Open-access Resiliência, depressão e autoeficácia entre profissionais de enfermagem brasileiros na pandemia de COVID-19

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar os níveis de resiliência, depressão e autoeficácia entre profissionais de enfermagem brasileiros na pandemia de COVID-19. Estudo transversal analítico realizado entre os meses de outubro e dezembro de 2020. Foram empregados o teste T de Student, a análise de variância e a regressão linear múltipla com o objetivo de investigar em que medida os dois grandes fatores (resiliência e autoeficácia) impactavam nos níveis de depressão. Participaram do estudo 8.792 profissionais de enfermagem, 5.124 (58,8%) tiveram baixos níveis de resiliência. A média da pontuação geral para “depressão” foi de 0,74 e variou de 0,59 a 0,80. A média da pontuação geral para “autoeficácia” foi de 0,68 e variou de 0,56 a 0,80. Quanto aos preditores de depressão, a variável que mais fortemente impactou os níveis de depressão foi resiliência, explicando 6,6% do desfecho (p < 0,001, R2 Ajustado = 0,066). Os participantes deste estudo tiveram, em geral, baixos níveis de resiliência e autoeficácia e maiores pontuações médias para depressão. Os níveis de resiliência impactaram a variável depressão. Urge a necessidade de ações voltadas para a promoção da saúde psicológica de profissionais de enfermagem inseridos em contextos pandêmicos.

Palavras-chave: Resiliência psicológica; Depressão; Autoeficácia; Profissionais de enfermagem; COVID-19

Abstract

This aim of this study was to analyze levels of resilience, depression and self-efficacy among Brazilian nursing professionals during the COVID-19 pandemic. We conducted an analytical cross-sectional study between October and December 2020. Student’s t test, analysis of variance and multiple linear regression were used to investigate the impact of two main factors (Resilience and Self-efficacy) on depression. A total of 8,792 nursing professionals participated in the study; 5,124 (58.8%) had low levels of resilience. The mean overall score for Depression was 0.74, ranging from 0.59 to 0.80, while the mean overall score for Self-efficacy was 0.68, ranging from 0.56 to 0.80. The variable that had the strongest impact on depression levels was Resilience, explaining 6.6% of the outcome (p < 0.001, AdjustedR2 = 0.066). In general, respondents had low levels of resilience and self-efficacy and showed high mean depression scores. Level of resilience had an impact on depression. The findings reveal an urgent need for actions to promote the psychological health of nursing professionals working in crisis situations such as pandemics.

Key words: Psychological resilience; Depression; Self-efficacy; Nursing professionals; COVID-19

Introdução

Em razão do alto nível de estresse laboral, enfermeiras clínicas podem vivenciar insatisfação no trabalho, ansiedade, depressão e burnout, o que impacta a sustentabilidade das equipes de enfermagem e a saúde física e mental das enfermeiras1-3. Nesses contextos, a resiliência pode ser considerada um meio fundamental para lidar com as adversidades do ambiente de trabalho.

A resiliência combina a interação entre atributos individuais e ambientais (familiar, social, cultural) que caracterizam a capacidade de resposta e superação a condições adversas4. Como diferentes disciplinas contribuem para o desenvolvimento do conceito de resiliência (psicologia, psicopatologia, sociologia e psiquiatria, entre outras), impõe-se a adoção de uma perspectiva multisetorial, que adquire cada vez mais importância em contextos de adversidades sociais, políticas e econômicas, como as vivenciadas com a pandemia de COVID-19.

Diversos estudos indicam que os profissionais de saúde sofreram deterioração de sua saúde mental e psicológica durante a pandemia de COVID-19, com altas taxas de prevalência de ansiedade, burnout, depressão e sofrimento psicológico5,6. Pesquisas conduzidas durante outras pandemias, como as de SARS, Ebola e MERS-CoV, enfatizaram o papel protetivo da resiliência psicológica, comportamentos de coping e apoio social em profissionais de saúde, especialmente da enfermagem, contra o estresse do cuidado a pacientes infectados7,8.

Dessa forma, pode-se afirmar que a resiliência constitui agente protetivo do bem-estar físico e mental de profissionais de enfermagem, que pode ser considerada uma profissão com altos níveis de estresse, em especial ao lidar com pressões de contextos sociais e éticos em constante transformação, podendo impactar negativamente os profissionais de enfermagem e os usuários dos serviços de saúde9,10.

Portanto, a compreensão da resiliência em profissionais de enfermagem é extremamente relevante, e apesar de muitos estudos realizados, ainda não há uma definição globalmente aceita de resiliência na literatura em enfermagem, apenas a concordância de que a resiliência é vital para que os profissionais de enfermagem enfrentem o estresse e diferentes pressões laborais9,11.

A resiliência abarca modalidades de resistência ao estresse, ao passo que o coping representa a capacidade de enfrentá-lo e de promover uma adaptação positiva. O coping ocorre, portanto, em um determinado momento, e a resiliência, ao longo do tempo12. A autoeficácia abrange percepções sobre a capacidade de organizar e executar determinado curso de ação e atua como elemento central na fundação da motivação e resistência das pessoas às pressões do meio-ambiente. Nesse sentido, os conceitos de resiliência e autoeficácia estão relacionados ao enfrentamento de mudanças econômicas, sociais e laborais, envolvendo contexto, cultura e responsabilidade coletiva13,14.

Profissionais de enfermagem com maiores níveis de autoeficácia e resiliência são menos propensos a desenvolverem transtornos mentais, entre eles depressão e burnout. Profissionais de enfermagem mais resilientes apresentam melhores condições de bem-estar no ambiente laboral e em suas vidas. Este estudo tem como objetivo analisar os níveis de resiliência, depressão e autoeficácia entre profissionais de enfermagem brasileiros na pandemia de COVID-19.

Método

Tipo de estudo

Estudo transversal analítico, realizado com profissionais de enfermagem de todas as regiões do Brasil. Os dados foram coletados por meio de questionário online entre os meses de outubro e dezembro de 2020.

População

Foram considerados elegíveis profissionais de enfermagem (enfermeiros, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem) que atuaram na assistência direta a pessoas nos diferentes cenários de atenção à saúde em serviços públicos e privados de todas as regiões e estados brasileiros pelo menos nos últimos seis meses que antecederam o início da coleta.

Coleta de dados

Os dados foram coletados por meio de um questionário online construído na plataforma Surveymonkey, cujo link foi disponibilizado em mídias sociais como Facebook, Twitter, Instagram e WhatsApp, bem como pore-mail. O formulário contendo o questionário foi constituído por duas partes: a primeira com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), e a segunda com o formulário da pesquisa.

Instrumentos de coleta de dados

Foram usados três instrumentos para a coleta de dados: um questionário contendo informações sociodemográficas dos profissionais de enfermagem; a Escala Breve de Coping Resiliente e o Questionário de Saúde Geral (QSG-12). As variáveis sociodemográficas foram: categorial profissional (enfermeiro/técnico de enfermagem/auxiliar de enfermagem); sexo (masculino/feminino); faixa etária (18 a 30 anos, 31 a 50 anos e 51 anos ou mais); região do Brasil (Nordeste, Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul); cor da pele (branca, preta, parda e amarela); estado conjugal (casado/união estável, solteiro/divorciado e viúvo); diagnóstico de COVID-19 (sim/não) e se atuou em hospital de campanha durante a pandemia (sim/não).

A Escala Breve de Coping Resiliente é validada para a língua portuguesa e é composta por quatro itens. As opções de resposta estão distribuídas em uma escala do tipo Likert com as seguintes alternativas: 5) quase sempre; 4) com muita frequência; 3) muitas vezes; 2) ocasionalmente; e 1) quase nunca. Os níveis de resiliência são interpretados de acordo com a seguinte pontuação: inferior a 13 indica baixa resiliência, e superior a 17 indica forte resiliência15.

O Questionário de Saúde Geral (QSG-12) tem utilidade para avaliação de fatores relacionados à saúde. Aplicado em diferentes populações e contextos, é originário de um instrumento composto por 60 itens16. Sua versão com 12 itens tem sido amplamente usada17. Para a presente pesquisa, explorou-se a estrutura fatorial do QSG-12 e foram extraídos dois fatores oblíquos, denominados depressão e autoeficácia. As opções de respostas estão distribuídas em uma escala do tipo likert de quatro pontos: 0) nem um pouco; 1) não mais que o habitual; 2) mais que o habitual; e 3) muito mais que o habitual. O Fator 1, denominado depressão, foi composto pelo itens 2, 5, 6, 9, 10 e 11. O Fator 2, denominado autoeficácia, foi composto pelos itens 1, 3, 4, 7, 8 e 12. Destaca-se que a estrutura fatorial identificada para este estudo é semelhante à extraída de uma amostra de professores escolares17.

Análise dos dados

Os dados foram analisados por meio de estatística descritiva para caracterização da amostra. Para calcular os escores das escalas de depressão e autoeficácia, tomou-se como referência os escores da análise fatorial exploratória da QSG-12 para cálculo das médias ponderadas. Para a escala de resiliência, o escore foi calculado pela média simples dos itens da escala.

Usou-se o teste T de Student para amostras independentes e a análise de variância (ANOVA) com o objetivo de comparação dos escores de resiliência, depressão e ansiedade com as variáveis sociodemográficas, diagnóstico de COVID-19 e atuação em hospital de campanha durante a pandemia. O nível de confiança adotado em todas as análises foi de 95%. O software SPSS, versão 20.0, foi usado em todas as análises.

Foi realizada uma análise de regressão linear múltipla (método forward) com o objetivo de investigar em que medida os dois grandes fatores (resiliência e autoeficácia) impactavam nos níveis de depressão. Resiliência e autoeficácia foram consideradas variáveis independentes e depressão foi a variável dependente. Também foram calculados R2, R2 ajustado e a mudança de R2. O nível de confiança adotado foi de 95%.

Aspectos éticos

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, sob parecer número 4.258.366. Todos os aspectos éticos foram contemplados para sua realização, segundo as resoluções 466/2012 e 510/2016. O consentimento dos participantes foi obtido online por meio da confirmação de concordância com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados

Participaram do estudo 8.792 profissionais de enfermagem, 5.767 (65,6%) eram enfermeiros, 7.437 (84,6%) do sexo feminino e 2.643 (30,1%) da região Nordeste do Brasil, conforme a Tabela 1.

Tabela 1
Caracterização de profissionais de enfermagem brasileiros. Brasil, 2021 (n = 8.792).

Quanto aos escores gerais das variáveis resiliência, depressão e autoeficácia, 5.124 profissionais de enfermagem (58,8%) tiveram baixos níveis de resiliência. A média da pontuação geral para “depressão” foi de 0,74 e variou de 0,59 a 0,80. A média da pontuação geral para “autoeficácia” foi de 0,68 e variou de 0,56 a 0,80.No que diz respeito à resiliência, os resultados demonstraram diferença estatisticamente significante entre seu escore e as variáveis categoria profissional (p < 0,001), sexo (p = 0,003), faixa etária (p < 0,001), região do Brasil (p < 0,001), estado conjugal (p = 0,029) e prestar assistência em hospital de campanha (p < 0,001).

Em relação à depressão, os resultados demonstraram diferença estatisticamente significante entre seu escore e as variáveis categoria profissional (p < 0,001), sexo (p < 0,001), faixa etária (p = 0,01), região do Brasil (p = 0,012) e estado conjugal (p < 0,001).

Quanto à autoeficácia, os resultados demonstraram diferença estatisticamente significante entre seu escore e as variáveis categoria profissional (p < 0,001), estado conjugal (p < 0,001) e prestar assistência em hospital de campanha (p = 0,01).

Com relação às diferenças nos escores, os resultados demonstraram que profissionais do sexo masculino tiveram escore de resiliência estatisticamente maior (M = 12,43; DP = 3,25) do que profissionais do sexo feminino (M = 12,11; DP = 3,30) (t(8.790) = 3,28, p < 0,001). Quanto à depressão, os resultados demonstraram que profissionais do sexo masculino tiveram escore estatisticamente maior (M = 0,748; DP = 0,021) do que profissionais do sexo feminino (M = 0,746; DP = 0,019) (t(8.813) = 3,10, p = 0,002), conforme Tabela 2.

Tabela 2
Escores médios das escalas (resiliência, depressão e autoeficácia) segundo variáveis demográficas, categoria profissional, diagnóstico de COVID-19 e assistência em hospital de campanha. Brasil, 2021 (n = 8.792).

No que diz respeito à resiliência, os resultados indicam diferença estatisticamente significante entre os grupos (enfermeiro, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem, p < 0,001). A diferença de médias existente entre enfermeiro (M = 12,06; DP = 3,27) e técnico de enfermagem (M = 12,33; DP =3,33) foi estatisticamente significante (p = 0,002). No entanto, as diferenças das médias dos grupos de auxiliares de enfermagem e enfermeiros e técnicos de enfermagem não apresentaram significância estatística. Quanto à depressão, os resultados indicam diferença estatisticamente significante entre os grupos (enfermeiro, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem, p < 0,001). A diferença de médias existente entre enfermeiro (M = 0,745; DP = 0,019) e técnico de enfermagem (M = 0,749; DP = 0,020) foi estatisticamente significante (p < 0,001), do mesmo modo que entre enfermeiro e auxiliar de enfermagem (M = 0,748; DP = 0,021, p < 0,001). Quanto à autoeficácia, os resultados indicaram que havia diferença estatisticamente significante entre os grupos (enfermeiro, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem, p < 0,001). A diferença de médias existente entre enfermeiro (M = 0,683; DP = 0,023) e técnico de enfermagem (M = 0,680; DP = 0,021) foi estatisticamente significante (p < 0,001), do mesmo modo que entre enfermeiro e auxiliar de enfermagem (M = 0,678; DP = 0,024, p < 0,001).

Com relação à associação entre resiliência e as variáveis faixa etária e região, os resultados indicaram diferença estatisticamente significante entre os grupos (18 a 30 anos, 31 a 60 anos, 61 anos e mais, p < 0,001). Observou-se diferença estatisticamente significante entre os grupos (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, p < 0,001). A diferença de médias existente entre Nordeste (M = 12,27; DP = 3,33) e Sudeste (M = 11,98; DP = 3,29) foi estatisticamente significante (p = 0,01). Do mesmo modo, as diferenças de médias existentes entre Norte e Sudeste (p = 0,003) e Norte e Sudeste (p = 0,001), apresentaram resultados estatisticamente significativos. Em relação à associação entre resiliência e a variável estado conjugal, os resultados indicaram diferença estatisticamente significante entre os grupos (casado/união estável, solteiro/divorciado e viúvo, p = 0,029).

Quanto à atuação em hospital de campanha para COVID-19, profissionais de enfermagem que atuaram nesses locais tiveram escore estatisticamente maior (M = 12,32; DP = 3,30) para o desfecho resiliência do que aqueles que não atuaram (M = 12,07; DP = 3,29) (t(8.813) = 3,29, p < 0,001). Do mesmo modo, profissionais de enfermagem que atuaram em hospital de campanha para COVID-19 tiveram escore estatisticamente maior (M = 0,683; DP = 0,023) para o desfecho autoeficácia do que aqueles que não atuaram (M = 0,681; DP = 0,022) (t(8.813) = 2,56, p = 0,01), conforme a Tabela 2.

Investigou-se em que medida os dois grandes fatores (resiliência e autoeficácia) impactavam os níveis de depressão. Os resultados demonstraram haver uma influência significativa dos dois fatores na depressão (F(2, 8.789) = 317,031, p < 0,001; R2ajustado = 0,067). Desse modo, a variável desfecho sofreu influência das duas variáveis preditoras. A Tabela 3 apresenta os coeficientes para todos os preditores significativos. A variável que mais fortemente impactou os níveis de depressão foi resiliência, explicando 6,6% do desfecho.

Tabela 3
Variáveis preditoras de Depressão. Brasil, 2021 (n = 8.792).

Discussão

Os participantes deste estudo tiveram, em geral, baixos níveis de resiliência e autoeficácia e maiores pontuações médias para depressão. Quanto aos escores médios de resiliência, observou-se: profissionais do sexo masculino tiveram escore de resiliência estatisticamente maior do que profissionais do sexo feminino; a categoria enfermeiro teve escore de resiliência estatisticamente maior do que técnico de enfermagem; profissionais de enfermagem que atuaram em hospital de campanha para COVID-19 tiveram escore estatisticamente maior para o desfecho resiliência do que aqueles que não atuaram.

Falar de consequências positivas diante de uma situação pandêmica como a COVID-19 seria desconsiderar todos os óbitos ocorridos18. Entretanto, mesmo diante de cenários caóticos como a ausência de leitos em unidade de terapia intensiva, equipamentos de proteção individual em quantidades suficientes e de qualidade, necessidades de profissionais capacitados, observou-se o empenho de profissionais de enfermagem brasileiros no combate à pandemia, especialmente aqueles que atuaram na chamada linha de frente.

A literatura internacional apresenta evidências da relação entre os níveis de resiliência e gênero de modo geral. Por exemplo, universitários espanhóis do sexo masculino apresentaram pontuações mais altas nos fatores otimismo e adaptação às situações estressantes da Escala de Resiliência de Connor-Davidson, quando comparados com adolescentes do sexo feminino19. Outros estudos indicaram diferenças significativas entre gêneros20-22. Quanto à categoria profissional, neste estudo foi evidenciado que enfermeiros tiveram maiores escores de resiliência que técnicos de enfermagem. Estudo realizado no Sul do Brasil sobre estresse psicossocial e resiliência de profissionais de enfermagem evidenciou que não existia diferença estatística significante entre categorias profissionais quanto ao escore de resiliência23. Mais estudos devem ser realizados para elucidar a questão, pois baixos níveis de resiliência podem estar presentes tanto em profissionais de nível médio quanto de nível superior.

Entretanto, a enfermagem brasileira é dividida em categorias e, entre elas, podem existir diferenças nas condições de trabalho e influenciar a saúde mental daqueles em condições mais desfavoráveis. Um estudo realizado com técnicos de enfermagem de três regiões brasileiras apontou que baixa remuneração, sobrecarga de trabalho e cargas psíquicas são condições de trabalho frequentes e desfavoráveis entre essa categoria24. Outro estudo indicou que aproximadamente metade dos técnicos de enfermagem apresentou transtornos mentais associados a questões econômicas e de trabalho25. Essas questões somam-se ao próprio contexto pandêmico que alterou as dinâmicas do trabalho cotidiano.

Quanto à atuação em hospital de campanha, os resultados do presente estudo vão de encontro à literatura: pesquisa sobre resiliência evidenciou que profissionais de saúde que atuaram com o diagnóstico e tratamento de pessoas com COVID-19 estavam mais vulneráveis ao adoecimento mental26. De fato, situações adversas que envolvem exposição de risco à saúde podem desencadear altos níveis de estresse e sintomas de adoecimento mental. Entretanto, há de se considerar que os hospitais de campanha estavam mais adequados em termos de estrutura e disponibilidade de materiais para o enfrentamento da pandemia nos primeiros meses, o que pode ter influenciado na percepção dos profissionais de enfermagem sobre maior segurança para atuação na linha de frente de combate à infecção.

Em relação à autoeficácia, os resultados demonstraram diferença estatisticamente significante entre o escore e as variáveis categoria profissional e prestar assistência em hospital de campanha para COVID-19. As diferenças indicaram que enfermeiros tiveram escore de autoeficácia estatisticamente maior do que técnicos e auxiliares de enfermagem. Do mesmo modo, profissionais de enfermagem que atuaram em hospital de campanha para COVID-19 tiveram escore de autoeficácia estatisticamente maior do que aqueles que não atuaram. Quanto ao escore geral, em média os profissionais de enfermagem apresentaram menores pontuações. Resultados semelhantes foram observados entre enfermeiros italianos que apresentaram baixa autoeficácia. No mesmo estudo, as mulheres se mostraram mais propensas a ter baixos níveis de autoeficácia do que os homens27. Estudo com enfermeiros de Wuhan indicou que a autoeficácia foi um dos principais fatores que afetou a ansiedade de enfermeiros28.

Estudos que abordaram autoeficácia da equipe de enfermagem durante a pandemia de COVID-19 são escassos na literatura nacional e internacional. Dessa forma, partindo da definição proposta por Bandura29, autoeficácia é a percepção que o indivíduo tem de acreditar na própria capacidade de desempenhar determinada atividade. Acredita-se que as diferenças entre enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem podem ter relação com as atividades desenvolvidas por enfermeiros, como liderança do pessoal de enfermagem e gestão de serviços de enfermagem e saúde. Além disso, autores afirmam que a percepção desse constructo pode influenciar outros indicares, como a resiliência30.

É relevante que intervenções direcionadas para o desenvolvimento e a manutenção de índices elevados de autoeficácia de profissionais de enfermagem sejam implementadas, especialmente em tempos pandêmicos. Evidências internacionais apontaram que autoeficácia de enfrentamento foi um fator de proteção para sofrimento psicológico entre enfermeiras durante a pandemia de COVID-1931. Os autores do estudo citado sugeriram que devem ser implementadas ações para redução do estresse de enfermeiros e encaminhamentos para serviços psicológicos. São ações que visam reduzir os danos mentais de profissionais de enfermagem expostos a atividades desgastantes, seja por carga elevada de trabalho ou por exposição de risco.

Quanto à depressão, observou-se que profissionais enfermeiros tiveram escore médio estatisticamente maior do que técnicos e auxiliares de enfermagem. Os resultados demonstraram haver influência significativa de resiliência e autoeficácia na depressão. A variável resiliência foi a que mais influenciou na explicação do modelo, explicando 6,6% do desfecho.

Enfermeiras clínicas enfrentam diariamente em seus espaços de trabalho situações que causam efeitos negativos para a saúde, tanto físicos quanto psicológicos. Enfrentam altos níveis de estresse nas relações de trabalho que causam prejuízos à assistência9,10. Os baixos níveis de resiliência observados neste trabalho interferem na saúde mental dos profissionais de enfermagem. Compreende-se que a pandemia acrescentou obstáculos à assistência e potencializou prejuízos às categorias profissionais de enfermagem. Nesse sentido, são necessárias ações que promovam o bem-estar físico e psicológico de profissionais inseridos em contextos excepcionais. Em geral, pesquisadores apontaram que a resiliência tem um papel importante para a saúde mental das pessoas no período da pandemia32.

De fato, a resiliência exerce papel fundamental no enfrentamento de situações inesperadas entre profissionais de enfermagem. Entretanto, a análise de tais indicadores não deve ser feita de modo isolado, é necessário compreender em quais circunstâncias esses profissionais estão inseridos e pensar criticamente além da pandemia como fator condicionante isolado. Nessa perspectiva, um estudo internacional realizado em quatro países apontou que apoio organizacional e participação em desenvolvimento de políticas e procedimentos geraram maiores índices de resiliência entre enfermeiros33. Nesse sentido, são necessários mais estudos com profissionais de enfermagem brasileiros que investiguem questões relacionadas ao envolvimento da equipe de enfermagem nas decisões de gestão e formulações de políticas diretamente ligadas à assistência de enfermagem.

Quanto a sintomas sugestivos de transtornos mentais, os resultados apresentados assemelham-se com pesquisa brasileira empreendida no Nordeste do Brasil. Sintomas de depressão e ansiedade estiveram mais presentes entre aqueles profissionais inseridos em serviços sem condições adequadas de trabalho34. A literatura internacional documentou elevados níveis de depressão entre profissionais de saúde que atuaram na assistência durante a pandemia de COVID-1935,36.

Em consonância com os resultados da presente pesquisa, uma revisão sistemática da literatura identificou 35% de prevalência de depressão entre enfermeiros durante a pandemia de COVID-1937. Os dados disponíveis na literatura somados ao desta pesquisa sugerem a necessidade urgente de implementação de ações voltadas para o enfrentamento de dificuldades vivenciadas por profissionais de enfermagem em situações pandêmicas. São urgentes ações que promovam o autocuidado com foco em aspectos protetivos para a saúde mental e física de profissionais de enfermagem.

Boas práticas de proteção ocupacional e disponibilidade de equipamentos de proteção individual foram identificados como fatores de proteção para depressão entre enfermeiras pediátricas chinesas38. De fato, o acontecimento histórico da pandemia de COVID-19 trouxe para o centro das discussões acadêmicas e da sociedade em geral problemas psicológicos enfrentados por profissionais de enfermagem quando submetidos a situações inesperadas na assistência à saúde.

A promoção da saúde psicológica e física de profissionais de enfermagem é cada vez mais urgente diante de situações pandêmicas. Ações governamentais e de entidades de classe são necessárias para melhorar o preparo desses profissionais para o enfrentamento de situações futuras semelhantes. É importante que, quando houver condições de trabalho adequadas, o enfermeiro esteja preparado para conduzir a equipe multiprofissional sem causar maiores danos para seu próprio estado de saúde geral.

As contribuições do presente estudo podem ser elencadas em duas vertentes: 1) os baixos níveis de resiliência contribuíram para maiores percentuais de depressão, o que pode auxiliar profissionais e gestores em saúde em discussões e na elaboração de possíveis políticas públicas para intervir na melhoria dos níveis de resiliência de profissionais de enfermagem, em especial aqueles inseridos em contextos de eventos inesperados, como em casos de pandemias e 2) os resultados do presente estudo englobam profissionais de enfermagem das três categorias (enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem) e de todas as regiões do Brasil inseridos na assistência em contexto pandêmico, de forma que contribuem para melhorar a compreensão de questões envolvendo a saúde mental das equipes de enfermagem brasileiras.

Conclusão

Fundamentando-se nos dados do presente estudo, depreende-se que a pandemia de COVID-19 provocou danos psicológicos em profissionais de enfermagem inseridos na assistência à saúde durante o período em questão. Aspectos considerados protetivos para depressão, como resiliência e autoeficácia, tiveram baixos índices entre os profissionais investigados, e os níveis de resiliência impactaram a variável depressão. Em geral, os participantes tiveram baixos níveis de resiliência e autoeficácia e maiores pontuações médias para depressão. Tais dados indicam a necessidade urgente de implementação de ações voltadas para a promoção da saúde psicológica de profissionais de enfermagem inseridos em contextos pandêmicos.

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  • Financiamento
    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Processo n° 401708/2020-9, projeto intitulado “Efeitos e consequências da pandemia da COVID-19 entre profissionais de saúde”.
  • Editores-chefes:
    Romeu Gomes, Antônio Augusto Moura da Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Out 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Mar 2022
  • Aceito
    01 Jun 2023
  • Publicado
    26 Jun 2023
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