Acessibilidade / Reportar erro

As batatas de Pirro: comentários sobre As regras institucionais, constrangimentos macroeconômicos e inovação do sistema de proteção social brasileiro nas décadas de 1990 e 2000

DEBATEDORES

As batatas de Pirro. Comentários sobre As regras institucionais, constrangimentos macroeconômicos e inovação do sistema de proteção social brasileiro nas décadas de 1990 e 2000

Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna

Instituto de Economia. UFRJ. marilu@ie.ufrj.br

Comentar um texto assinado é sempre mais instigante do que elaborar um parecer envolto no anonimato (de ambos, autor e parecerista). Mais instigante e mais fácil. Pois, desde logo, a implicância que me despertaria o título do artigo de Nilson do Rosário Costa se dissipa com a certeza de encontrar, no que o segue, a usual competência e a fina ironia do articulista.

A implicância, cabe esclarecer, resulta do desconforto que me causa a abordagem neo-institucionalista - na ciência política representada por um uso abusivo de conceitos como veto-players, comportamento estratégico, poder de agenda, etc. - não pela sua ênfase nos atores, regras e instituições, naturalmente, e sim pela negligência que no geral expressa em relação a fatores explicativos de natureza estrutural. Mas, no caso, essa implicância, já dissipada, não tem importância alguma. Vale a argumentação substantiva, profícua, que não se deixa engolir pelo modelo analítico. Essa argumentação merece considerações igualmente substantivas e independentes de qualquer divergência acerca de enfoques.

A partir da constatação de que, no começo da década de noventa do século passado, emergiu uma disputa normativa entre duas perspectivas antagônicas para regulamentar os preceitos constitucionais de 88 relativos ao sistema de proteção social brasileiro, Costa formula duas hipóteses interessantes. Com a primeira, sugere que a perspectiva institucionalista de proteção, comprometida com os avanços consignados na Carta, prevaleceu sobre sua rival, a que apresentava uma agenda estritamente centrada nas restrições necessárias ao ajuste macroeconômico. A segunda hipótese qualifica melhor a anterior, ao afirmar que, a despeito da manutenção da institucionalidade constitucional, as ditas restrições operaram no sentido de produzir inovações relevantes no sistema, exemplificadas pelos programas de transferência de renda.

Com efeito, não há como negar que o sistema brasileiro de proteção social resistiu às pressões pelo desmonte nos anos noventa. Comparadas às reformas então levadas a cabo por muitos outros países da América Latina, as realizadas no Brasil foram suaves. A seguridade social continuou inscrita na lei, a previdência social manteve-se pública, a saúde preservou seu caráter universal, os benefícios constitucionais de assistência permaneceram. Nesse sentido, coube vitória à agenda institucionalista no embate com a agenda do ajuste macroeconômico. Teria sido, contudo, uma vitória de Pirro?

Costa observa, com perspicácia, que desde o início do processo de implementação das disposições constitucionais, entra em cena um discurso bem diverso do que alimentara, nos meios acadêmicos, o movimento em prol da expansão universalista do sistema. O que, nos idos dos oitenta, fora brandido como avanço a conquistar passa a ser entendido como "anacronismo" a superar. Mudara o mundo, um novo clima (ideológico, por suposto) refrescara mentes e corações. Sobretudo, reconhecia-se a imperiosidade de ingressar na modernidade oferecida pelos circuitos globais do capital; para o que a contenção dos gastos públicos, a descentralização de responsabilidades, a abertura da economia e as privatizações eram indispensáveis. Não havia mais lugar para políticas sociais pautadas "por critérios rigidamente universalistas"1.

O Plano Real, em 1994, pavimentou as condições para o "fim da Era Vargas" - o copyright da expressão pertence ao presidente Fernando Henrique Cardoso -, ou seja, para o encerramento do ciclo nacional desenvolvimentista. A reforma do Estado, sutilmente instilada mediante alterações que dispensaram uma emenda constitucional que se destinasse explicitamente para tal, sedimentou a institucionalidade adequada aos ajustes macroeconômicos. No primeiro mandato de FHC, a agenda contencionista estava plenamente instalada.

Montado o cenário, as inovações em matéria de políticas sociais assumiram protagonismo. Vale lembrar que, desde 1995, com a criação do Comunidade Solidária, não só programas focalizados de iniciativa federal se disseminaram, como também os governos subnacionais foram incentivados a empreender ações semelhantes. O exemplo mais marcante foi o programa Gestão Pública e Cidadania. Promovido pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da FGV em conjunto com a Fundação Ford e com o apoio do BNDES, selecionou, anualmente, de 1996 a 2005, os vinte melhores projetos de políticas públicas entre centenas apresentados por municípios e estados e que tinham, em sua maioria, o enfrentamento da questão social como propósito2. O arranjo viabilizado pela articulação entre a esfera governamental e a esfera privada, pelo fortalecimento dos governos municipais e estaduais na área social e pelas inovações trazidas pelos programas de transferência de renda3 alterou, de fato, a fisionomia do sistema de proteção social, desprezando a estrutura institucional proposta pela Constituição.

Bem antes, porém, a fragilidade da vitória da agenda institucionalista já se evidenciara. A fala do presidente Sarney - ou de seu ministro da fazenda (há duvidas quanto à autoria) -, advertindo para a ingovernabilidade a que o país seria submetido em função do volume de direitos contidos na Carta, é quase imediata à aprovação da mesma. A regulamentação dos preceitos constitucionais, embora tardasse, ocorreu, enfim, no quadro democrático que passa a vigorar com as eleições livres de 1989. Mas ocorreu na contramão do que fora estabelecido. Em 1990, 1991 e 1993, o Congresso aprovou, respectivamente, as Leis Orgânicas da Saúde, da Previdência e da Assistência Social.

Ora, o desenho da seguridade social (ainda) impresso na Constituição pressupõe dois princípios fundamentais: o da universalidade e o da integração. Justamente este princípio, o da integração, capaz de garantir o compartilhamento de receitas para o pagamento simultâneo de benefícios contributivos (os previdenciários, por definição) e não-contributivos (os assistenciais e, por exigência constitucional, os derivados do direito universal à saúde), foi derrogado. Pela legislação complementar à Constituição, as áreas componentes da seguridade foram fatiadas e, obviamente, buscaram encastelar-se cada uma em seu ministério (a Assistência Social ganhou seu ministério em 2003, com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social. Anteriormente, obtivera estatuto similar passageiro, no governo Collor, e alcançara semi-autonomia com a criação da Secretaria de Estado de Assistência Social - SEAS, em 1999). Um gradativo processo de desvinculação (da seguridade) e revinculação (às áreas setoriais) das diversificadas fontes instituídas para financiar o conjunto das ações completou a interpretação legal da institucionalidade constitucionalmente prevista para o sistema de proteção.

A Lei Orgânica da Previdência, a 8.212 de 1991, que recebeu o título de Lei Orgânica da Seguridade, a despeito de tratar apenas da previdência, determinou que fossem arrecadados pelo INSS somente os recursos extraídos das contribuições sobre salários e folha; as demais ficariam a cargo da Receita Federal (a Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), normatizada pela lei Complementar 70, de 30/01/91 e calculada sobre o faturamento mensal das pessoas jurídicas, é, nos termos da lei, "arrecadada e administrada pela Secretaria da Receita Federal, competindo ao Tesouro o repasse para os órgãos da Seguridade conforme programação financeira". O mesmo destino teve a CSLL, Contribuição Social sobre o Lucro das Pessoas Jurídicas pelos termos da lei 8.212 que a regulamentou e, mais tarde, a CPMF, em 1996). A reforma de 1998, ratificada e aprimorada pela de 2003, reforçou a especialização das receitas, consolidou o caráter contributivo do arranjo previdenciário e introduziu a aberração conceitual da divisão da Previdência em regimes - o regime geral e os regimes próprios (o regime geral, dito da iniciativa privada, é, pela Constituição, o regime de todos, é um regime universal, que todos podem acessar. Os regimes próprios são os regimes do funcionalismo público a que têm direito apenas aqueles que por concurso público assumem funções no serviço governamental. A Constituição foi clara ao separar esses dois estatutos, inteiramente distintos ). O detalhe que faltava surgiu em 1994: o Fundo Social de Emergência, depois renomeado como Fundo de Estabilização Fiscal, e hoje, Desvinculação das Receitas da União (DRU), mecanismo pelo qual 20% das contribuições sociais (sempre vinculadas e arrecadadas pela receita federal), à exceção das que incidem sobre salários e folha, é de uso exclusivo do governo federal.

Pirro, o general grego, entrou para a História como emblemático precursor do desencanto schumpeteriano. As batalhas que venceu consumiram seu exército e fizeram dele um perdedor, uma vítima de seu próprio sucesso. Nessa obra, de 1942, Schumpeter considera que o esgotamento do capitalismo - então ameaçado pelos êxitos do socialismo - se devia, paradoxalmente, não ao desgaste ou à entropia, mas ao "exagero de seus rendimentos"4. Analogamente, no Brasil, a conservação da seguridade social, na letra da lei, permitiu que os inimigos da agenda institucionalista revertessem seu triunfo em prol de si mesmos. Sem uma coordenação geral, sem nenhuma instância de integração - o Conselho Nacional de Seguridade foi extinto em 1999 - e, sobretudo, sem um orçamento próprio, a seguridade deixou de existir concretamente. Não custa lembrar que, pela CF de 88, haveria três orçamentos: o fiscal, o de investimentos das estatais e o da seguridade. Só os dois primeiros, porém, se tornaram realidade. Todavia, os recursos que a Constituição lhe atribuiu continuaram a fluir para os cofres públicos. Em 2005, o total dessas receitas somava 278 bilhões de reais (mais alguns milhões). Nesse ano, todas as despesas de seguridade - previdência, saúde e assistência - perfizeram um total de cerca de 221. 222 bilhões de reais. O saldo, positivo, portanto, foi da ordem aproximada de 57 bilhões de reais e a retenção, via DRU, de 32. 129 bilhões de reais (só de COFINS, foram retidos R$ 17.371 milhões)5.

Assim, conforme demonstrado por vários autores na coletânea editada por Fagnani, Henrique e Lúcio6, a recorrente menção a um déficit previdenciário, transformado em refrão alarmista por todos os governos eleitos desde 1989, não se sustenta. Serve, outrossim, aos propósitos reformistas da agenda macroeconômica.

Esses desvios envolvem anualmente (pelos dados relativos ao orçamento de 2006) subtração de receitas que superam a marca de R$ 34,5 bilhões e um desvio em programações estranhas, que estão sendo classificadas como da seguridade Social, de R$ 49 bilhões. Não é de estranhar, que com essa construção, esse Orçamento seja apontado como deficitário, que precise ser complementado com recursos fiscais. Essa construção permite responsabilizar esses gastos pela incapacidade estatal de realizar os investimentos em infra-estrutura que o país demanda ou permitir um maior desembolso em educação, um investimento no futuro, fundamental para ampliar a capacidade de produção da sociedade brasileira7.

Ao invés de sobrecarregar as finanças públicas, como alardeado, a seguridade social, com suas volumosas receitas, socorre o orçamento fiscal, mediante a "poderosa e perversa alquimia" que "transforma os recursos destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário"8. Ademais, oferece, aos governos, justificativa para não-decisões, em particular aquelas concernentes a certas prioridades tidas como inquestionáveis. Razões sólidas, como se vê, para a preservação da seguridade social, mesmo como um conceito oco, na letra da lei.

Nessa chave, percebe-se tanto a pertinência da pergunta de Costa (qual a real institucionalidade das novas regras definidas pela CF de 1988 para a proteção social diante dos fortes argumentos favoráveis ao efeito paralisante do ajuste macroeconômico apresentados pela economia política?) quanto a sutileza de sua resposta. O "mosaico de arranjos institucionais, fontes de financiamento e de clientelas" que caracteriza o sistema brasileiro de proteção tem grande funcionalidade na guerra de posições que a agenda macroeconômica trava, com vantagem, contra a agenda institucionalista. Em poucas palavras, a seguridade - uma espécie de Rainha da Inglaterra -, se mantém em seu lugar (a letra da lei), mas, na ausência de uma institucionalidade real que a ponha em funcionamento, o que tem vigência são os seus pedaços. Consequentemente, a previdência é apenas a previdência (deficitária) e não parte de um sistema de seguridade (superavitário), a assistência não consegue ultrapassar sua condição assistencialista e a saúde, como sempre, carece de recursos para a universalização.

O abandono formal do princípio da integração compromete o princípio da universalidade. Outra mágica, na medida em que este não precisou ser legalmente eliminado. Na prática, a previdência encontra obstáculos à crescente expansão, a assistência não logra ampliação significativa dos benefícios da LOAS e a saúde, vinte anos passados, segue trilhando o caminho da "universalização excludente". Delgado9 mostra que a expansão da cobertura previdenciária no Brasil, nos últimos quinze anos, deveu-se em muito à inclusão dos trabalhadores rurais que se filiaram ao sistema como contribuintes especiais. Alerta, porém, para as proposições, em curso nos debates oficiais, que visam transformar as aposentadorias rurais em benefícios assistenciais. Medidas para incluir os trabalhadores urbanos informais também não têm ido adiante. Não surpreende, por conseguinte, que, como Costa revela, os gastos federais com saúde, educação e saneamento - políticas sociais tradicionais e universais - tenham se reduzido desde 1995 e mais aceleradamente no governo Lula.

Costa atribui o constrangimento dos gastos sociais básicos durante o governo Lula basicamente a três fatores: "ao crescimento dos gastos irredutíveis com a previdência, ao processo de transferência de renda em larga escala mediante o Programa Bolsa Família e à política de austeridade fiscal por meio da elevação do superávit fiscal". A fórmula da "reestruturação bem-sucedida da política social brasileira" reside exatamente nessa associação entre um Judas para espancar (a previdência), um ícone para reverenciar (o Programa Bolsa Família) e um mecanismo para, às custas dos direitos constitucionais, cumprir os acordos com o FMI. Nem alquimia nem mágica. A "inovação" consiste em substituir, no imaginário popular e no bolso do Tesouro, a concepção universalista da seguridade pela idéia de que política social consiste única e exclusivamente em programas focalizados de transferência de renda. Tudo como manda o figurino do Banco Mundial, mas tudo, também, sem dores excessivas nem mudanças radicais.

Qualquer semelhança com o humanitismo de Quincas Borba é mera coincidência. Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas; mas, rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é a condição da sobrevivência de outra, e a destruição não atinge o princípio universal e comum. [...]Ao vencedor, as batatas10.

  • 1. Draibe SM. As políticas sociais e o neoliberalismo. Revista da USP 1993; 17:26-48.
  • 2
    20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania. [site da Internet]. Disponível em: http:/inovando.fgvsp.br
  • 3. Draibe SM. Há tendências e tendências: com que estado de bem-estar social haveremos de conviver? Cadernos de Pesquisa 1999; 10.
  • 4. Schumpeter, Joseph, Capitalismo, Socialismo, Democracia Rio de Janeiro: Zahar; 1984.
  • 5
    ANFIP. Análise da Seguridade Social em 2005, Brasília, Disponível em: www.anfip.org.br
  • 6. Fagnani E, Henrique W, Lucio CG. Previdência Social: como incluir os excluídos? São Paulo: LTr; 2008.
  • 7. Tonelli FV, Martins FJ. Práticas orçamentárias a esvaziar a seguridade social. In: Fagnani E, Henrique W, Lucio CG, organizadores. Previdência Social: como incluir os excluídos? São Paulo: LTr; 2008.
  • 8. Boschetti I, Salvador E. Orçamento da seguridade social e política econômica: perversa alquimia. Serviço Social e Sociedade 2006, 87:25-57.
  • 9. Delgado G. Critérios para uma política de longo prazo para a previdência social. In: Fagnani E, Henrique W, Lucio CG, organizadores. Previdência Social: como incluir os excluídos? São Paulo: LTr; 2008.
  • 10. Assis, M. Quincas Borba Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
ABRASCO - Associação Brasileira de Saúde Coletiva Av. Brasil, 4036 - sala 700 Manguinhos, 21040-361 Rio de Janeiro RJ - Brazil, Tel.: +55 21 3882-9153 / 3882-9151 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cienciasaudecoletiva@fiocruz.br