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O Método 6: ética

RESENHAS BOOK REVIEWS

Cláudio Lorenzo

Departamento de Medicina Preventiva e Social, Universidade Federal da Bahia

Morin E. O Método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2005. 222 p.

O sexto e último volume da obra O Método, intitulado Ética, do eminente filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, parece concluir o ambicioso projeto que esse autor vem construindo nas últimas três décadas, de reformar a maneira com a qual o ser humano estuda e compreende os fenômenos a sua volta. A teoria da complexidade, desenvolvida nos cinco volumes anteriores, se propõe como método crítico e totalizante a uma abordagem sistematizada e compreensiva da realidade humana. A obra de Morin vem contribuindo para alguns dos mais importantes temas de debate na atualidade, entre eles o multiculturalismo e as formas de apreensão do mundo, os limites da ciência, os efeitos sociais da fragmentação do saber e os equívocos dos projetos pedagógicos da modernidade.

O Método 6: ética utiliza uma linguagem mais coloquial que os volumes anteriores e re-explica alguns dos conceitos fundamentais da Teoria da complexidade, o que o torna, entre os livros do Morin, o de mais fácil acesso para os não iniciados. As 222 páginas da tradução brasileira são fiéis ao texto original, apesar de algumas raras imperfeições. Muitas das idéias aqui apresentadas são já bastante conhecidas de seus leitores, como a de que o ser humano construiu seu saber de forma fragmentada; a de que existe uma disjunção entre a capacidade de gerar tecnologias e a capacidade de refletir sobre o bom uso delas; a de que há uma relação a um só tempo agregadora e desagregadora entre saber, dever e poder; e sobre as incertezas implícitas a toda ação humana.

Para a construção de sua teoria ética, Morin parte de um conceito de inspiração kantiana, definindo a ética como exigência moral auto-imposta. Mas, em lugar dos imperativos originarem-se apenas da razão prática como é próprio de Kant, na Ética da complexidade, o imperativo provém de três fontes, uma fonte interna, equivalente à consciência do sujeito; uma fonte externa, representada pela cultura, pelas crenças e pelas normas pré-estabelecidas na comunidade; e de uma fonte anterior própria à organização dos seres vivos e transmitida geneticamente. Para tentar explicar sua fundamentação, o livro encontra-se dividido em cinco partes e uma conclusão geral: 1. O pensamento da ética e a ética do pensamento; 2. Ética, ciência, política; 3. Auto-ética; 4. Sócio-ética; 5. Antropoética; 6. Conclusões éticas 1 e 2.

Este percurso se inicia com a tentativa de fundamentar a subjetividade do sujeito moral tanto no plano mundano, quanto no plano metafísico, apoiando-a na tríade desenvolvida no Método 5: indivíduo-sociedade-espécie. O sujeito é compreendido então como um organismo complexo capaz de pensamento. E que pensa a partir de uma tensão estabelecida entre o princípio de exclusão e o princípio de inclusão. O princípio de exclusão é antagônico à alteridade e é o responsável pela identidade singular de cada sujeito. Este princípio se expressa como egocentrismo, o qual pode vir a se tornar egoísmo, favorecendo a origem de muitos atos eticamente condenáveis. O princípio de inclusão rivaliza com o de exclusão e é ele que faz o indivíduo sentir-se parte de uma coletividade. Ele transforma o eu em nós e pode se expressar na forma de altruísmo, favorecendo atos eticamente desejáveis. O sujeito moral vive, então, oscilando entre o caráter vital do egocentrismo e o potencial existente em cada sujeito para a prática do altruísmo.

De certa forma, Morin retoma as bases metafísicas da moral, afirmando que o ato ético é um ato de ordem superior à realidade objetiva. Uma cosmologia se estende como pano de fundo de sua teoria ética. Uma cosmologia cientificista, é certo, mas que parece conferir um caráter místico às forças do universo. Expansão e contração dos espaços cósmicos, explosões atômicas nas estrelas, colisões de partículas nucleares, resfriamento de corpos, interações eletromagnéticas, são tomadas aqui como forças de dispersão e destruição ou de regeneração e religação. Estas forças são constitutivas de tudo o que existe e estariam presentes também no espírito humano. O ato moral é, neste sentido, um ato de religação do indivíduo com a sociedade e com a espécie humana, um ato capaz de provocar regeneração nas relações humanas. O dever moral parece, portanto, emanar de uma realidade transcendente, de aspecto semelhante ao religioso.

Tendo em mãos a consciência dessas interações entre o transcendental e o mundano, entre o os elos que ligam o sujeito, a sociedade e a espécie, Morin faz um convite a trabalhar para "pensar bem". O bom pensamento é o pensamento que toma a condição humana em sua complexidade e nutre, dessa forma, a capacidade de julgamento ético do sujeito. Seu princípio de religação orienta os sujeitos na direção da solidariedade. O reconhecimento das incertezas futuras quanto às conseqüências do ato ético, a ecologia da ação convida ao desenvolvimento da virtude da prudência e à utilização do princípio da precaução na análise das circunstâncias e contextos. Estas últimas considerações se estendem às discussões sobre as relações entre ciência, ética e política na segunda parte do livro, onde aparece com mais veemência a crítica de Morin ao marxismo e à sua versão stalinista na antiga União Soviética.

O desenvolvimento da idéia de auto-ética inicia-se situando o ser humano na pré-história do espírito. Aparece aqui uma outra idéia de ascendência religiosa, aquela de natureza humana. Existe uma barbárie interior que é própria ao espírito humano e que exige um esforço para ser vencida. Daí a necessidade de investigar a si próprio, suas motivações, seus valores, suas fraquezas, desenvolver enfim uma cultura psíquica. Morin chama especialmente atenção para a necessidade de autoconhecimento, o que pode evitar as estratégias que tem o espírito para justificar nossos atos moralmente questionáveis, como as auto-ilusões, as mentiras para si mesmo, os esforços de autojustificação. Ele convida então a compreender a incompreensão, investigando as razões subjetivas e socioculturais que a provocam e a estudar as possibilidades de compreensão, no sentido de abordar de forma complexa os conflitos. É esse procedimento que torna possível o perdão, uma força redentora e regeneradora na direção do outro. A sócio-ética é feita dessa relação entre o indivíduo uno e o outro múltiplo. Ela precede e transcende a auto-ética, posto que o indivíduo já nasce em uma comunidade repleta de outros sujeitos e inserida em uma cultura e em um contexto.

A antropoética, última parte do livro, se propõe como Ética do universal concreto. Ela é conduzida pela decisão individual e, portanto, mediada pela auto-ética, e tem nada mais, nada menos que a pretensão de se tornar um novo "modo ético de assumir o destino humano" (p. 159), compreendendo-o em suas antinomias e plenitudes. Morin chega a fornecer a fórmula das transformações necessárias sob a forma de "nove mandamentos". Assim, ele busca "civilizar em profundidade", vencer a "barbárie do espírito humano".

Finalmente, as Conclusões Éticas são dicotomizadas em conclusão do mal e conclusão do bem, onde Morin reafirma as formas como o sujeito pode deixar-se habitar pelas forças dispersantes, desagregadoras e destruidoras que geram a incompreensão e como pode elevar em si as força de religação e regeneração. O pensamento complexo representaria a via pela qual se atingiria esse propósito.

Da mesma forma que outras partes do Método, a ética da complexidade sofre de certa inconsistência epistemológica. A principal delas diz respeito à pouca atenção que Morin confere à distinção existente entre o fenômeno real, ou seja, o objeto complexo propriamente dito e o fenômeno de apreensão do real utilizado pela consciência, que é inevitavelmente simplificador, posto que limitado pela própria capacidade do sujeito. Assim, abre-se um espaço vazio entre as afirmações advindas de sua análise e a justificativa das mesmas. Esse vazio é melhor percebido, sobretudo, nos momentos em que ética e política estão sendo analisadas conjuntamente, como, por exemplo, na afirmação encontrada na página 116: "Os atos terroristas são praticados por indivíduos alucinados, presos nas ilusões de uma ideologia de guerra em tempos de paz", o que parece, paradoxalmente, bastante simplista enquanto explicação de um fenômeno sociopolítico tão complexo quanto o terrorismo.

Existe então, a nosso ver, uma incompletude sistêmica entre o objetivo da ética da complexidade e as formas práticas propostas para atingi-lo. Que discurso ético se oporia ao reconhecimento da diversidade humana individual, cultural e lingüística? Que discurso ético discordaria de que as relações humanas são devastadas pela incompreensão e de que é necessário compreender as diferenças? A perspectiva, no entanto, de transformar a ética a partir de uma reforma do espírito humano aproxima-se daquela das religiões e parece ignorar, ainda que afirme o contrário, os processos políticos, sociais e culturais envolvidos, bem como a influência da racionalidade econômico-instrumental sobre as formas cotidianas de vida e sobre formação dos espíritos no ocidente. Além disso, sua fundamentação metafísica ao transferir para o espírito humano os processos desagregadores e agregadores da matéria dispersa no universo, o faz sem demonstrar como esses princípios descem dos astros e ocupam os espíritos. Por mais poética e simpática que pareça a proposta, parece haver aqui, um recurso às verdades de fé.

A ética de Morin permanece, portanto, ligada a uma filosofia do espírito. A dialógica defendida no livro se dá entre valores, impulsos e posturas que ocorrem na consciência de um só e mesmo indivíduo, antes que entre sujeitos portadores de diferentes visões de mundo. Ora, considerando que a própria teoria da complexidade reconhece que o indivíduo é formado por uma sócio-ética, anterior a ele e ligada à cultura, a reflexão centrada no indivíduo não teria a mínima garantia de validação por outros indivíduos e, portanto, não teria como escapar ao conflito e ao risco de etnocentrismo. O próprio livro é recheado de passagens e citações onde a análise da consciência humana é feita a partir de uma visão estritamente européia, como aquelas presentes na psicanálise ou na literatura francesa do século XIX.

A maior contribuição que a filosofia contemporânea pôde dar à ética moderna foi o seu foco na linguagem. O entendimento de que a linguagem é o único elemento comum ao humano e a partir do qual ele adquire e transmite sua identidade e sua visão de mundo aponta para a resolução ética dos conflitos a partir da abertura de espaços livres de diálogo e não de uma aposta na tomada de consciência do ser humano, algo que as religiões e a própria filosofia do espírito vêm fazendo, sem sucesso, há séculos ou milênios. Neste espaço dialógico estabelecido entre sujeitos distintos, os valores que guiariam a conduta seriam construídos pela troca de atos de linguagem, por argumentos que conseguissem o reconhecimento de validade por todos os implicados. Desta forma, o próprio Morin teria que submeter, por exemplo, sua cosmologia, sua visão do terrorismo, sua comparação do nazismo ao comunismo e sua proposta de "bem viver" a uma validação verdadeiramente dialógica.

Independentemente da importância da obra de Edgar Morin, e de seu lugar de destaque entre a intelligentsia francesa, o Método 6 não representa um dos seus melhores momentos como autor e não traz contribuições especialmente significativas para a ética fundamental ou aplicada. O projeto ético parece, na prática, muito distante de suas ambiciosas pretensões teóricas em definir um "novo modo ético para o destino humano".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Fev 2008
  • Data do Fascículo
    Abr 2008
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