Acessibilidade / Reportar erro

ENTREVISTA COM FÁBIO FERNANDES

APRESENTAÇÃO

Fábio Fernandes é tradutor, escritor e professor no curso de Jogos Digitais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Lá realizou seu mestrado (2004) e doutorado (2008) em Comunicação e Semiótica, voltado para a cibercultura e suas representações na ficção científica, gênero pelo qual é reconhecido como notório tradutor literário no Brasil. Fez seu pós-doutorado (2012) na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo e formou-se pelo Clarion West Writers Workshop (2013). Como escritor, publicou Os Dias da Peste (Tarja Editorial, 2009), escreveu, com Pollyana Ferrari, No tempo das telas (Estação das Letras e Cores, 2014), tendo antes realizado a coletânea de contos Interface com o Vampiro e outras histórias (Writers, 2000) e um livro a partir de sua dissertação de mestrado: A Construção do Imaginário Cyber (Editora Anhembi Morumbi, 2006). Nascido em 1966, graduou-se em Comunicação pelas Faculdades Integradas Hélio Alonso em 1993, tendo como pesquisa “o que é o fanzine”, formato que abrange diversos públicos, muito conhecido por leitores de ficção científica. No entanto, antes de ter sua formação completa, já trabalhava com tradução de títulos majoritariamente do inglês e alguns do espanhol e assim segue desde 1985 até hoje. Somando o interesse por tradução à sua área de conhecimento e pesquisa em mídias digitais, cibercultura e sua presença na literatura e cinema, traduziu uma extensa lista de obras de fantasia, terror e ficção científica no campo literário, entre outros livros de âmbitos específicos. Entre os vários títulos que traduziu, destacam-se os romances escritos por William Gibson (Neuromancer, publicado em 2009 como terceira tradução do livro no Brasil, tendo também uma edição comemorativa de 30 anos em 2014; e Reconhecimento de Padrões, de 2005 e reeditado pela terceira vez em 2013), Isaac Asimov (Fundação e Fundação e Império, ambos lançados em 2009), Philip K. Dick (O Homem do Castelo Alto, lançado em 2006; e Valis, de 2007 e reeditado em 2014), Neal Stephenson (Snow Crash, de 2008 e reeditado em 2015), Arthur C. Clarke (2001: Uma Odisseia no Espaço, lançado em 2013) e Anthony Burgess, com Laranja Mecânica, conhecida por ser a segunda tradução do romance na história do livro e a primeira da Aleph (2004), tendo uma edição comemorativa de 50 anos em 2012, reeditada em 2015. Todas os livros traduzidos por Fernandes aqui listados foram publicados pela editora Aleph, reconhecida como a principal no ramo de ficção científica no Brasil, tornando-o assim uma figura central na tradução de obras renomadas do gênero em nosso país.

ENTREVISTA COM FÁBIO FERNANDES

Cadernos de Tradução (CT): Quando você começou a se interessar por tradução?

Fábio Fernandes (FF): Desde adolescente. Não sei precisar a idade, mas sei quando fiz a primeira tradução, digamos, “oficial”: foi aos dezessete anos, para um fanzine de um colega de escola. Eu estava prestes a me formar no curso de inglês e estava com muita vontade de praticar o que já havia aprendido. Ele me pediu que traduzisse dois textos: uma entrevista com William Shatner, o Capitão Kirk da série de TV Jornada nas Estrelas, e uma matéria curta sobre a mesma série. Adorei a experiência e percebi que queria fazer mais daquilo. Formei-me em inglês aos dezoito (num curso de inglês, não em Letras) e poucos meses depois ingressei no curso de Tradutores e Intérpretes do saudoso Daniel Brilhante de Brito.

CT: Quais gêneros literários e de quais idiomas você traduz?

FF: Comecei traduzindo de tudo, de administração a zootecnia (trabalhei por um tempo na Encyclopaedia Britannica, traduzindo verbetes para os Livros do Ano), passando por auto-ajuda e quejandos. Mas minha preferência sempre foi ficção. Meu trabalho mais importante no início da carreira foi a tradução de parte dos Livros de Sangue, do autor britânico de terror Clive Barker (da série de cinema Hellraiser), que me foi confiada em mãos por Ênio Silveira, na virada dos anos 1980 para os 1990, na Civilização Brasileira. Depois disso já traduzi muitos gêneros ficcionais, mas aquele no qual me especializei (inclusive porque escrevo textos ficcionais e acadêmicos sobre ele) é a ficção científica. Traduzo primordialmente do inglês, com alguns poucos trabalhos do espanhol e do francês.

CT: Qual é a sua formação enquanto tradutor? É essencialmente prática ou a(s) teoria(s) tem(têm) algum papel?

FF: O curso do Daniel Brilhante tinha um foco na prática. Não discutíamos teoria – embora fôssemos bastante incentivados a ler os teóricos. Mas confesso que só fui ler teoria de tradução anos depois, quando já tinha uma carreira sólida. E acho que isso me fez bem. Creio que ter começado pela teoria (digo isto apenas por mim, não é uma regra universal) teria me travado, me tornado um tradutor inseguro, sem ímpeto.

CT: Qual foi a contribuição de Paulo Rónai e de Daniel Brilhante de Brito em sua formação?

FF: Imensa. Primeiro, que eu já conhecia e admirava à distância o trabalho do Paulo Rónai. Ainda antes de fazer o curso do Daniel, tive a felicidade de trocar duas cartas com Paulo Rónai sobre a tradução de Duna, de Frank Herbert, que havia saído em 1984 pela Nova Fronteira. Ao lê-la, eu havia encontrado diversos erros e escrevi para um fanzine um artigo cotejando a tradução com o original (inaugurei uma coluna para esse zine que, creio, foi a primeira e única iniciativa do gênero no país depois da famosa coluna de Agenor Soares de Moura no Diário de Notícias, na década de 1940 – eu fiz isso na década de 1980). Paulo Rónai me respondeu com enorme gentileza, concordando com algumas de minhas observações e discordando de outras. A generosidade e disponibilidade dele me deram o impulso de que eu precisava para, pouco tempo depois, ingressar no curso de Daniel Brilhante – que só fez aumentar meu amor pelos idiomas. Daniel foi um ser humano fantástico, que falava vinte idiomas (modestamente, ele dizia que só dominava dez, e que os outros dez ele apenas entendia adequadamente – mas eu o vi diversas vezes conversando com nativos de diversos países em suas línguas de origem sem sotaque, e suas aulas de tradução eram sempre repletas de etimologia, onde ele nos brindava com aulas adicionais de latim, grego e sânscrito, que dominava como poucos. Não sei um terço do que ele sabia, mas a paixão dele me contagiou de tal maneira que, ao fim de seu curso, estudei alemão com ele por dois anos, e depois comecei a estudar francês, italiano, holandês, latim, grego koiné, japonês, sânscrito, catalão, romeno. Não sou proficiente em todos esses idiomas (e só traduzo do francês, italiano e catalão, além do inglês e espanhol já mencionados) mas continuo estudando.

CT: Como chegou ao romance Laranja mecânica de Anthony Burgess (1962)?

FF: Eu já era leitor e fã do livro, tanto do original quanto da primeira tradução, um excelente trabalho de Nelson Dantas. Lembro que, na época em que a li pela primeira vez, na adolescência (meados dos anos 1980), achei as soluções dele para os neologismos de Burgess extremamente originais. Em 2003, quando estava cursando o Mestrado em Comunicação e Semiótica na PUC-SP, encontrei por acaso na rua o Alex Antunes, compositor e músico, que havia pouco tempo antes retraduzido para a editora Aleph o já clássico cyberpunk Neuromancer, de William Gibson (seria a segunda tradução para o português brasileiro; eu ainda traduziria esse livro uma terceira vez, mas estou me adiantando). Eu havia me mudado do Rio para São Paulo em 2001 e vivia de uma bolsa magra do CNPq, além de trabalhos ocasionais de tradução. Perguntei ao Alex se ele não poderia me apresentar ao editor da Aleph, e ele me disse que o faria com prazer, até porque a experiência com Neuromancer havia sido muito extenuante e ele não tinha intenção de retornar tão cedo ao universo da tradução. Então ele me pôs em contato com Adriano Piazzi, dono e na época editor da Aleph, que ao ver meu currículo me ofereceu de cara essa oportunidade – ou melhor, a oportunidade de participar de um teste sui generis. Acontece que o espólio de Anthony Burgess reserva para si o direito de aprovar o tradutor de A Clockwork Orange (não sei se o mesmo ocorre para seus outros livros), e exige da editora testes com três tradutores para serem analisados por um especialista na Inglaterra. Traduzi um capítulo (as nove primeiras páginas, salvo engano) e essa minha tradução foi a aprovada pelo espólio. O editor brasileiro também ficou satisfeito com o trabalho e dei tratos à bola.

CT: Qual é a importância do estranhamento e da sátira na obra de Burgess?

FF: Burgess pertence a uma geração de escritores ingleses inseparáveis da sátira – não a sátira necessariamente fácil e digestiva como a do grupo Monty Python, por exemplo, que é horaciana, ou seja, maliciosa, autodepreciativa, muitas vezes simpática e brincalhona), mas a sátira corrosiva, a sátira de cunho juvenaliano, caracterizada pela ironia e pelo sarcasmo, pelo pessimismo profundo. Ele descende de uma estirpe à qual pertencem, entre outros, Jonathan Swift, Samuel Johnson, George Orwell e Aldous Huxley (estes dois últimos, não por acaso, criadores das duas outras distopias clássicas do século vinte: 1984 e Admirável Mundo Novo). O estranhamento não é obrigatório na sátira, mas é um complemento poderoso a ela: desde os cavalos falantes e os seres minúsculos encontrados em As Viagens de Gulliver, de Swift, até o mundo globalizado e estranhamente “anglo-russificado” de Laranja Mecânica, a ostranienie conforme formulada por Viktor Chklovski é um índice de deslocamento do real, ou do que o leitor costuma entender por real. No caso de Burgess, o fato de ainda reconhecermos os elementos da narrativa (estamos no futuro mas existem bares, carros, aparelhos de TV e toca-discos exatamente iguais aos que existiam na época em que ele escreveu o livro) nos dá um certo alívio, mas a linguagem e o comportamento tão diferentes, bem como as poucas referências históricas salpicadas ao longo da narrativa pelo narrador nem um pouco onisciente, compõem uma espécie de “mosaico falsamento quebrado”, onde algumas peças parecem faltar, mas cuja composição precisa ser exatamente essa para transmitir ao leitor a sensação de insegurança na qual o zeitgeist da história está imerso.

CT: Ainda hoje, numerosas traduções procuram levar o autor/ texto ao leitor, valorizando assim o sentido e a leitura fluente o que acaba por apagar ou deformar traços estilísticos e estéticos do texto fonte. Como você percebe essa supremacia do sentido e como lidou com o estranhamento em sua tradução?

FF: Tive uma experiência recente e infeliz com essa chamada supremacia do sentido, que resultou em um rompimento de relações com uma editora com a qual eu trabalhava já há bastante tempo. Não vou citar nomes, mas basta dizer que a linha editorial mudou, e o novo editor, adepto da linha da adequação aos novos tempos, exigia que um texto da década de 1950 fosse praticamente reescrito inclusive com gírias da década de 2000. Sou contra, até porque altera o sentido primordial; no contexto, muitas vezes significante e significado se equivalem, não é possível sacrificar um em função de outro. Isso é efetivamente emburrecer a língua. O estranhamento não se dá somente no nível mais óbvio do cavalo falante mencionado na resposta anterior – ele também acontece quando o leitor se defronta com um texto de uma outra época. É preciso que o leitor também faça um esforço no sentido de compreender o contexto em que aquele texto foi urdido. Na minha tradução de Laranja Mecânica, busquei o tempo inteiro respeitar a intenção do autor, preservando aquilo que costumamos chamar de “estilo”, ou seja, a estrutura de sua narrativa, com suas peculiaridades, seu dialeto próprio, e o “idioleto” daquela sua obra em especial.

CT: Você poderia descrever como Burgess construiu a linguagem nadsat em seu romance e dar-nos alguns exemplos?

FF: O processo de construção da linguagem nadsat é semelhante, eu diria, ao da ocupação lenta e gradual de uma nação por uma grande massa de imigrantes falantes de outro grupo linguístico. Burgess não explica nada, mas poderíamos supor que nesse futuro “próximo” da Inglaterra (década de 1980), um fluxo migratório ou a comunicação de massa (o que é mais provável, porque ele descreve uma cena onde as pessoas assistem normalmente na TV eventos ao vivo via satélite transmitidos para todo o planeta, algo que ainda não existia na época em que Burgess escreveu o livro) teriam afetado profundamente a língua, que, como organismo vivo, é uma das primeiras estruturas a refletir as mudanças sociais. Assim como a chegada dos jesuítas portugueses ao Japão no século XVI provocou um impacto tão forte na cultura japonesa a ponto de acrescentar uma pletora de vocábulos à língua nipônica (tempura, tabako, resutoran), o mesmo poderia ter acontecido à Inglaterra da época de Alex. Só que no caso específico do nadsat eles tomam palavras de empréstimo ao russo. Alguns exemplos: baboochka (em russo, babushka), rassoodock (rassudok).

CT: Quais são as características dessa linguagem? Quais são seus elementos sonoros e gráficos?

FF: A linguagem nadsat é basicamente uma língua “anglo-eslava”, mas como Alex e sua gangue se comunicam em inglês, pode-se dizer que o nadsat ainda é inglês, porém com uma forte influência russa. Isso poderia significar uma fonética mais cheia de oclusivas e consoantes “duras”, mas a escolha de Burgess para o vocabulário é tão meticulosa que ele pesa muito bem as palavras, de modo a escolher quase que somente as que têm uma sonoridade (e consequentemente uma reprodutibilidade gráfica em caracteres ocidentais) semelhante ao inglês. Um exemplo é a palavra drug, que significa amigo em russo e cujo duplo sentido é mais do que evidente, porque significa droga em inglês.

CT: Como traduziu a linguagem nadsat para o português? Quais critérios você elegeu para esse desafio de recriá-la?

FF: O aportuguesamento foi uma das questões mais discutidas no decorrer do processo de tradução. Acabei optando por, sempre que possível, não aportuguesar as palavras nadsat, particularmente os substantivos. A maioria das palavras terminadas em y tiveram essa letra substituída por i (molodoy/molodoi, nagoy/nagoi), mas decidimos preservá-la no início de palavras (yahzick/yazik, yahma/yama), bem como a letra k (Tolchock/tolchok, veck/vek) para preservar o estranhamento, que um aportuguesamento mais radical (por exemplo, traduzir tolchock por tolchoque) prejudicaria. Isso, aliás, foi feito na tradução anterior, mas era um procedimento normal nos anos 1970, da mesma forma que vinte anos antes era comum traduzir prenomes de autores ou personalidades (Nelson Rodrigues, em uma de suas famosas crônicas jornalísticas, refere-se ao autor de O Capital como Carlos Marx, e não Karl Marx).

CT: Mais especificamente, como lidou com a gíria rimada que Burgess nomeou “rhyming slang”?

FF: Não me preocupei em rimar o tempo todo, mas sim em manter o aspecto lúdico dessa gíria, pois a intenção de Burgess era retratar uma gangue juvenil, praticamente pré-adolescente, com uma mentalidade bastante infantil. É por isso que, em diversos momentos, a linguagem de seus integrantes apresenta jogos de palavras do tipo que seria de se esperar de crianças ainda mais novas, baseados em repetição silábica na mesma palavra ou em palavras adjacentes. Skoliwoll, por exemplo, é rhyming slang para school (escola), que traduzi aqui como escolacola. (Note, neste caso específico, a conotação com o ato de “colar” que a repetição trouxe em português, e que, embora não tenha sido procurada propositalmente, optei por preservar.) Em casos como jammiwam (geleialeca), a repetição não trouxe a reboque nenhuma outra significação. Já gutiwutis (tripas) foi traduzido como categutes, um tipo de borracha usada em hospitais que antigamente era feita à base de tripa animal (catgut), pois mantém a rima e se adapta bem ao contexto.

CT: Quais foram as leituras necessárias para abordar a tradução desse texto tão singular?

FF: Em primeiro lugar, reli A Clockwork Orange nove vezes antes de começar a tradução. Fiz isso o mais devagar que pude, entregando-me com prazer à obra, mas já começando ali o processo de tradução, anotando nas margens do exemplar algumas ideias iniciais para a tradução deste ou daquele vocábulo. Li muito Shakespeare, tanto no original quanto as traduções de Bárbara Heliodora, para mim as melhores atualmente. Para o falar por vezes caudaloso de Alex, consultei também a tradução do Finnegans Wake feita por Donaldo Schuler, a pérola que se chama Finnicius Revem, além do Panaroma do Finnegans Wake dos irmãos Campos. Durante a tradução, li muito Ezra Pound e Paulo Leminski (o ABC of Reading, do primeiro, e o Catatau, do segundo, estavam na minha cabeceira, além dos poemas de ambos).

CT: Qual foi sua postura perante a intraduzibilidade de termos como “heavenmetal”?

FF: No caso de “heavenmetal”, minha postura foi de maravilhamento, o mais puro sense of wonder (uso aqui a expressão de Coleridge). Na época em que Nelson Dantas fez sua tradução, o termo “heavy metal”, creditado ao crítico musical Lester Bangs para descrever a música feita por bandas de rock como Led Zeppelin e Black Sabbath (embora William Burroughs tenha usado esse mesmo termo em The Soft Machine, de 1962, mas esse livro nunca teve tradução para o português e era pouco conhecido no Brasil), e é provável que Dantas tivesse achado mais belo e adequado traduzir o termo. Contudo, há momentos em que o tradutor precisa saber a hora de não traduzir, e percebi que, nos dias de hoje, verter “heavenmetal” para o nosso idioma seria roubar dessa palavra uma pletora de significados que a cultura ocidental já lhe presenteou nos últimos quarenta anos aproximadamente. Como o livro A Clockwork Orange é do mesmo ano de The Soft Machine, considerei a criação dessa palavra algo muito mais importante do que o cenário futurista descrito na narrativa. Burgess pertence àquela classe rara de artista que ajuda a criar o mundo, e não apenas o descreve. Como eu poderia traduzir essa palavra? Não poderia.

CT: Em que sentido a mudança dos nomes de alguns personagens como Dim (para Tosko) foi necessária?

FF: Foi necessária na medida em que Burgess se aproveita do duplo sentido dado pela própria língua inglesa. O caso de Dim é exemplar porque dim significa, literalmente, um sujeito de poucas luzes, ou seja, um ignorante, um tapado. Mas Nelson Dantas já havia usado a palavra tapado em sua tradução, e eu não queria repeti-la. Usei um termo muito em voga hoje que possui o mesmo significado. A troca da letra C para K foi apenas uma liberdade que tomei no sentido de manter o estranhamento pela via da russificação.

CT: Nesse sentido, a tradução de Nelson Dantas de 1972 foi previamente consultada? Caso tenha sido, em que a sua tradução se diferencia da anterior?

FF: A tradução de Nelson Dantas foi consultada em dois momentos. O primeiro, pontualmente, ao longo da tradução do texto, apenas para consulta específica de um ou outro termo, justamente para relembrar ou me certificar de qual havia sido a opção de Dantas, a fim de não repeti-la (como, por exemplo, no caso do Milkbar Korova, que na tradução dele era Leitebar e na minha virou Lactobar), e o segundo, quando fiz o meu copidesque pessoal (sempre reviso minhas traduções antes de entregá-las aos editores) e fiz um cotejo com a tradução dele a fim de garantir que por algum lapso ou mera coincidência não existisse uma frase idêntica.

CT: Quais foram os principais desafios dessa tradução?

FF: Precisamente garantir que o texto mantivesse a intenção do autor sem soar “novinho”, “moderninho”, e além disso não repetir em nada a tradução anterior. Quero que a tradução de Nelson Dantas ainda possa ser lida e respeitada como a excelente tradução que é, e espero que a minha seja encarada da mesma forma no futuro, quando vierem futuras traduções. Porque elas virão, não tenha dúvida. Os originais são eternos, as traduções não.

CT: Essa experiência de traduzir o romance Laranja mecânica mudou sua postura tradutória de alguma forma, notadamente, com as horas de brainstorm com os editores Adriano Froner Piazzi e Aurora Barbosa? O que você aprendeu com essa experiência?

FF: Laranja Mecânica foi um dos trabalhos que mais me deram prazer – e mais me deram trabalho, porque não se traduz uma obra desse calibre impunemente. O editor Adriano Piazzi foi de grande ajuda porque também ele é um fã da obra e, embora não seja tradutor, é um leitor de olho arguto, e em vários momentos ao longo do trabalho, em trocas de e-mails ou em telefonemas, ele me questionou sobre esta ou aquela escolha para traduzir determinado termo, mas o fez com legítima curiosidade, e várias vezes fez com que eu próprio me questionasse – e mais de uma vez voltasse atrás e repensasse minha opinião, refazendo uma frase aqui, um parágrafo acolá, até quase a exaustão. Já com Aurora Barbosa o processo foi diferente, porque além de escritora e artista plástica (desenhista com formação em tipografia), ela é minha esposa, e portanto o feedback era praticamente diário. Eu discutia trechos inteiros do livro com ela, lia passagens e também ela me questionava sobre o melhor caminho a seguir. Se aprendi algo com a experiência, é que escrever, como disse Garcia Márquez, é de fato um ofício solitário, mas traduzir, como Guimarães Rosa falou certa vez, é conviver. Traduzir é trabalhar em ressonância com aqueles que estão ao seu redor e também com os que não estão mais entre nós, mas que ainda têm muito a nos ensinar.

  • Publicado em setembro de 2017

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2017
  • Aceito
    15 Maio 2017
Universidade Federal de Santa Catarina Campus da Universidade Federal de Santa Catarina/Centro de Comunicação e Expressão/Prédio B/Sala 301 - Florianópolis - SC - Brazil
E-mail: suporte.cadernostraducao@contato.ufsc.br