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Tensão entre paradigmas: notas sobre a política social no Brasil (1988/2008)

DEBATEDORES

Tensão entre paradigmas: notas sobre a política social no Brasil (1988/2008)

Eduardo Fagnani

Departamento de Política e História Econômica, Universidade Estadual de Campinas. eduardo.fagnani@uol.com

Introdução

Tive a honra de ser convidado pela Fundação Oswaldo Cruz para comentar um artigo do meu amigo Nilson do Rosário Costa. Trata-se de trabalho oportuno que estimula o debate qualificado sobre a trajetória da política social brasileira do final dos anos oitenta até os dias atuais.

Examinando essa trajetória o autor defende dois argumentos centrais:

1. A política social implementada a partir de 1990 apresentou "notável continuidade" com o projeto da proteção social que emergiu da agenda da redemocratização e foi consagrado pela Constituição de 1988.

2. A estratégia macroeconômica pós 1990 não representou obstáculos à continuidade da implementação da agenda da redemocratização no campo social.

Pretendo questionar estes dois argumentos e ressaltar que, desde o início dos anos noventa, a política social brasileira vem sendo submetida a tensões entre dois paradigmas antagônicos: o Estado Mínimo versus o embrionário Estado de Bem-estar Social. Enfatizarei que a "Constituição Cidadã" tem vivido um calvário e sobrevive mutilada e transfigurada.

"Notável continuidade"?

O primeiro argumento defendido por Costa é que a partir de 1990 houve "uma notável continuidade no escopo da proteção social criado pela nova democracia brasileira"(grifos meus). Nesta perspectiva, o governo Fernando Henrique Cardoso - FHC (1995/2002) "logrou indiscutíveis êxitos" no avanço da agenda de transformação formulada pelas forças que lutavam pela redemocratização. Ainda segundo o autor, "da mesma maneira que ocorreu na gestão macro-econômica, os governos de FHC e Lula mantiveram as linhas institucionais do regime de proteção social praticamente inalterados ao longo de quase duas décadas" (grifos meus).

O principal ponto que sustenta essa tese apóia-se na percepção de que uma das maiores "inovações" do governo FHC foi "combinar políticas universais e focalizadas sem se contrapor à agenda federalista das áreas sociais tradicionais, como educação, saúde e assistência social".

Discordo desta interpretação por duas razões.

Em primeiro lugar, não é adequado considerar a "focalização" como a continuidade da agenda da redemocratização - "uma resposta à crítica à ausência de foco e a ineficiência das políticas públicas sociais brasileiras durante o regime militar". A agenda da redemocratização era baseada no paradigma do Estado de Bem-estar Social e a "focalização" é a antítese desse paradigma. Em vez da continuidade, a focalização foi uma cunha aberta pelas forças do mercado para inserir o Estado Mínimo na agenda. Além disso, para a agenda da redemocratização1, enfrentar a pobreza não significava "focalizar". A estratégia fundava-se na adoção de medidas de caráter estrutural (a distribuição mais igualitária da renda e da riqueza, etc.) simultaneamente à adoção de "medidas emergenciais, visando a resultados de curto prazo", proporcionando "alívio imediato das condições de vida dos brasileiros mais pobres".

Em segundo lugar, ao falar da "notável continuidade", o autor se restringe a apenas três setores da agenda da redemocratização: educação fundamental, saúde e assistência social:

. Em alguns casos, houve uma clara estratégia impulsionada pelo Executivo Federal visando à supressão de direitos conquistados em 1988. Este é especialmente o caso da Previdência Social (Emenda Constitucional 20/98)2 e das reformas trabalhistas e sindicais3.

. Em outros casos, a agenda da redemocratização foi desfigurada ou marginalizada. Esses são especialmente os casos das políticas de habitação popular, saneamento, transporte público e reforma agrária.

. Mesmo no caso dos setores da educação, saúde e assistência social s avanços institucionais obtidos a partir de 1993 ocorreram sob o forte fogo cruzado das autoridades econômicas, que sistematicamente minaram esses esforços.

. Finalmente, como falar em "notável continuidade" se a estratégia macroeconômica adotada a partir de 1990 desorganizou o mercado de trabalho e produziu impactos dramáticos no emprego e na renda?

Estratégia macroeconômica versus estratégia de desenvolvimento social

O segundo argumento central defendido por Costa é que a estratégia macroeconômica pós 1990 não representou obstáculos à continuidade da implementação da agenda da redemocratização no campo social. Para fundamentar esse ponto de vista, o autor apóia-se no documento "Uma Estratégia para o Desenvolvimento Social"4. Em suas palavras esse documento "pareceu ter definido uma agenda congruente com o novo modelo de desenvolvimento". [...] "Parece evidente que a estabilidade econômica com integração externa levaria à reestruturação do sistema de proteção social dentro das novas condições impostas à disponibilidade de financiamento do setor público" (grifos meus).

Em primeiro lugar, esta retórica resume a visão de setores do PSDB que detinham reduzido poder na correlação de forças internas ao governo. A real estratégia de FHC refletia a posição das correntes mais conservadoras. Na área econômica, as fissuras entre "ortodoxos" e "desenvolvimentistas" foram fartamente explicitadas5 desde o primeiro mandato. No segundo mandato, prevaleceu, ainda com maior vigor, a posição ortodoxa defendida pelo ex-ministro Pedro Malan, a quem, segundo o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, "FHC sempre apoiou". Assim, o citado documento não teve qualquer importância nos rumos da política social e econômica. Esquecido no primeiro mandato, foi sepultado no segundo.

Entretanto, em segundo lugar, o mais importante é demonstrar que os fatos seguiram na direção oposta da retórica. O argumento central que defendo é que, no período 1990-2006, houve extrema incompatibilidade entre a estratégia macroeconômica e de reforma do Estado, central e hegemônica na agenda governamental, e as possibilidades efetivas de desenvolvimento e inclusão social. Sob a hegemonia política e ideológica do "pensamento único", no Brasil, a partir de 1990, criou-se um campo fértil para os experimentos neoliberais no campo macroeconômico. O Plano Real aprofundou a trajetória de inserção do Brasil no cenário internacional dominado pela globalização financeira6. Este contexto delimitou a forte oposição entre a agenda neoliberal e a agenda da redemocratização, no campo social e econômico.

Em primeiro lugar, em decorrência da estagnação da economia. Aqui é preciso ressaltar um ponto crucial: aestagnação era uma variável implícita no modelo de estabilização adotado no Plano Real.A manutenção da "âncora cambial" dependia de taxas de juros elevadas - em alguns momentos foram superiores a 40% (crises do México, da Ásia e da Rússia) - que inibiam o crescimento (entre 1990 e 2002, a taxa média anual de crescimento do PIB foi um pouco superior a 2,5%). A estagnação, somada ao conjunto de outras mudanças liberalizantes, desorganizou o mercado de trabalho e fragilizou as relações sindicais e trabalhistas7.

Em segundo lugar, o Plano Real atrelava a estabilidade de preços à abertura comercial e sobrevalorização do Real, que a agravaram a crise do balanço de pagamentos. A saída era acumular reservas pela manutenção de juros elevados. Como consequência, a dívida pública total em percentagem do PIB subiu de 30% para 56%, entre 1994 e 2002. Esse perfil do endividamento expandiu os gastos com juros (7,2% do PIB em 2002). A maior pressão das despesas financeiras estreitou os raios do financiamento dos gastos sociais. Estudo realizado por Castro, Ribeiro e Carvalho8 revela que, entre 1995 e 2002, a participação do gasto social federal na despesa total do governo federal declinou 9 pontos percentuais (de 59% para 50%), enquanto a participação das despesas financeiras cresceu 13 pontos percentuais (de 20% para 33%). Entre 1995 e 2002, o gasto social federal como proporção do PIB cresceu 1,5 pontos percentuais (de 11,2% para 12,7%), enquanto a despesa financeira cresceu 4,8 pontos (de 3,7% para 8,5%). Os gastos federais com educação declinaram entre 1995 e 2002 (de 0,95% para 0,76% do PIB); o mesmo comportamento ocorreu com a saúde (de 1,79% para 1,68% do PIB).

Tensões entre paradigmas

Em suma, procurei argumentar que não existem elementos concretos que sustentem a tese da continuidade. Mais especificamente, na trajetória da política social brasileira nas últimas cinco décadas, é possível identificar dois movimentos opostos9. O primeiro aponta o rumo da estruturação das bases institucionais, financeiras e de proteção características do Estado de Bem-estar Social. Esse processo ganhou impulso a partir de meados dos anos setenta, no âmago da luta social pela redemocratização do Brasil. Foi conduzido pelo amplo movimento social e popular que se opunha ao regime militar. Essa longa travessia desaguou na Constituição de 1988.

O segundo aponta na direção contrária: tentar impedir a consumação daquelas bases esboçadas em 1988. Após as primeiras contramarchas (nos últimos anos da transição democrática), esse movimento ganhou vigor, a partir de 1990. Desde então, abriu-se um novo ciclo de reformas liberais e conservadoras. No campo social, os princípios do paradigma neoliberal são absolutamente antagônicos aos da Carta de 1988. A "Constituição Cidadã" se transformou na "Constituição anacrônica"10,11. As tensões entre paradigmas tão antagônicos são evidentes: a seguridade social versus o seguro social; universalização versus a focalização; a prestação estatal dos serviços versus privatização; os direitos trabalhistas versus a desregulamentação e flexibilização. Em suma, este é o contexto de tensões pelas quais as políticas sociais estão sendo submetidas desde 1988 até os dias atuais.

Em função dos limites de espaços contidos nesses comentários, faço referencia a um trabalho12 que sintetiza as diversas tentativas de desfiguração das conquistas sócias desde 1988 até 2008, periodizadas da seguinte forma:

. Oposição na Assembléia Nacional Constituinte (1987/88)

. As Primeiras Transgressões (1989)

. A Primeira Etapa da Tentativa de Contra-Reforma (1990/92)

. O Funeral Adiado (1993)

. A Segunda Etapa da Tentativa de Contra-Reforma (1993/02)

. Novas Tentativas de Contra-Reforma (2003/06)

Espero deixar claro, que os embates e tentativas de mutilação da agenda da redemocratização - a maior parte das quais empreendidas pelo Executivo Federal, desde 1988 até nossos dias - não deixam quaisquer elementos que tornem crível a tese da "notável continuidade".

  • 1
    Brasil. Secretaria de Planejamento da Presidência da República. I Plano Nacional de Desenvolvimento da Nova República, 1986-1989. Brasília: Secretaria de Planejamento da Presidência da República; 1986.
  • 2. Fagnani E, Henrique W, Lúcio CG, organizadores. Previdência social: como incluir os excluídos? Uma agenda voltada para o desenvolvimento econômico com distribuição de renda. São Paulo: LTr, 2008.
  • 3. Krein JD. Balanço da Reforma trabalhista do governo FHC. In: Proni M, Henriques W, organizadores. Trabalho. Mercado e sociedade. O Brasil nos anos 90 São Paulo: Editora da Unesp; Campinas: IE-Unicamp-Cesit; 2003.
  • 4. Brasil. Presidência da República. Uma estratégia de desenvolvimento social Brasília: Governo Federal; 1996.
  • 5. Serra J. Entrevista. In: Mantega G, Rego JM. Conversas com economistas brasileiros São Paulo: Editora 34; 1999.
  • 6. Braga JCS. A financeirização da riqueza. Economia e Sociedade 1993; 2:25-58.
  • 7. Baltar P. Estrutura econômica e emprego urbano na década de 90 Brasil. In: Proni M, Henriques W, organizadores. Trabalho. Mercado e sociedade. O Brasil nos anos 90 São Paulo: Editora da Unesp; Campinas: IE-Unicamp-Cesit; 2003.
  • 8. Castro J, Ribeiro JA, Carvalho B. Gasto social e política macroeconômica: trajetórias e tensões no período 1995-2005 [texto para discussão n. 1324] . Brasília: IPEA; 2008.
  • 9. Fagnani E. Política social no Brasil (1964-2002): entre a cidadania e a caridade [tese]. Campinas (SP): Instituto de Economia, Unicamp; 2005.
  • 10. Campos R. A lanterna na popa - memórias Rio de Janeiro: Top Books; 1994.
  • 11. Giambiaggi F. As raízes do atraso: paternalismo X produtividade Rio de Janeiro: Elsevier; 2007.
  • 12. Fagnani E. Direitos sociais no fio da navalha. In: Vaz FT, Musse JS, Santos RF, organizadores. 20 Anos da Constituição cidadã: avaliação e desafios da seguridade social Brasília: ANFIP, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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