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Políticas de Saúde no Brasil, continuidades e mudanças

RESENHAS BOOK REVIEWS

Ialê Falleiros

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. ialefalleiros@gmail.com

POLÍTICAS DE SAÚDE NO BRASIL, CONTINUIDADES E MUDANÇAS. Machado CV, Baptista TWF, Lima LD, organizadores. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2012, 324 pp.

Esta obra propõe a abordagem da política nacional de saúde de um ângulo mais amplo, relacionando-a ao atual debate sobre as políticas sociais no Brasil, sobretudo na primeira década do século XXI. Seus autores são pesquisadores reconhecidos no campo da saúde coletiva, acompanhados, em alguns textos, por pesquisadores mais jovens e igualmente comprometidos com a construção do conhecimento científico crítico-propositivo na área, num momento específico de consolidação do regime democrático, sob a égide capitalista, renovado por um projeto que aposta na possibilidade de congregar lucratividade de mercado e finalidades sociais solidarizantes e redistributivas. Tal projeto compreende o Estado como capaz de sintetizar e equilibrar tais anseios presentes na sociedade, conferindo às políticas sociais papel de relevo na produção dos desenvolvimentos econômico e social do país.

O capítulo que o inaugura apresenta três conjunturas, uma primeira identificada ao governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e nomeada "neoliberal" (1995-2002), e outras duas identificadas ao primeiro e segundo governo Lula, nomeadas, respectivamente, "de transição" (2003-2006) e "neodesenvolvimentista" (2007-2010). Essa definição não é consensual entre os estudiosos da política social. Há autores que caracterizam o que seriam essas três conjunturas como integrantes de um processo mais geral de desenvolvimento do neoliberalismo no país, como se verifica na coletânea organizada por Mota 1; e há, ainda, outros, como Neves 2,3, que definem o que seriam as duas primeiras conjunturas (1995-2006) como "neoliberais de Terceira Via", enquanto a terceira conjuntura é caracterizada como de atualização desse projeto. Filiando-se, de modo geral, a leituras que caracterizam os governos Lula como "pós-neoliberais" 4, o trabalho, em questão, busca identificar, ao longo de suas três partes: Contexto, Caminhos e Processos, mudanças e continuidades em relação às três conjunturas apresentadas.

A Parte I – Contexto – apresenta discussões mais gerais sobre os contornos das políticas sociais nas décadas decorrentes da implementação da Constituição Federal de 1988, sobre as diretrizes para a política nacional de saúde e sua incorporação ao projeto de desenvolvimento vigente – com ênfase na política de produção de insumos para a área – e sobre as tensões e disputas envolvendo interesses privados na produção dessa política. Essas discussões são captadas nos capítulos 1, 2 e 3.

A Parte II – Caminhos – traz análises sobre as principais linhas da política nacional de saúde implementada nos contextos apresentados, enfocando a agenda do Ministério da Saúde para a área, com destaque para as políticas voltadas à descentralização, à atenção primária e ao trabalho e à educação em saúde, e a agenda governamental para a área voltada prioritariamente à saúde bucal, ao atendimento de urgências e à assistência farmacêutica. Tais análises se encontram nos capítulos 4, 5, 6 e 7.

A Parte III – Processos – oferece ao leitor a possibilidade de acompanhar os rumos percorridos pela política nacional de saúde – sobretudo no que tange às diretrizes de descentralização, regionalização, participação e controle social, a partir de estudos envolvendo alguns importantes espaços de articulação dessa política no interior da aparelhagem estatal nos dois governos Lula: as Comissões Intergestores, a Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde e o Legislativo federal. Esses estudos são apresentados nos capítulos 8, 9 e 10.

Os resultados apresentados ao longo dos capítulos conformam um grande balanço da política nacional de saúde na primeira década do século XXI, no qual se pode destacar, dentre outros, os seguintes traços de continuidade em relação aos contextos anteriores: a redução da participação federal no gasto total em saúde (pelos gastos privados elevados e pelo aumento dos estados e municípios no gasto público); a forte dependência externa de insumos para a saúde; a prioridade do Ministério da Saúde conferida à política de atenção primária; e as dificuldades de formação de redes regionalizadas de atenção à saúde e de superação do modelo fragmentado de oferta de serviços públicos.

No que tange às mudanças, chamam atenção dos autores, dentre outras: a inclusão (ainda que sem o estatuto de outras áreas) da saúde na agenda do desenvolvimento e o incentivo a atividades de produção de insumos estratégicos no nível federal; criação de novas secretarias no Ministério da Saúde ligadas ao trabalho e à educação e à produção de insumos, sem, contudo, a conformação de uma burocracia sólida para dar conta dessas novas funções no nível central; a construção de uma agenda social de combate à pobreza e inclusão, envolvendo políticas como saúde da família, saúde mental, saúde bucal, atenção a urgências e assistência farmacêutica (essa última mediante subsídio a farmácias privadas conveniadas); a criação de novas instâncias regionais a partir do Pacto pela Saúde (2006); a vinculação dos repasses à adesão a estratégias ou programas por estados e municípios; o estímulo à gestão participativa e ao controle social, direcionados à promoção da equidade de grupos vulneráveis e ações de ouvidoria, auditoria, monitoramento e avaliação da gestão no SUS; a profusão de demandas e necessidades de diferentes grupos no âmbito do Legislativo federal, resultando na segmentação dos direitos, reforço à fragmentação e dificuldade de orientação estratégica de um projeto público e universal para a saúde; o estímulo às parcerias público-privadas na área (PPPs); e uma lucratividade excepcional das empresas de planos e seguros de saúde, a partir de 2007, com as aquisições, fusões e investimentos, abertura de capital e articulação com bancos de investimentos.

Dentre os desafios apresentados, pontua-se, entre outras, a necessidade de superar tensões entre interesses públicos e privados na saúde via regulação e acentuação do poder de compra estatal e de recompor o quadro de servidores públicos federais, avançando na centralidade do papel da saúde em uma proposta de desenvolvimento baseada no bem-estar social, por meio da configuração de estratégias e instrumentos de planejamento, regulação e financiamento de apoio à conformação de sistemas públicos regionais de saúde e o desenvolvimento de mecanismos que favoreçam a participação de ampla gama de atores, bem como formas de garantir a defesa de um projeto de saúde pública no âmbito do Legislativo e a criação de mecanismos que garantam maior transparência ao processo político, de modo a afirmar o projeto democrático para a saúde.

Uma lacuna, a ser preenchida por futuros trabalhos, seria a análise conjunta dos diversos balanços apresentados, à luz do enfoque e das discussões propostos no primeiro capítulo, investigando os sentidos mais gerais das continuidades e mudanças delineadas e contribuindo mais diretamente para o debate sobre a caracterização ou não da conjuntura atual como neodesenvolvimentista. De todo modo, os desafios apresentados nos textos condensam o projeto para a saúde que orienta o campo da saúde coletiva, possibilitando apreender convergências e pontos de tensão com o projeto estabelecido.

Enfim, trata-se de um material de relevo para todos os interessados em estudar a política enquanto dimensão da vida social e compreender sua produção e suas interpretações como expressões da correlação de forças políticas, econômicas e culturais – envolvendo determinados contextos, bem como a definição de caminhos e o estabelecimento de processos específicos, guardando relações com o que foi determinado historicamente.

  • 1. Mota AE, organizador. Desenvolvimentismo e construção de hegemonia: crescimento econômico e reprodução das desigualdades. São Paulo: Cortez Editora; 2012.
  • 2. Neves LMW, organizador. A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar o consenso. São Paulo: Editora Xamã; 2005.
  • 3. Neves LMW, organizador. Direita para o social e esquerda para o capital. Intelectuais da nova pedagogia da hegemonia no Brasil. São Paulo: Editora Xamã; 2010.
  • 4. Sader E, organizador. 10 anos de governos pósneoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo/Rio de Janeiro: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais; 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Set 2013
  • Data do Fascículo
    Set 2013
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