Acessibilidade / Reportar erro

Por uma antropologia do desejo e do prazer: notas para uma cartografia libidinal do social*

For an Anthropology of Desire and Pleasure: notes for a libidinal cartography of the social

Resumo

O objetivo deste artigo é dialogar com a provocação feita pelo antropólogo argentino Néstor Perlongher sobre o fazer antropológico, na qual o autor se questiona: "por que será que a antropologia, tão obcecada por discursar sobre o outro, não se anima a reconhecer o desejo do outro?”. Seguindo essa inspiração, desejamos apresentar pontos de consideração teórico-metodológicos que enfatizem uma análise do social a partir dos movimentos libidinais em sua macro e micropolítica, uma proposta de cartografia que comporia uma antropologia do desejo. Entendendo que o desejo está na base da criação de toda comunidade, laço de pertencimento ou relação social, ao longo do artigo exploramos vias para a interpretação de um desejo pela hierarquia, pela aniquilação do outro ou pelo mal - enfatizando a problemática racial - via processos de subjetivação e engajamentos libidinais presentes em práticas diversas de indivíduos, grupos e formas de governos. Finalizamos o artigo ponderando ao redor de importantes influências de Perlongher naquilo que na antropologia brasileira podemos chamar de Antropologia do prazer, a partir de pesquisas que têm se dedicado justamente a duas das principais temáticas do autor: sexualidade e drogas.

Desejo; Prazer; Perlongher; Violência; Tensores libidinais

Abstract

The objective of this article is to dialogue with the provocation made by the Argentine anthropologist Néstor Perlongher about the anthropological work, in which the author asks himself: "why is it that anthropology, so obsessed with discourse about the other, does not dare to recognize the other's desire? Following this inspiration we wish to present theoretical and methodological points of consideration that emphasize an analysis of the social from the libidinal movements in its macro and micro politics, a proposed cartography that would compose an anthropology of desire. Understanding that desire is at the base of the creation of every community, bond of belonging or social relationship, throughout the article we explore ways to interpret a desire for hierarchy, annihilation of the other or evil - emphasizing the racial problem - via processes of subjectivation and libidinal engagements present in diverse practices of individuals, groups and forms of governments. We end the article pondering around the important influences of Perlongher in what, in Brazilian anthropology, we may call the Anthropology of pleasure, based on research that has been dedicated precisely to two of the author's main themes: sexuality and drugs.

Desire; Pleasure; Perlongher; Violence; Libidinal tensioners

Apresentação

Somos corpos desejantes. É dessa premissa aparentemente simples que o antropólogo argentino Néstor Perlongher buscou entender diferentes fenômenos sociais. Para o autor, a concepção de uma análise social se fazia pelo acompanhamento dos atores em sua deriva. Perlongher se interessava pelos errantes, por aqueles que corriam por fora, em linhas de fuga, nômades de qualquer tentativa de disciplinamento e normalização. Seus interlocutores foram os habitantes marginais dos grandes centros urbanos que criavam territórios existenciais próprios para si.

Em um curto, porém potente texto escrito em 1988, Perlongher (2005)PERLONGHER, Nestor. Territórios marginais. In: GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo (org.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo, Editora Unesp, 2005, pp.263-290. apresenta a pertinência de estudos sobre a noção de “territorialidade” para a Antropologia Urbana, através de uma proposta de análise que fuja de uma abordagem essencialista ou reificadora. O que o autor demonstra é que a cartografia de “territorialidades” seria muito mais produtiva do que a ênfase nas “identidades”, já que permitiria perceber os indivíduos a partir de “lugares relacionais”, “de modo a captar como os sujeitos se definem mutavelmente a partir de ‘posições’ e ‘trajetórias’ (ou ‘devires’) variáveis dentro de uma rede, bem como da participação em diferentes redes” (Simões, 2008SIMÕES, Júlio Assis. O negócio do desejo. cadernos pagu (31), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.534-546.:265).

Perlongher centra a sua atenção naquilo que chama de “territorialidades marginais”, naquelas em que “o que haveria em comum, entre as várias socialidades da margem, seria algum impulso de fuga, que estaria, de um modo ou de outro, no seu ponto de partida” (Perlongher, 2005:287); uma fuga que se faz, é importante que se perceba, pelo desejo: “As fugas marginais são, então, fugas desejantes” (Perlongher, 2005PERLONGHER, Nestor. Territórios marginais. In: GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo (org.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo, Editora Unesp, 2005, pp.263-290.:280). É marginal, dessa forma, porque trata-se de práticas que envolvem uma economia libidinal que tende a escapar de determinados aparelhos de captura e se (re)construir, através de deslocamentos, torções ou reificações de diferentes formas. A “desterritorialização” (seja ela geográfica, existencial ou do próprio desejo) não é constante ou eterna, já que o deslocamento acompanhado da constituição de novos territórios, de “reterritorializações”, é um movimento recorrente, seja nos sujeitos, nas trajetórias ou nas socialidades ditas marginais. Superprodução classificatória, fluidez na deriva por essas mesmas categorias, desejos normativos, transgressão hierarquizadora são fenômenos presentes nessas territorialidades, como aponta o autor. Perlongher pensa essas questões a partir da sua já clássica cartografia dos “códigos-território” da prostituição masculina (1987)1 1 Um parêntese necessário, aqui, seria do eterno retorno a essa obra de Perlongher, obra pioneira e seminal para qualquer um interessado não só no tema específico da prostituição masculina, mas também na apresentação de um trabalho etnográfico excepcional. O autor encara aqui o desafio de levar a sério uma “antropologia do desejo” que deve ser problematizada em seus múltiplos atravessamentos pelas questões de raça, classe, idade, etc. A prova da durabilidade das análises de Perlongher é que, mesmo depois de mais de 30 anos de sua publicação, ainda não conseguimos dar conta de todas as questões levantadas ali. Para o contexto de produção desse trabalho no cenário antropológico brasileiro dos estudos de gênero e sexualidade, ver Carrara e Simões (2007) e Simões (2008). E para a recepção e impacto de sua publicação, ver o prefácio da primeira edição escrito por Fry (1987) e o da mais recente reedição escrita por Miskolci e Pelúcio (2008). .

Quando Perlongher pensa “território”, não faz referência necessariamente a termos geográficos, mas especialmente a “universos psicossociais”, ou melhor, a “territórios existenciais”. Ou seja, a noção de território, aqui, é entendida num sentido mais amplo, que ultrapassa o uso em que comumente se aplica. Sua abordagem recebe inspiração de Gilles Deleuze e de Félix Guattari: “entendo aqui que os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos” (Guattari; Rolnik, 2005GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro, Vozes, 2005.:388). Território, nessa concepção, é sinônimo de apropriação, de subjetivação, tanto de um espaço quanto de um sistema percebido, no seio do qual um sujeito cria um espaço para si. “Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (Guattari; Rolnik, 2005GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro, Vozes, 2005.:388).

Nessa cartografia, as análises de Perlongher partiam da compreensão de quais as principais linhas de força que atravessavam esses contextos em questão. Formando um enquadramento mais duro, causador de tensão (até mesmo libidinal), têm-se as linhas molares, como as intervenções do Estado em suas mais diferentes formas policialescas, assim como o poder médico e os sistemas de opressão que operam pelos marcadores de raça, classe, gênero, sexualidade, idade e etc. Outro fluxo é dado pelas linhas moleculares, mais flexíveis, que se movimentam e correm num campo de intensidades, que é alimentado pelos agenciamentos dos encontros, pelas afecções com o mundo que nos cerca e, para o autor, na composição de prazeres. É daqui que surgem as possibilidades de outro tipo de linha de força, as chamadas linhas de fuga, que são motoras das “revoluções moleculares” (Guattari; Rolnik, 2005GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro, Vozes, 2005.) que desestabilizariam as relações de poder em nossa sociedade.

É dessa concepção do social que Perlongher conduziu a sua vida e produziu a sua obra (seja a lírica, a antropológica, a jornalística e mesmo a política). Um pensador nômade e inquieto. Desde suas primeiras produções poéticas e engajamento na formação do movimento de luta homossexual em Argentina nos anos 19702 2 Para uma análise da obra poética de Perlongher e dos principais temas que a atravessam (o corpo, a violência, o desejo e o êxtase), ver Santos (2019). Para a importante atividade política do autor em Argentina nessa década, seu papel na composição da Frente de Liberación Homosexual de la Argentina (FLH), posterior prisão pela ditadura daquele país e exílio no Brasil, ver Bazan (2017). , passando pelos estudos antropológicos no Brasil na primeira metade dos anos 1980 e a continuação de suas pesquisas entre França e Brasil até a sua morte no início dos anos 1990.

Seus textos também caminharam por saltos de interesse. Começaram pelos estudos voltados à prática da prostituição masculina (que culminaram com a publicação em livro de sua dissertação de Mestrado em Antropologia na UNICAMP sobre o tema, Perlongher, 1987), em que buscou analisar a dinâmica, as trajetórias e as negociações em torno do desejo homossexual codificado em trocas econômicas. Em seguida, o autor se dedica ao tema da Antropologia Urbana (Perlongher, 1993PERLONGHER, Nestor. Antropologia das sociedades complexas, identidade e territorialidade ou como estava vestida Margaret Mead. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 22, 1993, pp.137-144. e 2005) e a desenvolver propostas teóricas e metodológicas de análise que levem em conta as produções e deslocamentos de territórios nas grandes cidades. Com o surgimento da pandemia de aids e a descoberta da soropositividade em si mesmo, o autor passa a ter como foco de atenção a doença, entendendo-a enquanto um “dispositivo” (Deleuze, 1990DELEUZE, Gilles. Que es un dispositivo?. In: BALBIER, E. (org.). Michel Foucault filósofo. Madrid, Gedisa, 1990, pp.155-161.). Interessa a Perlongher nesse momento como os corpos resistem ao disciplinamento “dos poros e das paixões” vindos dos saberes-poderes médicos e as forças de controle estatais (Perlongher, 1985, 1987 e 1991). A partir do agravamento de sua doença, o autor se desloca da questão da deriva urbana para entender a busca por um estado de êxtase, ou pelos “estados alterados de consciência”, principalmente aqueles alcançados via substâncias psicotrópicas, seja em contextos de uso recreativo de drogas, seja no uso de ervas e raízes em contexto místico/religioso (1991 e 2012). A questão que atravessa todos esses saltos é: como entender o desejo que movimenta as pessoas em suas práticas?

Este artigo é uma forma de resposta à provocação feita pelo antropólogo argentino num texto sobre o fazer antropológico, que ele finaliza com a seguinte frase: "por que será que a antropologia, tão obcecada por discursar sobre o outro, não se anima a reconhecer o desejo do outro?” (Perlongher, 1984:4). Muito mais do que reconhecer a diferença enquanto um traço de caracterização, descrição e de poder sobre o discurso, caberia a nós, antropólogos, perceber na diferença um processo de produção constante de fluxos e organizações de desejo singulares. Com essa provocação, feita concomitantemente ao movimento reflexivo na nossa disciplina naquela década (1980), Perlongher põe em questão o fazer antropológico em sua própria formação.

Nosso objetivo aqui é apresentar alguns pontos de consideração teórico-metodológicos que levem a sério uma análise do social a partir dos movimentos libidinais em sua macro e micropolítica. Uma proposta de cartografia que comporia, dessa forma, uma antropologia do desejo e do prazer interessada nos processos de subjetivação presentes desde algumas práticas de engajamento singulares de grupos e indivíduos, até formas de organização e controle libidinal por parte de certas formas de governar, ambas com efeitos políticos.

O percurso deste artigo começa, dessa forma, por uma aproximação conceitual sobre a diferença entre as noções de “desejo” e “prazer” que estão de fundo no pensamento perlonghiano; passam pelo rendimento da ideia de uma proposta de cartografia libidinal como chave de análise para pensar relações sociais e suas diferentes implicações políticas (tanto em dinâmicas de atração quanto de repulsa, dando atenção a essas últimas: desejo pela aniquilação, pelo mal e pela violação do outro); num terceiro momento fazemos um panorama sobre o impacto do pensamento perlonghiano no cenário institucional e em pesquisas antropológicas brasileiras, principalmente através do seu conceito de “tensores libidinais”, possibilitando a configuração de uma antropologia do prazer; e finalizamos o texto com uma dobra sobre a provocação de Perlongher a levando, num agenciamento com o pensamento de alguns autores negros, para pensar violência racial e a possibilidade do desejo do sujeito negro.

A intenção, portanto, não é propor um campo de estudos próprio, uma escola, ou uma linhagem disciplinar a partir da teoria de um autor ou de cenários etnográficos específicos, mas atentar para uma maneira outra de posicionarmos as questões enquanto analistas sociais, inspirados naquilo que Perlongher legou em suas obras.

Desejo e Prazer

Quando Perlongher diz que é preciso reconhecer o desejo do outro, ele está falando do que exatamente? Como diz o título do último filme do diretor espanhol Buñuel: “o que é esse obscuro objeto chamado desejo?”. Já que o trabalho de Perlongher mais conhecido no Brasil foi O Negócio do Michê, sobre prostituição masculina, vale a pena fazer uma ressalva visando evitar uma confusão: quando falamos em desejo, não estamos pensando necessariamente em erotismo ou gozo sexual. Desejo é uma categoria que tem desafiado a filosofia e a psicanálise, entre outras áreas do conhecimento.

Em um olhar panorâmico, podemos identificar duas linhagens principais de pensamento sobre a ideia de desejo no Ocidente. A primeira e principal concepção tem origem no pensamento platônico e ganha força com a discussão da psicanálise freudiana na qual desejo é entendido como falta. Deseja-se sempre algo que não temos, algo que precisa ser saciado, logo o desejo é a busca desse preenchimento, “o objeto a” lacaniano, ou como no título autoexplicativo de livro recente que se tornou best-seller: A parte que falta - e da qual sempre estaríamos na expectativa de uma completude.

Porém, há uma outra linha de explicação para o desejo – mais interessante e mais produtiva, do nosso ponto de vista, pelo menos. Passa por autores como Spinoza, Nietzsche e encontra um contraponto na psicanálise com os trabalhos do chamado pós-estruturalismo, principalmente pelos franceses Deleuze e Guattari3 3 É nessa linhagem teórica, inclusive, que Perlongher busca as principais ferramentas de interpretação em suas pesquisas. Por isso, muito de seu vocabulário conceitual e analítico é devedor de pensadores como Foucault, Bataille, Hocquenghem, Lyotard e os próprios Deleuze e Guattari. Para entender as outras influências teóricas no pensamento perlonghiano, ver Simões (2008). . Para esses autores, desejo está longe de ser entendido como falta. Desejo é sempre produção, é a força que coloca em ação a nossa máquina de produção de subjetividade (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 2010.).

Como o prazer entra nesta discussão?

O debate atual sobre desejo e prazer é central e devedor do pensamento elaborado tanto por Deleuze quanto por Michel Foucault. Contemporâneos e interlocutores, os autores têm nesses dois conceitos pedras fundamentais de seus trabalhos. Não que os dois pensem da mesma forma, em vários textos eles apontam as diferenças de ponto de vista com relação a ditos conceitos. A ideia tão cara de desejo para Deleuze não é equivalente ao que Foucault pensa sobre o prazer e seus usos. Ambos partem de concepções diferentes, ainda que possam chamar atenção para questões similares. Vamos nos aprofundar nessa diferença:

Comecemos por Foucault. A sexualidade, para esse autor, é o terreno privilegiado de análise da intersecção entre as técnicas de poder e controle tanto no plano das disciplinas, quanto no plano biopolítico. É dessa intersecção que se constitui o “dispositivo da sexualidade” (Foucault, 2009). E os meios propostos por Foucault para escaparmos dessa sujeição serão justamente nossos corpos e seus prazeres: “Contra o dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres” (Foucault, 2006a:147). “Sexo-desejo”, como nessa citação do autor, está altamente conectado ao saber-poder médico, àquilo que tanto a medicina, quanto a psicanálise estabelece como uma “verdade”. “Por isso, julgava importante ir além, ao propor ‘novos modos de vida e de prazer’ que escapassem às questões da ‘identidade’ sexual ou do ‘desejo’” (Foucault, 1994FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade - O Uso dos Prazeres. V. II. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1994.:163).

A relação do indivíduo com seus prazeres é colocada como constituinte de uma genealogia da própria formação do sujeito liberal e daquilo que entendemos como “pessoa” no Ocidente (Beistegui, 2018BEISTEGUI, Miguel de. The Government of Desire: A Genealogy of the Liberal Subject. Chicago, The University of Chicago Press, 2018.).

[O prazer] constitui um domínio privilegiado para a formação ética do sujeito: de um sujeito que se deve caracterizar por sua capacidade de dominar as forças que nele se desencadeiam, de guardar a livre disposição de sua energia, e de fazer de sua vida uma obra que sobreviverá além de sua existência passageira (Foucault, 1984:125).

No caso, a conformação de uma certa “estética da existência” (nos termos das obras finais do autor), baseada numa ética dos prazeres própria. A “estética da existência”, segundo Foucault, relaciona-se a um exercício de invenção ou construção de si através das artes de viver, que

devem ser entendidas como as práticas racionais e voluntárias pelas quais os homens não apenas determinam para si mesmos regras de conduta, como também buscam transformar-se e modificar seu ser singular, e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e que corresponda a certos critérios de estilo (Foucault 2006a:198).

A busca por sensações ou experiências (principalmente físicas) cada vez mais intensas e a maneira como isso se relaciona com a nossa sexualidade, sensualidade e sensibilidade fazem parte de um movimento ocidental contemporâneo de construção de uma certa forma de hedonismo mapeada por Duarte (1999)DUARTE, Luiz Fernando. O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna. In: HEILBORN, Maria Luiza (org.). Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 21-30.. Naquilo que o autor chama de uma contemporaneidade voltada para o “império dos sentidos” residiria a tensão entre o “mundo extensivo”4 4 É entendido pelo autor como a atualização de um valor englobante a partir de estratégias e práticas que preservem ou salvaguardem a vida o máximo possível em sua extensão, daí ser relacionado em diversos contextos a um certo ascetismo que se contraporia a um hedonismo (Duarte 1999). e a intensidade, que é perceptível nas ações mais cotidianas.

Trata-se da tensão entre a maximização da vida (através da totalidade da pessoa), que é um investimento no longo prazo e na duração, e a otimização do corpo (através da concentração no prazer), que é uma aposta no curto prazo e na intensidade. Essa é uma tensão muito vívida para diversos problemas centrais que enfrentamos como analistas sociais (Duarte 1999DUARTE, Luiz Fernando. O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna. In: HEILBORN, Maria Luiza (org.). Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 21-30.:28).

Vejamos agora em que a concepção deleuziana sobre o desejo e o prazer se diferencia.

Em um encontro pessoal Foucault diz para Deleuze que “não suporta a palavra desejo” e que por isso a evita em seus trabalhos; afirma que sempre que lê ou ouve o termo não consegue se desvencilhar da leitura de que desejo é o reprimido, a falta e etc., e que, por isso, acredita que a categoria prazer se aproxima do que Deleuze chama de desejo (Deleuze, 1994:64). Deleuze reage:

Evidentemente, mais uma vez, trata-se de outra coisa e não de uma questão de palavra, embora, de minha parte, suporte muito pouco a palavra “prazer”. Mas por quê? Para mim, desejo não comporta qualquer falta. Ele não é um dado natural. Está constantemente unido a um agenciamento que funciona. Em vez de ser estrutura ou gênese, ele é, contrariamente, processo (Deleuze, 1994DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, oct, 1994, pp.57-65.:64).

Deleuze explica, portanto, que não, não são a mesma coisa, que o desejo, tal como ele entende, é anterior ao prazer. Para o autor, o desejo (e suas linhas de fuga) sempre são primeiras, ainda que isso não tenha a ver necessariamente com uma ordem cronológica, mas no sentido de um “primado do desejo” (Deleuze, 1994:60). O prazer é uma consequência de determinada organização do desejo. Ainda que ambos tenham um fundo comum5 5 Estudos mais contemporâneos têm buscado preencher as lacunas que Deleuze deixou em seu pensamento especificamente sobre a sexualidade e como interpretá-las em diálogo com outras correntes psicanalíticas, principalmente nas contradições presentes na obra do autor relativas à ideia de orgasmo e de sexualidade feminina. Destacamos o estudo de Beckman (2013) e a coletânea organizada pela mesma autora (2011). .

Desejo, na proposta deleuziana, é entendido como vontade, como algo que nos coloca em movimento, o que constitui nossos interesses pelas coisas e que encadeia nossos afetos. Somos “máquinas desejantes” (Deleuze; Guattari, 2010DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 2010.; 2011) e, como tal, estamos sempre agenciando os nossos desejos e produzindo subjetividades.

O prazer parece-me interromper o processo imanente do desejo; o prazer parece-me estar do lado dos estratos e da organização (...). Parece-me que o prazer é o único meio para uma pessoa ou sujeito “reencontrar-se” num processo que o transborda. É uma reterritorialização. Do meu ponto de vista, é da mesma maneira que o desejo é relacionado à lei da falta e à norma do prazer (Deleuze, 1994DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, oct, 1994, pp.57-65.:64-65).

Para Deleuze, o prazer captura e interrompe o fluxo do desejo, organiza-o fixamente de uma determinada forma, congela-o em uma configuração específica. E, nesse congelamento, imediatamente aparecem as regras e normas que acabam aprisionando outras possibilidades de fluxos de desejo (suas linhas de fuga). Por isso, o prazer é uma forma de territorialização de uma produção desejante que se efetua a partir de práticas prazerosas. Por exemplo: O que é a prática BDSM se não o agenciamento de diversos desejos com a corda, o couro, o chicote, a dor, relações de poder, o risco, dentre muitos outros elementos que compõem esse universo erótico e de prazer? Esses fluxos de desejo são territorializados na cena BDSM em prazeres codificados em regras e códigos de conduta compartilhados e consensualmente acordados para ocorrerem. Não haveria espaço para a produção de algo novo, já que o prazer, apenas permitido através daquela codificação específica, não deixaria o desejo escapar e ir buscar outros agenciamentos. Ou, melhor, só haveria produção desejante quando essa fuga acontecesse.

Resumindo, para o que nos interessa aqui, a diferença apontada por Deleuze entre o seu pensamento e o de Foucault no que se relaciona ao desejo/prazer: nem toda forma de desejo causa ou se transmuta em prazer, ainda que todo prazer seja uma certa configuração do desejo.

Porém, no que ambos concordam é que: 1) as duas categorias dizem respeito aos corpos, 2) ambas fazem parte de processos de subjetivação e, principalmente, 3) que reside neles todo um potencial de resistência. Para Deleuze, as linhas de fuga ou devires nada mais são do que fluxos de desejo que escapam buscando novas conexões ou agenciamentos; e para Foucault, os usos do prazer são formas de reposicionamento ou de jogo das relações de poder e de agência dentro da disciplina e da biopolítica6 6 Vide as suas entrevistas sobre o movimento LGBT da sua época e as práticas sadomasoquistas que ele passou a acompanhar (Foucault, 2006b). .

No que não resta dúvida nessa proposta de análise é que é nos corpos, gestos e desejos que se encarna a política, no sentido de carne mesmo, como veremos com mais detalhes adiante. Não há política que se faça que não leve em conta os investimentos de desejo. Seja em seu plano micropolítico das afetações cotidianas até em seu plano biopolítico, de formas de governo.

A produção de subjetividade nessa lógica está no centro de interesse dos regimes de produção político-econômica maiores, ela é tão importante quanto o peso das relações de produção, ela se faz inclusive conjuntamente nesse processo, é a sua matéria-prima. O capitalismo, por exemplo, só é vitorioso – se nos remetermos ao debate marxista –, porque foi o sistema que compreendeu dita lógica e que melhor soube se utilizar do que Félix Guattari e Suely Rolnik chamam de “economia coletiva de desejo” (2005). E, da mesma forma, a ideia de uma revolução ou de mudança macrossocial só pode ser pensada se começar também por aí, por essa micropolítica do desejo.

Por uma cartografia libidinal do social

E é isso que uma Antropologia do Desejo se proporia: perseguir o desejo como “processo de produção de universos ou dos territórios existenciais. O próprio movimento de produção desses universos ou territórios” (Rolnik, 1989ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, Editora Clube do Livro, 1989.:25). Que pode ser qualquer um. Não necessariamente do universo erótico. Como afirma Suely Rolnik:

Não existe sociedade que não seja feita de investimentos de desejo nesta ou naquela direção, com esta ou aquela estratégia e, reciprocamente, não existem investimentos de desejo que não sejam os próprios movimentos de atualização de um certo tipo de prática e discurso, ou seja, atualização de um certo tipo de sociedade (Rolnik, 1989ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, Editora Clube do Livro, 1989.:58).

O desejo está em toda e qualquer prática, é ele que faz território, e caberia a nós, cientistas sociais, mapear e cartografar esses territórios. O analista social (ou o “cartógrafo”, nos dizeres de Rolnik) precisa estar atento às estratégias do desejo em qualquer fenômeno da existência humana que se propõe a perscrutar: sejam “os movimentos sociais, formalizados ou não, as mutações da sensibilidade coletiva, a violência, a delinquência” (Rolnik, 1989:66), dentre múltiplas possibilidades.

Talvez aqui comecemos a encontrar uma forma de dar conta da provocação feita por Perlongher aos antropólogos em reconhecer seus interlocutores enquanto sujeitos de desejo. De perceber e perseguir os movimentos da economia libidinal7 7 Mesmo que esses desejos, escolhas e vontades não sejam aqueles entendidos por nós, pesquisadores, como “boas”, “melhores” ou “saudáveis”. É o que aponta Lino e Silva em sua etnografia com moradores LGBTs da Favela da Rocinha sobre os diversos sentidos e significados do que seja liberdade para essas pessoas periféricas (2022). O autor aponta o quanto a sua surpresa, e mesmo aborrecimento, com as escolhas de vida de sua principal interlocutora, uma travesti migrante nordestina soropositiva, mostrou-lhe outras possibilidades de entendimento sobre o que é liberdade, passando justamente pelo reconhecimento do Outro enquanto produtor de desejos próprios e legítimos. .

Ao propor uma cartografia libidinal do social não se objetiva uma psicologização da sociedade. Mas de entender os movimentos que correm por ela. Há uma economia libidinal presente em todo e qualquer campo (Lyotard, 1990LYOTARD, Jean-François. Economía libidinal. Madrid, Fundamentos, 1990.), atravessada pelos mais diversos fatores que nos dão uma visão das movimentações e fluxos que perpassam as relações sociais.

Importante destacar aqui que desejo está sim na base de criação de comunidade, laços e de pertencimento, isto é, no estabelecimento de toda e qualquer relação social. Porém, tais relações nem sempre se gestam pela via da atração, mas também pela repulsa, pelo nojo e pela evitação. O desprazer e o desprezo também são configurações do desejo que habitam no fundo de preconceitos, tais como do racismo, da LGBTfobia, e dos microfascismos cotidianos, entre outras problemáticas correlatas.

Seguindo esta via de análise, torna-se relevante destacar olhares que têm evidenciado as economias libidinais que atuam como dispositivos do fazer social nas mais diversas manifestações da violência. Justamente para desfazer essa comum associação.

Tomemos como exemplo o cenário político brasileiro da última década (2013-2023). É impossível se discutir um fenômeno como o bolsonarismo – que mais do que uma posição partidária de extrema-direita compõe toda uma visão de mundo própria –, assim como as seguidas eleições de figuras relacionadas a esse fenômeno, junto das repetidas perdas e crises institucionais que nossa ainda recém-democracia vem sofrendo desde 2013, se não conseguirmos entender que tipo de desejo é esse que levou as pessoas a se engajarem no que cientistas políticos vêm chamando de política de caos e destruição (Abranches, 2020ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo, Companhia das Letras, 2020.; Nobre, 2022NOBRE, Marcos. Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo, Todavia, 2022.). Esse fenômeno não pode ser explicado só em termos econômicos, partidários, de ideologia ou representação, de crise ou crescimento de um movimento reacionário mundial, mas precisa ser compreendido em seu nível libidinal, numa aproximação que perceba qual é a produção de subjetividade implicada ali, que desejos compõem essa visão de mundo8 8 Lago (2022) faz uma interessante análise sobre a dificuldade dos cientistas sociais em “ver”, “ouvir” e “sentir” o bolsonarismo e sua figura representativa. Propor um entendimento que passe pelos afetos e sentidos permitiria uma proximidade maior do que a utilização de teorias que não dão conta de toda a complexidade do fenômeno. .

Nesse sentido, Perlongher desenvolveu a categoria “tensores libidinais”, que nos é muito útil para a compreensão do desejo que combina rejeição e fascínio, ou atração e rechaço. Essa expressão faz referência àquilo “que provoca, que incita e que aponta a diferença” (Gregori, 2016GREGORI, Maria Filomena. Prazeres Perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.:24). Ou seja, é ali no atravessamento dos marcadores sociais da diferença, no tensionamento das linhas molares com moleculares, que mais tensiona, potencializa e estimula a conjunção paradoxal de desejo e repúdio.

Para melhor explicar nosso ponto, na próxima parte privilegiamos a temática da violência destacando o que percebemos como possibilidades de ênfase analítica em cartografias libidinais do social e como um modo de sublinhar que uma antropologia do desejo não é apenas uma antropologia do gozo, da liberdade, da libertação, da transgressão, da revolução ou da resistência. Ela é também uma antropologia do desejo pelo poder, pela hierarquia, pelo mal, pelo fracasso, pela humilhação ou pelo desejo que deseja a destruição. Sermos capazes de reconhecer o desejo desse outro, e nos adentrarmos analiticamente em suas complexidades, é o que acreditamos que seja o chamado feito por Perlongher.

Economia libidinal da violência [colonial/racial]

Uma das teorias contemporâneas mais enfática e insistente em apontar que a aniquilação do outro é um estímulo energético do desejo é aquela conhecida como afropessimismo. Ela parte da ideia de que o que entendemos por racismo não é suficiente para a compreensão da violência estrutural e gratuita que vivem as pessoas negras ao longo do planeta. O fio que une o tratamento atroz recebido pelos escravizados em período colonial àquele dos migrantes e refugiados afrodescendentes hoje nas mais diversas fronteiras (especialmente as europeias), ao abuso policial (mas não só) dos jovens negros periféricos das diversas cidades, às situações dolorosas que vivem pessoas negras (inclusive das camadas médias) que culminam em espancamento, humilhação e morte, é a crença de que mais do que humano, o corpo negro é carne. E que, como tal, não corresponde a sujeitos, mas a coisas desprovidas de humanidade, a objetos, peças, ou mesmo a nada.

Essa violência anti-negra incessante é para os afropessimistas fundamental para a divisão entre Humanos e não humanos, e sua gratuidade anuncia que ela não responde a uma contingência, mas a uma natureza pré-lógica, não sendo preciso um fato mediador para que aconteça. Ainda, dita violência anti-negra responderia a uma ritualística lúbrica de restauração psíquica dos Humanos, de “renovação de sua coerência” (Wilderson, 2010:11). É o desejo pela destruição negra que cria os contornos e o conteúdo dessa violência. Os afropessimistas encontram inspiração em Frantz Fanon, especialmente em Os condenados da Terra (1968), livro que revela as vísceras da economia libidinal do colonialismo. Além de outro Fanon, aquele de Pele negra, máscaras brancas (2008), que também revela os complexos desejos que envolvem a produção da subjetividade negra (assim como a branca).

Os afropessimistas evocam da mesma forma a autobiografia do escravizado fugitivo Frederick Douglass, como testemunho do desejo e da libido envolvidos no ato de espancar/torturar. Sobre um proprietário de escravos e o castigo à sua tia Hester, Douglass escreve:

Ele mostraria de tempos em tempos que tinha grande prazer em chicotear um escravo. Muitas vezes fui acordado na aurora do dia pelos gritos mais angustiantes de uma tia minha, a quem ele costumava amarrar a uma trave e chicotear as costas até que ela estivesse literalmente coberta de sangue. Nenhuma palavra ou lágrima, ou prece, ou sangramento de sua vítima parecia demover seu coração de ferro de seu propósito sangrento. Quanto mais alto ela gritava, tanto mais forte ele chicoteava; e onde o sangue corresse mais rápido era onde ele mais chicoteava. Ele a chicoteava para fazê-la gritar, e chicoteava-a para que ela se calasse; e só quando tomado pelo cansaço ele parava de brandir a chibata coberta de sangue (Douglass, 2021DOUGLASS, Frederick. Autobiografia de um escravo. São Paulo, Editora Vestígio, 2021.:37).

Nosso objetivo com esse exemplo é mostrar a potencialidade de pensar o desejo como deriva constituinte da violência, que em determinados contextos pode configurar formas de governo. Em Crítica da Razão Negra (2018), Achille Mbembe (2018)MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo, n-1 edições, 2018. argumenta nesse sentido ao tratar do processo de racialização da carne negra em toda a sua dinâmica libidinal, a qual se espraiou e passou a existir como base da nossa modernidade na configuração do capitalismo. É ela que se efetiva numa política de morte no mundo além Europa, a necropolítica, e que se atualiza na contemporaneidade em um “devir-negro do mundo” nos “desempregados, indivíduos descartáveis, favelados, refugiados, imigrantes [...] toda uma horda de seres matáveis, expostos à morte” (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo, n-1 edições, 2018.:20).

Outras pesquisas sobre colonialismo e imperialismo também desvelam a economia libidinal que envolve esses fenômenos sociohistóricos. Se tal lógica fica clara em Couro Imperial de Anne McClintock (2010)McCLINTOCK, Anne. Couro Imperial. Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora Unicamp, 2010. sendo relativa ao desejo por penetração e conquista tanto territorial, quanto da “força sexual e de trabalho das mulheres colonizadas” (McClintock, 2010McCLINTOCK, Anne. Couro Imperial. Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora Unicamp, 2010.:17) em que poder e desejo se amalgamam em imperativos que intersectam raça, gênero e classe; aprendemos com o Michael Taussig de Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem (1993) que ali onde opera a “cultura do terror”, a morte do colonizado existe como uma questão endêmica que nem sempre responde a motivos econômicos ou de conquista de corpos indígenas para submetê-los ao trabalho, mas ao mero desejo de aniquilação, por prazer, por poder, insensibilidade, ou, como diz o autor, “por esporte” – queimam-se índios para passar o tempo (Taussig, 1993TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1993.:63).

Tortura, linchamentos, massacres. Cada um desses fenômenos parece denotar derivas do desejo que encontram vazão pelas vias da crueldade, teatralizações do excesso, como chama Elsa Blair (2005)BLAIR, Elsa. Muertes Violentas. La teatralización del exceso. Medellín, Iner; Universidad Nacional de Antioquia, 2005., modalidades de ação nas quais nem sempre é possível reconhecer a inteligibilidade para além de uma explicação simples (e perversa): mata-se porque se deseja.

A esta altura da nossa exposição, o leitor poderá perceber que desejo e prazer se emaranham com certa fluidez. Sim, o desejo pela violência pode ser capturado em seu fluxo e se configurar como prazer. Formas de prazer pela violência também estão em jogo com suas organizações, normas e contornos específicos.

Apontar para a consolidação de uma antropologia do desejo atenta à economia libidinal da violência implica alicerçar uma teoria etnográfica sobre as relações entre desejo e violência, insiste em acentuar o que há de produção desejante nesses gestos ou atos de destruição do outro, evidenciando os emaranhados que podem tornar esse desejo em prazer9 9 Não à toa, em sua etnografia da prostituição masculina, Perlongher pontua o quanto a questão da violência está ali, sempre à espreita (seja nas possibilidades de roubos, espancamentos, assassinatos ou mesmo na performance de masculinidade exagerada demandada nesse contexto), e que, não raro, irrompe em uma “violência do gozo”. “No meio homossexual paulistano, esta tentação pelo abismo costuma aparecer sob a forma de um ‘gosto pelo perigo’, que conduz alguns pederastas [sic], se não a certo gozo masoquista, a uma intensificação mortífera das pulsões investidas na transação, condensada na equação terror/gozo” (Perlongher, 1987:220). . Esse caminho, como já tem sido anunciado pelos afropessimistas, representa uma via de entrada para uma abordagem sistemática sobre a violência racial. E para nosso propósito implica também a aceitação desse desejo do outro - tal como nos provocou Perlongher – como ponto de partida para a compreensão do fenômeno. Se apresentamos exemplos particularmente voltados a excessos e exacerbações da violência é porque eles são emblemáticos para a compreensão do que aqui desejamos expressar. Mas não significa que somente os excessos permitam entrever os modos como se configuram os desejos pelo mal, pois suas cartografias são possíveis em e através de relações ordinárias, cotidianas, íntimas ou próximas.

Muitos desses movimentos libidinais acontecem em decorrência de um desejo configurado em um prazer pela hierarquia (Díaz-Benítez, 2015DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, v. 21, n. 1, Rio de Janeiro, 2015, pp.65-90.; 2019). Isso porque a hierarquia existe como valor e simultaneamente como prática social que é recriada nos mais diversos processos de hierarquização, e nos modos de criação de status e diferenciação social. Por um lado, em projetos e processos históricos institucionalizados que se instauraram como exercícios de poder e classificação. Por outro, em exercícios de rebaixamento e de superiorização que se exercem por meio de práticas corriqueiras para além das instituições, embora derivadas dos imaginários decorrentes de processos históricos abrangentes.

Pensemos para além dos excessos com os seguintes exemplos. Como compreender que “pessoas do bem” apoiem atos de aniquilação de outros ou possam reagir diante desses atos com indiferença? Diante dessa pergunta, poderíamos responder, seguindo Judith Butler (2010)BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Ediciones Paidós, 2010., que as normas do reconhecimento das vidas que importam como vidas não estão repartidas de forma igualitária. Mas podemos afirmar também que há um desejo melancólico de manutenção e/ou recuperação da hierarquia que movimenta coletividades e propicia processos de subjetivação.

Em 1948, após a Segunda Guerra Mundial, o sociólogo estadunidense Everett Hughes viaja à Alemanha. Estava interessado em compreender como era possível que no tido “berço da civilização” houvessem acontecido tremendos atos de crueldade contra os judeus. Para isso, procurou falar com essas ditas “pessoas do bem”, quer dizer, aquelas que não executaram os mesmos atos do exército do Fuhrer, mas que, com seu silêncio e omissão, possibilitaram que outros fizessem o “trabalho sujo”. Hughes descreve o testemunho de um arquiteto que se envergonhava do Holocausto. Contudo, em sua fala, reiterava que isso tinha acontecido porque, de fato, havia um problema. Ele diz:

Eles [os judeus] vieram para cá e ficaram ricos usando métodos inacreditáveis depois da Primeira Guerra. Ocuparam todos os bons lugares. A proporção era de dez para um na medicina, no direito e no serviço público [...] é claro que isso [o Holocausto] não era maneira de resolver o problema dos judeus. Mas havia um problema que tinha que ser resolvido de alguma forma (Hughes, 2013:97).

Essa resposta certamente evoca aquela oferecida pelo supremacista branco e líder da American Renaissance, Jared Taylor, quando disse se referindo aos migrantes mexicanos nos Estados Unidos: “Por que é errado querer morar em um bairro europeu, onde meus vizinhos não tenham galos no pátio que cantam às três da manhã?”10 10 A entrevista pode ser acessada neste link: https://www.nacion321.com/internacional/te-vamos-a-quemar-y-otras-7-aberraciones-que-definen-a-supremacistas-blancos. Acesso em: 28 jun. 2022. , ou a do Ministro da Economia do governo Bolsonaro, Paulo Guedes, que frente ao crescente preço do dólar, justifica demonstrando todo o seu desconforto com o acesso de certas classes sociais a espaços e práticas antes exclusivas: “Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita”11 11 A declaração do ministro, feita em Fevereiro de 2020, pode ser acessada neste link: https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-estava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365. Acesso em: 28 jun. 2022. .

Ora o desejo que espelha a gratuidade da violência, aquela que se faz por esporte ou pela consideração do outro como um não humano, ora o desejo que traduz exercícios hierárquicos da diferença e que integra nossos cotidianos mais íntimos, ambos dizendo respeito a economias libidinais. Em certa medida, esses fluxos de desejo possuem conteúdos paradoxais operando através de tensores libidinais, como apontou Perlongher. Em parte, isso explica por que corpos que causam repulsa podem simultaneamente causar atração: o fato de certos corpos serem hipersexualizados e objeto dos mais diversos fetiches lúbricos e, simultaneamente, serem os mais submetidos a escárnio, castigo ou violência letal, como é o caso de corpos trans e negros. Corpos que, seguindo Hortense J. Spillers (2021)SPILLER, Hortense J. Bebê da mamãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense. In: SPILLER, Hortense J. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Editora Crocodilo e n-1, 2021, pp.29-70. [1987]., mais do que corpos, são carne – daí as dinâmicas de violência excessiva que os acomete –, ou corpos que, mesmo quando considerados humanos, podem ser enxergados através do exercício de recriação de hierarquias.

Olhar para fluxos de desejo pela destruição do outro significa estar atento a movimentos de invenção desse outro, e a situações em que se gestam imaginários sobre inimizades, de estabelecimentos de nós X eles. O que é a figura do “comunista” ou dos “esquerdistas” no cenário brasileiro dos anos 2013-2023, de proliferação de desejos bolsonaristas, se não um corpo que a qualquer momento pode ser violentado? Ou, mais ainda, um inimigo que precisa ser eliminado?

Retornaremos a esse ponto nas considerações finais, propondo uma dobra na provocação de Perlongher para pensar violência racial. Porém, antes de finalizar, vejamos o quanto a obra desse autor contribuiu para o debate sobre o prazer em nossos trabalhos nacionais.

Seguindo os fios do prazer em Perlongher e na antropologia

O prazer enquanto objeto e fio condutor de análise já não é, de fato, uma proposta estranha na Antropologia Brasileira. Nobres e Anjos, de Gilberto Velho (1975), e Festa no Pedaço, de José Guilherme Magnani (1982), são apenas duas menções importantes num conjunto de teses e dissertações que desde a década de 1980 tem se dedicado às análises de modos de lazer de sociedades e coletivos. Atualmente, essa temática convoca diversos grupos de trabalho, mesas redondas e simpósios nos principais eventos acadêmicos do país, sob nominações como antropologia de práticas lúdicas, esporte, lazer, jogos, festa, consumo, sociabilidades, drogas, etc.

Entre os pesquisadores da área de gênero e sexualidade, a temática do prazer também tem recebido amplo reconhecimento em pesquisas que enfatizam mercado erótico, sociabilidades, identidades, movimentos sociais e práticas sexuais, entre as mais frequentes. Vale a pena mencionar o impacto da teoria queer e da perspectiva pós-estruturalista do gênero e da sexualidade, especialmente de autores como Judith Butler e Michel Foucault, mas também da crítica de feministas pró-sex, (e mais contemporaneamente, da crítica de teóricos trans) na inspiração de olhares dirigidos ao prazer como dimensão fundamental nas dinâmicas sociais, atentos simultaneamente às forças sociopolíticas que atuam no governo de corpos e prazeres. A proposta de uma antropologia do desejo, portanto, como esperamos ter explicitado, já comportaria essa atenção às dinâmicas prazerosas.

Porém, mais do que falar de modo geral sobre o que consideramos que já configura uma antropologia do prazer no Brasil, ou de propor novos olhares, desejamos ponderar sobre o impacto do trabalho de Perlongher na conformação dessas linhas de pesquisa e sua institucionalização. O intuito, desta forma, não é a de listar as inúmeras pesquisas influenciadas pelo autor, mas o legado de sua proposição para uma antropologia do prazer. Para este fim, começaremos por voltar e assim destacar o rendimento analítico da sua noção de tensores libidinais, já mencionado ao longo do artigo.

Em diversos programas de graduação e pós-graduação ao longo do país, percebe-se a importância do enfoque interseccional em pesquisas que tratam da produção social da diferença por meio da articulação de categorias de raça, gênero, sexo, idade e classe, tanto do ponto de vista da configuração de sistemas de classificação social, como da constituição de corpos e identidades coletivas. Uma parte considerável desses estudos tem focalizado as trajetórias ou trânsitos afetivo-sexuais de sujeitos no mercado erótico e na prostituição. Outros, têm privilegiado sujeitos que se relacionam com pessoas do mesmo sexo, diferenciando circuitos a partir de classe social, raça ou estilo. Quase todos oferecem profunda relevância aos territórios em que as interações acontecem, problematizando analiticamente os modos como os próprios lugares se atrelam às produções de subjetividade e aos modos de identificação ou classificação. Os espaços de lazer, as formas de consumo, a busca pelo prazer, as maneiras de desejar e de amar, as fantasias, enfim, todos esses são recortes que os pesquisadores têm privilegiado em suas reflexões12 12 Mais recentemente, temos visto que outros cenários, como é o caso do espaço prisional, têm se tornado frequente como eixo de análise em pesquisas sobre interseccionalidade. .

A partir dos encontros entre michês e clientes, Perlongher descreveu, através de sua noção de “tensores libidinais”, diferentes modos pelos quais o poder se inscreve nessas relações. Por sua vez, o sistema classificatório que opera na nomeação dos indivíduos e se cria na movimentação dos mesmos no código-território, é compreendida pelo autor como um “sinalizador de intensidades libidinais” de um desejo cujos movimentos podem reordenar, reconfigurar e eventualmente obscurecer hierarquias e desigualdades sociais. Assim, a ideia das “diferenças em relação” põe em xeque a integridade supostamente estável e duradoura de qualquer marcador que fosse acionado como categoria de identidade e a possibilidade de interpretar categorias de diferença como apenas eixos justapostos de subordinação.

Entender a diferença nesse dinamismo possibilita sofisticar as próprias análises sobre o prazer. Não à toa, essa visão tem sido tão inspiradora para pesquisas sobre práticas sexuais e mercado pornográfico, para além das mencionadas anteriormente. Por sua vez, a noção de “tensores libidinais” contribui na consolidação de estudos de interseccionalidade, os quais no Brasil receberam inicialmente grande inspiração de autoras como Anne McClintock, Avtar Brah e Adriana Piscitelli, e nos últimos anos de escritoras dos feminismos negro, decolonial e do Terceiro Mundo.

Mas é impossível atribuir a influência de Perlongher, em matéria de prazer, a apenas uma categoria. Ao longo de toda a sua obra Perlongher buscou perseguir os diferentes fluxos de desejo em certas práticas sociais, particularmente naquelas que envolvem agenciamentos paradoxais de fuga (e encontro) de si, de deslocamento, que visam ao êxtase, e de entender como essas práticas (des)fazem territórios existenciais: da deriva homossexual ao negócio da prostituição masculina; da conformação de territórios marginais nas cidades à resistência dos corpos ao disciplinamento médico em tempos de pandemia; do uso de drogas ao transe religioso.

Em 2021, o antropólogo Carlos Sánchez defendeu uma Dissertação em antropologia no Museu Nacional, na qual teve como objetivo mapear categorias e diálogos em (e entre) 9 teses defendidas no Brasil nas últimas duas décadas, que tiveram como temática a problematização do corpo, desde o ponto de vista de gênero e sexualidade e do uso de drogas13 13 Para além de O negócio do michê, tomada como uma tese pioneira da década de 1980, as outras teses trabalhadas foram: “Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de drogas”, de Eduardo V. Vargas (2001); “A reinvenção do corpo: Sexualidade, gênero na experiência transexual” de Berenice Bento (2006); “Hedonismo competente: antropologia de urbanos afetos”, de Fernanda Eugenio Machado (2006); “Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo preventivo da Aids”, de Larissa Pelúcio (2007); “Coca-Light?”: usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de ‘cheiradores’ de cocaína em São Paulo”, de Osvaldo Ribas Lobos Fernandes; “Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack”, de Taniele Rui (2012); “Festa de orgias para homens: territórios de intensidade e sociabilidade masculina”, de Victor Hugo Barreto (2017); e “O fervo e a luta: poéticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim”, de Gibram Teixeira Braga (2018). . O autor pôde perceber o profundo impacto da obra de Perlongher em inflexões que se tornaram recorrentes. Ele diz:

Se bem em várias pesquisas encontrei a reflexão segundo a qual a norma e o desvio não estão separados no sentido de que não é possível ser totalmente norma nem totalmente desvio, isto leva a pensar numa repetição da norma que possui linhas de fuga [...]. Neste movimento poderia dizer que se antes norma e desvio eram lidas como campos separados (por exemplo, na noção de região moral de Park), agora norma e desvio precisavam uma leitura diferente, que desse conta dos fluxos, dos códigos, as des e reterritorializações. Se antes referia-se a “norma/desvio” com um slash que separava, agora é preciso pensar “norma-desvio”, onde estes últimos passam a ser fluxos porosos auto-constituintes (Sánchez, 2021SÁNCHEZ, Carlos. El cuerpo drogado de pharmakones. Un análisis de nueve etnografías brasileras (1987-2018). Dissertação (Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2021.:98, 99).

É frequente nesses autores a atenção para os fluxos e os modos como as práticas e os processos de subjetivação se agenciam na desterritorialização e reterritorialização, isto é, na abertura para as derivas. A tese de Eduardo Vargas (2001)VARGAS, Eduardo. Entre a extensão e a intensidade. Corporalidade, subjetivação e uso de “drogas”. Tese (Doutorado em Ciência humanas, sociologia e política), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2001., por exemplo, sobre uso de drogas, pondera sobre os modos como nesse contexto há lugar para agenciamentos de “saída de si”, de êxtase e descentramento, alterações de percepção em que se fabricam outras maneiras de produção da subjetividade ou de subjetivação dos corpos, isto é, “outras maneiras de ser (a)gente” (Vargas, 2001VARGAS, Eduardo. Entre a extensão e a intensidade. Corporalidade, subjetivação e uso de “drogas”. Tese (Doutorado em Ciência humanas, sociologia e política), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2001.:22).

Outra tese, a de Gibram Teixeira Braga (2018)BRAGA, Gibram Teixeira. O fervo e a luta: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. Tese (Antropologia social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), 2018., sobre festas de música eletrônica e consumo de drogas em Berlim e São Paulo, retoma a deriva como linha fundamental nas procuras e vivências do prazer nesses contextos. Um prazer que se dá pela experimentação de substâncias e sons, mas também pelo conhecimento e administração estratégica dos mesmos em dinâmicas de repetição (loop) e de intervalo. O corpo é sentido como abertura nesses universos de descentramento, demonstra-nos o autor. O êxtase (substância e sensação) jogaria um papel facilitador nas relações e no relaxamento de estereótipos e preconceitos. No âmbito de normas de gênero e sexualidade, por exemplo, ele permite que nas festas haja maior fluidez “nas prescrições de gênero que deslocam as posições clássicas de homens e mulheres heterossexuais em outro tipo de festas” (Braga, 2018BRAGA, Gibram Teixeira. O fervo e a luta: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. Tese (Antropologia social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), 2018.:257).

Essa visão sobre o êxtase e o descentramento de si em contexto de uso de drogas, música e experimentação sexual entre jovens14 14 A autora entende juventude não como uma faixa etária, mas como um estilo de vida que agencia e tensiona práticas de gozo e seu alargamento temporal (Sánchez, 2021:53). das camadas médias cariocas é compartilhado por Fernanda Eugenio, autora de Hedonismo competente (2006). Essa noção faz alusão a sujeitos que definem e “fabricam condições de sua própria diversão com segurança calculada” (Eugenio, 2016:128) e remete a uma ética que procura a intensificação dos prazeres em lógicas de desterritorialização/reterritorialização existencial.

Victor Hugo Barreto (2017)BARRETO, Victor Hugo. Festas de orgias para homens. Territórios de intensidade e socialidade masculina. Salvador, Editora Devires, 2017. segue as pistas deixadas por Perlongher, como por Vargas e Eugenio em outro território de intensidades: nos encontros voltados a práticas sexuais coletivas entre homens. O autor percebe que a busca pela intensidade que percorre as práticas observadas nesse contexto está em seu sentido de força, de sensibilidade, daquilo que é intenso, de levar o corpo a experimentar sensações e emoções, às vezes até extremas. Nesse sentido, o que a experiência (ou a experimentação) da sexualidade nessas festas coloca em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização, modos propriamente intensos, em que o “se jogar” nos instantes de intensidade das interações sexuais possíveis nesses encontros é “se perder”, “se (re)encontrar” e colocar aspectos como trabalho, família, casa, saúde e todos os valores morais correspondentes a eles em outros termos, acionando ou fugindo de seus elementos estrategicamente a partir de seus desejos. São experimentações que empurram, contornam, atravessam, enfim, retraçam as linhas de nossos limites. Afinal, como disse Perlongher: “Todas as faculdades podem ser levadas a seu limite, através da potência de algum estado” (Perlongher et al., 2012PERLONGHER, Nestor; FERRER, Christian; BAIGORRIA, Osvaldo. Antropologia do êxtase. Revista digital Ecopolítica, n.4, 2012.:n.p.). A questão que se coloca a todo tempo nesses encontros orgiásticos tem a ver justamente com esse manejamento dos limites, o controle de si e a imersão em êxtases, devires e estados de alta intensidade. Constituem um jogo de tensão erótica que atravessa todas as festas e são alguns dos fatores de atração desses eventos. A fruição da “putaria” na orgia exige um mergulho, que algumas amarras sejam deixadas para trás e certos limites sejam ultrapassados, uma espécie de autoabandono e dissolução. O “acontecimento-limite” é a todo momento colocado à prova e pode atravessar diversas fronteiras: físicas, emocionais, sensoriais e subjetivas.

Porém, é claro que a busca, a vontade de alcançar uma “enésima” potência, ao mesmo tempo em que pode se apresentar como força criadora, maneira de singularização e (por que não?) de extremo prazer, também tem um potencial destruidor, de risco, de aniquilação, já que “o que rompe se rompe forte demais pode destruir tudo” (Perlongher et a., 2012, n.p.). São como os momentos de “fissura” conceituados por Díaz-Benítez como aqueles instantes de fronteira ou rompimento, nos quais as práticas (ainda que consentidas) “alcançam uma intensidade que não era possível prever ou antecipar” e “que rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções que evocam mais perigo do que prazer” (Díaz-Benítez, 2014:1). Percebe-se toda uma gradação de riscos em que uma série de cálculos deve ser feita para dosar o que é mais ou menos perigoso aliado ao quanto de prazer pode ou não proporcionar. Assim, são decididos e negociados o uso de preservativos, de tecnologias farmacêuticas, o contato com o esperma, as práticas sexuais em geral. “Qual o perigo de pegar alguma coisa com isso? Qual o prazer que proporciona? O quanto se está disposto a arriscar?” – essas são perguntas feitas a todo momento, a cada nova interação e a cada nível de intensidade das práticas.

Festas, sons, música, consumo de substâncias e circuitos hedonistas… cenários de intensidade e de procura de prazeres que os etnógrafos citados aqui cartografaram seguindo fluxos de desejo e que evidenciam que o legado de Perlongher tem permitido e ainda permitirá novas e diversas abordagens nas derivas e devires de campos sobre o desejo.

Considerações finais

Ao finalizar de escrever estas páginas voltamos à pergunta de Perlongher: “por que será que a antropologia, tão obcecada por discursar sobre o outro, não se anima a reconhecer o desejo do outro?” A principal tentativa foi a de sugerir possibilidades para a elaboração de cartografias libidinais do social, insistindo que olhar para (reconhecendo) o desejo dos sujeitos e a como ele movimenta mundos, propicia territórios existenciais e cria modos de engajamento singular sendo fundamental para a compreensão dos mais diversos fenômenos. Demos privilégio à temática da violência na nossa exposição argumentando que uma antropologia do desejo não está sujeita a temáticas específicas, mas ao tipo de perguntas que fazemos ao campo. E entendendo que esse é ainda um campo com muitas possibilidades de exploração no cenário das pesquisas brasileiras.

Mas, se escolhemos adentrar na temática da violência, fazendo ênfase na problemática racial, é porque acreditamos que existe uma via para uma abordagem mais sistemática sobre violência racial e desejo que não foi ainda explorada com todo o seu vigor.

Nas últimas décadas assistimos no Brasil o impacto do pensamento negro radical e o esforço epistemológico de diversos pensadores negros do país (Vargas, 2020VARGAS, João Costa Helion. Racismo não da conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta, n. 45, v. 18, Rio de Janeiro, 2020, pp.16-26.; Rocha, 2014ROCHA, Luciane de Oliveira. Outraged Mothering: Black Women, Racial Violence and the Power of Emotion in Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia), African Diaspora Program in Anthropology, The University of Texas at Austin, 2014.; Pinho, 2021PINHO, Osmundo. Cativeiro. Antinegritude e Ancestralidade. Salvador, Editora Segundo Selo, 2021.; Flauzina & Vargas, 2017FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Costa Helion (org.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília, Brado Negro, 2017.) por explicitar que racismo não é uma noção suficiente para a explicação da violência que acomete pessoas negras no país e no mundo, sendo preciso entender que o que há por trás é a antinegritude, que nós aqui chamamos de desejo anti-negro. Esses autores, como já dissemos, acreditam que a violência é gratuita, porque o negro é originalmente (ontologicamente) associado com o escravo, e, a partir desse ponto de vista, seu ser é carne. Se, para Perlongher, como para Deleuze e Guattari, desejo é produção e possibilita engajamentos em territorializações e futuros possíveis, sobra ainda pensar o desejo desse outro que sendo nada além de carne não pode, portanto, ter seu desejo com nome reconhecido. Como reconhecer o desejo daquele que habita o território do nada (nothingness)? Pode o nada ou a carne desejar? Como cartografar um desejo sem nome?

As respostas para essas perguntas conformam um importante debate nesse universo de pensadores. Se para alguns o negro e seus desejos, diante da violência anti-negra, permaneceriam encapsulados no território do nada, para outros pensadores, negro é o nome de uma recusa, é o próprio nome de um desejo (Moten, 2021MOTEN, Fred. Ser prete e ser nada (misticismo na carne). In: MOTEN, Fred. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Editora Crocodilo e n-1, 2021, pp.131-192.). As provocações feitas aqui se localizam na fuga da captura totalizadora da anti-negritude e do pessimismo, perguntando-se que outra carne é possível de se produzir para o preto? É possível colapsar a sujeição? Preto pode ser o desejo de desejar algo para além daquilo que foi delegado ao preto? Ou: é possível desejar algo que não seja a subjetividade transcendental que é chamada de nada? (Moten, 2021MOTEN, Fred. Ser prete e ser nada (misticismo na carne). In: MOTEN, Fred. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Editora Crocodilo e n-1, 2021, pp.131-192.:187).

Muito falamos neste artigo das linhas de fuga do desejo que para Deleuze, Guattari e Perlongher possibilitariam desterritorializações e reterritorializações diversas e/ou criativas. A fuga para vidas pretas marcadas pela violência, tal como entendemos com Fred Moten (2020MOTEN, Fred. A resistência do objeto: o grito da tia Hester. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 1, 2020, pp.14-43 [2003].; 2021; Harney; Moten, 2013HARNEY, Stefano; MOTEN, Fred. The undercommons: fugitive planning & black study. Wivenhoe/New Rork/Port Watson, Minor Compositions, 2013.), é um desejo que pulsa, que se usa do improviso, que se sustenta na recusa, que rouba nos confins, que ofega e lateja, mas que não adquiriu uma forma precisa. A fugitividade negra é o desejo por denegar a captura pelo desejo anti-negro, mas é uma fuga imprecisa, na qual o fugitivo não sabe para onde vai (Díaz-Benítez; Rangel, 2022DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira; RANGEL, Everton. Evocações da escravidão. Sobre sujeição e fuga em experiências negras. Horizontes Antropológicos, ano 28, n. 63, Porto Alegre, 2022, pp.39-69.). Ela pode ser, a duras penas, o nome dado a uma fantasia (Díaz-Benítez; Rangel, 2022DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira; RANGEL, Everton. Evocações da escravidão. Sobre sujeição e fuga em experiências negras. Horizontes Antropológicos, ano 28, n. 63, Porto Alegre, 2022, pp.39-69.).

Referências bibliográficas

  • ABRANCHES, Sérgio. O tempo dos governantes incidentais. São Paulo, Companhia das Letras, 2020.
  • BARRETO, Victor Hugo. Festas de orgias para homens. Territórios de intensidade e socialidade masculina. Salvador, Editora Devires, 2017.
  • BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina. De la Conquista de América al siglo XXI. Buenos Aires, Marea, 2017.
  • BECKMAN, Frida. Between Desire and Pleasure: A Deleuzian Theory of Sexuality. Edinburgh, Edinburgh University Press, 2013.
  • BECKMAN, Frida. Deleuze and Sex. Edinburgh, Edinburgh University Press, 2011.
  • BEISTEGUI, Miguel de. The Government of Desire: A Genealogy of the Liberal Subject. Chicago, The University of Chicago Press, 2018.
  • BLAIR, Elsa. Muertes Violentas. La teatralización del exceso. Medellín, Iner; Universidad Nacional de Antioquia, 2005.
  • BRAGA, Gibram Teixeira. O fervo e a luta: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. Tese (Antropologia social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), 2018.
  • BUTLER, Judith. Marcos de guerra. Las vidas lloradas. Buenos Aires: Ediciones Paidós, 2010.
  • CARRARA, Sergio; SIMÕES, Julio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.65-99.
  • DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, oct, 1994, pp.57-65.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. V. 1-5. São Paulo, Editora 34, 2011.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo, Editora 34, 2010.
  • DELEUZE, Gilles. Que es un dispositivo?. In: BALBIER, E. (org.). Michel Foucault filósofo. Madrid, Gedisa, 1990, pp.155-161.
  • DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. O Gênero da humilhação. Afetos, relações e complexos emocionais. Horizontes Antropológicos, ano 25, n. 54, 2019, pp.51-78.
  • DÍAZ-BENÍTEZ, María Elvira. O espetáculo da humilhação, fissuras e limites da sexualidade. Mana, v. 21, n. 1, Rio de Janeiro, 2015, pp.65-90.
  • DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira; GADELHA, Kaciano; RANGEL, Everton. Nojo, humilhação e desprezo: uma antropologia das emoções hostis e da hierarquia social. Anuário Antropológico, v. 46, n. 3, 2021, pp.10-29.
  • DÍAZ-BENÍTEZ, Maria Elvira; RANGEL, Everton. Evocações da escravidão. Sobre sujeição e fuga em experiências negras. Horizontes Antropológicos, ano 28, n. 63, Porto Alegre, 2022, pp.39-69.
  • DOUGLASS, Frederick. Autobiografia de um escravo. São Paulo, Editora Vestígio, 2021.
  • DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo, Perspectiva, 2012.
  • DUARTE, Luiz Fernando. O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna. In: HEILBORN, Maria Luiza (org.). Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 21-30.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, EDUFBA, 2008.
  • FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.
  • FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; VARGAS, João Costa Helion (org.). Motim: horizontes do genocídio negro. Brasília, Brado Negro, 2017.
  • FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade - A vontade de saber. V.1, Rio de Janeiro, Edições Graal, 2009.
  • FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos - Ética, Sexualidade, Política. Vol. V. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2006a.
  • FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos - Genealogia da Ética, Subjetividade e Sexualidade. Vol. IX. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2006b.
  • FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade - O Uso dos Prazeres. V. II. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1994.
  • FRY, Peter. Prefácio à 1ª edição. In: PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê — A prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2008.
  • GREGORI, Maria Filomena. Prazeres Perigosos. Erotismo, gênero e limites da sexualidade. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
  • GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Rio de Janeiro, Vozes, 2005.
  • HARNEY, Stefano; MOTEN, Fred. The undercommons: fugitive planning & black study. Wivenhoe/New Rork/Port Watson, Minor Compositions, 2013.
  • HUGHES, Everett. As boas pessoas e o trabalho sujo. In: COELHO, Maria Claudia (organização e tradução). Estudos sobre interação. Textos escolhidos. Rio de Janeiro, Eduerj, pp.91-108.
  • LAGO, Miguel. Como explicar a resiliência de Bolsonaro?. In: STARLING, Heloisa; LAGO, Miguel; BIGNOTTO, Newton (org.). Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, pp.19-69.
  • LINO e SILVA, Moisés. Minoritarian Liberalism: A Travesti Life in a Brazilian Favela. Chicago, The University of Chicago Press, 2022.
  • LYOTARD, Jean-François. Economía libidinal. Madrid, Fundamentos, 1990.
  • MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo, n-1 edições, 2018.
  • McCLINTOCK, Anne. Couro Imperial. Raça, gênero e sexualidade no embate colonial. Campinas, Editora Unicamp, 2010.
  • MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa. Aquele não mais obscuro negócio do desejo. In: PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê — A prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2008.
  • MOTEN, Fred. Ser prete e ser nada (misticismo na carne). In: MOTEN, Fred. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Editora Crocodilo e n-1, 2021, pp.131-192.
  • MOTEN, Fred. A resistência do objeto: o grito da tia Hester. Revista Eco-Pós, v. 23, n. 1, 2020, pp.14-43 [2003].
  • NOBRE, Marcos. Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo, Todavia, 2022.
  • PERLONGHER, Nestor. Territórios marginais. In: GREEN, James; TRINDADE, Ronaldo (org.). Homossexualismo em São Paulo e outros escritos. São Paulo, Editora Unesp, 2005, pp.263-290.
  • PERLONGHER, Nestor. Droga e Êxtase. Religião e Sociedade, n. 16/3, Rio de Janeiro, Iser, 1994, pp.8-23.
  • PERLONGHER, Nestor. Antropologia das sociedades complexas, identidade e territorialidade ou como estava vestida Margaret Mead. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 22, 1993, pp.137-144.
  • PERLONGHER, Nestor. O desaparecimento da homossexualidade. Saúde Loucura, n.3. São Paulo, 1991, pp.39-45.
  • PERLONGHER, Nestor. O negócio do michê: a prostituição viril. Editora Brasiliense, São Paulo, 1987a.
  • PERLONGHER, Nestor. O que é Aids? São Paulo, Brasiliense, 1987b.
  • PERLONGHER, Nestor. Aids. Disciplinar os poros e as paixões. Lua Nova, v. 2 n. 3, São Paulo, Dec. 1985, pp.35-37.
  • PERLONGHER, Nestor; FERRER, Christian; BAIGORRIA, Osvaldo. Antropologia do êxtase. Revista digital Ecopolítica, n.4, 2012.
  • PINHO, Osmundo. Cativeiro. Antinegritude e Ancestralidade. Salvador, Editora Segundo Selo, 2021.
  • ROCHA, Luciane de Oliveira. Outraged Mothering: Black Women, Racial Violence and the Power of Emotion in Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia), African Diaspora Program in Anthropology, The University of Texas at Austin, 2014.
  • ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo, Editora Clube do Livro, 1989.
  • SÁNCHEZ, Carlos. El cuerpo drogado de pharmakones. Un análisis de nueve etnografías brasileras (1987-2018). Dissertação (Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2021.
  • SANTOS, Débora Duarte. Cartografias corporais em trânsito: violência, desejo e êxtase na escrita de Néstor Perlongher. Tese (Doutorado em Letras), FFLCH, Universidade de São Paulo (USP), 2019.
  • SIMÕES, Júlio Assis. O negócio do desejo. cadernos pagu (31), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.534-546.
  • SPILLER, Hortense J. Bebê da mamãe, talvez do papai: uma gramática estadunidense. In: SPILLER, Hortense J. Pensamento negro radical: antologia de ensaios. São Paulo, Editora Crocodilo e n-1, 2021, pp.29-70. [1987].
  • TAUSSIG, Michael. Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem. Um estudo sobre o terror e a cura. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1993.
  • VARGAS, Eduardo. Entre a extensão e a intensidade. Corporalidade, subjetivação e uso de “drogas”. Tese (Doutorado em Ciência humanas, sociologia e política), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2001.
  • VARGAS, João Costa Helion. Racismo não da conta: antinegritude, a dinâmica ontológica e social definidora da modernidade. Em Pauta, n. 45, v. 18, Rio de Janeiro, 2020, pp.16-26.
  • WILDERSON III, Frank B. Red, White & Black: Cinema and the Structure of U.S. Antagonisms. Durham, Duke University Press, 2010.
  • 1
    Um parêntese necessário, aqui, seria do eterno retorno a essa obra de Perlongher, obra pioneira e seminal para qualquer um interessado não só no tema específico da prostituição masculina, mas também na apresentação de um trabalho etnográfico excepcional. O autor encara aqui o desafio de levar a sério uma “antropologia do desejo” que deve ser problematizada em seus múltiplos atravessamentos pelas questões de raça, classe, idade, etc. A prova da durabilidade das análises de Perlongher é que, mesmo depois de mais de 30 anos de sua publicação, ainda não conseguimos dar conta de todas as questões levantadas ali. Para o contexto de produção desse trabalho no cenário antropológico brasileiro dos estudos de gênero e sexualidade, ver Carrara e Simões (2007)CARRARA, Sergio; SIMÕES, Julio Assis. Sexualidade, cultura e política: a trajetória da identidade homossexual masculina na antropologia brasileira. cadernos pagu (28), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2007, pp.65-99. e Simões (2008)SIMÕES, Júlio Assis. O negócio do desejo. cadernos pagu (31), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.534-546.. E para a recepção e impacto de sua publicação, ver o prefácio da primeira edição escrito por Fry (1987) e o da mais recente reedição escrita por Miskolci e Pelúcio (2008)MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa. Aquele não mais obscuro negócio do desejo. In: PERLONGHER, Néstor. O negócio do michê — A prostituição viril em São Paulo. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2008..
  • 2
    Para uma análise da obra poética de Perlongher e dos principais temas que a atravessam (o corpo, a violência, o desejo e o êxtase), ver Santos (2019)SANTOS, Débora Duarte. Cartografias corporais em trânsito: violência, desejo e êxtase na escrita de Néstor Perlongher. Tese (Doutorado em Letras), FFLCH, Universidade de São Paulo (USP), 2019.. Para a importante atividade política do autor em Argentina nessa década, seu papel na composição da Frente de Liberación Homosexual de la Argentina (FLH), posterior prisão pela ditadura daquele país e exílio no Brasil, ver Bazan (2017)BAZÁN, Osvaldo. Historia de la homosexualidad en la Argentina. De la Conquista de América al siglo XXI. Buenos Aires, Marea, 2017..
  • 3
    É nessa linhagem teórica, inclusive, que Perlongher busca as principais ferramentas de interpretação em suas pesquisas. Por isso, muito de seu vocabulário conceitual e analítico é devedor de pensadores como Foucault, Bataille, Hocquenghem, Lyotard e os próprios Deleuze e Guattari. Para entender as outras influências teóricas no pensamento perlonghiano, ver Simões (2008)SIMÕES, Júlio Assis. O negócio do desejo. cadernos pagu (31), Campinas, SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2008, pp.534-546..
  • 4
    É entendido pelo autor como a atualização de um valor englobante a partir de estratégias e práticas que preservem ou salvaguardem a vida o máximo possível em sua extensão, daí ser relacionado em diversos contextos a um certo ascetismo que se contraporia a um hedonismo (Duarte 1999DUARTE, Luiz Fernando. O império dos sentidos: sensibilidade, sensualidade e sexualidade na cultura ocidental moderna. In: HEILBORN, Maria Luiza (org.). Sexualidade: o olhar das ciências sociais. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, pp. 21-30.).
  • 5
    Estudos mais contemporâneos têm buscado preencher as lacunas que Deleuze deixou em seu pensamento especificamente sobre a sexualidade e como interpretá-las em diálogo com outras correntes psicanalíticas, principalmente nas contradições presentes na obra do autor relativas à ideia de orgasmo e de sexualidade feminina. Destacamos o estudo de Beckman (2013)BECKMAN, Frida. Between Desire and Pleasure: A Deleuzian Theory of Sexuality. Edinburgh, Edinburgh University Press, 2013. e a coletânea organizada pela mesma autora (2011).
  • 6
    Vide as suas entrevistas sobre o movimento LGBT da sua época e as práticas sadomasoquistas que ele passou a acompanhar (Foucault, 2006b).
  • 7
    Mesmo que esses desejos, escolhas e vontades não sejam aqueles entendidos por nós, pesquisadores, como “boas”, “melhores” ou “saudáveis”. É o que aponta Lino e Silva em sua etnografia com moradores LGBTs da Favela da Rocinha sobre os diversos sentidos e significados do que seja liberdade para essas pessoas periféricas (2022). O autor aponta o quanto a sua surpresa, e mesmo aborrecimento, com as escolhas de vida de sua principal interlocutora, uma travesti migrante nordestina soropositiva, mostrou-lhe outras possibilidades de entendimento sobre o que é liberdade, passando justamente pelo reconhecimento do Outro enquanto produtor de desejos próprios e legítimos.
  • 8
    Lago (2022)LAGO, Miguel. Como explicar a resiliência de Bolsonaro?. In: STARLING, Heloisa; LAGO, Miguel; BIGNOTTO, Newton (org.). Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise. São Paulo, Companhia das Letras, 2022, pp.19-69. faz uma interessante análise sobre a dificuldade dos cientistas sociais em “ver”, “ouvir” e “sentir” o bolsonarismo e sua figura representativa. Propor um entendimento que passe pelos afetos e sentidos permitiria uma proximidade maior do que a utilização de teorias que não dão conta de toda a complexidade do fenômeno.
  • 9
    Não à toa, em sua etnografia da prostituição masculina, Perlongher pontua o quanto a questão da violência está ali, sempre à espreita (seja nas possibilidades de roubos, espancamentos, assassinatos ou mesmo na performance de masculinidade exagerada demandada nesse contexto), e que, não raro, irrompe em uma “violência do gozo”. “No meio homossexual paulistano, esta tentação pelo abismo costuma aparecer sob a forma de um ‘gosto pelo perigo’, que conduz alguns pederastas [sic], se não a certo gozo masoquista, a uma intensificação mortífera das pulsões investidas na transação, condensada na equação terror/gozo” (Perlongher, 1987:220).
  • 10
  • 11
    A declaração do ministro, feita em Fevereiro de 2020, pode ser acessada neste link: https://oglobo.globo.com/economia/guedes-diz-que-dolar-alto-bom-empregada-domestica-estava-indo-para-disney-uma-festa-danada-24245365. Acesso em: 28 jun. 2022.
  • 12
    Mais recentemente, temos visto que outros cenários, como é o caso do espaço prisional, têm se tornado frequente como eixo de análise em pesquisas sobre interseccionalidade.
  • 13
    Para além de O negócio do michê, tomada como uma tese pioneira da década de 1980, as outras teses trabalhadas foram: “Entre a extensão e a intensidade: corporalidade, subjetivação e uso de drogas”, de Eduardo V. Vargas (2001)VARGAS, Eduardo. Entre a extensão e a intensidade. Corporalidade, subjetivação e uso de “drogas”. Tese (Doutorado em Ciência humanas, sociologia e política), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2001.; “A reinvenção do corpo: Sexualidade, gênero na experiência transexual” de Berenice Bento (2006); “Hedonismo competente: antropologia de urbanos afetos”, de Fernanda Eugenio Machado (2006); “Nos nervos, na carne, na pele: uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo preventivo da Aids”, de Larissa Pelúcio (2007); “Coca-Light?”: usos do corpo, rituais de consumo e carreiras de ‘cheiradores’ de cocaína em São Paulo”, de Osvaldo Ribas Lobos Fernandes; “Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack”, de Taniele Rui (2012); “Festa de orgias para homens: territórios de intensidade e sociabilidade masculina”, de Victor Hugo Barreto (2017)BARRETO, Victor Hugo. Festas de orgias para homens. Territórios de intensidade e socialidade masculina. Salvador, Editora Devires, 2017.; e “O fervo e a luta: poéticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim”, de Gibram Teixeira Braga (2018)BRAGA, Gibram Teixeira. O fervo e a luta: políticas do corpo e do prazer em festas de São Paulo e Berlim. Tese (Antropologia social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), 2018..
  • 14
    A autora entende juventude não como uma faixa etária, mas como um estilo de vida que agencia e tensiona práticas de gozo e seu alargamento temporal (Sánchez, 2021SÁNCHEZ, Carlos. El cuerpo drogado de pharmakones. Un análisis de nueve etnografías brasileras (1987-2018). Dissertação (Antropologia Social), Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 2021.:53).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Aceito
    20 Out 2022
Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu Universidade Estadual de Campinas, PAGU Cidade Universitária "Zeferino Vaz", Rua Cora Coralina, 100, 13083-896, Campinas - São Paulo - Brasil, Tel.: (55 19) 3521 7873, (55 19) 3521 1704 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: cadpagu@unicamp.br