideologia (nem sempre compatíveis entre si) ver Terry Eagleton (1991)EAGLETON, Terry. Ideology, an Introduction. London, Verso, 1991. .
  • 4
    Defino transgressão de gênero como “uma prática complementar aos interditos sociais que, num dado tempo e espaço, estabelecem e prescrevem os modos de reconhecimento das diferenças de gênero” ( Merlini, 2020MERLINI, Sara. Género e Transgressão. Des/fazendo o masculino e o feminino em Portugal e no Reino Unido. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2020.: 209).
  • 5
    Publicação digital, disponível em cinco línguas e dirigida às escolas. O período em que este texto foi publicado (fevereiro/2019) coincide com outras afirmações de posicionamento por parte de organizações supranacionais (como a ONU, a UE, a OMS, a Anistia Internacional, etc.) relativamente à identidade e à expressão de gênero . Entre as principais, está o reconhecimento da OMS, que anunciou em junho de 2018 a despatologização da identidade de gênero na nova edição do ICD - International Classification of Diseases(a ser adotada em maio de 2019), que tem contribuído para agilizar mudanças jurídico-legais, face aos compromissos estabelecidos por diversos países ao nível supranacional. O excerto citado suscita, aliás, poucas dúvidas sobre esta associação de acontecimentos. O uso do termo gender (gênero, em inglês) em todas as edições pode ser visto como um recurso estilístico intencional, a par de um argumento retórico sobre a neutralização da diferença que é igualmente estratégico, na medida em que esta formação discursiva (ortodoxa) constitui uma tentativa de contrariar a própria diversidade existente e as adequações necessárias ao reconhecimento da mesma.
  • 6
    Um exemplo conhecido é o American College of Pediatricians , representado pelo Dr. Paul R. McHugh que tem desenvolvido diversos estudos para refutar a “base neurobiológica” da identificação de gênero.
  • 7
    Segundo o Wiki Índex, esta era a única plataforma intitulada como “ Nonbinary ” no período de recolha de dados desta investigação, que decorreu até 2018. Descrevo em seguida as razões da sua escolha. Por ciberespaço, entendo uma arena social específica onde se estabelecem experiências e partilhas online , podendo constituir-se como um espaço de inter-relações preliminares, complementares ou divergentes das relações offline , face a face ( Marciano, 2014MARCIANO, Avi. Living the VirtuReal: Negotiating Transgender Identity in Cyberspace.Journal of Computer-Mediated Communication, 19, 2014, pp.824-38. [https://doi.org/10.1111/jcc4.12081 – acesso em: 7 nov. 2022].
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    ).
  • 8
    O fenómeno transgênero (recorrendo à sua designação contemporânea) remete para a diversidade de práticas genderizadas e para diferentes pertenças que têm sido uma parte “persistente” de várias sociedades ao longo do tempo e do espaço ( Stryker, 2008STRYKER, Susan. Transgender History. Berkeley, Seal Press, 2008. ). Nomeadamente nas tradições culturais Hindus (as pessoas conhecidas como Hijras na Índia e no Nepal; e como Khawaja’saras no Paquistão), Maori (na Polinésia existem diversas identificações, nomeadamente as Fa’afafine ; na Nova Zelândia são conhecidas como Whakawahine ), Zapotecas ( Muxes e Biza’ah no México), etc.
  • 9
    As pessoas transgênero e as pessoas não binárias convergem na desidentificação com a categoria de gênero atribuída à nascença, na experiência de não pertencer a um gênero e nas trajetórias vividas entre as possibilidades i/legítimas de fazer o gênero. Podem divergir na apropriação e interpretação das categorias, nas modalidades práticas de des/fazer o gênero e nos posicionamentos assumidos (sobretudo privilegiando o antagonismo ou a não exclusividade).
  • 10
    Como o direito à privacidade na identificação (institucional) com o gênero, separação das esferas biomédica e jurídico-legal na determinação do gênero, direito à autodeterminação das transformações corporais, linguagem e formas de tratamento neutras. Neste artigo recorro ao sistema “Ile” quando há referência a pronomes não binários e/ou traduções de palavras originalmente neutras em outras línguas. Esta linguagem inclusiva (ou não binária) é recente e começou a ser usada na língua portuguesa a partir de 2013, encontrando-se ainda em fase de estabilização.
  • 11
    De fato, a difusão do termo e do léxico não binário começa a partir de 2014 – o ano em que adquire uma bandeira própria e, paralelamente, o ano em que a revista Time magazine denomina de “ transgender tipping point ” nos Estados Unidos da América ( Shapiro, 2015SHAPIRO, Eve. Gender Circuits. New York & London, Routledge, 2015.: 27). É também em 2014 que se torna mais visível a proliferação de descritivos identitários e novas formas de nomear o gênero, distintas e singulares, que se distanciam de uma visão antagónica e binária das categorias (exclusivas) de feminino ou masculino. Em fevereiro do mesmo ano, o Facebook norte-americano disponibilizou 50 novas categorias de gênero além de masculino ou feminino. Nesse mesmo mês, a comunidade não binária da rede social norte-americana Tumblr realizou um apelo generalizado à representação das pessoas não-binárias e criou um conjunto de pronomes personalizados ( Nounself pronouns ). É também em fevereiro de 2014 que a bandeira do orgulho não-binário foi criada – da autoria de Kye Rowan, utilizadorie do Tumblr de 17 anos, com o objetivo de representar as pessoas que não se identificavam com a bandeira genderqueer , criada por Marilyn Roxie em 2011 (enquanto representação paralela e não em sua substituição: http://thejasmineelf.tumblr.com/flagfaq ). 2014 é também o ano de mandato em que foram tomadas mais medidas de proteção dos direitos “LGBT” pelo presidente Barack Obama, nos EUA, anunciando simbolicamente junho desse ano como o “mês do orgulho LGBT”.
  • 12
    O que explica o maior número de entradas com informações sobre o Reino Unido que encontrei, comparativamente a outros países incluídos neste arquivo digital.
  • 13
    Realizei a recolha final de entradas com conteúdo e uma seleção de talks , históricos, estatísticas e listagens deste wiki entre 19 e 21 de fevereiro de 2018. Das 69 categorias listadas no arquivo, 36 correspondiam a conteúdos e 33 remetiam para a sua manutenção e utilização. Pela sua inconsistência (com múltiplas categorias relacionadas) e por haver um conjunto de categorias em desuso ou isoladas, optei por uma nova classificação das 237 páginas de conteúdo. A reclassificação resultou em 4 grandes categorias (I. Conceções e Símbolos ; II. Identidades e Expressões ; III. Reconhecimento e Visibilidade ; e IV. Recursos Práticos ) e organizou a análise de conteúdos. Esta breve apresentação não dispensa, obviamente, a consulta do arquivo para aprofundamento e atualização, uma vez que se trata de um conjunto de recursos dinâmicos que são alvo de edição frequente. Para o estudo completo consultar Merlini (2019).
  • 14
    Tradução própria do original em inglês. As expressões assinaladas entre chaves referem-se à contextualização ou aos termos usados, para revelar a opção de tradução feita. Procurei traduzir o sentido mais próximo do significado contextual quando não existe um termo equivalente direto na língua portuguesa. Todas as citações subsequentes foram traduzidas. No original: “Nonbinary Wiki is a wiki devoted to the nonbinary visibility, education and advocacy, arguing for equal access to employment, services and medical treatment for those who don't fit the gender binary.”
  • 15
    Contabilizei um total de 166 categorias e/ou termos chapéu-de-chuva, tendo em conta as suas características e descrições, bem como as sobreposições existentes. Este arquivo tem também entradas sobre descritivos identitários binários e paralelos ou provisórios (que remetem para o questionamento da identificação de gênero). Sendo alvo de um processo de triagem e validação, a maior parte destes descritivos tem uma entrada própria, estatísticas de utilização (recolhidas pelo Gender Census , uma pesquisa realizada anualmente pela comunidade) e símbolos específicos de orgulho.
  • 16
    É pertinente relembrar que as transformações nas conceções e práticas de gênero também se beneficiaram das (novas) possibilidades tecnológicas baseadas na comunicação pela palavra escrita, que incitam à auto apresentação estilizada (em anonimato ou não), à redefinição criativa de si, permitem uma construção partilhada dos sentidos do gênero e dos seus scripts, etc.
  • 17
    Sigla anglófona usada como alternativa da sigla LGBTQI, Marginalized Orientations, Gender Identities, and Intersex.
  • 18
    Três descritivos na categoria “entre” ( Intergender, Ambigender, Androgyne ), sete descritivos na categoria parcial ou Demigender ( Demigirl ; Demiboy ; Demiguy ; Demienby ; Deminonbinary ; Demifluid ; Demiflux ) e seis descritivos na categoria múltiplo ou Multigender ( Bi-gender ; Tri-gender ; Polygender ; Pangender ; Genderfluid ou Fluid gender ; Genderflux ). No Gender Census de 2018, este era o conjunto de descritivos mais populares à escala global e no Reino Unido. Num total de 11.278 participantes, em que mais de metade usa um a quatro termos diferentes para autodescrever o seu gênero, 25% identificou-se como Genderfluid/Fluid gender ; 11% como Androgyne e 11% como Demigender .
  • 19
    Etimologicamente, androginia é uma palavra grega ( andrós-: homem e –gunaikós: mulher) que refere a pertença a ambos. O seu uso como categoria da prática – i.e. os termos quotidianos em uso nas experiências sociais, diferente dos termos aplicados ao estudo de um dado objeto social ou categoria de análise (Brubaker; Cooper, 2000:4) – assume dois sentidos contraditórios nesta comunidade digital. Tanto se refere à ausência como à mistura de marcadores de gênero femininos e masculinos, e enquanto expressão pode estar associada ou não à identificação não binária.
  • 20
    Por exemplo, a cor lavanda resulta da mistura de rosa e azul e a cor verde é o oposto da lavanda. Incluindo-se claramente no movimento de expansão das bandeiras e símbolos da comunidade LBTQI+, desde o início das marchas do orgulho, este wiki é pertinente na importância que a comunidade confere aos símbolos de gênero para superar a semiótica tradicionalmente associada ao binário (♀♂).
  • 21
    Do total de identidades de gênero consideradas válidas por esta comunidade digital, dezesseis descritivos enquadram-se na categoria de neutralidade ou Agender ( Anongender ; Apogender ; Agenderfluid ; Agenderflux ; Cancegender ; Genderblank ; Gendernull ; Null gender ; Gendervoid ; Genderless ; Genderfree ; Librafluid ; Oneirogender ; Non-gendered ; Neutrois ; Gender Neutral ) e dois na categoria opositiva ou negativa ( Epicene ; Antigender ou Ungender ). Com alguma popularidade, deste conjunto de categorias destacam-se Agender com 26% e Neutral com 15%, no Gender Census de 2018.
  • 22
    Exemplos de descritivos que se inserem em categorias deste tipo são Maverique, Aporagender, Other gender, Xenogender, Neurogender . Por terem um carácter mais individualizado e corresponderem a pertenças mais difusas o seu número de representantes é reduzido, com frequências tendencialmente abaixo de 0,5% (≈ 56 identificações) no Gender Census de 2018.
  • 23
    Ainda que, por vezes, outras entradas do arquivo refiram que este termo classificatório pode ser usado nos processos de legitimação externa, nomeadamente as leis do marcador indeterminado e as opções de registo de dados em formulários e outros documentos. Para aprofundamento consultar Aboim (2020a).
  • 24
    Original: “ When people talk about nonbinary gender, they often find that there aren’t any words for their experiences. This is called a lexical gap. In order to fill a lexical gap this wiki takes up “xenogender” as an umbrella term for ann entire category of nonbinary genders that are defined by characteristics with no relation whatsoever to “female” or “male ”.”
  • 25
    Original: “ A gender identity encompassing and surpassing the limits of the earth/society, but doesn’t incorporate existing genders from society; a gender identity so grand and huge it cannot be explained by words. The opposite of gendervoid ”.
  • 26
    Nos conteúdos sobre pronomes, encontramos por exemplo um encaminhamento para o website Pronoun Island que, além de demonstrar como se usam pronomes alternativos, permite adicionar um “ virtual badge ” com o pronome associado aos vários perfis pessoais no ciberespaço, como o Facebook ou a Wikipédia. Neste arquivo digital, os pronomes e títulos pessoais neutros (especialmente de língua inglesa) são alvo de uma grande atenção através de retratos históricos, informações sobre como usar e o seu uso por diferentes celebridades também no contexto offline . Verifica-se, portanto, que pese embora o ciberespaço constitua uma arena privilegiada para a manifestação de identificações não binárias existem inter-relações e eventualmente continuidades com outras esferas da vida social. Em linha com Marciano (2014)MARCIANO, Avi. Living the VirtuReal: Negotiating Transgender Identity in Cyberspace.Journal of Computer-Mediated Communication, 19, 2014, pp.824-38. [https://doi.org/10.1111/jcc4.12081 – acesso em: 7 nov. 2022].
    https://doi.org/10.1111/jcc4.12081...
    , defendo a importância de explorar as aproximações e distâncias entre diferentes espaços e horizontes da experiência (Merlini, 2016).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2020
  • Aceito
    04 Out 2021
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