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Uma jornada pela paz

DOSSIÊ ONU E A PAZ

Uma jornada pela paz

Jacques Marcovitch

AS CONSTANTES MUDANÇAS nos fluxos de capital, informações e tecnologias, para citar algumas entre as múltiplas variáveis de contemporaneidade, impõem guinadas correspondentes nas relações vividas pelos atores da cena mundial. Esse quadro repercute nos sistemas multilaterais, especialmente no principal deles, a Organização das Nações Unidas. Uma organização imperfeita, mas indispensável. Uma instituição que chega ao seu cinqüentenário com uma estrutura que exige profunda reavaliação. Essa é a primeira explicação para o empenho da Universidade de São Paulo, através de seu Instituto de Estudos Avançados, em marcar a efeméride com uma reflexão que transcendeu as cerimônias de praxe e agora se registra neste dossiê.

A academia, como agente crítico e mesmo transformador da história dos povos, não poderia celebrar de forma trivial um acontecimento de tão amplas conotações. A Carta de San Francisco, firmada em 26 de junho de 1945, constitui registro fundamental da trajetória humana neste século. Ela é uma espécie de constituição mundial. Apesar de todas as suas imperfeições - que afinal refletem aquelas mesmas do sistema internacional - consigna os deveres mútuos de 185 países e representa um marco indispensável de suas preocupações com a paz, os direitos fundamentais do homem e o progresso social.

Além do Concerto pela Paz, a Universidade de São Paulo elaborou um fascículo com atividades didáticas para disseminar, junto às escolas públicas de 1º e 2º graus, os valores relacionados com a causa da paz e demais princípios enunciados na Carta de San Francisco. A data foi também celebrada com uma jornada reflexiva no campus, que mobilizou a inteligência acadêmica e destacados expoentes da diplomacia para discutir o papel da ONU em seu passado, presente e futuro. As exposições, aqui reproduzidas, são fortemente elucidativas sobre as possibilidades e limitações desse sistema multilateral. Um sistema que recebe tantas justas ressalvas, mas que ostenta o mérito inquestionável de ter contribuído para evitar um novo conflito mundial de proporções trágicas como aquele encerrado em 1945. Registre-se, ainda, as suas ações decisivas para o fim do apartheid e na descolonização, um dos maiores processos de mudança política vividos pela humanidade.

A assimetria econômica e cultural das nações reunidas sob a bandeira da onu é um indicativo da complexidade de suas tarefas. Nem essa constatação, entretanto, a exime da obrigação de atualizar a sua carta-guia, até mesmo para torná-la exeqüível num cenário de tantos contrastes. A USP, compreendendo a urgência dessa reforma, quis discutir os seus vários aspectos com especialistas aptos para fazê-lo, tendo a convicção de que tais debates, em seu conjunto, representam a melhor contribuição nacional a outros que estão se travando no plano externo.

A Carta de San Francisco é um documento generoso e abrangente, como demonstra a variedade de aspectos que foram identificados pelos expositores. E, ainda, encontramos naquele texto questões como a igualdade de direitos dos homens e das mulheres, autodeterminação dos povos, luta contra a discriminação entre raças e crenças, recomendações nos campos da educação, da saúde e da cultura. Isso cria uma larga expectativa com relação às propostas de reforma que serão encaminhadas. É necessário ainda que a ONU se desvencilhe de um sufocante emaranhado burocrático e encoraje inovadoras políticas públicas internacionais, voltadas para as grandes carências existentes em todo o mundo. A iminente virada do século, tão animadora no que diz respeito ao surgimento de novas tecnologias e descobertas científicas, deixa de ser promissora quando se considera o crescente problema da exclusão social. As conclusões de inúmeras reuniões globais, como aquela realizada em 1992, no Rio de Janeiro, podem contribuir para a resolução deste desafio, desde que implementadas.

A Universidade de São Paulo colocou várias questões para os expositores do Colóquio A Carta de San Francisco: 50 anos depois - a relação do Brasil com as Nações Unidas, a reforma da Carta, um balanço possível da atuação da onu, sua posição face aos direitos humanos, à segurança coletiva, ao desenvolvimento e à nova ordem mundial.

Os leitores encontrarão aqui essas abordagens nos textos integrais das palestras, assinados por seus autores. Celso Lafer discorre sobre o papel da onu como catalisadora dos ideais éticos, em geral, e dos direitos humanos em particular. José Augusto Guilhon Albuquerque aborda o período pós-bipolaridade, fazendo também um retrospecto da fase em que a ONU se manteve a serviço da mútua contenção das superpotências, durante a Guerra Fria. José Carlos Magalhães centra-se na reforma propriamente dita, destacando entre os seus pontos essenciais a revisão do poder de veto e do sistema de votação, bem como a reorganização do Conselho de Seg urança. Marcos Castrioto de Azambuja sublinha que a segurança coletiva deixou de ser adversarial e militar para assumir dimensão mais ampla, que inclui aspectos econômicos e sociais. Ronaldo Mota Sardenberg realça a postura reformista do Brasil diante das Nações Unidas e o que se espera do nosso país em face das questões postas em ordem do dia naquele fórum. Ramiro Saraiva Guerreiro nos traz uma análise da atuação da onu, desde seus primórdios em San Francisco até os dias de hoje. Luiz Olavo Baptista faz a análise da jornada empreendida no âmbito da área de Assuntos Internacionais do iea e chega a uma síntese muito apropriada. Todas as intervenções convergem, afinal, para a constatação de que o desenvolvimento é pré-condição vital para a construção do novo século mais justo que todos desejamos.

O novo século será repleto de desafios que exigirão iniciativas articuladas e baseadas em valores humanos. A população do globo, estimada atualmente em 5.3 bilhões, deverá alcançar 10 bilhões de indivíduos em torno de 2.030. A tecnologia cria novas competências, mas também torna obsoletas muitas profissões e carreiras que estavam aparentemente consolidadas. Enquanto o mundo se despolariza, empresas se globalizam e assumem poderes até recentemente cerceados pelo Estado. Quanto aos Estados, estão em busca de um novo perfil mais apropriado aos novos tempos. Tempos marcados por crescente modernização, paradoxalmente acompanhada por aumento da pobreza e ameaças constantes à qualidade de vida.

A Universidade de São Paulo, tomando a iniciativa de celebrar o cinqüentenário da Organização das Nações Unidas, considerou que entre os valores norteadores da missão acadêmica incluem-se aqueles que, em 1945, inspiraram a Carta de San Francisco: a cooperação, o humanismo, a tolerância e o universalismo. Demais disso, as universidades modernas já não se conformam nos limites do ensino, da extensão e da pesquisa. A conexão em escala planetária com os problemas da sociedade tem peso cada vez maior em sua pauta de objetivos. As preocupações com os rumos da Organização das Nações Unidas no terceiro milênio inserem-se nessa perspectiva. Foram estas as razões básicas que moveram os participantes nesta jornada pela paz.

Jacques Marcovitch é pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade de São Paulo, coordenador da área de Assuntos Internacionais do Instituto de Estudos Avançados e professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2005
  • Data do Fascículo
    Dez 1995
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