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(Re)visitando alguns elementos do enfoque situacional: um exame crítico de algumas das contribuições de Carlos Matus

(Re)visiting some elements of the situational approach: a critical examination of some of Carlos Matus's contributions

Resumos

Carlos Matus ofereceu, ao longo de sua obra, um conjunto de contribuições teóricas e metodológicas para o planejamento. Entre elas, destaca-se a compreensão do planejamento como uma forma de cálculo que precede e preside a ação, a noção de situação, autorreferida ao ator social que planeja, a importância dos procedimentos explicativos e do chamado cálculo direcional. Partindo de uma leitura pragmática da ciência e de algumas contribuições de Giddens, este trabalho examina os pressupostos teóricos subjacentes a essas contribuições. De modo específico, reconhecendo a importância dessas contribuições, faz-se uma leitura que radicaliza o caráter autorreferencial, rejeitando as pretensões de se construir uma teoria geral da mudança situacional, apostando na capacidade dos próprios atores sociais de sistematizar o cálculo que precede e preside a ação a partir do seu próprio repertório de interpretação. Explora-se a possibilidade de compreender as contribuições do cálculo sistemático e explícito que precede e orienta a ação como uma forma de ampliação do entendimento teórico das ações, sustentado pelos agentes humanos. Por fim, indicam-se as consequências práticas dessa (re)leitura.

Planejamento de saúde; Enfoque situacional; Planejamento estratégico


Throughout his work, Carlos Matus offered a number of theoretical and methodological contributions to planning. Among them, I emphasize the understanding of planning as a way of calculation that precedes and presides over the action, the notion of situation, self-reported to the social actor who plans the importance of explanatory procedures and the so-called directional calculation. From a pragmatic reading of science and some contributions by Giddens, this paper examines the theoretical assumptions underlying these contributions. Specifically recognizing the importance of such contributions, it is a reading that radicalizes the self-reporting character, rejecting the claims of constructing a general theory of situational changes, focusing on the ability of social actors themselves to systematize the calculation that precedes and presides over the action from its own repertoire of interpretation. It explores the possibility of understanding the contributions of systematic and explicit calculation that precedes and guides the action as a way of expanding the theoretical understanding of the actions supported by human agents. Finally, we indicate the practical consequences of this (re)reading.

Health planning; Situational approach; Strategic planning


ARTIGO ARTICLE

(Re)visitando alguns elementos do enfoque situacional: um exame crítico de algumas das contribuições de Carlos Matus

(Re)visiting some elements of the situational approach: a critical examination of some of Carlos Matus's contributions

Ruben Araujo de Mattos

Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524/Pavilhão João Lyra Filho/7º andar/Blocos D e E, Maracanã. 20550-900 Rio de Janeiro RJ. ruben@ims.uerj.br

RESUMO

Carlos Matus ofereceu, ao longo de sua obra, um conjunto de contribuições teóricas e metodológicas para o planejamento. Entre elas, destaca-se a compreensão do planejamento como uma forma de cálculo que precede e preside a ação, a noção de situação, autorreferida ao ator social que planeja, a importância dos procedimentos explicativos e do chamado cálculo direcional. Partindo de uma leitura pragmática da ciência e de algumas contribuições de Giddens, este trabalho examina os pressupostos teóricos subjacentes a essas contribuições. De modo específico, reconhecendo a importância dessas contribuições, faz-se uma leitura que radicaliza o caráter autorreferencial, rejeitando as pretensões de se construir uma teoria geral da mudança situacional, apostando na capacidade dos próprios atores sociais de sistematizar o cálculo que precede e preside a ação a partir do seu próprio repertório de interpretação. Explora-se a possibilidade de compreender as contribuições do cálculo sistemático e explícito que precede e orienta a ação como uma forma de ampliação do entendimento teórico das ações, sustentado pelos agentes humanos. Por fim, indicam-se as consequências práticas dessa (re)leitura.

Palavras-chave: Planejamento de saúde, Enfoque situacional, Planejamento estratégico

ABSTRACT

Throughout his work, Carlos Matus offered a number of theoretical and methodological contributions to planning. Among them, I emphasize the understanding of planning as a way of calculation that precedes and presides over the action, the notion of situation, self-reported to the social actor who plans the importance of explanatory procedures and the so-called directional calculation. From a pragmatic reading of science and some contributions by Giddens, this paper examines the theoretical assumptions underlying these contributions. Specifically recognizing the importance of such contributions, it is a reading that radicalizes the self-reporting character, rejecting the claims of constructing a general theory of situational changes, focusing on the ability of social actors themselves to systematize the calculation that precedes and presides over the action from its own repertoire of interpretation. It explores the possibility of understanding the contributions of systematic and explicit calculation that precedes and guides the action as a way of expanding the theoretical understanding of the actions supported by human agents. Finally, we indicate the practical consequences of this (re)reading.

Key words: Health planning, Situational approach, Strategic planning

Introdução

São inúmeras as contribuições de Carlos Matus1-3 para o planejamento de saúde. Dentre elas, o enfoque do planejamento estratégico situacional e os métodos dele decorrentes têm sido amplamente difundidos.

Neste trabalho, pretendemos analisar alguns elementos deste enfoque, a saber: sua noção de planejamento, suas críticas ao procedimento normativo e a noção de situação. Ao cotejar estes elementos com algumas contribuições de Giddens4, e com uma visão construcionista e pragmática da ciência, esperamos oferecer subsídios para o desenvolvimento do planejamento no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS).

Semelhantemente a Matus, diferenciamos o enfoque do método. Enfoque refere-se às categorias e ideias que sistematizam o cálculo, conferindo-lhe coerência e racionalidade específica de um modo de pensar o planejamento. Método refere-se ao desenvolvimento operacional de um enfoque, estabelecendo um modo detalhado de realizar cada procedimento nele previsto. No processo de desenvolvimento de propostas de planejamento, frequentemente percorremos o caminho de primeiro delinear um enfoque, para depois desenvolver os métodos. Este foi o caminho percorrido por Matus.

Este trabalho resulta de uma investigação teórica, feita na intenção de contribuir para o desenvolvimento de novas propostas de planejamento no contexto do amplo leque de experiências de gestão e de participação no âmbito do SUS.

Em certo sentido, este trabalho deve muito a Mario Testa, que formulou, ainda que de maneira sintética, uma crítica aguda a Matus5. A divergência entre eles dizia respeito à direção dos esforços que deveriam ser empreendidos no campo do planejamento. Testa acredita que Matus avançou demais nas suas propostas metodológicas, sem levar em conta suficientemente os contextos históricos nos quais elas deveriam ser aplicadas. Partilhamos com Testa as dúvidas sobre a adequação na ênfase nos métodos de planejamento proposto por Matus. Contudo, cremos que, se passarmos a enfatizar o enfoque situacional e analisarmos criticamente seus elementos, poderemos reconhecer uma potência para a renovação do planejamento no âmbito do SUS. É esta a perspectiva que dá sentido a este trabalho.

Para compreender as origens do enfoque situacional

Carlos Matus forjou-se como intelectual no ambiente institucional em torno da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), que, ao longo da década de cinquenta, desenvolveu uma interpretação do subdesenvolvimento latinoamericano6. Ao contrário do pensamento econômico predominante na época, a interpretação cepalina não pensava a questão do crescimento econômico no âmbito restrito das economias nacionais. Alternativamente, distinguia, na dinâmica da economia mundial, dois polos: o centro e a periferia. Este pensamento enfatizará a dinâmica de trocas entre países centrais e periféricos. As teses da CEPAL na década de cinquenta indicavam que a única alternativa para o desenvolvimento econômico da periferia era através da industrialização por substituição de importações. Embora tal processo tivesse surgido espontaneamente em alguns países latino-americanos, ele produzia desequilíbrios que limitavam o crescimento econômico. Daí, a interpretação cepalina afirmará que, para o desenvolvimento dos países periféricos, seria necessária uma condução deliberada desse processo, ou seja, um planejamento do desenvolvimento. Com esta tese, a CEPAL contribuiu para o surgimento de várias experiências de planejamento na América Latina nos anos cinquenta e sessenta do século passado.

Pelo menos nas suas formulações iniciais, o pensamento cepalino era, antes de qualquer coisa, um pensamento econômico, embora destoasse das vertentes predominantes no ambiente acadêmico. A interpretação teórica do desenvolvimento nos anos cinquenta não incorporava contribuições teóricas advindas das ciências sociais, que só viriam a se tornar relevantes anos mais tarde, quando um grande esforço de reflexão no próprio âmbito da CEPAL revisitou aquela primeira interpretação. Será no contexto desta revisão que Matus produzirá seu primeiro livro6.

Esse autor atuou, ao longo da década de sessenta, no Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social (ILPES), instituição ligada à CEPAL, acompanhando experiências de planejamento na América Latina. No seu primeiro livro1, Matus analisou as condições do desenvolvimento daquelas experiências, examinando seus fundamentos à luz do que julgava ser os postulados básicos do planejamento. O autor construirá uma dicotomia entre dois diferentes modos de pensar o planejamento: o normativo, exemplificado por aquelas experiências concretas, e o estratégico, indicado como um modo a ser construído. Este será o desafio que orientará o esforço de pesquisa que Matus conduzirá nos anos seguintes. Por estarmos igualmente interessados no problema do desenvolvimento de métodos, a análise que faremos buscará não perder de vista a trajetória deste seu programa de pesquisa.

O desenvolvimento posterior das ideias do autor sofreu significativos aportes a partir de sua reflexão sobre a experiência por ele vivida como parte do governo chileno de Allende. As dificuldades experimentadas no governo e a dura experiência do golpe que o interrompeu marcaram profundamente o autor, de modo que é possível atribuir a elas um importante papel na ênfase que ele passará a dar mais adiante à temática do aprimoramento da capacidade de governo. É nesse sentido que Testa (mesmo sabendo que Matus criticará a visão de planejamento como prática do Estado) dirá que Matus pensava o planejamento desde a perspectiva do governo5. Contudo, os elementos teóricos fundamentais para o programa de pesquisa que conduziu as propostas do enfoque situacional estão fortemente presentes já naquele primeiro livro1. Ou seja, antes de serem moldadas pela experiência de governo, as bases sobre as quais Matus construiu o enfoque situacional se forjaram no contexto do debate sobre o pensamento cepalino.

Matus sustentará que o planejamento tal como pensado na América Latina, embora concebido como necessário, nem sempre era praticável, ou seja, nem sempre era possível. Ele sugerirá que tal planejamento não incorporava em seu interior as análises sobre sua própria possibilidade. Esta crítica já apresenta duas temáticas que atravessam toda a sua obra. A primeira fala da necessidade de que o planejamento lide tanto com o deve ser quanto com o pode ser. Matus criticará duramente as formas de pensar que se limitam a indicar os procedimentos necessários, sem levar em conta suas possibilidades. A outra temática refere-se originalmente à constatação do reducionismo da interpretação cepalina à dimensão econômica dos fenômenos, que a impediria de examinar as possibilidades do desenvolvimento desejável. Mas aqui, ao invés de simplesmente defender a incorporação de contribuições de outras ciências sociais, Matus indicará que a dificuldade para o planejamento está no contraste entre fragmentação do conhecimento científico em disciplinas e a totalidade da realidade na qual se pretende atuar. Este passo será fundamental para sua convicção de que o planejamento precisa ser uma mediação entre o conhecimento (diríamos, o conhecimento científico) e a ação.

Na tentativa de oferecer tal mediação, Matus empreenderá dois movimentos. O primeiro, voltado para dar conta da necessidade do que chama de totalidade analítica, consistirá na proposta da noção de situação. A segunda, tomada a partir da convicção de que o planejamento necessita de modelos que correspondam à realidade, levará o autor a tentar desenvolver uma teoria da produção social. A questão fundamental para os propósitos deste trabalho é que ambas as contribuições são apresentadas pelo autor como se fossem indissociáveis. Será exatamente aqui que incidirá nossa crítica. De modo particular, mostraremos que a inclusão desta última contribuição teórica no interior do enfoque situacional só se sustenta a partir de uma visão tradicional da ciência, que sonha com um conhecimento universal (aplicável a todas as situações) e aspira descobrir as leis objetivas que regem os fenômenos sociais. E será contestando esta visão que elaboraremos nossa crítica.

Antes de aprofundar os pontos indicados, contudo, cabe examinar a própria noção de planejamento que Matus passou a sustentar em suas obras posteriores, bem mais abrangente do que aquela ligada ao desenvolvimento econômico.

O planejamento como prática dos agentes humanos: o cálculo que precede e preside a ação

É bastante conhecida a definição que Matus dará ao planejamento, associando-o à ação humana: O planejamento e a ação são inseparáveis. O plano é o cálculo que precede e preside a ação. Se não a preceder, o plano é inútil porque chega tarde. E se chega a tempo mas não a preside, o plano é supérfluo. Por sua vez, a ação sem cálculo que a preceda e a presida é mera improvisação2.

Planejamento, nesta acepção, refere-se à forma de raciocínio, portanto, à reflexão feita de modo sistemático por alguém antes da deliberação sobre uma ação, e feita de tal modo a conformar esta deliberação sobre a ação. Planejamento aqui não descreve uma prática institucional, muito menos uma prática governamental. Tampouco é uma prática de especialistas. Ela não se restringe a questões como o desenvolvimento econômico, nem aos temas ligados ao Estado. Sua perspectiva é bem mais ampliada: "[...] o planejamento, como corpo de teoria geral, pode aplicarse a qualquer atividade humana em que é necessário um esforço para alcançar um objetivo" 2.

Nesta leitura, o planejamento é, antes de qualquer coisa, algo que indivíduos humanos podem fazer e efetivamente fazem. Mas a preocupação de Matus não será exatamente centrada nos cálculos que precedem e presidem as ações de indivíduos humanos. Vejamos como o autor aborda esta questão: Quando dizemos que planejar é tentar submeter o curso dos acontecimentos à vontade humana, não deixar que "nos levem" e tratarmos de ser condutores do nosso próprio futuro, estamos nos referindo a um processo social, no qual o homem indivíduo realiza um ato de reflexão superior e reconhece que só a consciência e a força do homem coletivo pode encarnar tal vontade humana e enfrentar a correnteza dos fatos para desviar seu curso em direção a objetivos racionalmente decididos2.

E prossegue: [...]necessariamente o homem coletivo, como ator do plano, deve responder e estimular a consciência social de cada homem indivíduo, agora agrupado com muitos outros homens com interesses ou visões mais ou menos comuns, conformando uma força social que decide lutar por conduzir e não deixar de conduzir, que opta por resistir à correnteza dos fatos e tenta submeter o movimento da realidade à sua vontade social para alcançar o futuro que ele mesmo desenhou2.

Ao longo da sua obra, Matus utiliza a expressão ator social para designar quem planeja. No glossário do seu Política, planejamento & governo, lemos que ator social é uma personalidade , uma organização ou agrupamento humano que, de forma estável ou transitória, tem a capacidade de acumular força, desenvolver interesses e necessidades e atuar produzindo fatos na situação2. Para quem não está familiarizado com o vocabulário da teoria da produção social proposta por Matus, que não examinaremos neste trabalho, esta definição pode ser algo enigmática. Poderíamos dizer, em outros termos, que para ele a ideia de ator social é concebida como quem tem uma perspectiva de ação sobre a realidade na qual vive. Para os propósitos deste trabalho, importa reter aqui que atores sociais podem ser indivíduos (personalidades), organizações ou agrupamentos de pessoas.

Mas note-se que a problemática geral do planejamento segue sendo a da condução deliberada, não mais do processo de substituição de importações, mas a condução deliberada da realidade rumo ao futuro sonhado, ou seja, rumo à forma como alguém (individual ou coletivamente) julga que deve ser a realidade.

Talvez seja útil cotejar essa noção do planejamento com alguns aspectos da teoria da estruturação, proposta por Giddens4. Ele chama a atenção (acompanhando muitos outros pensadores) para a utilidade de pensarmos em duas formas de consciência, distintas, mas articuladas: a consciência discursiva e a consciência prática. É em relação à consciência discursiva que geralmente aplicamos o termo "pensar"e é frente a ela que se coloca a noção de planejamento de Matus. Mas uma grande parte das ações que nós, agentes humanos, fazemos no nosso cotidiano transcorre no plano da consciência prática. Agimos sem necessariamente pensar no que fazemos, pelo menos no sentido comum do termo "pensar". Entretanto, se de algum modo nossa ação é questionada por alguém, muito rapidamente pensamos sobre ela, reconhecemos o que lhe deu sentido e elaboramos uma resposta ao questionamento feito. Giddens destaca que os agentes humanos são capazes de sustentar um entendimento teórico sobre suas ações, ou seja, conseguem elaborar mentalmente as razões e motivos e, deste modo, justificar suas ações. Mas, quando as ações transcorrem no âmbito da consciência prática, tais elaborações se fazem a posteriori e só se fazem diante de alguma forma de questionamento. Para Giddens, diante de um questionamento, os agentes humanos, além de sustentar o entendimento teórico de sua ação, ou seja, de elaborar discursivamente para si o que dá sentido à ação em questão, decidem como responder ao questionamento. As respostas dadas não necessariamente refletem o entendimento teórico sustentado pelo próprio agente, pois são convenientemente construídas diante do contexto específico do questionamento que as suscitou. A esse processo de análise da conveniência da sinceridade na apresentação do entendimento teórico, Giddens chama de "racionalização da ação".

Nesse vocabulário oferecido por Giddens, o planejamento no sentido de Matus seria uma forma de apresentação para si mesmo do entendimento teórico que sustenta uma proposta de ação. Não é tão simples, contudo, reconhecer se uma ação foi planejada ou não. É claro que a memória de quem fez o cálculo pode sem dúvida estabelecer tal fato, mas o fará para si. O discurso eventualmente produzido para justificar esta ação diante de um eventual questionamento, quer seja uma racionalização, quer seja a reconstrução (ainda que sincera) do sentido da ação e de sua justificativa, não necessariamente refletem aquele cálculo prévio. É claro que se o sujeito em questão registrou a memória do cálculo feito, ou seja, documentou previamente todo o processo desse cálculo, todos que tiverem acesso a este registro do cálculo poderão avaliar se a ação foi ou não planejada.

Este último argumento vai ao encontro do que Matus afirma sobre a possibilidade do planejamento de facilitar o aprendizado com os erros: A potência da sistemática de aprendizagem com os erros depende da potência de nossos métodos de cálculo. Se eles são sistemáticos e explícitos, seu confronto com as situações ocorridas ajudará a identificação e localização dos erros e acertos, bem como de suas causas2.

Com efeito, quando o cálculo que precede e preside a ação é sistemático e explícito, o registro de sua memória permite a quem planeja não se enganar com as próprias reconstruções e racionalizações feitas diante do relativo fracasso do plano.

Do cotejamento que fizemos com as ideias de Giddens, emerge a tese de que só agentes humanos podem planejar. É claro que um conjunto de pessoas pode-se colocar a tarefa de pensar coletivamente sobre a realidade em que vive, explicando-a em função das perspectivas de ação que pactue. Tal pensar coletivo, contudo, exige necessariamente um conjunto de práticas discursivas (ou de conversas), feitas em presença, entre todos os que constituem o coletivo. A expressão em presença aqui não se restringe à perspectiva de encontros físicos, mas refere-se às diversas formas de encontro entre pessoas. O ponto central aqui é que quem planeja, antes de ser o ator social, ou é um indivíduo, ou é um coletivo de pessoas com visões e interesses mais ou menos em comum, que efetivamente se engaja num conjunto de encontros com vistas a construir, seguindo alguns procedimentos acordados entre eles, um conjunto de propostas que, no seu próprio entendimento, permitiria conduzir esta situação rumo ao desenho considerado desejável.

Este conjunto de procedimentos acordados em um coletivo corresponde ao que Matus chamará de método. Desse modo, poderíamos dizer que os coletivos que se engajam na realização de cálculos que precedem e presidem a ação, o fazem adotando algum método. Os diferentes métodos adotados podem diferir entre si tanto no modo como sistematizam o cálculo, ou seja, como estabelecem o conjunto de operações cognitivas, ou podem diferir nas técnicas operacionais como concretamente executam um mesmo conjunto de procedimentos. Estes dois campos se relacionam, respectivamente, à noção de enfoque e de métodos. Por exemplo, um enfoque pode sugerir que o cálculo comece por um levantamento, uma descrição e uma explicação dos problemas da situação, seguido da identificação de possíveis pontos passíveis de intervenção, do desenho preliminar dessas intervenções e da explicitação das razões pelas quais o coletivo espera este ou aquele resultado desta ou aquela proposta. Mas, em uma mesma sistemática de cálculo, há diversos modos possíveis de se realizar cada operação. Por exemplo, levantar problemas em um coletivo pode ser feito em uma reunião, na qual cada participante elenca individualmente quais seriam os problemas da situação, escrevendo-os numa tarja de papel, para partilhá-los com todos depois, ou através de uma reunião na qual os participantes falem do que pensam ser seus problemas. Analogamente, a escolha de um problema que deve ser tratado prioritariamente pode ser tomada pelo voto, secreto ou não, dos participantes, ou através de uma rodada de conversa que se faz em busca do consenso. O método adotado por um coletivo consiste exatamente na fixação de um modo de operar concretamente cada tipo de procedimento indicado na sistematização que configura o enfoque adotado.

Retemos a ideia de que o coletivo que planeja é formado por pessoas com visões e interesses mais ou menos em comum. Acrescentamos a isto que um coletivo que planeja também tem um conjunto de conhecimentos, científicos ou não, que podem servir de base para os cálculos que este coletivo faz. De modo particular, todo coletivo tem um repertório de recursos cognitivos, que são utilizados e utilizáveis para dar sentido a suas ações, para compreender a ação de outros e para interpretar a realidade na qual vivem. Se um coletivo delibera uma ação, que é posteriormente questionada, será este repertório que permitirá sustentar o entendimento teórico que dá sentido àquela ação, bem como eventualmente construir, levando em conta a conveniência no contexto concreto do questionamento, uma narrativa que vise a obter a justificação do ato posto em questão. Será também este repertório cognitivo que orientará todas as interpretações durante o cálculo que precede e preside as ações deste coletivo.

Estamos em condições de formular uma primeira crítica às propostas de Matus. Na trajetória de construção de suas propostas metodológicas, particularmente na passagem do enfoque situacional para os métodos, o autor imaginou um conjunto de situações típicas, como a de um ator que assume o governo de um país, ou a de uma associação de moradores, para desenvolver suas propostas de desenhos detalhados de processos operacionais. Mas, nesse caminho, ele não deu suficiente importância às diferenças entre coletivos que planejam, sobretudo no que diz respeito à maior ou menor heterogeneidade de visões, interesses, perspectivas de ação no interior desses coletivos. É útil pensar que, segundo essa heterogeneidade, diferentes técnicas e procedimentos operacionais possam ser necessários. Mas isto significa dizer que talvez o desenvolvimento de métodos a partir de um enfoque deva ser feito tendo em vista um determinado coletivo concreto.

Ao levantar o problema da adequação dos desenhos operacionais concretos de cada procedimento do cálculo ao grau de heterogeneidade interna (em termos de visões, interesses, perspectivas de ação) dos coletivos que planejam, abrimos uma agenda de investigação. Por um lado, seria interessante o exercício de ampliar nossos próprios repertórios de formas operacionais de fazer esta ou aquela parte do cálculo sugerido pela sistemática adotada. Por outro, pode ser útil deixar aos próprios coletivos comporem, a partir de um leque de possibilidades, seu próprio método de planejamento. Mais do que ofertar métodos, nós, que nos ocupamos da questão do desenvolvimento de enfoques e metodologias para o SUS, devemos reconhecer que diferentes coletivos já desenvolvem, a seu modo, formas operacionais de operar cálculos que precedem e presidem suas ações. Examiná-las e cotejá-las com a sistemática de cálculo que defendemos pode ser uma fértil agenda de investigação.

A epistemologia do planejamento e a visão tradicional da ciência

É muito conhecida a distinção que Matus faz entre o planejamento normativo e estratégico. Na sua versão mais difundida, ela é apresentada através da listagem de um conjunto de pressupostos de cada uma das formas de planejamento. O primeiro desses pressupostos diferenciais fala da relação entre o sujeito que planeja e o objeto do planejamento. Ela evoca a tese, decorrente de uma visão tradicional da ciência, de que o conhecimento científico e objetivo só pode ser alcançado a partir de um sujeito que se distancia do objeto que busca conhecer. O caso normativo parece referir-se a um modo de se pensar o planejamento que tenta reproduzir o modo de conhecer que a ciência (nesta visão tradicional da ciência) opera, pautada pela neutralidade e objetividade (e, portanto, pela distância entre o conhecimento e as posições éticopolíticas de quem planeja), e pela busca da verdade (entendida aqui como a correspondência à realidade). Já no caso estratégico, o modo de cálculo se distingue ativamente daquela ciência, pois ao incluir o sujeito no objeto planejado, nega a premissa que, supostamente, criaria a possibilidade de um conhecimento objetivo.

Gostaríamos de imediato de evitar uma confusão: ao criar esta versão das diferenças entre o planejamento normativo e estratégico, Matus não necessariamente rompe com a visão tradicional da ciência moderna, nem necessariamente critica sua epistemologia. A operação efetuada aqui é antes a de distinguir a epistemologia da ciência moderna, da epistemologia do planejamento. Ciência e planejamento têm propósitos diferentes. Veja-se, por exemplo, como Matus exprime esta ideia a respeito da distinção entre o cientista homem de ação: O homem de ação e o cientista situam-se no mundo de maneira distinta. O primeiro insere-se no processo de produção social como ator que luta para preservar ou alterar o mundo, necessitando de acumular capacidades que lhe permitam alcançar seu objetivo. O segundo, por sua vez, explica o mundo pelo mero desejo de satisfazer sua sede de conhecimentos e não está diretamente interessado na ação; é um espectador inteligente e curioso da realidade em que vive, cuja motivação é acumular conhecimentos que não pretende utilizar diretamente para preservar ou alterar o mundo2.

Para Matus, "o mundo de ação não está desligado do mundo das ciências; ele simplesmente o segue com atraso"2, atraso em função do qual "a prática distancia-se bastante das teorias mais potentes"2. Em outros termos, o homem de ação acaba adotando uma perspectiva da ciência positivista e setorial, que, sem uma mediação, não lhe será de valia. Por isso, ele desenvolverá a noção de situação, numa tentativa de articular o conhecimento das ciências parciais com as necessidades do homem de ação de uma visão não fragmentada. Por outro lado, Matus sonha com a superação das ciências positivas e parciais por teorias e modelos mais abrangentes que, sem abandonar a pretensão de apreender a essência dos fenômenos sociais, e sem abandonar a pretensão de descrever as leis objetivas que regem tais fenômenos, possam indicar os aspectos objetivos e universais que atravessam todas as situações. Esta será a aspiração de sua teoria da produção social.

De imediato, podemos assinalar o contraste entre esta visão tradicional da ciência e a que emerge do denso debate sobre a ciência moderna travado nas últimas décadas7. Sem nos deter na sua caracterização, este debate tem-nos levado a reconhecer que a objetividade é construída intersubjetivamente8, que a ciência é uma prática social ancorada em comunidades de cientistas9, que estabelecem as metodologias científicas por consensos entre pares (os chamados paradigmas, ou matrizes disciplinares9). Assim descrita, a ciência despe-se de sua pretensa capacidade de produzir um conhecimento superior aos demais por estar em contato com a realidade, ou com a essência dos fenômenos. A ciência parece muito mais aparelhada para construir fenômenos e novas narrativas sobre o mundo10,11 do que propriamente descobrir em uma realidade extralinguística alguma essência dos fenômenos preexistentes12. Nesta visão de ciência, falar das leis, indicar o que de fato acontece ou mostrar a essência dos fenômenos nada mais são do que formas de apresentar uma leitura parcial como se fosse universal. Alguns autores chegam a defender que abandonemos por completo a própria ideia de verdade como um enunciado que corresponde à realidade, substituindo-a pela de adequação aos nossos propósitos12. Por sua vez, crescem as dúvidas sobre a capacidade da ciência de indicar o que é melhor para nós13 Daí o sonho de uma ciência que, abandonando a pretensão de produzir um conhecimento universal que se imponha a todos, esteja implicada e comprometida com a alteração do mundo segundo os princípios ético-políticos que defendemos14.

É à luz desta visão construcionista e pragmática da ciência que examinaremos a origem da noção de situação no programa de pesquisa de Matus.

A noção de situação e o caráter autorreferencial da explicação

Sem romper por completo com a visão tradicional da ciência, mas rejeitando reproduzi-la no planejamento, Matus tentará desenvolver uma abordagem que sirva como mediação entre a ciência e a ação. A primeira dificuldade a ser enfrentada está já expressa no seu primeiro livro no postulado da totalidade analítica. O autor destacará que a realidade é uma totalidade e sonhará que o planejamento assuma, no plano das ideias, uma totalidade analítica1. Contudo, ele se ressente de que o conhecimento produzido nas universidades se faz seguindo os recortes analíticos e disciplinares. Cada recorte apreenderia uma só dimensão da realidade: a dimensão econômica, a política, a social, etc. Assim, o conhecimento disponível para o homem de ação se apresenta parcial e fragmentado. Daí o drama do homem de ação: deve utilizar conhecimentos (científicos) parciais para pensar problemas que se apresentam não compartimentalizados. É para dar resposta ao drama do homem de ação que Matus desenvolverá a noção de situação. Dirá ele: a categoria de situação rompe os compartimentos que as ciências sociais construíram a fim de explicar a realidade. A situação é uma apreciação do conjunto feita pelo ator em relação às ações que projeta produzir, visando preservar ou alterar a realidade em que vive2.

Matus imagina que o homem de ação tem um atributo que falta ao cientista: uma intuição totalizadora: "o homem prático cobre o vazio das ciências parciais com a sua experiência condensada numa intuição de totalidade"2. Esta intuição o habilita a levar em conta, em sua apreciação, tudo o que é relevante para esta perspectiva da ação. Ou, sendo mais rigoroso, tudo o que parece (para quem planeja) ser relevante para a perspectiva de ação. Daí o caráter autorreferente da noção de situação. Matus, contudo, dirá que o reconhecimento deste caráter autorreferente não contradiz "a existência de leis objetivas e de processos criativos objetivos e independentes da nossa situação, vontade e percepção"2.

Será exatamente este ponto que irá movê-lo no seu esforço de desenvolver um modelo teórico - a teoria da produção social -, que é, segundo o próprio Matus, "marcada pela busca de leis objetivas e processos criativos [igualmente objetivos], não complicada pela mediação subjetiva da explicação do homem"2. E é exatamente por insistir na busca de leis objetivas que de fato regeriam os fenômenos sociais que reconhecemos a persistência do elo de Matus com uma concepção tradicional da ciência. E será exatamente contra esta busca que se erguerá a crítica da visão pragmática da ciência12.

Para os que, como nós, partilham desta visão construcionista e pragmática da ciência, esta busca por leis objetivas simplesmente não faz sentido. A teoria da produção social deve ser compreendida como uma oferta, entre tantas outras possíveis, feitas na tentativa de compreender a dinâmica da sociedade. Não se pode afirmar que ela seja superior a qualquer outra por garantir, como Matus diria no seu postulado de correspondência, "uma correspondência essencial entre [suas] categorias de análise e os problemas fundamentais do momento histórico ao qual se aplicam"1.

Ou seja, uma coisa é apresentar a noção de situação como uma categoria útil aos atores que planejam, por abrir uma possibilidade de sistemática do cálculo bastante potente. Outra é dizer para esses atores que eles devem compreender que as situações têm níveis (como, usando a linguagem das primeiras formulações do autor, o nível dos fatos, a fenoestrutura ou a genoestrutura), por exemplo. Esta última manobra pode ser lida como a tentativa de impor um ponto de vista, o de Matus, por sobre os pontos de vista autorreferidos pelos atores, sem que possamos afirmar, a priori, a superioridade deste para os propósitos do ator que planeja.

Neste sentido, poderíamos sugerir que nossas ofertas de uma abordagem situacional simplesmente abandonassem o uso das categorias provenientes dessa teoria da produção social, ou de qualquer outra teoria geral, atendo-se às ofertas de uma sistemática do cálculo, no sentido que trataremos a seguir. Isto significa despojar a noção de situação de qualquer diretriz para a construção da explicação situacional.

A crítica ao planejamento normativo e as bases da sistemática do cálculo situacional

Retomamos a definição do procedimento normativo, mas agora a partir de sua primeira formulação, ainda em Estratégia y plan1, que, a nosso ver, dá pistas sobre o caminho a seguir na construção de uma proposta de sistematização do cálculo que precede e preside a ação. Nela, o autor indica que o procedimento normativo seria aquele que especifica quais seriam as ações necessárias para que certos objetivos definidos a priori fossem alcançados. As propostas, nesta visão normativa, nasceriam do próprio desenho imaginado pelos atores que planejam, e não levariam em conta, até as últimas consequências, o conhecimento sobre as variáveis e fatores que explicam e determinam os comportamentos reais. Exatamente por isso, as propostas formuladas não surgem do comportamento real. Elas surgem como se fosse possível simplesmente substituir o comportamento real, que produz efeitos não desejados, por uma trajetória ideal, que supostamente, caso fosse possível, seria eficaz em produzir os objetivos previamente estabelecidos. Ou, nos próprios termos de Matus: O modelo não surge dialeticamente da realidade, mas é deduzido da norma-objetivo. Modelo e realidade estão em planos diferentes, sem possibilidade certa de contato, separando-os a mesma diferença que existe entre comportamento real e regra ideal, entre necessidade e possibilidade1.

Já há nessa definição uma série de pistas sobre como superar esse tipo de postura normativa, reconhecíveis pelo simples contraste. Quem planeja deveria levar em conta, até suas últimas consequências, o conhecimento que tem sobre as variáveis e fatores determinantes da realidade. Ele deveria explicar esta realidade antes de desenhar suas propostas concretas. O conhecimento desta realidade lhe permitiria identificar com mais clareza as possíveis formas de intervenção que, se não levam diretamente ao futuro sonhado, modificam a realidade no sentido desejado. E ele deveria utilizar o conhecimento que tem sobre estas possibilidades de intervenção, ou seja, explicitar as razões pelas quais julga que as ações propostas operarão as mudanças sonhadas na realidade. Aqui nesta formulação já está o embrião da sequência de procedimentos de cálculo que Matus apresentará em seus momentos explicativo e normativo (que chamaríamos de binômio explicação-cálculo direcional) e que visam a constituir projetos que, no entendimento de quem planeja, se realizados, seriam capazes de transformar a situação.

Poderíamos pensar, numa leitura apressada, que o reconhecimento da necessidade, por exemplo, de descrever e explicar os problemas em uma situação se justificaria pela tese de que, se um ator (ou um coletivo) consegue em sua explicação apreender quais sejam de fato as causas dos problemas, teria mais chance de criar propostas de intervenção sobre estas causas e, deste modo, aumentar a probabilidade de obter sucesso na sua formulação. É claro que, desde as críticas da ciência moderna anteriormente citadas, esta justificativa não pode ser aceita, pela simples constatação de que não é possível a alguém estabelecer quais sejam de fato as causas de um fenômeno, embora seja possível ter uma leitura sobre possíveis causas, que utilizaremos, para nossos propósitos de pensar a ação, como se fossem as reais. Mas, por outras razões, esta justificativa também não é aceitável para Matus, pois o ator em uma situação não seria capaz de produzir o conhecimento objetivo.

Portanto, o ator que planeja está sempre preso ao que denominamos anteriormente de "repertório cognitivo", que servirá de base para sua apreciação da situação na qual vive. A adoção de uma sistemática do cálculo que precede e preside a ação opera, antes de mais nada, por tentar utilizar este repertório cognitivo até as últimas consequências antes de deliberar sobre uma ação. Não será, pelo menos em uma primeira instância, através do aprimoramento desse repertório que o planejamento ampliará a capacidade de condução do ator, mas será por criar a possibilidade do exame mais amplo do conhecimento (científico ou não) de quem planeja.

Um exemplo pode ilustrar esta questão. Imaginemos que um gestor de saúde de um município, sem ter adotado uma sistemática que inclua o levantamento dos problemas na situação que vive e suas explicações, se defronte com um problema: a sobrecarga dos pronto-socorros nos hospitais públicos. Imaginemos que, numa visita a outro município, este gestor tenha ficado fascinado com o modelo de uma unidade de saúde voltada ao pronto-atendimento e ao primeiro atendimento de urgência e emergência, mas de porte menor e localizada fora dos hospitais. E que, movido pelo fascínio, decida implantar certo número dessas unidades, na expectativa de reduzir a sobrecarga. Diríamos que, neste raciocínio hipotético, esse gestor teria utilizado tipicamente o procedimento normativo. Mas, seguindo nossa exploração hipotética, esse mesmo gestor, ao ser perguntado por que as emergências de seus hospitais estão sobrecarregadas, respondesse de imediato (porque já sabia) que era em decorrência de um grande número de casos que poderiam e deveriam ser resolvidos na atenção básica. Ao ser perguntado então por que sua rede básica não resolve esses casos, ele responde que seu município não dispõe de uma rede básica suficiente e que, na rede básica existente, o modelo assistencial não consegue conquistar a confiança da população. Por outro lado, solicitado a falar sobre o perfil de morbimortalidade da população de seu município, este gestor prontamente ressalta a importância das doenças cardiovasculares e enfatiza os problemas do controle da hipertensão e diabetes. Indagado então sobre as dificuldades em diagnosticar e controlar essas doenças em particular, ele diz que, pelo que sabe, são doenças silenciosas, de tratamento prolongado, e que a adesão a tais tratamentos exige o acompanhamento por uma equipe capaz de compreender o modo de vida de cada um dos pacientes. Diante dessas respostas, todas feitas a partir do que ele já sabe, e na ausência de ações de mudança do modelo assistencial, podemos imaginar que este gestor teria pouca disposição de apostar que a criação das unidades que tanto o fascinaram produzirá um grande impacto sobre o perfil de morbimortalidade de seu município.

Este exemplo mostra como um conjunto de perguntas sobre quais são os problemas na situação em que se vive (e não apenas qual é o problema da vez), sobre como explicamos estes problemas e como imaginamos que esta ou aquela ação transformará o problema, sem qualquer mudança no conhecimento sustentado pelos atores, pode produzir significativas mudanças no desenho das ações. Neste sentido, a sistemática proposta por Matus oferece aos atores uma sistemática para a utilização, até as últimas consequências, do conhecimento que já têm acerca da situação. É fundamentalmente isto que se pode esperar de um enfoque de planejamento.

É claro que, pelo que vimos antes, o cálculo sistemático amplia as possibilidades de, diante dos fracassos das propostas, mais facilmente aprender com os erros. Ou seja, ainda que não funcione, ele também opera no sentido do aprimoramento do próprio repertório cognitivo de quem planeja.

Mas talvez seja prudente retirar de nossas propostas sobre o enfoque situacional todos os elementos que sugerem um determinado modo de interpretar a realidade. Em outros termos, parece-nos muito útil, na construção de propostas metodológicas de planejamento, restringir nossas ofertas ao modo de sistematizar o cálculo que precede e preside a ação, na tentativa de oferecer ferramentas que permitam aos atores sociais, ou aos coletivos que planejam, utilizar o conhecimento que possuem, científico ou não, até suas últimas consequências. Como nos parece muito útil evitar definir, desde fora de um coletivo que planeja, os procedimentos operacionais (ou seja, definir o método). Isto significa admitir radicalmente o caráter autorreferencial do planejamento. Talvez esta perspectiva implique um redirecionamento do esforço acadêmico no sentido do desenvolvimento do planejamento para o SUS, que evite que nós, da academia, sejamos tão normativos quanto aos métodos.

Artigo apresentado em 26/04/2010

Aprovado em 07/06/2010

Versão final apresentada em 11/06/2010

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2010

Histórico

  • Revisado
    07 Jun 2010
  • Recebido
    26 Abr 2010
  • Aceito
    11 Jun 2010
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