Open-access Globalização, pobreza e saúde

Globalization, poverty and health

Resumos

O presente artigo analisa as relações entre globalização, pobreza e saúde. Conceitua e apresenta as principais características da globalização contemporânea. Também conceitua e apresenta as características da pobreza nos dias de hoje, nos planos mundial e regional. Revisando artigos e relatórios de amplitude mundial, apresenta um conjunto de evidências sobre as relações entre globalização e pobreza e suas influências sobre o campo da saúde. Apresenta, ainda, as oportunidades trazidas pela globalização, através de uma série de iniciativas globais resultantes da ação entre países, no âmbito das Nações Unidas como um todo e na OMS, em particular, assim como de alianças e coalizões intergovernamentais e com outros atores da sociedade civil.

Globalização; Pobreza; Saúde; Saúde global; Saúde internacional


This paper analyses the relationship between globalization, poverty and health, defining and presenting the main characteristics of contemporary globalization. It also establishes the characteristics of poverty today, both globally and regionally. Reviewing articles and world reports, it presents a set of evidence on the relationships between globalization and poverty, as well as their influence on health. Furthermore, it presents the opportunities offered by globalization, through a series of worldwide initiatives prompted by actions among countries under the aegis of the United Nations in general and the WHO in particular, in addition to intergovernmental alliances and coalitions and other civil society representatives.

Globalization; Poverty; Health; Global health; International health


REVISÃO REVIEW

Globalização, pobreza e saúde*

Globalization, poverty and health

Paulo Marchiori Buss

Fundação Oswaldo Cruz, Presidência. Av. Brasil 4365, Manguinhos. 21041–900 Rio de Janeiro RJ. buss@fiocruz.br

RESUMO

O presente artigo analisa as relações entre globalização, pobreza e saúde. Conceitua e apresenta as principais características da globalização contemporânea. Também conceitua e apresenta as características da pobreza nos dias de hoje, nos planos mundial e regional. Revisando artigos e relatórios de amplitude mundial, apresenta um conjunto de evidências sobre as relações entre globalização e pobreza e suas influências sobre o campo da saúde. Apresenta, ainda, as oportunidades trazidas pela globalização, através de uma série de iniciativas globais resultantes da ação entre países, no âmbito das Nações Unidas como um todo e na OMS, em particular, assim como de alianças e coalizões intergovernamentais e com outros atores da sociedade civil.

Palavras–chave: Globalização, Pobreza, Saúde, Saúde global, Saúde internacional

ABSTRACT

This paper analyses the relationship between globalization, poverty and health, defining and presenting the main characteristics of contemporary globalization. It also establishes the characteristics of poverty today, both globally and regionally. Reviewing articles and world reports, it presents a set of evidence on the relationships between globalization and poverty, as well as their influence on health. Furthermore, it presents the opportunities offered by globalization, through a series of worldwide initiatives prompted by actions among countries under the aegis of the United Nations in general and the WHO in particular, in addition to intergovernmental alliances and coalitions and other civil society representatives.

Key words: Globalization, Poverty, Health, Global health, International health

Introdução

A saúde pública, como campo de conhecimento e de prática social, tem sido confrontada, ao longo de sua já longa história, com enormes desafios. O final do século XX e este início de milênio nos recolocam dois desafiadores processos: a globalização e a pobreza. Estes dois fenômenos influenciam poderosamente o cotidiano da saúde dos povos, compromisso primeiro e maior da saúde pública e dos sanitaristas, cabendo por isto procurar melhor entendê–los para adequadamente enfrentá–los.

Globalização

A rigor, a "economia global", no conceito de "planetária", existe desde finais do século XVI, época dos grandes descobrimentos e das viagens de exploração dos europeus à África, Ásia e Américas. A expansão colonialista da Europa teve repercussões econômicas e sociais importantes, positivas e negativas, sobre os novos territórios alcançados, bem como sobre a própria sociedade européia.

Para a maioria dos autores, a globalização é um processo econômico, social e cultural que se estabeleceu nas duas ou três últimas décadas do século XX, cujas principais características incluem, em escala nunca antes alcançada:

• crescimento do comércio internacional de bens, produtos e serviços;

• transnacionalização de mega–empresas;

• livre circulação de capitais;

• privatização da economia e minimização do papel dos governos e dos Estados–nação;

• queda de barreiras comerciais protecionistas e regulação do comércio internacional, segundo as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC);

• facilidade de trânsito de pessoas e bens entre os diversos países do mundo; e

• expansão das possibilidades de comunicação, pelo surgimento da chamada sociedade da informação e da grande facilidade de contato entre as pessoas devido ao aparecimento de diversos instrumentos e ferramentas, entre as quais a internet.

Inúmeros autores e organizações das Nações Unidas têm sido críticos deste processo. O 'breve século XX', denominação cunhada pelo historiador Eric Hobsbawm1 para descrever o século recém–findo, trouxe, segundo o admirável autor, uma extraordinária "revolução nos transportes e nas comunicações, que praticamente anulou o tempo e a distância". Esta imensa aproximação entre culturas e economias tão desiguais faz com que "o globo seja agora a unidade operacional básica, e unidades mais velhas como as 'economias nacionais', definidas pelas políticas de Estados territoriais fiquem reduzidas [apenas] a 'dificuldades' para as atividades transnacionais".

A Comissão Mundial sobre as Dimensões Sociais da Globalização, instituída pela Organização Internacional do Trabalho2, insiste em que o processo de globalização atual está produzindo resultados desiguais entre os países e no interior dos mesmos. Está criando riquezas, mas são demasiados os países e as pessoas que não participam dos benefícios [...]. Muitos deles vivem no limbo da economia informal, sem direitos reconhecidos e em países pobres, que subsistem de forma precária e a margem da economia global. Mesmo nos países com bons resultados econômicos muitos trabalhadores e comunidades têm sido prejudicados pelo processo de globalização.

A Comissão alerta que "tais desigualdades globais são inaceitáveis do ponto de vista moral e insustentáveis do ponto de vista político". E insiste na "falta de eqüidade nas regras globais em matéria de comércio e finanças e nas repercussões desiguais que tem sobre os países ricos e pobres", assim como na "incapacidade das políticas internacionais atuais para dar resposta aos desafios impostos pela globalização".

O que se tem observado é que as medidas de abertura dos mercados e as considerações de ordem financeira e econômica prevalecem sobre as considerações sociais. A assistência oficial para o desenvolvimento (AOD) não alcança sequer a quantia mínima necessária para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e fazer frente aos crescentes problemas globais. Tampouco resulta eficaz o sistema multilateral encarregado de conceber e aplicar políticas internacionais. Sofre, em geral, de falta de coerência política e não é suficientemente democrático, transparente e responsável.

Tais regras e políticas são conseqüência de um sistema de governança global configurado em grande medida por países e atores poderosos. Há um grave déficit democrático nos próprios fundamentos do sistema. A maioria dos países em desenvolvimento segue tendo pouca influência nas negociações globais sobras as regras e na determinação das políticas das instituições financeiras e econômicas chaves2, como demonstrou recentemente, por exemplo, o fracasso da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio.

Segundo Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia em 2001, os vitoriosos da globalização foram os países desenvolvidos, cuja poupança interna e preparo tecnológico, associados a um protecionismo feroz que, inclusive, contraria a regra de ouro da abertura comercial [por eles mesmo preconizadas, mas apenas para os outros], fizeram deles privilegiados destinatários da riqueza produzida no mundo.

Mais recentemente, até mesmo o Banco Mundial, através do seu Relatório Mundial sobre Desenvolvimento 20063, rendeu–se às evidências de que as forças de mercado e o livre comércio decididamente não resolverão a pobreza no mundo ou sequer a minimizarão em níveis toleráveis. O Relatório afirma que "apenas a eqüidade é capaz de aumentar a capacidade de reduzir a pobreza".

As dívidas externa e interna, o protecionismo à indústria e à agricultura por parte dos países mais ricos e as barreiras comerciais aos produtos primários e manufaturados da cesta de exportação dos países em desenvolvimento estão na raiz de uma imensa crise fiscal que os países pobres enfrentam e na dívida social crescente que têm com suas populações. Quase toda a arrecadação fiscal destes países e os sucessivos empréstimos internacionais, alcançáveis apenas por acordos sob severas condições com o FMI, servem quase que exclusivamente para a rolagem de imensas dívidas externas contraídas no passado, em condições adversas, muitas vezes sob governos não–democráticos e corruptos, dívidas estas hoje submetidas a juros elevadíssimos, impostos unilateralmente pelo capital financeiro internacional. Em conseqüência, os programas de combate à pobreza e outros programas sociais de muitos dos países em desenvolvimento acabam desfinanciados e ineficazes4.

Um dos elementos mais nocivos do processo de globalização são os brutais ataques do capital especulativo internacional às economias nacionais mais frágeis de países pobres e de renda média. A ação do chamado hot money tem comprometido nefastamente os orçamentos sociais dos países pobres, inclusive o da saúde. A circulação diária do capital especulativo não produtivo no mundo é de cerca de 1,8 trilhão de dólares 5. Estes capitais, sem pátria e sem responsabilidades com as pessoas e os países, devem ser controlados por mecanismos nacionais e internacionais, como forma de reparar sua nocividade global e local. Em seu último livro, recém–lançado, até mesmo o economista John Williamson6, que cunhou a expressão Consenso de Washington para denominar o conjunto de recomendações de reformas econômicas para a América Latina e que estabeleceram as bases conceituais do processo de globalização como o entendemos hoje, reconhece agora o imperativo de controlar o fluxo de capitais nos chamados mercados emergentes.

A divisão internacional da produção e do trabalho que se delineou com a globalização trouxe, além dos maus resultados econômicos já apontados, também impactos sociais, ambientais e sanitários importantes. No campo do trabalho, verifica–se a exportação do desemprego dos países desenvolvidos para os países em desenvolvimento, devido às tais políticas protecionistas e de subsídios agrícolas dos países mais ricos. As atividades econômicas que trazem maiores riscos ambientais e para os trabalhadores ou resultam em resíduos perigosos, as chamadas 'indústrias sujas', são também exportadas para países mais pobres, cuja legislação de proteção ao ambiente e ao trabalhador é mais tolerante.

De outro lado, o padrão insustentável de urbanização, industrialização, consumo de energia e geração de resíduos dos países mais desenvolvidos, ricos e industrializados tem ação nefasta sobre o ambiente em geral, incluindo o clima, com o aquecimento global progressivo, como enfaticamente demonstrou o assustador 4º Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)7 de 2007. O resultado são prejuízos na produção de alimentos, desertificação, poluição do ar, solo, rios, águas interiores e oceanos, a perda de bosques e florestas e o prejuízo irrecuperável contra a biodiversidade.

Recentemente, especialistas da Universidade das Nações Unidas alertaram que dentro de cinco anos o mundo vai ter pelo menos 50 milhões do que denominaram "refugiados ambientais"8; ou seja, pessoas que abandonaram suas casas e/ou suas terras por causas como furacões, maremotos, terremotos, secas prolongadas, desflorestamento, desertificação e outras formas de desastres naturais. Muitos deles serão "refugiados em seus próprios países". A maioria destes fenômenos é atribuível às atividades econômicas sem controle sobre o ambiente. As pessoas que não morrem nestes desastres apresentam logo á seguir saúde mais frágil e condições sociais e ambientais que favorecem a ocorrência de doenças. Os "novos refugiados" constituem um dos novos problemas de saúde pública, cuja responsabilidade é dos governos nacionais e locais e, em escala global, do sistema das Nações Unidas. Estão os sistemas de saúde preparados para organizar e prestar a atenção sanitária devida aos mesmos?

Contudo, as responsabilidades por esses péssimos resultados sociais e econômicos da globalização devem ser imputados não apenas aos países desenvolvidos e às empresas e organizações financeiras internacionais, mas também às elites políticas e econômicas nacionais e a governos de muitos países subdesenvolvidos com reduzido compromisso social e, freqüentemente, corruptos.

A baixa qualidade da política e da governance de muitos governos de países em desenvolvimento é causa de desperdício de recursos e de ineficácia e ineficiência das iniciativas de proteção ao ambiente e de promoção, prevenção e assistência à saúde, quando elas existem. No geral, as ações dos programas socioambientais e sanitários destes países são verticais e desarticuladas, freqüentemente sangrados pela corrupção.

De outro lado, embora necessárias, a ajuda externa e a facilitação para exportações dos países pobres (visando aumentar os saldos comerciais) são insuficientes para alavancar seu desenvolvimento. Isto porque os ganhos do comércio exterior não se distribuem eqüitativamente entre as populações mais pobres destes países, continuando absolutamente concentrados em mãos de muito poucos, em geral grandes empresas nacionais ou transnacionais exportadoras.

Estas considerações convergem para impactos variáveis em indivíduos e grupos populacionais que são excluídos dos benefícios da globalização e vulneráveis aos seus custos, ao mesmo tempo em que enfrentam sérias limitações quanto aos benefícios de políticas públicas no campo da saúde.

Globalização e pobreza

A pobreza é um conceito multidimensional e uma situação real de vida. Antes, o conceito se restringia exclusivamente à renda auferida pelo indivíduo: pobres são todos aqueles que vivem com menos de 1 dólar por dia, ajustado pelo poder aquisitivo do país ou região. Apesar de a riqueza mundial — estimada atualmente em 24 trilhões de dólares anuais — continuar aumentando, cerca de 1,2 bilhões de pessoas em todo o mundo vivem com menos de 1 dólar por dia, numa situação classificada como de 'extrema pobreza', enquanto nada menos que metade dos habitantes do mundo vivem com menos de dois dólares por dia9. Na África Subsaariana, quase a metade dos habitantes vivem com menos de 1 dólar por dia, enquanto na Ásia meridional cerca de 37% da população (448 milhões) têm as mesmas condições de pobreza. Na América Latina e Caribe, 222 milhões são pobres, dos quais 96 milhões vivem na indigência, ou 18,6% da população10.

Depois dos trabalhos críticos de Amartya Sen, Prêmio Nobel da Economia de 1998, entretanto, ficou claro que não se pode estabelecer uma linha de pobreza e aplicá–la a todos da mesma forma, sem tomar em conta as características e circunstâncias pessoais. Sen11 assinalou que a análise da pobreza também deve concentrar–se na capacidade da pessoa para aproveitar oportunidades, assim como de fatores como saúde, nutrição e educação, que refletem a capacidade básica para funcionar na sociedade. São em constatações como estas que reside o potencial de ação da promoção da saúde entre os pobres e as estratégias de empowerment individual e coletivo.

De outro lado, é preciso assinalar que são exatamente os pobres que vivem em piores condições sociais, ambientais e sanitárias, assim como têm maior dificuldade no acesso aos serviços públicos em geral e de saúde em particular. De fato, inúmeros estudos, em diversas partes do mundo, mostram que os que têm pior renda são exatamente aqueles que, embora certamente mais necessitados, têm também pior acesso a políticas públicas, habitações adequadas, água potável, saneamento, alimentos, educação, transporte, lazer, emprego fixo e sem riscos, assim como aos serviços de saúde. São as chamadas iniqüidades sociais e de saúde.

Pobreza e saúde

As iniqüidades em saúde existem entre países e regiões do mundo e entre ricos e pobres no interior dos países. A Tabela 1, por exemplo, mostra os grandes diferenciais de saúde que se verificam entre grupos de países reunidos por nível de desenvolvimento, com evidentes prejuízos nos indicadores selecionados para os países mais pobres e menos desenvolvidos.

A diferença na esperança de vida ao nascer alcança 27 anos entre os países mais ricos e mais pobres; a mortalidade infantil é de 100 por mil nascidos vivos nos menos desenvolvidos e de apenas 6 por mil nos países de alta renda; e a diferença na mortalidade de menores de 5 anos é ainda maior: 159 por mil nascidos vivos nos países menos desenvolvidos e 6 por mil nos de renda alta.

As desigualdades em saúde entre pessoas pobres e ricas, no interior de países pobres, também são acentuadas. Tais desigualdades ocorrem tanto nos níveis de saúde e nutrição (morbidade, descapacidades e mortalidade), como também no acesso aos serviços sociais e de saúde.

Estudando indicadores de saúde selecionados, nos países mais pobres do mundo (Gwatikin et al apud Carr)12, mostraram (Gráfico 1) que a mortalidade de crianças menores de 5 anos era 2.2 vezes mais alta no quintil mais pobre do que no quintil mais rico da população; a desnutrição em mulheres era 1,9 vezes mais elevada; e a proporção de crianças com atraso no crescimento era 3,2 vezes mais alta.


No Brasil, meu país, como em muitas partes do mundo, estudos13 revelam que a mortalidade infantil está relacionada com a renda das famílias, o nível de educação da mãe, as condições do domicílio, o local em que vive e a situação social da família da criança (Gráfico 2).


Assim, entre os negros (a cor é um proxi da situação social no Brasil), a mortalidade infantil média é de 34 óbitos por 1.000 nascidos vivos, contra 23 na população branca; entre os pobres é 35, entre os ricos, 16; entre as mães com menos de três anos de estudo é 40, contra 17 nas mães com oito anos ou mais; na população rural é 35, contra 27 na população urbana; e num estado pobre do Nordeste é 63 por mil, contra 16 por mil num estado mais rico do Sul13.

Os diferenciais entre ricos e pobres ocorrem também no uso dos serviços de saúde (Gráfico 3). Em cerca de cinqüenta países pobres estudados13, entre 1992 e 2002, o uso da terapia de re–hidratação oral é 1,3 vezes maior entre ricos que entre pobres; as vacinas infantis, 2,3 vezes; a freqüência a três ou mais consultas de pré–natal é 3,1 vezes maior no quintil mais rico; o uso de métodos anticoncepcionais modernos é 4,4 vezes maior e a assistência capacitada durante o parto é 4,8 vezes maior entre os mais ricos.


São também muito expressivas as diferenças de gastos per capita em saúde entre países ricos e pobres, como se apresenta no Quadro 1. Os países menos desenvolvidos gastam em média 11 dólares per capita por ano, contra 241 dólares em países de renda média alta e ao redor de 2.000 dólares em países de renda alta14.


Em conclusão, estes dados nos mostram que a globalização tem empobrecido países e ampliado a pobreza, a exclusão e as iniqüidades econômicas e sociais. Estas, por sua vez, repercutem pesadamente sobre a saúde de indivíduos e da população como um todo.

Globalização e doença

Uma destacada faceta das conseqüências da globalização sobre a saúde é a possibilidade da transnacionalização das doenças transmissíveis, particularmente as novas e as reemergentes. Com as facilidades das viagens internacionais e a difusão do comércio em escala planetária, uma série de microorganismos podem ser rapidamente transportados, através de pessoas, animais, insetos e alimentos, de um país a outro e de um ponto a outro do globo. Exemplos recentes são as difusões da SARS, do vírus da dengue e da gripe aviária. A transmissão interpessoal das febres hemorrágicas virais, como os casos recentes das febres Marburg e Ébola, na África, apresentam grande potencial epidêmico, facilitado pelos rápidos deslocamentos em viagens aéreas internacionais, o que aponta para a necessidade e a importância do reforço das redes globais de diagnóstico e vigilância em saúde, operadas pela OMS e parceiros ao redor do mundo.

Um caso já clássico é a difusão do vírus da AIDS, que surgiu possivelmente em região remota da África e nos últimos vinte anos se espalhou por todo o mundo. Até mesmo aves migratórias podem ser responsabilizadas pela difusão global de doenças infecciosas, como é o caso da gripe aviária e do vírus da febre do Oeste do Nilo. Infecções como Salmoneloses e E. coli têm sido freqüentemente relacionadas com contaminação de alimentos frescos ou industrializados que circulam entre países.

Entre as chamadas 'antigas' doenças, que aparecem em uma região e se espalham pelo mundo, temos os casos do recente surto de poliomielite em cerca de quinze países da África e Oriente Médio, por falhas nas coberturas vacinais; a epidemia de cólera que, nos últimos quarenta anos, afetou mais de 75 países e que causou, nos últimos dois anos, só em Angola, cerca de cinqüenta mil casos e dois mil óbitos; a febre amarela em países africanos; e novas formas de velhas doenças, caso da tuberculose resistente a múltiplas drogas. Agregue–se a tudo isto a crescente resistência antimicrobiana de muitas outras espécies, o que facilita sua disseminação global.

Outro fenômeno ligado à globalização é o turismo sexual e suas conseqüências. Muitos países do mundo subdesenvolvido dependem economicamente do turismo internacional; entretanto, a indústria do turismo globalizado é inseparável do comércio sexual de crianças, adolescentes e adultos de ambos os sexos. Muitos destinos no mundo são hoje procurados pelas oportunidades do turismo sexual, entre eles, o Brasil, países do Caribe e da Ásia e muitos países africanos. A globalização do comércio sexual implica na disseminação de doenças sexualmente transmissíveis e os danos mentais e afetivos resultantes do abuso sexual contra crianças, adolescentes e, mesmo, pessoas adultas.

A ampliação das guerras e conflitos decorrentes de disputas econômicas e territoriais entre países, assim como entre grupos e etnias no interior de Estados nacionais, é outra questão relacionada com o processo de globalização. Este fenômeno tem produzido milhares de mortes, ferimentos e incapacidades físicas, emocionais e mentais pós–conflitos, principalmente entre os jovens, que são suas principais vítimas. Mutilações decorrentes de ferimentos, minas terrestres ou por ação deliberada sobre prisioneiros, exploração e violações de mulheres por vingança e genocídio de crianças e velhos estão entre os muitos crimes de guerra em anos recentes. O terrorismo de Estado e de grupos já se situa entre as primeiras causas desta tétrica estatística.

Conseqüência substantiva das guerras e conflitos tem sido o desmantelamento da infra–estrutura, com destruição de serviços de saúde e saneamento, assim como do ambiente, afetando de forma indireta, mas contundente, a saúde de populações inteiras. Verifica–se, ainda, que os orçamentos públicos são desviados de programas sociais, como educação e saúde, para o financiamento do aparato bélico, privando a população destes recursos essenciais e piorando ainda mais as condições de saúde.

O século XX foi um dos períodos mais violentos da história da humanidade: cerca de 191 milhões de pessoas perderam a vida em conseqüência direta ou indireta de conflitos, dos quais mais da metade eram civis15. Os últimos anos do século XX e os primeiros anos do século XXI indicam, lamentavelmente, uma tendência ao crescimento destes eventos nefastos.

A violência globalizada tem gerado a migração forçosa de milhares de pessoas que fogem das regiões de conflitos ou transformam–se em refugiados políticos. Inúmeros estudos mostram que os grupos humanos deslocados pela força de seus redutos originais apresentam piores condições de saúde física e mental quando comparados à sua situação original ou com a nova vizinhança16.

A globalização do tráfico de drogas ilícitas, como cocaína, heroína, marijuana e drogas químicas sintéticas, expandiu imensamente seu uso em quase todas as sociedades, com conseqüências nefastas bem conhecidas sobre a saúde dos seus usuários. Ao tráfico internacional de drogas associa–se o tráfico de armas. Esta combinação é explosiva, com conseqüências impressionantes, como mostra o Informe Mundial sobre Violência e Saúde15.

O que falar, então, das 'drogas legalizadas', como o álcool e o tabaco? Ainda hoje 'glamorizadas' pela propaganda enganosa, o uso disseminado de álcool e tabaco, em crescimento particularmente entre os jovens, constitui–se num dos principais problemas de saúde pública contemporânea. Embora o tabaco tenha recebido, corretamente, o tratamento de 'inimigo número 1 da saúde pública mundial' — tendo sido objeto, inclusive, de um tratado internacional para o seu combate — em muitas sociedades tem sido desanimador ver a expansão de seu uso e a globalização e concentração de sua poderosa indústria.

O álcool tem sido tratado de forma mais tolerante, inclusive no âmbito da OMS, não obstante as nítidas evidências sobre seu vínculos com muitas doenças crônicas e degenerativas, com os acidentes de trânsito e com a violência interpessoal. O conluio entre a indústria globalizada — um dos maiores anunciantes — e a mídia interessada em vender seus espaços mantém ainda em destaque a propaganda enganosa do álcool, em conteúdos indesejáveis para audiências absolutamente vulneráveis.

Um paradoxo da globalização contemporânea é que, numa fase da história da humanidade em que as tecnologias agrícolas disponíveis poderiam propiciar farta produção de alimentos, o fenômeno da fome esteja tão disseminado no mundo e açoite partes do planeta na forma de verdadeiro genocídio. A FAO17 alerta que a fome e a desnutrição crônicas acometem hoje no mundo nada menos de 852 milhões de pessoas, matam mais de cinco milhões de crianças a cada ano e custam bilhões de dólares na forma de perda de produtividade e renda nacionais. Esta trágica estatística completa–se com a informação de que nascem anualmente cerca de vinte milhões de bebês com baixo peso, conceptos estes resultantes, em grande maioria, de mães também desnutridas.

Na África Subsaariana, hoje a região do mundo mais afetada pela pobreza e suas conseqüências, a FAO17 estima que nada menos do que 33% da população são considerados subnutridos, proporção que, na África Central, alcança nada menos do que 55%, enquanto no sul e no leste do continente chega a cerca de 40%. Além da ajuda externa urgente para as brutais situações emergenciais (como, pelo menos as do Níger e Malawi, quando escrevo este artigo), os especialistas concordam que o enfrentamento do problema só pode feito na forma de cooperação técnica e financeira, assim como investimentos em água, sustentabilidade de ecossistemas e melhoria da capacidade das pessoas.

Outra dimensão importante da globalização sobre a saúde são as reformas setoriais orientadas ao mercado, preconizadas por organizações internacionais18. Elas resultaram em mais iniqüidades em saúde. Não há espaço para a saúde pública ou para a promoção da saúde nestas reformas. Seu tema exclusivo é a atenção médica aos indivíduos e os esquemas de financiamento. O mesmo se pode dizer dos modelos importados de formação de recursos humanos, pouco ajustados aos padrões culturais ou aos sistemas nacionais de saúde. Por isto é imperativo que defendamos a substituição destas propostas de reformas por outras que busquem implementar sistemas públicos eqüitativos e solidários de saúde, nos quais seja de fato tomada em conta a saúde da população e não os negócios com a doença.

Os sistemas de saúde dos países em desenvolvimento são submetidos à forte pressão do comércio internacional de insumos para a saúde (medicamentos, kits e reativos para diagnóstico, equipamentos e outros insumos). O alto preço dos medicamentos, em grande parte decorrentes de um sistema de proteção patentária que enxerga apenas os interesses das grandes empresas privadas, é um impedimento importante ao acesso dos países pobres e das populações mais pobres dos países de renda média a medicamentos e insumos essenciais para a saúde. Enquanto os interesses do comércio e do lucro sobrepujarem os interesses da saúde dos mais pobres e a 'governança global' e os Estados nacionais não encontrarem soluções para a questão do acesso a tais insumos, posso afirmar que vivemos em tempos de barbárie global.

Oportunidades da globalização

Contudo, podem–se também identificar sinais positivos quanto à globalização. Se nos reportarmos à última metade do século XX, por exemplo, logo após a traumática experiência da II Guerra Mundial, a criação do sistema das Nações Unidas, incluindo a Organização Mundial da Saúde, representava um passo à frente muito importante para o diálogo internacional e a convivência pacífica das nações, assim como para a cooperação a favor do progresso de todos os países e pessoas no mundo. Apesar de que hoje existe uma grande decepção e mesmo desconfiança com as Nações Unidas, razão pela qual, diversos Estados–membros, assim como organizações e pessoas têm exigido uma ampla reforma do sistema.

Na década de 90, estabeleceu–se uma orientação no interior do sistema das Nações Unidas para a realização de um conjunto de grandes conferências temáticas, lideradas pelas respectivas organizações setoriais, "procurando preparar o mundo para o século XXI". As grandes conferências realizadas estão relacionadas a seguir.

Conferências das Nações Unidas na década de 90

• 1990 — Cúpula Mundial das Nações Unidas sobre a Criança (Nova York)

• 1992 — Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92)

• 1993 — Conferência das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos (Viena)

• 1994 — Conferência das Nações Unidas sobre Populações e Desenvolvimento (Cairo)

• 1995 — Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher (Pequim)

• 1995 — Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Social (Copenhague)

• 1996 — Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat II) (Istambul)

• 1996 — Cúpula Mundial das Nações Unidas sobre Alimentação (Roma)

• 2000 — Cúpula do Milênio: Declaração e Objetivos do Milênio (Nova York)

• 2002 — Conferência Internacional sobre Financiamento do Desenvolvimento (Monterey)

• 2003 — Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Johanesburgo)

• 2005 – Cúpula Mundial sobre Objetivos do Milênio (Nova York)

Tais conferências geraram informes importantes, com recomendações expressivas, que, se tomadas em conta e efetivamente implementadas pelos países e pela própria Nações Unidas, poderiam já ter trazido expressivo progresso político, social, econômico, cultural e ambiental para o mundo como um todo. O grande problema é que elas expressam interesses políticos contraditórios de países e outros atores relevantes na cena internacional e têm, freqüentemente, ficado no papel, não passando de retórica internacionalista.

No ano 2000, culminando a série de conferências da década anterior, as Nações Unidas organizaram a Cúpula do Milênio, na qual todos os Estados–membros firmaram um novo compromisso mundial para o desenvolvimento, com uma pretendida visão integral, a partir dos acordos derivados das conferências globais. A expressão política da Cúpula ficou estabelecida na Declaração do Milênio19.

Lembro–lhes os oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que são apresentados abaixo:

• Erradicar a pobreza extrema e a fome

• Garantir a universalização da educação primária

• Igualdade entre gêneros e autonomia da mulher

• Reduzir a mortalidade infantil

• Melhorar a saúde materna

• Combater o HIV/AIDS, a malária e outras doenças

• Garantir a sustentabilidade ambiental

• Fomentar uma associação mundial para o desenvolvimento

Como sabemos, eles foram desglosados em dezoito metas e 48 indicadores. A saúde está diretamente envolvida em pelo menos dezoito destes indicadores, que devem ser melhorados com relação aos valores que apresentavam em 199019.

Contudo, as conclusões da recente avaliação20 sobre os ODMs, feita pela OMS em 2005, devem servir–nos para profunda reflexão e ação:

• Mantida a situação observada nos últimos cinco anos, a maioria dos países mais pobres do mundo não alcançará sequer as modestas metas estabelecidas, de redução das mortalidades infantil e de menores de cinco anos; tampouco serão alcançadas as metas de cobertura de crianças menores de um ano com a vacina do sarampo.

• A mortalidade materna só está se reduzindo nos países que já tem taxas menores; nos de taxas mais altas observa–se uma estagnação dos indicadores e até mesmo sua elevação.

• Alguns indicadores de oferta de serviços têm tido evolução mais favorável: proporção de mulheres que recebem atenção no parto por pessoal adequado; uso de mosquiteiros impregnados por inseticida nas regiões de alta prevalência da malária; e cobertura do tratamento assistido para tuberculose.

Os primeiros sete objetivos incluem compromissos que deverão ser cumpridos por todos os países em desenvolvimento, para gradualmente alcançar uma cobertura universal dos níveis mínimos de bem–estar. O objetivo 8 é "fomentar uma associação mundial para o desenvolvimento" e compreende, por um lado, uma série de compromissos contraídos pelos países desenvolvidos para apoiar os esforços dos países em desenvolvimento e, por outro, alguns elementos para iniciar a rota de correção das assimetrias internacionais em favor dos países mais pobres, incluindo a assistência oficial para o desenvolvimento e um sistema comercial e financeiro que permita resolver os problemas de seu endividamento.

Os países mais ricos do mundo fixaram que, para atingir os Objetivos do Milênio, precisariam investir em ajuda externa a fatia irrisória de apenas 0,7% de suas rendas internas. Entretanto, a porcentagem da riqueza interna que os países mais abastados destinam aos países mais pobres caiu pela metade nos últimos quarenta anos. Ela era de 0,48% entre 1960 e 1965. Hoje, é de apenas 0,24%21 (Gráfico 4).


É claro, portanto, que uma bandeira de luta nos cenários nacionais e global é pelo aumento da ajuda externa dos países desenvolvidos pelo menos ao nível com que se comprometeram para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Esses objetivos modestos seriam alcançados caso os países mais ricos investissem o equivalente apenas oitenta dólares por habitante por ano em programas de auxílio. Ressalte–se que tal ajuda equivaleria a não mais do que um quinto dos gastos dos ricos com defesa ou apenas a metade do que gastam em subsídio agrícolas.

À propósito, a comparação entre gastos militares e ajuda oficial para o desenvolvimento é chocante, conforme nos mostram os Economistas pela Paz e a Segurança22. O gasto militar no mundo, em 2003, foi de 956 bilhões de dólares, dos quais apenas os Estados Unidos gastaram 417 bilhões de dólares. Para alcançar plenamente os objetivos de desenvolvimento do milênio, seria necessário gastar não mais do que 760 bilhões de dólares nos próximos dez anos, menos portanto do que o mundo gasta com armas em apenas um ano (Gráfico 5).


O gasto militar per capita nos Estados Unidos foi de 1.217 dólares,enquanto não passou de 46 dólares para ajuda externa, dos quais apenas 23% para os mais necessitados. Ou seja, para cada 25 dólares de gasto militar americano, apenas um dólar é destinado à ajuda externa, do qual apenas 23 centavos para os mais necessitados. Na União Européia, os gastos militares foram de 358 dólares per capita para a defesa e 61 dólares para a ajuda externa. Stiglitz e Bilmes, economistas e professores em Colúmbia e Harvard, respectivamente, estimam que os gastos americanos apenas com a Guerra do Iraque poderão alcançar mais de dois trilhões de dólares23 (Gráfico 6).


A Comissão sobre Macroeconomia e Saúde, criada pela OMS no ano 2000, insiste na tese de que investimentos em saúde, ampliando a cobertura com serviços essenciais de saúde destinados aos pobres do mundo, através de um número relativamente reduzido de intervenções específicas, são imprescindíveis para fomentar o desenvolvimento econômico, reduzir a pobreza e promover a segurança mundial24.

A revista Science25 analisa o que chama 'The New World of Global Health', relacionando cerca de nove iniciativas globais, de governos e/ou doadores privados, para enfrentar as principais doenças transmissíveis prevalentes no mundo, como AIDS, malária tuberculose e outras doenças 'negligenciadas'. Tais iniciativas englobam fomento à pesquisa e desenvolvimento, aquisição e distribuição de vacinas, medicamentos e recursos para diagnóstico, tendo aplicado cerca de 35 bilhões de dólares em países em desenvolvimento nos últimos sete anos. Entre as maiores, encontram–se o Global Fund to Fight AIDS, Tuberculosis and Malaria; a Global Alliance for Vaccines and Immunization (GAVI); e o President's Emergency Plan for AIDS Relief (PEPFAR) — este do governo americano.

A GAVI, por exemplo, reúne o Banco Mundial, OMS, UNICEF e países desenvolvidos doadores, fundações privadas (como a Fundação Bill e Melinda Gates) e outros parceiros. Esta aliança estabeleceu um Fundo para Vacinas que apóia a imunização básica (DTP + pólio), assim como contra hepatite B e HiB em setenta países com PIB per capita abaixo de 1.000 dólares. Já foram imunizadas com vacinação básica mais de seis milhões de crianças26. Entretanto, não posso deixar de mencionar aqui o protesto de Ilona Kickbusch, na sua Leavell Lecture, em 200427, com o qual concordo inteiramente, na qual afirma considerar um escândalo na governance global da saúde que governos do mundo permitam que uma entidade filantrópica, como a Fundação Bill e Melinda Gates, tenha mais recursos para gastar em saúde global, o que é louvável, do que o orçamento regular de sua própria organização, a OMS, o que é lamentável!

Voltando à Science25, alerta esta que não há a necessária articulação entre os doadores, nem o devido preparo dos países que recebem as doações — em recursos financeiros ou materiais — para bem aplicá–las. Na definição do Prof. Bloom, diretor da Escola de Saúde Pública de Harvard, 'não existe uma arquitetura adequada para a saúde global'25. De outro lado, falta de adequada infra–estrutura sanitária dos sistemas de saúde, bem como de recursos humanos capacitados, impede que os recursos cheguem aos que deles necessitam. A corrupção nos dois pólos (doadores e receptores) também contribui para sangrar os recursos destinados para a saúde na arena internacional.

Um recente e bem–sucedido exemplo de acordo internacional com impacto global na área da promoção da saúde em enfermidades não transmissíveis e fatores de risco é a Convenção–Quadro sobre Controle do Tabaco, adotada em maio de 2005, na 56ª Assembléia das Nações Unidas e confirmada, em setembro do mesmo ano, na Cúpula Presidencial de Nova York, que analisou e adotou outras 32 propostas como tratados internacionais28.

Na busca de alguma eqüidade econômica e da erradicação da pobreza, uma das proposições mais ousadas é o asseguramento de uma renda mínima a todos os habitantes de um país, hoje denominada de renda de cidadania ou de existência29. Economistas e políticos de renome defendem esta proposta, como Keynes, Tobin, Friedman, Galbraith e Moynihan e instituições como a Rede Européia da Renda Básica, sob a liderança de Van Parijs29. Para que não pareça apenas uma formulação teórica ou utópica, devemos referir que, em diversos momentos do século XX, a partir de 1930, países como Dinamarca, Reino Unido, Alemanha Federal, Países Baixos, Bélgica, Irlanda, Luxemburgo, França, Portugal e diversas províncias da Espanha já estabeleceram programas mais ou menos abrangentes de renda de cidadania, com resultados muito positivos29.

Uma iniciativa talvez a caminho deste modelo, o Bolsa Família, está em curso no Brasil e pode ser uma bandeira nacional e global em muitos outros países para o enfrentamento concreto da pobreza e como mecanismo para "a superação da privação da liberdade econômica, que leva à perda da liberdade social", no dizer de Amartya Sen11.

Para controlar a nociva circulação de capitais especulativos, um mecanismo já está desenvolvido: a taxação das transações financeiras internacionais não produtivas e de curto prazo (hot money) para criar um fundo mundial que visa financiar prioridades globais (necessidades humanas e ambientais básicas): aquecimento global, pobreza, fome e saúde. Este fundo poderia alcançar entre cem e trezentos bilhões de dólares. Uma iniciativa global está organizada, buscando apoios de todos os cidadãos do mundo para sua implementação, que necessita ser aprovada em parlamentos nacionais e, depois, implementada pela cooperação multilateral ou pelas Nações Unidas. A taxa recebe o nome de Tobin Tax, em homenagem ao Prêmio Nobel James Tobin, de Yale, que a propôs pela primeira vez5.

A 59ª Assembléia Mundial da Saúde examinou o Informe da Comissão sobre Direitos de Propriedade Intelectual, Inovação e Saúde Pública30 e, após exaustivas discussões, aprovou a proposta apresentada pelo Brasil e Quênia de preparar um plano de médio e longo prazo para ampliar os recursos para pesquisa sobre problemas de saúde que afetam desproporcionalmente os mais pobres e para tratar, de forma especial, os direitos de propriedade intelectual para os medicamentos e outros insumos utilizados para enfrentar tais problemas. Na última Assembléia Mundial da Saúde (maio de 2007), também por proposta do Brasil, conseguiu–se a surpreendente aprovação de uma resolução que reafirma as prerrogativas dos países quanto ao licenciamento compulsório e outras salvaguardas sobre o Acordo Trips, obtidas em Doha, mas — e aqui está a novidade — abre caminho para alternativas à remuneração das patentes que não nos preços elevados dos medicamentos. É preciso vigilância da comunidade internacional e cobrança de atitudes politicamente coerentes e solidárias das representações de nossos países nos próximos 'rounds' que serão jogados na OMS e em outros fóruns internacionais.

Em 2005, a OMS criou a Comissão Mundial sobre os Determinantes Sociais da Saúde, visando gerar recomendações baseadas em evidências para a formulação de políticas e instrumentos globais e nacionais para atuar sobre os determinantes fundamentais da saúde, que são eminentemente sociais31. No Brasil, o presidente da República criou uma comissão equivalente que, com muita honra, tenho a satisfação de coordenar32. Tenho grandes expectativas com os resultados desta comissão, cujo informe será examinado numa das próximas Assembléias Mundiais da Saúde e que esperamos venha a gerar um pacto entre os países para enfrentar, globalmente e ao nível de cada país, os determinantes sociais da saúde.

A 59ª Assembléia Mundial de Saúde aprovou, depois de anos de revisão, o novo Regulamento Sanitário Internacional33, que terá vigência a partir de junho de 2007. O RSI é um dos mais importantes instrumentos para o controle das doenças infecto–parasitárias globalmente e nos países e um dos mais tradicionais tratados internacionais no campo da saúde pública. A ação uniforme, por um lado, e integrada e colaborativa, por outro, permitida pelo RSI, é um exemplo muito positivo da concertação internacional possível de alcançar nas Nações Unidas como um todo, e na OMS, em particular.

Fora da chamada 'arena internacional oficial', devemos destacar iniciativas como o Movimento de Saúde dos Povos (MSP)34, coalizão de organizações da sociedade civil, organizações não–governamentais, ativistas sociais, profissionais de saúde, acadêmicos e pesquisadores, criada por ocasião primeira Assembléia Mundial de Saúde dos Povos (AMSP), realizada em Bangladesh, em dezembro de 2000, com a participação de cerca de 1.500 delegados de 75 países. A Declaração para a Saúde dos Povos tem sido o documento orientador da ação desta coalizão. A AMSP tem buscado constituir–se em alternativa ou pelo menos complemento ao fórum oficial global, a Assembléia Mundial da Saúde, da OMS e, por ocasião da II AMPS, realizada em Cuenca, Equador, em julho de 2005, lançou o Global Health Watch 2005–200635, informe 'alternativo' ao World Health Report da OMS e o Informe Alternativo sobre la Salud en América Latina36.

Como as excelentes iniciativas antes mencionadas, observa–se uma profusão de outras iniciativas no mundo, de diversas naturezas e enfoques, seja para aliviar a pobreza global ou de determinadas regiões ou países ou voltados para segmentos particulares da população, como mulheres e crianças, idosos, etc., seja para enfrentar situações ou problemas particulares de saúde — como fome, malária, AIDS, outras doenças negligenciadas, etc. Cabe aos profissionais de saúde pública identificá–las e apoiá–las e criticá–las, global e localmente.

Na realidade, para transformar a equação globalização pobreza e exclusãopiora nas condições de saúde na equação globalizaçãoeqüidade e inclusãosaúde não existe uma receita única. O que se tem certeza é que soluções globais devem ser articuladas com iniciativas nacionais e locais específicas para o enfrentamento da expressão concreta que tomam, nestes planos, a globalização, a pobreza e a situação de saúde–doença. A comunidade mundial de trabalhadores da saúde pública e inúmeras organizações em todo o mundo têm dado demonstrações de compromisso e ação decidida.

É muito importante a mobilização de profissionais de saúde em geral e de sanitaristas, em particular, de todo o mundo na compreensão, crítica e luta contra a globalização injusta, a pobreza e a exclusão, contra a corrida armamentista e a violência, por um meio ambiente sustentável, pela eqüidade na saúde, pela paz e solidariedade entre todos os povos do mundo, para que alcancemos melhores condições de saúde e qualidade de vida não num futuro distante, mas hoje, aqui e agora!

Artigo apresentado em 23/10/2006.

Aprovado em 15/12/2006.

Fonte: Human Development Report 2001.

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  • *
    Este artigo é uma adaptação da Conferência Leavell, apresentada no XI World Congress of Public Health da World Federation of Public Health Associations e VIII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Pós–Graduação em Saúde Coletiva, em 23/08/2006
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      23 Out 2006
    • Aceito
      15 Dez 2006
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