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“TRADUTTORE-TRADITORE”: #sóquenão. A INTERSEMIOSE COMO DESAFIO EDUCATIVO DAS ARTES

“TRADUTTORE-TRADITORE”: #justnot! THE INTERSEMIOSIS AS EDUCATIONAL CHALLENGE OF ARTS

Resumo

Um dos clichês da teoria literária e cultural é o aforismo “traduttore-traditore”. Se bem quem traduz é sempre um traidor, é também verdade que o papel do tradutor e da tradução são operações necessárias. Nesse texto abordaremos a tradução intersemiótica como um desafio educativo das artes. A teoria da tradução, a literatura comparada e a semiótica serão os fundamentos de um axioma que consideramos ontológico: traduzo, então existo.

Palavras-chave
Intersemiose; Teoria da tradução; Texto

Abstract

One of the clichés of literary and cultural theory is the aphorism “traduttore-traditore”. Although who translates is always a traitor, it is also true that the role of the translator and translation are necessary operations. In this text we will discuss intersemiotic translation as an educational challenge of the arts. Translation theory, comparative literature and semiotics are the foundations of an axiom we consider ontological: I translate, therefore I am.

Key-words
Intersemiosis; Translation theory; Text

Os móveis primeiros do tradutor, que seja também poeta ou prosador, são a configuração de uma tradição ativa (daí não ser indiferente a escolha do texto a traduzir, mais sempre extremamente reveladora), um exercício de intelecção e, através dele, uma operação de crítica ao vivo (Haroldo de Campos, 1992CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagens e outras metas. São Paulo: Perspectivas, 1992., p. 43-44).

Começamos com um desabafo sincero e pessoal. Um dos clichês que mais me provocam e instigam é o incômodo aforismo “traduttore-traditore”. É verdade que quem traduz é, sempre, de certa forma misteriosa, um traidor. Mas é também verdade que o papel do tradutor e da tradução são necessários. Bendito seja o tradutor, por exemplo, que favoreceu a leitura de Graça infinita (2014. O original, Infinite Jest, foi lançado em 1996), livro imenso por páginas e densidade de escrita, do celebrado autor norte-americano David Foster Wallace. Caetano Waldrigues Galindo está se encarregando de verter ao português do Brasil alguns dos autores mais complexos, funambulescos e assustadores, como Thomas Pynchon, Tom Stoppard e James Joyce, com uma coragem que é premiada. Como pode-se apodar de traidor a equipe de estudos de coisas japonesas (“niponistas”?) que traduziu O Livro do Travesseiro, enorme e imenso romance escrito por uma mulher, Sei Shônagon (c. 966-1020), quando ainda na Idade Média europeia se caçavam lobos... e que conta no Ocidente com um número de happy few, admiradores e leitores, entre os quais Borges, com a colaboração de Maria Kodama, que o traduziu parcialmente e o diretor inglês Peter Greenaway, que se inspirou na obra para seu filme The Pillow Book. Ainda, louvor seja dado a Paulo Schiller, tradutor do húngaro, para ter nos dado a possibilidade única de ler um texto breve mas poderoso e de grande sutileza dramática como Os verbos auxiliares do coração (2011), de Péter Esterházy. Os exemplos poderiam preencher os quarenta minutos à minha disposição com extrema facilidade.

O que gostaria de apontar é que a tradução é uma prática necessária, que desafia os monolinguismos ideológicos e a própria ideia de Texto.

Em uma de suas últimas publicações, Edward Said tem denunciado a ausência ou a perda da memória da história e do sentido da filologia. Said intui que a abstração e a eliminação dos valores da tradição ocultam outras forças, como justamente a história e a filologia, ao ponto de reduzir ou perder a personalidade do intelectual. Torna-se portanto necessário ser educados, afirma Said, para “dilatar os circuitos da consciência” (2007, p. 100). Não existe uma produção estética contemporânea que não seja marcada por uma leitura polêmica e consciente da atualidade histórica e política. O autor de Orientalismo tem sempre defendido que a tradução permite uma luta contra os discursos dos poderes preestabelecidos e das identidades ainda não reconhecidas. Said denomina essa proposta como “a tarefa do humanista”:

Cultiva(r) essa percepção de mundos múltiplos e tradições complexas que interagem umas com as outras, essa inevitável combinação [...] de participação e distanciamento, recepção e resistência. A tarefa do humanista não é apenas ocupar uma posição ou um lugar, nem simplesmente pertencer a algum local, mas antes estar ao mesmo tempo por dentro e por fora das idéias e valores circulantes, que estão em debate na nossa sociedade, na sociedade de alguma outra pessoa ou na sociedade do outro (SAID, 2007SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 101).

Said sugere uma ampliação das fronteiras, e não apenas daquelas fronteiras que separa(va)m os gêneros literários e os estilos. Ele reivindica especialmente uma nova definição da comunidade cultural no sentido de uma comunidade ativa, que participa das dinâmicas do espaço nacional ou, se queremos, urbano. Essa comunidade transita sem se fixar ou se definir assentada num lugar de conforto. Pelo contrário, ela seria, ao meu ver, a proposta, talvez utópica, de uma comunidade tradutória, cujo tradere – como seria a etimologia latina do termo – seja o reconhecimento do outro como construção inevitável do eu. Assim, a circulação de um discurso plural, aberto às tipologias, por exemplo, das novas comunidades presentes nos diversos continentes, amplia o espaço que por um tempo ficou concentrado sobre uma ideia de Nação patriarcal, masculina, hierarquicamente superior. Alguns anos atrás, Benjamin Abdala Junior havia preconizado, sem falar de tradução lato sensu, como estou tratando aqui, uma reconsideração do panorama geopolítico internacional, por meio do termo utopista de “comunitarismo”. Se for assim, a tradução seria uma prática em que as fronteiras dos monolinguismos começariam a colaborar para poder finalmente reescrever a história cultural especialmente daqueles países sufocados ou ainda não suficientemente conhecidos e valorizados no passado.

São fronteiras estas – que envolvem a antiga metrópole e sua ex-colônia – não de separação, mas de colaboração, onde desempenha papel ativo a formação cultural (comunitarismo cultural) que se estabeleceu entre o novo e o antigo centro (ABDALA JUNIOR, 2003ABDALA JUNIOR, Benjamin. De vôos e ilhas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003., p. 87).

O conteúdo deste novo atlas linguístico e cultural é representado pela produção de significados simbólicos de “identidades pela diferença”: “Somos todos, os ex-cêntricos, viajantes em uma língua que se arriscou a lançar suas âncoras em outros e distantes portos” (PADILHA, 2005PADILHA, Laura. “Poesia angolana e remapeamento etno-cultural – trajetos”. In: José Luis JOBIM, Lívia Reis, et al. (Orgs.).Sentidos dos lugares. Rio de Janeiro: Ed. UERJ - Abralic, 2005, p. 87).

Hoje traduzir possui uma função de reflexão e de memória. É sempre preciso rediscutir a tradução como valor substancial do conhecimento e da produção de um saber outro, além, atualizado. A tradução é um saber móvel. Trata-se de uma mobilidade que a tradução assevera como a única possibilidade para os transfers epistemológicos. A função de memória da tradução possibilita também que a memória não se reduza a um problema de um povo só, de um sujeito único e irrepetível, memória entendida como fato privado, discurso egocêntrico, fala egoísta. Em vez de uma memória monolíngue, esta memória assim “traduzida” ou “transferida” pela tradução fala todas as línguas das comunidades, reais e imaginárias, e recompõe os fragmentos – que, caso contrário, seriam destruídos, devastados – num conjunto de línguas e escritas/escrituras à busca de um sentido último, de uma experiência vivenciada que as guarde, que as salve. Trata-se então de um movimento convergente em que os conceitos de comunidade e continuidade constituem a variação mais sólida do patrimônio cultural inter e transtextual:

Na noção do literário como globalidade estão presentes a de ‘comunidade’ e a de ‘continuidade’, sendo esta entendida como um processo que alterna memória e esquecimento. [...] Vigora também aí, de forma subjacente, a perda do conceito de propriedade privada, pois nesse grande conjunto tudo se torna propriedade de todos, patrimônio comum a que os escritores recorrem consciente ou inconscientemente. A tradição se faz por um efeito de memória (CARVALHAL, 2003CARVALHAL, Tânia. O próprio e o alheio. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 69-70).

Acrescentaria: também a “tradução” se realiza por um efeito de memória. Traduzo para não esquecer ou traduzo para, sim, esquecer que existiram traduções (literárias e não) que não me representam. Traduzo, porque existo.

Mas por que a tradução é percebida como uma traição? Ela é efetivamente uma traição. E está bem que seja assim. Recriação infiel, cruel, distante, a tradução, por sua natureza, trai porque ela nunca está se posicionando num terreno certo. Não gosta da retórica das ideologias, a tradução. A tradução pode gerar somente uma interpretação plural, ambígua. Trata-se de uma ambiguidade ditada pela consciência de que não existem textos que obedecem a regras de previsibilidade lógica. Os meios, os processos e os significados qualificam os textos na constatação de uma pluralidade sígnica que, como escreve Roland Barthes, “realiza o próprio plural de sentido: um plural irredutível” (1988, p. 74).

Considerando que o texto é, etimologicamente, um tecido, os significados que o constituem tem como resultado ser uma estereografia textual. Os sistemas semióticos, as linguagens e os códigos estéticos se materializam de modos diversos: instalações sonoras, pinturas, vídeo-arte, performances, livros de artista, citações, manchas, reescritas, epígrafes, borrões, representam a diferença “que nunca poderá repetir-se a não ser como diferença” (BARTHES, 1988BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 75).

Lisa Block de Behar observa no Texto, barthesianamente entendido1 1 “Son mouvement constitutif est la traversée (il peut notamment traverser l’œuvre, plusieurs œuvres)”. (BARTHES, apudBLOCK DE BEHAR, 2005, p. 92). , um “questionamento transgressivo [que] tem deixado em suspenso as margens da filosofia” (2005, p. 93), que encontra, em “uma experiência consecutiva, esta vez sem limites,” (ibidem) a exigência transtextual de sistemas e códigos. É uma exigência que o Texto traslada “nas indefinições da travessia, na metáfora da passagem, do transporte, do trânsito, da transferência, da tradução e da transposição, do traslado e da estadia - que não se opõem” (BLOCK DE BEHAR, 2005BLOCK DE BEHAR, Lisa. “Contradictorias aventuras y desventuras de la travesía”. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 7, 2005, p. 91-101., p. 93), pois tanto a mudança como sua permanência definem a obra de arte.

Gostaria de pensar na tradução como uma impermanência produtiva.

A ideia ou o conceito de tradução que consideraremos supera os limites da página escrita, da transcriação verbo-voco-visual, da prisão intelectual de que a uma palavra corresponde a outra palavra, de que um signo remete necessariamente, forçosamente, a outro signo, àquele signo único, rígido, limitado. Na realidade, a tradução nunca foi um ato de ingenuidade poética ou intelectual. O contexto histórico e a importância da presença dos textos na história sempre funcionaram como modeladores de consciência e propulsores de revoluções, por sorte, nem sempre sanguinárias. Adrian Marino lembra, a esse propósito, que a tradução do Mahomet, de Voltaire, na Romênia, por mão de I. Eliade-Radulescu, em que se frisa a vingança e o ódio para com o tirano, contribuiu eloquentemente para o despertar da consciência nacional e para a pertença a uma Europa do século XVIII renovada e polêmica sob a perspectiva iluminista (MARINO, 1994MARINO, Adrian. Teoria della letteratura. Bologna: Il Mulino, 1994.).

De fato, seria um erro superficial pensar na tradução como uma forma de comunicação binária (o texto original e sua versão outra, linguística, diferente do original, mas próxima a ele). Traduzir é pôr-se em comunicação “ternária”, pois o tempo e o espaço – em que esse diálogo acontece – se inserem em um sistema específico e variável de leitores e de histórias, intercultural e intertemporal.

Frente ao terreno da tradução, o comparatista, segundo a proposta de Cláudio Guillén, opera junto com o estudioso de literatura nacional. O comparatista é também tradutor sui generis. Ele amplia seu diálogo com as literaturas e as culturas; aliás, traduzir significaria, em outras palavras, dialogar, compreender, interpretar, entender. Guillén insiste, com efeito, na gestualidade tradutória como “a tentativa de compreender uma língua diferente da própria, já que as significações, as alusões, as tonalidades, os ritmos mudam inexoravelmente” e que “uma leitura completa requer a compreensão de um mundo verbal que difere do nosso” (GUILLÉN, 1985GUILLÉN, Claudio. Entre lo uno y lo diverso. Introducción a la literatura comparada. Barcelona: Crítica, 1985., p. 346).

Porém, hoje, com o processo cultural empreendido pelo discurso pós-colonial, é-nos muito difícil aceitar o diálogo tradutório como compreensão e interpretação. Talvez, curiosamente, o diálogo que a tradução estabelece põe em evidência as diferenças, mais que as convergências, os silêncios inexoráveis, mais que os intercâmbios proveitosos, as guerras culturais, mais que os conjuntos sistêmicos das culturas. Se é verdade que os tradutores devem ser considerados na perspectiva de “transculturadores”, isso procede no sentido de “grandes tradutores diferenciais da tradução”. Como lembra Tania Carvalhal, seguindo o pensamento de Haroldo de Campos, “a tradução é um ato subversivo de natureza cultural, porque critica e amplia a tradição cultural de um espaço que, diferentemente, teria a tentação da autorreferência como discurso e dispositivo natural” (CARVALHAL, 2004CARVALHAL, Tânia; SÁ REBELLO, Lúcia; CUNHA FERREIRA, Eliana Fernanda. Transcriações. Teoria e práticas. Em memória de Haroldo de Campos. Porto Alegre: Evangraf, 2004., p. 25). O trabalho tradutório se transforma, assim, em uma série de figuras alegóricas: ponte entre dimensões distantes e insuspeitáveis, demolidor de fronteiras, dilatador de espaços. O tradutor possui a enorme tarefa de reconfigurar imagens poéticas, assim como fazer com que as expressões puramente significantes sejam recobertas de significado e intensidade vital. É assim que, por exemplo, Octavio Paz (2005) e Haroldo de Campos (1977) encontraram a tradição das culturas do Extremo Oriente, oferecendo ao continente sul-americano uma expansão de visões e culturas que invertem a ideia de uma América exclusivamente “latina”. Octavio Paz e Haroldo de Campos construíram, nos anos 1970, uma “arquitetura de pontes” que poderia ser um modelo a ser repensado nessa época de globalizações.

Para Borges, a tradução pode ser lida como a introdução de um texto em outro contexto. A partir desse juízo borgiano, para nós, a tradução é uma operação alegórica, por natureza. A tradução introduz, pois, ao mesmo tempo, ela modifica o contexto, no silêncio do discurso entrelaçado entre armas e letras, como diria o Dom Quixote cervantino.

A tradução não é senão um ato subversivo que envolve, em primeiro lugar, o autor, que quer – como mencionávamos antes – dialogar, compreender, interpretar, entender o mundo e a história, sem nunca encontrar soluções apaziguadoras.

Um texto de 2005, de Emily Apter, intitulado, significativamente, Translation after 9/11: Mistranslating the Art of War, voltou à atualidade dos nossos dias, e nos introduz na complexidade de pensar a tradução, mais uma vez, como uma impermanência produtiva e como uma necessidade:

In the wake of 9/11 translation became a hot issue when the United States realized that it had a dearth of Arabic translators. Suddenly transparent was the extent to which monolingualism, as a strut of unilateralism and mono-cultural U.S. foreign policy, infuriated the rest of the world. Though monolingual complacency evaporated along with public faith in the translation skills of State Department and intelligence operatives, the psychic and political danger posed by the Anglocentrism of coalition forces was never sufficiently confronted. The “terror” of mistranslation has yet to be fully diagnosed, and the increasing turn to machine translation as a solution does little to assuage fear (APTER, 2005APTER, Emily. The Translation Zone. Princeton: P. University Press, 2005., p. 12).

Apter insiste no fato de que cada ação militar revela não apenas o desejo de impor uma cultura monolinguística, mas também a ausência de compreensão: uma não tradução e uma “destradução”, se nos é concedido usar criativamente esse termo. Para Apter, a “destradução” representa uma forma de manter a “guerra”, uma estratégia não somente militar, mas também e, sobretudo, cultural, constitutiva de todo um material que o escritor manuseia, investiga, critica. “War is, in other words, a condition of nontranslatability or translation failure at its most violent peak” (APTER, 2005APTER, Emily. The Translation Zone. Princeton: P. University Press, 2005., 16). É nesse pólemos que o autor se coloca no interior de outra “guerra” que é a sua própria guerra interior, e na qual os códigos da Literatura entram em luta contra as aporias da guerra, do Império e, especialmente, contra a tentativa de descrença no material estético como força política e de combate. Veja-se o que diz a este respeito Douglas Robinson em Translation and Empire:

The study of translation and empire, or even of translation as empire, was born in the mid- to late 1980’s out of the realization that translation has always been an indispensable channel of imperial conquest and occupation. Not only must the imperial conquerors find some effective way of communicating with their new subjects, they must develop new ways of subjecting them into docile or ‘cooperative’ subjects (ROBINSON, 1997ROBINSON, Douglas. Translation and Empire. Postcolonial Theories Explained. Manchester: St. Jerome Publishing, 1997., p. 10).

Ora, se o paradigma de qualquer império monolinguístico beira à margem da intraduzibilidade e da incompreensibilidade, é possível que a arte se encarregue da tarefa de traduzir o que não quer ser traduzido, o que não é traduzível, pois a sua tradução seria uma recomposição dos horrores e dos fascismos do que chamamos lato sensu de “Império”?

O comparatismo como metodologia científica é uma proposta tradutória. Pode-se até arriscar a dizer que o comparatismo é tradução. Como para a tradução, o comparatismo observa o fato estético sob uma perspectiva de flexibilidade. Não podem existir (somente) normas rígidas, ou leis fixas e imóveis. Pelo contrário, para o comparatismo, a obra deve ser lida, interpretada e considerada como um constante ultrapassar limites e fronteiras, uma transgressão infinita, uma ultrapassagem, porque o texto (literário e não literário) apresenta-se como lugar de trânsito. Nessa transitoriedade, que faz a diferença da metodologia comparatista, não se trata de relegar o texto artístico para uma simples explicação, mas, antes, procurar, parafraseando o título de Goethe, as afinidades eletivas para que estas afinidades funcionem como elementos e pontos de conexão ou de desdobramentos. Essas afinidades sugerem, indicam, não explicam, pois uma explicação fecharia, por sua “definitividade”, o círculo da produção e da recepção da mensagem. As afinidades realizam, ao contrário, um acréscimo produtivo, que dilata a interpretação do texto e as imagens que nele se produzem. A intersemiose que dela se desprende pluraliza a tradução e a revela como um lugar de dilatação, feito de condensações, expansões, retornos que não se cansa de re-doar novas significações e ressimbolizações à textualidade. O texto resulta assim, sempre, num trans-texto, num lugar de trânsito, numa tradução permanente. Na tradução cada campo epistemológico não perde sua própria singularidade. Roland Barthes chama esse efeito como “neutralidade”. Talvez essa denominação anule a significação da presença dos diferentes campos. Trata-se, melhor, da concomitância de uma diversidade epistemológica que não apenas sobrevive (conforme o pensamento de Barthes), mas vive uma nova vida, antes impensável. Essa tradução, feita de vida nova, é também um espaço novo em que as Artes dialogam entre elas e com os sujeitos “produtores e leitores”. Mais uma vez, estamos frente a uma reconfiguração que é preciso saber reconhecer.

Pode ser traduzida uma imagem para o texto? Ou vice versa? Se um tempo, com superficialidade esquemática, a pintura foi chamada de poesia muda e a poesia, inevitavelmente, de pintura falada, pode-se denominar de tradução a relação da poesia com a imagem? Como os elementos descritivos e/ou expositivos funcionam na literatura e como, por sua vez, os elementos retóricos e poético-narrativos se combinam, nesse trânsito, na pintura? E por que somente a pintura? A escultura não narra também histórias? Não possui uma retórica própria? Será que seria suficiente propor, como fez, com grande talento, Svetlana Alpers (1983, p. 26)ALPERS, Svetlana. The Art of Describing. Dutch Art In The Seventeenth Century. Chicago: University Press, 1983., ao formular novamente o aforismo de Kepler “ut pictura, ita visio” (a visão – o que vejo – é já uma pintura em si”)? A tradução não seria um “se ocupar” das visibilidades e das textualidades? Certamente, muito foi feito pela semiótica, do ponto de vista teórico. Omar Calabrese e Jean-Marie Floch, por exemplo, tentaram abordar a relação entre literatura e imagem segundo a perspectiva da semiótica visual e cultural, a partir de uma pergunta insidiosa, que subjaz a todo âmbito tradutório intersemiótico: como “ler” um quadro? “O texto escrito tem uma presença visual assim como a imagem: a página impressa é visualizada como quadro tanto quanto a imagem”, escreve Louis Marin (1996, p. 122)MARIN, Louis. “Ler um quadro: uma carta de Poussin em 1639”. In: CHAR-TIER, Roger (org.). Práticas da leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996.. Sempre nas páginas dedicadas ao quadro de Poussin, O maná, o semiólogo francês vai mais além, se questionando: “quais efeitos de visão e de leitura nascem de quadros contemporâneos cujo nome, o título, é ‘sem título’, ou de quadros que não têm título, mas o nome do pintor ou sua assinatura?” (MARIN, 2000______. Sublime Poussin. São Paulo: EdUSP, 2000., p. 23). O jogo de legibilidade do quadro constitui a metalinguagem própria do quadro. “O quadro só é legível porque se abre para uma multiplicidade de sistemas que formam um espaço epistemológico, multiplicidade cuja superposição define a significação do quadro em um jogo livre e aberto” (MARIN apudOLIVEIRA, 1993OLIVEIRA, Solange Ribeiro de (Org.). Literatura e artes plásticas: o Künstlerroman na ficção contemporânea. Ouro Preto, EdUFOP, 1993., p. 23). Texto e imagem se entrecruzam, assim, de forma sempre mais evidente. E seria suficiente pensarmos nos processos mediáticos da vídeo-arte, os mecanismos da televisão e do cinema, ou de novos suportes tecnológicos para observar a prepotência das imagens nos processos de conhecimento e de realização estética contemporâneos.

Surge naturalmente uma pergunta: é possível traduzir o signo linguístico e discursivo por meio de um signo visual? É possível uma interpenetração de ambos?

Recorremos a um exemplo. As célebres reproduções de fotografias After Walker Evans (1981), de Sherrie Levine, examinando e exacerbando as estratégias e os códigos de representação, incorporam uma transcodificação extrema, limiar, quase equivalente. O advérbio quase é, neste caso, uma prudência e uma obrigação. Levine manipula os créditos originais do retrato de Allie Mae Burroughs, realizado por Walker Evans. A fotógrafa americana encobre o ficcional utilizando os meios atuais de comunicação. Em suas estratégias de citação e plágio, sua preocupação ideológica sublinha, por um lado, a presença da identificação e do distanciamento como artista, e, pelo outro, tematiza o motivo da ausência e da morte, da impossibilidade de recuperar o passado. Levine se encarrega de sequestrar, desde uma perspectiva feminista, a autoridade patriarcal da estética fotográfica de Walker Evans. A transtextualidade neste caso se traduz numa elegia fúnebre, cínica e melancólica, da vanguarda e numa piscada de olho para com a mercantilização da arte. O lirismo de Levine está ligado à renúncia e à resignação ilusória de esperanças estéticas, e finalmente à questão sobre a originalidade e a reinvenção de significado.

Sherrie Levine poderia subscrever o desejo peremptório do Pierre Menard borgiano de não querer compor um Quixote “– lo cual es fácil – sino el Quijote”. Continua Borges: “Inútil agregar que no encaró nunca una transcripción mecánica del original; no se proponía copiarlo. Su admirable ambición era producir unas páginas que coincidieran – palabra por palabra y línea por línea – con las de Miguel de Cervantes” (BORGES, 1990BORGES, Jorge Luis. “Pierre Menard. autor del Quijote”. In: Obras completas. Buenos Aires: Emecé, 1990, p. 444-450., p. 447).

Benjamin Buchloh reporta uma declaração de Sherrie Levine num ensaio sobre a apropriação e a montagem na arte contemporânea, como modelos de uma tradução intersemiótica que possui abordagens alegóricas inerentes à própria natureza da arte:

Instead of taking photographs of trees or nudes, I take photographs of photographs. I choose pictures that manifest the desire that nature and culture provide us with a sense of order and meaning. I appropriate these images to express my own simultaneous longing for the passion of engagement and the sublimity of aloofness. I hope that in my photographs of photographs an uneasy peace will be made between my attraction to the ideals these pictures exemplify and my desire to have no ideals or fetters whatsoever. It is my aspiration that my photographs, which contain their own contradiction, would represent the best of both worlds2 2 “Em vez de tirar fotografias de árvores ou de nus, tiro fotografias de fotografias. Opto por imagens que põem de manifesto o desejo de que a natureza e a cultura nos imponham uma sensação de ordem e sentido. Aproprio-me destas imagens para expressar meu desejo simultâneo da paixão do compromisso e da sublimação do distanciamento. Procuro fazer com que minhas fotografias de fotografias produzam uma precária paz entre a atração que sinto pelos ideais que essas imagens encarnam e meu desejo de não ter ideais nem ataduras em absoluto. Aspiro a que minhas fotografias, de certo modo autocontraditórias, representem o melhor dos dois mundos”. (Tradução minha). (LEVINE apudBUCHLOH, 1982BUCHLOH, Benjamin H. D. “Appropriation and Montage in Contemporary Art by Allegorical Procedures”. ArtForum. New York, September 1982, p. 43-56., p. 52-53).

E se a tradução intersemiótica pode ser considerada sob a perspectiva alegórica, o projeto do artista Michael Mandiberg demonstra preocupação em fazer do trabalho de citação e de reescrita o paradigma conceitual da impossibilidade de originalidade e de singularidade artística. After Sherrie Levine (2001) é um jogo fotográfico que discute a autenticidade e enfrenta a mercantilização da arte.

Todas as aproximações tradutórias não são mutuamente excludentes, nem uma pode se considerar definitiva ou totalizante. A originalidade da tradução – se é possível que exista uma suposta originalidade – vincula-se, por tanto, à possibilidade de novas atualizações hermenêuticas da obra de arte. Roland Barthes afirma n’O rumor da língua que as possibilidades interpretativas do texto sempre excedem as da obra que “se fecha sobre o significado” (BARTHES, 1988BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 73), e seu campo de ação se realiza segundo “um movimento social de desligamentos, de cruzamentos, de variações”. Por consequência, “a lógica que regra o texto não é compreensiva (definir ‘o que quer dizer’ a obra), mas metonímica” (1988, p. 74).

A tradução pluraliza e amplia sincronicamente o Texto. Trata-se de uma operação especificamente comparatista porque pressupõe um processo de análises e sínteses constante, um jogo duplo, ou uma dupla condição, um jogo reflexivo que autoriza ler a obra de arte sob o olhar de uma nova poética. Na verdade, não sabemos quanto seja “nova” essa poética. Só sabemos que ela consente não reduzir o discurso artístico; pelo contrário, oferece-lhe uma instância dilatada, a possibilidade de uma prática aberta inerente ao próprio objeto. É um desafio ao qual não podemos nos esquivar como críticos, leitores e educadores.

  • 1
    “Son mouvement constitutif est la traversée (il peut notamment traverser l’œuvre, plusieurs œuvres)”. (BARTHES, apudBLOCK DE BEHAR, 2005BLOCK DE BEHAR, Lisa. “Contradictorias aventuras y desventuras de la travesía”. In: Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 7, 2005, p. 91-101., p. 92).
  • 2
    “Em vez de tirar fotografias de árvores ou de nus, tiro fotografias de fotografias. Opto por imagens que põem de manifesto o desejo de que a natureza e a cultura nos imponham uma sensação de ordem e sentido. Aproprio-me destas imagens para expressar meu desejo simultâneo da paixão do compromisso e da sublimação do distanciamento. Procuro fazer com que minhas fotografias de fotografias produzam uma precária paz entre a atração que sinto pelos ideais que essas imagens encarnam e meu desejo de não ter ideais nem ataduras em absoluto. Aspiro a que minhas fotografias, de certo modo autocontraditórias, representem o melhor dos dois mundos”. (Tradução minha).

Referências

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  • SAID, Edward. Humanismo e crítica democrática Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2016
  • Aceito
    30 Abr 2016
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