resumo
O objetivo deste artigo é analisar o pensamento de Furtado tomando-se por base seis obras selecionadas do autor, publicadas entre 1959 e 1974. O conjunto bibliográfico analisado possui uma constância: a procura do entendimento do subdesenvolvimento brasileiro. Essa busca se apresenta na análise da gênese de nossa estrutura econômica em Formação econômica do Brasil, na denúncia dos efeitos perversos que requereu a continuidade do processo de crescimento econômico em Análise do modelo brasileiro e em O mito do desenvolvimento econômico e, por fim, na proposta de objetivos que fossem alternativos à dinâmica do processo e às suas consequências perversas, em Um projeto para o Brasil. Além disso, em Teoria e política do desenvolvimento econômico e em Desenvolvimento e subdesenvolvimento, Furtado expõe elementos mais gerais das economias subdesenvolvidas, além daqueles especificamente brasileiros.
palavras-chave:
Desenvolvimento; Pensamento econômico brasileiro; Formação econômica do Brasil
abstract
The aim of this article is to analyze Furtado’s thinking through six of his works published between 1959 and 1974. This selected bibliography has a persistent trait: the endeavor to understand Brazilian underdevelopment. This pursuit can be found in the analysis of the genesis of our economic structure in Economic formation of Brazil; in the denunciation of the perverse effects required by the continuity of the process of economic growth in Analysis of the Brazilian model and in The myth of economic development; and finally, in the proposal of alternative objectives to the dynamics of this process and its deleterious consequences in A project for Brazil. Furthermore, in Theory and Policy of Economic Development and in Development and Underdevelopment, Furtado exposes some of the more general characteristics of underdeveloped economies, in addition to specifically Brazilian ones.
keywords:
Development; Brazilian economic thought; Brazilian economic formation
Introdução
Neste breve artigo analisamos o pensamento de Celso Furtado tomando por base a seleção de seis de suas obras, publicadas entre 1959 e 1974. O artigo está dividido em três seções. Na primeira, é feita uma descrição da carreira de Furtado. Na segunda, são tratadas e analisadas as obras por nós escolhidas. Na terceira, são feitas considerações finais sobre o pensamento do autor.
Celso Furtado: notas biográficas e influências teóricas
Celso Furtado nasceu em 1920, na Paraíba. Formou-se em Direito pela Universidade do Brasil, em 1944, numa época em que não havia cursos de graduação em economia, no Brasil. Em 1948 apresentou sua tese de doutoramento na Universidade de Paris, L’économie coloniale brasilienne, sobre o ciclo da cana-de-açúcar, que viria a se constituir na base do seu clássico Formação econômica do Brasil, publicado dez anos mais tarde. De 1950 a 1964 atuou fortemente na área teórico-institucional. Integrou a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), onde contribuiu para elaborar as bases da teoria do subdesenvolvimento e do que se convencionou chamar de concepção histórico-estruturalista. Fez parte ainda de organismos como o Grupo Misto BNDE-Cepal, o Grupo de Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno), Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e Ministério Extraordinário do Planejamento do Governo Goulart, atuações em que se dedicou à elaboração de políticas públicas de desenvolvimento nacional e regional.
Com seus direitos políticos cassados em 1964, Celso Furtado vai para o exterior, onde desenvolve várias atividades acadêmicas, inicialmente no Chile; depois, nos Estados Unidos, na Universidade de Yale; e na França, na Universidade de Paris. Assim, ocorre uma transformação nas suas formulações que se tornam mais rigorosas quanto às exigências acadêmicas. É nessa fase que Furtado, mais pessimista no que se refere ao desenvolvimento da Periferia, publica “Autorretrato intelectual”, no International Social Sciences Journal, em Paris, o que seria o esboço da trilogia autobiográfica que publicaria nas décadas seguintes: A fantasia organizada (1985), A fantasia desfeita (1989) e Ares do mundo (1992).
Na tentativa de firmar-se como teórico de estirpe internacional, poucas são as referências explícitas a influências brasileiras, como Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior e Roberto Simonsen, ainda assim ressaltando que foi por meio de Casa grande & senzala que havia iniciado o contato com a sociologia americana (Furtado, 1983_______. Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo: Editora Abril, 1983. (Coleção Os Economistas)., p.33).
Ao rever sua obra, Furtado reconhece três graus de influência intelectual: a positivista, na ideia de que todo conhecimento em sua forma superior assume a forma de conhecimento científico; a marxista, como “subproduto do interesse pela história”; e a sociologia americana. Além disso, destaca a influência de Mannheim na sua formação.
Assim, na definição de Furtado, convicção reformadora, isenção científica e formação teórico-cosmopolita formariam o tripé básico de sua trajetória pessoal e intelectual. Já o economista Furtado é fortemente influenciado por Schumpeter e Keynes. Nem mesmo Raúl Prebisch, de quem foi assessor e com quem provavelmente discutiu assuntos relacionados com o subdesenvolvimento, é reconhecido ou creditado, talvez num esforço primaz de livrar-se do seu passado periférico e tentar consolidar-se como “cidadão do mundo”.
Furtado, por fim, foi buscar na economia política clássica inglesa uma de suas principais ferramentas: a ideia de excedente, entendia por excedente a diferença entre a produção e o consumo essencial. Tinha uma crença inabalável na ciência econômica. O Estado, por outro lado, está no centro de seu pensamento. Além disso, o pensamento de Furtado possui ainda duas matrizes: a economia política da Cepal e o pensamento social brasileiro (Oliveira Vianna, Caio Prado Júnior, Gilberto Freyre, Roberto Simonsen etc.).
Furtado foi indicado para o Prêmio Nobel de Economia em 2003, ano anterior à sua morte.
Análises das obras selecionadas
O presente texto correlaciona algumas das ideias presentes em seis livros de Celso Furtado: Formação econômica do Brasil; Análise do modelo brasileiro; Um projeto para o Brasil; Teoria e política do desenvolvimento econômico; Desenvolvimento e subdesenvolvimento; e O mito do desenvolvimento econômico.
A obra Formação econômica do Brasil dá nome a uma disciplina comum à maior parte dos currículos de graduação em Economia das universidades brasileiras. Foi editado pela primeira vez em 1958 e tinha por objetivo captar, tal como fizera Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil contemporâneo, os elementos fundamentais da nossa história. Porém, diferentemente desse autor, os instrumentos de análise foram derivados dos conceitos correntes da ciência econômica. O ponto de partida para tanto foi a dinâmica da economia brasileira, a qual caracterizava-se pelo subdesenvolvimento. Entender a gênese desse subdesenvolvimento e captar-lhe as especificidades foram as tarefas a que se propôs o autor.
Os países subdesenvolvidos possuíam, quase todos, uma mesma característica: a dependência de seus ciclos econômicos em relação aos países estrangeiros. Os resultados da conta corrente do balanço de pagamentos contavam mais do que a variável investimento na taxa de crescimento do PIB. À teoria macroeconômica dos manuais escapa essa especificidade, captada por Furtado.
Para entender a origem da dependência dos ciclos ante as demandas estrangeiras, Furtado recorrerá à história. Nesses termos, a economia brasileira teria sido, desde o princípio, segmentada em dois setores definidos em virtude das relações que esses mantinham com o exterior e também em razão dos rendimentos que geravam. Havia o produtor de mercadorias exportáveis e o produtor de bens de subsistência na economia brasileira, desde o século XVI até a industrialização, e, nessa última fase, a segmentação admite uma maior diversidade: as indústrias produzem para o mercado nacional, constituindo-se no setor moderno de nossa economia. O setor agrícola, por seu turno, mantém-se atrelado aos padrões do início de nossa história, contando com um setor exportador e outro voltado para a subsistência.
A economia do que posteriormente viria a ser o Brasil apresenta-se como novidade no século XVI. Os descobrimentos portugueses, iniciados em princípios do século XV, e sua expansão, encontravam populações produtoras de mercadorias, o que pressupunha um sistema econômico capaz de fornecê-las. No caso brasileiro, ao contrário, as populações indígenas desconheciam o que fosse mercadoria.
Sendo economicamente inútil do ponto de vista dos interesses mercantis portugueses, o território brasileiro, em um primeiro momento, nada mais foi do que uma esperança: a de que aqui houvesse metais preciosos, a exemplo do que se achara nas colônias espanholas da América, razão suficiente para que se o protegesse de investidas de outra metrópoles europeias.
A introdução da cana-de-açúcar dá sentido aos primeiros movimentos do processo que seria propriamente a colonização: a transferência de um pequeno contingente de europeus para comandar a produção de açúcar e que estivesse apto a explorar a mão de obra indígena, sendo essa reduzida à escravidão onde quer que fosse alcançada. Para que a produção canavieira tivesse lugar, era necessário que a terra fosse empregada de maneira adequada. O estabelecimento da propriedade privada fundiária, já existente em Portugal, foi uma outra inovação introduzida no território que posteriormente seria o Brasil. Para Furtado essa apropriação tinha que ser feita de uma tal maneira que as unidades produtivas fossem enormes. Isso se justificava tendo em vista a degradação imposta ao solo e às matas nativas pelos métodos agrícolas empregados, do que resultava a necessidade de se praticarem o abandono dos solos exauridos e o desmatamento sistemático para o atendimento das fornalhas dos engenhos.
Criam-se, assim, ainda no século XVI, os elementos fundamentais do setor exportador da economia brasileira nos séculos seguintes: a escravidão e o latifúndio monocultor. Paralelamente ao setor exportador, surge um outro, ainda no Nordeste, que se destina a complementá-lo, quando necessário, e a absorver fatores de produção que, pelas crises cíclicas, o primeiro expulsava. Esse outro setor terá por atividade básica a criação de gado de corte nas terras onde a atividade canavieira não se justificava, seja por impedimentos de ordem climática, seja pelos custos de transporte. Os dois setores sintetizarão, segundo Furtado, a economia brasileira e, em particular, a nordestina, com fortes diferenças de rentabilidade e integração ao resto do mundo.
A alteração dos produtos de exportação pouco modificará a economia brasileira entre os séculos XVI e XIX. À economia de mineração caberá promover uma integração econômica do território brasileiro, mas não alterará os dados fundamentais do problema: a coexistência, em um mesmo espaço econômico, de atividades com grande variação de rentabilidade.
A quebra do padrão antes mencionado dar-se-á no século XIX, com o advento de um novo produto de exportação: o café. Não que a substância que o compõe tenha algo de especial, nem que, se introduzido antes, teria alterado de maneira marcante a história brasileira. De fato, como economia dependente, a causa primeira para a mudança veio de fora: o crescimento de demanda por café por parte das elites europeias e norte-americanas, em um primeiro momento, e por parte dos trabalhadores empregados na Revolução Industrial.
Na verdade, essa revolução cria uma nova divisão internacional do trabalho ao estabelecer, pela primeira vez na história, um forte diferencial de rendimentos entre as populações do que atualmente chamamos de centro e de periferia. Esse diferencial resultará na modificação do consumo das populações do centro, a qual tenderá a ser imitada pelas elites da periferia.
Essa busca de imitação do estilo de vida estrangeiro, por parte das elites brasileiras, fato percebido também por Gilberto Freyre, marcará de maneira definitiva a face de nossa sociedade. Isso só foi possível em razão de uma forte concentração de renda anterior, decorrente da existência de latifúndio e escravidão. Onde a propriedade da terra era mais bem distribuída, como nos Estados Unidos - a comparação com aquele país é recorrente em Furtado -, as diferenças entre ricos e pobres eram menores, dado que o custo de oportunidade para os trabalhadores era maior, resultando daí a necessidade de os remunerarem melhor, de maneira a convencê-los a trabalhar como empregados.
A Abolição não representa, quanto à concentração de renda, uma quebra. Pelo contrário, dada a distribuição da posse da terra anteriormente existente, o ex-escravo transforma-se, imediatamente, em fonte potencial de mão de obra futuramente incorporada pela expansão do sistema econômico ou, dito de outra maneira, constitui-se no reservatório de mão de obra de que lançará mão a economia exportadora quando necessário.
O café representa uma quebra, no entanto, pela diversificação das atividades que permite, ou seja, o mínimo beneficiamento que requer para ser exportado assim como o transporte até os portos de embarque para o exterior são atividades que demandam uma infraestrutura diferenciada, que a abolição da escravidão vem a reforçar. Para Furtado, as atividades envolvidas na produção dessa mercadoria, bem como a introdução de grandes contingentes de imigrantes europeus não ibéricos representam a formação do mercado interno brasileiro.
O acúmulo de capital resultante da economia cafeicultora permitirá a instalação das primeiras indústrias brasileiras, assim como a formação de núcleos urbanos de peso se constituirá em mercados para uma parte cada vez maior dos produtos que antes eram exportados. Assim, entre 1890 e 1950, a relevância dos mercados externos para a economia brasileira reduz-se. A introversão dos ritmos, quando da publicação de Formação econômica do Brasil, era uma mudança de peso por eliminar uma das características do nosso subdesenvolvimento.
A eliminação da preponderância dos mercados externos na determinação dos ritmos internos da economia brasileira foi um passo importante, mas não teria sido suficiente para ultrapassar o subdesenvolvimento, segundo Furtado. Na verdade, a maneira pela qual o país obteve sua indústria pesada resultou no estabelecimento de novas bases para a continuidade do processo, isto é, reduzida a importância do mercado externo para os produtos agrícolas brasileiros, continuavam sendo eles responsáveis por grande parte de nossas exportações. Pior do que isso, apesar da modernização pela qual passaram as cidades, o campo continuava empregando métodos de produção e relações de trabalho arcaicos, resultando daí a baixa remuneração paga aos trabalhadores em ambos os setores da economia. Sendo assim, o parque industrial brasileiro instala-se favorecendo a concentração de renda.
Essa tendência ficará claramente exposta em Análise do modelo brasileiro. Esse livro, escrito no início da década de 1970, denuncia as políticas públicas voltadas para a formação de uma classe média alta, rica o suficiente para demandar bens de consumo duráveis dinamizando a economia. Essas políticas eram concentradoras de rendas e necessárias, dada a opção de manter o crescimento sem alterar as estruturas sociais.
A necessidade de concentração de renda se explica pelas características da industrialização em países subdesenvolvidos: promovida pelo Estado e auxiliada nos setores mais dinâmicos por empresas estrangeiras. Tal industrialização não faz uso da abundância relativa da dotação interna de fatores por incorporar tecnologia estrangeira, adaptada à realidade dos países desenvolvidos, o que é ressaltado em Teoria e política do desenvolvimento econômico. Disso decorre a lenta absorção da mão de obra redundante no setor de subsistência, e, devido a tal fato, os salários pagos aos operários menos qualificados são baixos, o que não os integra ao mercado de consumo dessas empresas. No entanto, forma-se uma classe média rica que, no caso brasileiro, foi numerosa o suficiente para sustentar a demanda necessária para o eficiente funcionamento das empresas recém-instaladas, cujas plantas produtivas requerem mercados com dimensões mínimas, o qual dificilmente subsistiria caso a renda fosse mais bem distribuída. Nesse contexto, a empresa privada nacional desempenha um papel complementar, dado ser incapaz e estar desinteressada de competir com os estrangeiros.
O esquema aqui exposto solidifica-se após a Segunda Guerra Mundial, quando a hegemonia norte-americana sobre o mundo capitalista permite que indústrias produtoras de bens de consumo dos países centrais instalem-se na periferia contribuindo para a industrialização de alguns de seus membros. No caso brasileiro, a concentração de renda já era um dado de nossa história. Em economias agrárias, a propriedade sobre a terra é elemento determinante da distribuição de renda. Se esse fator de produção se encontra concentrado nas mãos de poucos, embora seja relativamente abundante em relação à mão de obra, faz-se escasso pelo simples impedimento, aquém da fronteira agrícola, de sua ocupação por trabalhadores de maneira autônoma. Na verdade, pelas características da agroexportação brasileira, esses trabalhadores serão agregados ou meeiros dos latifúndios, empregando técnicas rústicas de produção. É, do ponto de vista privado, racional que assim o seja porque a abundância de terras disponíveis aos latifundiários e o baixo custo de mão de obra não os estimula a fazer um uso mais intensivo de capital fixo, o que dispensa técnicas de produção avançadas.
A estrutura fundiária de uma sociedade subdesenvolvida como a brasileira marca profundamente toda a estrutura social. Isso porque será o nível de vida dos trabalhadores rurais o patamar de remuneração mínima pago a todos os trabalhadores, incluindo aqueles das cidades. Não que os salários urbanos sejam iguais aos do campo. Se assim o fosse, não haveria êxodo rural. A diferença existe, e é significativa. Em comparação com os países desenvolvidos, no entanto, percebe-se a estrutura perversa do subdesenvolvimento: nos países subdesenvolvidos, por razão da existência de um amplo setor de subsistência, a mão de obra nele alocada sempre estará disposta a migrar para o setor moderno da economia. Esse fato deprime os salários de toda a sociedade, impedindo que se forme um amplo mercado consumidor de produtos mais sofisticados. Nos países desenvolvidos, onde escassa é a mão de obra, a difusão do consumo dos bens sofisticados é fato esperado. Com isso, os trabalhadores desses países percebem salários que lhes permitem participar do mercado consumidor acompanhando, com alguma defasagem no tempo, os padrões de consumo dos ricos. Nos países subdesenvolvidos, pelo contrário, esses bens de consumo restringem-se sempre aos ricos, sendo impossível à maioria da população ter acesso a eles, a não ser quando a ela doados.
Essa dualidade da sociedade brasileira, presente tanto na divisão entre setores moderno e arcaico de economia quanto no mercado de trabalho bissegmentado, em que os trabalhadores rurais apresentam-se como reservatório de mão de obra para as indústrias localizadas nas cidades, pode desaparecer desde que o nível de investimentos seja mantido em um patamar tal que a demanda por força de trabalho em algum momento absorva todos os trabalhadores alocados no setor de subsistência. Pelo menos, é assim que pensa Furtado em Teoria e política do desenvolvimento econômico. Nessa obra revela-se uma das principais preocupações do autor, também presente em Formação econômica do Brasil: o que é feito dos excedentes econômicos? Para Furtado, essa é uma questão fundamental porque, se direcionados para o consumo conspícuo, como denunciado em Análise do modelo brasileiro, não há como financiar os investimentos, dado serem esses dependentes de poupança prévia. Com isso, atrofia-se o crescimento econômico e a própria absorção da população redundante no setor de subsistência. Esse tipo de raciocínio pode conflitar com as proposições do intervencionista Celso Furtado, que, às vezes, é qualificado de desenvolvimentista. Isso porque a necessidade de poupança prévia para a realização de investimentos caracteriza modelos de desenvolvimento econômico de tipo conservador, sendo possível pensar, entretanto, na necessidade de igualdade entre poupança e investimentos apenas ex-post, como para alguns keynesianos.
Nem todos os países subdesenvolvidos estariam aptos a se industrializar. Isso se deve a que a industrialização requer mercados com dimensões e renda mínimas. Países pequenos com rendas medianas, como o Chile da década de 1970, ainda que concentrem renda, não criam mercado consumidor para que as grandes empresas estrangeiras neles se instalem, razão porque permanecerão dependentes dos humores dos mercados consumidores de seus produtos. O caso brasileiro é exemplar porque, apesar da baixa renda per capita, a concentração de renda foi profunda e as dimensões demográficas suficientes para a constituição de um mercado consumidor de bens de consumo duráveis. O país, portanto, industrializa-se.
O Estado, no Brasil, foi peça-chave na industrialização por diferentes motivos. Foi ele que montou a infraestrutura necessária para que as empresas estrangeiras se instalassem e contribuiu para a concentração de renda de modo a criar o mercado consumidor para as mesmas empresas.
Ainda que Furtado não condene a participação do Estado nesse processo de maneira cabal, dados os efeitos positivos para o país decorrentes da criação da infraestrutura referida anteriormente, o processo de concentração de renda é por ele entendido como perverso. Na verdade, por meio dele carece de sentido o próprio crescimento econômico, porque não permite a superação da miséria. Sendo assim, tal crescimento transforma-se em um mito, isto é, um conjunto de pressupostos cuja verificação é impossível e, no caso brasileiro, uma mentira. Isso porque, quando se fala em desenvolvimento econômico, pensa-se na extensão, ao conjunto da sociedade, dos padrões de consumo vigentes entre as populações dos países centrais. No Brasil do Milagre Econômico, pelo contrário, as políticas públicas objetivaram promover o crescimento do PIB sem beneficiar o conjunto da sociedade, mas apenas o que já tinham elevado nível de renda.
Com estruturas sociais distintas, têm-se mercados consumidores diferentes e dinâmicas econômicas próprias. Nos países desenvolvidos, a busca pela inovação tecnológica resulta na introdução de novos processos produtivos e no lançamento de novos produtos. Inicialmente caros, esses produtos vão se tornando acessíveis aos trabalhadores por efeito da redução dos custos de produção e, em um período em que o Estado evita deflações, pela elevação dos salários. Isso é desenvolvimento econômico, e não apenas o crescimento do PIB. Nos países subdesenvolvidos, a introdução de novas técnicas era feita principalmente pelas grandes empresas, estatais ou estrangeiras, com base no que fora desenvolvido no centro. Essas novas técnicas permitiam a redução dos custos de produção, porém ao contrário do que se dá nos países desenvolvidos, o repasse dos ganhos à sociedade se dá de maneira muito menor: não há substancial elevação de salários pelo excesso estrutural de oferta de mão de obra proveniente do setor de subsistência, e o barateamento dos produtos mais sofisticados não os tornam acessíveis aos trabalhadores em geral em razão dos baixos salários que recebem. Nesse caso, o progresso técnico resulta em maiores ganhos para as firmas estrangeiras e na diversificação do consumo dos abastados.
Em síntese, o objetivo crucial de Furtado em Análise do modelo brasileiro é procurar entender o vigoroso crescimento da economia brasileira de 1968 até 1972 (data de publicação do livro). Segundo o autor, a dinâmica desses anos foi propiciada por um modelo de crescimento que constou dos seguintes elementos: 1) favorecimento da acumulação de capital, por meio de subsídios governamentais e elevadas barreiras protecionistas; 2) redução dos salários - arrocho salarial - em relação aos aumentos de produtividade, utilizando-se para isso a elevação do nível geral dos preços e a repressão aos sindicatos e outras organizações dos trabalhadores; 3) modificação do perfil da demanda em favor de uma classe média alta, visando atender a capacidade produtiva das empresas de bens de consumo duráveis - essa demanda da classe média alta foi dinamizada mediante dois artifícios: financeiro com juros subsidiados e lucros financeiros, com compra e venda de títulos públicos; 4) subsídio para exportação de produtos industriais - para compensar a falta de demanda interna; 5) forte investimento do Estado, que recuperou sua participação relativa ao nível de 1956/1960.
Uma das consequências da política de alta proteção e subsídio às empresas industriais foi induzir muitos empresários a adotar métodos produtivos de elevada dotação de capital por operário, o que explica a baixa capacidade criadora de novos empregos pelas indústrias. Também a concentração de renda, incentivada pelo modelo de crescimento, ajudou a diversificar o consumo de bens duráveis, intensificando o progresso tecnológico, de baixa absorção de mão de obra. Diante dessa incapacidade do sistema econômico de absorver grande quantidade de trabalhadores, Furtado diz que o principal problema do país, naquela época, era gerar emprego para a sua numerosa população, em que a tese de que a industrialização superaria o subdesenvolvimento estava desacreditada. A industrialização, por si mesma, trouxe novas formas de dependência. Conclui Furtado que o modelo de crescimento brasileiro foi concentrador de renda e riqueza, favorecendo apenas uma pequena parcela da população, situada nas classes altas e média alta.
Celso Furtado atuou como diretor executivo da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), criada em 1959 com o propósito de fomentar o desenvolvimento da região.
Análise do modelo brasileiro é uma denúncia da opção conservadora adotada pelo Estado, assim como Um projeto para o Brasil, de 1968, é uma proposta de alteração das estruturas sociais em um momento crítico, no qual as forças conservadoras estavam prestes a dar novas mostras do que pretendiam. O que propôs Furtado coaduna-se com a crítica que fará do desenvolvimento econômico em O mito do desenvolvimento econômico. Nessa obra o autor evidencia o fato, já apontado por estudo da ONU, de que a elevação do consumo das populações dos países subdesenvolvidos aos mesmos níveis das populações dos países desenvolvidos era simplesmente impossível. O meio ambiente não suportaria a carga. Por outro lado, ainda que fosse considerado positivo o comportamento da economia brasileira entre 1967 e 1974, quando o crescimento do PIB era inaudito, seria benéfico para toda a população?
A relação existente entre O mito do desenvolvimento econômico e Um projeto para o Brasil encontra-se na constatação de que a continuidade do crescimento dissociado de alterações nas estruturas sociais é pouco relevante. Assim, enquanto no primeiro, escrito em 1972, Furtado propõe a substituição do crescimento da renda per capita por índices de melhorias sociais para aferir desenvolvimento, no segundo, escrito em 1968, a proposta é alterar o perfil brasileiro da demanda por consumo por meio de uma reforma agrária. Isso permitiria aos trabalhadores do campo a elevação da renda que auferiam, o que alteraria o ritmo de crescimento da força de trabalho existente nas cidades; reduzindo-o, ao longo do tempo, os salários urbanos também se elevariam. O resultado do crescimento da renda dos extratos sociais de menor capacidade de consumo seria estimular as indústrias produtoras de bens não duráveis, as quais tinham, então, pequena participação estrangeira. Tratava-se, portanto, de uma proposta de redistribuição de renda e de estímulos às empresas de capital nacional. Perderiam, obviamente, os expropriados pela reforma agrária, mas não apenas eles; as empresas produtoras de bens de consumo duráveis também perderiam, uma vez que o mercado brasileiro para os produtos por elas fabricados se reduziria, a não ser que aceitassem reduzir preços, abrindo mão de parte das receitas anteriormente recebidas e, portanto, reduzindo o envio de divisas - excedente que poderia elevar a poupança interna e financiar investimentos- para o exterior.
O crescimento econômico brasileiro, nas propostas de Furtado de 1968, passaria a ter um outro perfil; isto é, por um lado, teriam maior participação na condução do processo as empresas nacionais, favorecidas com a ampliação de seus mercados por efeito da redistribuição de renda decorrente da alteração dos direitos de propriedade. A oferta de mão de obra ficaria profundamente alterada pela redução do êxodo rural. Ao mesmo tempo, a demanda por trabalhadores dependeria de empresas cuja expansão melhor se adequava à dotação de fatores de produção da sociedade brasileira, ou seja, uma vez que as empresas brasileiras, produtoras de bens de consumo não duráveis, empregavam uma maior quantidade de trabalhadores por unidade de produto produzido em comparação com as empresas estrangeiras, que se especializaram em bens de consumo duráveis, o resultado seria uma mais rápida absorção do excedente populacional e, por consequência, uma aproximação do mercado de trabalho brasileiro ao perfil dos mercados de trabalho dos países de maior renda per capita.
O pressuposto das mudanças aqui referidas era a não oposição de quem perderia rendimentos. Esse era, no entanto, o preço da retomada do crescimento econômico tendo em vista a estagnação pela qual passara a economia brasileira entre 1962 e 1967. Em 1974 esse argumento perdeu sentido. Ficou provado que a economia brasileira podia crescer ainda que sem distribuir igualitariamente os frutos do crescimento econômico. O apelo de Furtado em O mito do desenvolvimento econômico foi, então, humanitário. De que servia o crescimento do PIB se as condições de vida da maioria da população não melhoravam? Por isso a opção por índices de alfabetização, expectativa de vida, assistência médica e acesso aos bens culturais, aproximando-o da proposta então recente de Amartya Sen de uso do IDH, em vez do uso do PIB per capita, para aferir o desenvolvimento econômico de uma nação.
Em Um projeto para o Brasil, Furtado procura identificar as causas do baixo crescimento da economia brasileira no período de 1962 a 1967, bem como sugerir uma ação global, em várias frentes, para sair daquela paralisia. Segundo o autor, a principal causa do baixo crescimento era o perfil da demanda global. Explicando melhor: o aumento da produtividade não era repassado à força de trabalho, mas sim aos donos dos meios de produção, concentrando, ainda mais, a renda nas camadas altas da sociedade. Essa concentração de renda, via aumento da produtividade, só foi possível pela introdução de um progresso tecnológico incompatível com a abundância relativa de mão de obra no país, favorecido pelo governo federal pelas políticas de câmbio e crédito subsidiado: câmbio favorável às importações de máquinas modernas, poupadoras de mão de obra com crédito subsidiado para a compra desses equipamentos. Assim, a maior concentração de renda nas camadas altas da sociedade provocou duas consequências: a) consumo de bens de grande densidade de capital e pouca absorção de mão de obra; e b) redução do potencial de crescimento da economia.
A pergunta que surge é: por que esse perfil da demanda das classes altas reduz o crescimento da economia? Explica Furtado que esse perfil de demanda deixa desocupada ou subutilizada boa parte da mão de obra do país. Portanto, o perfil da demanda, causado pela concentração de renda, impede que uma grande parte da mão de obra encontre emprego e saia de sua condição marginal.
Caso os ganhos de produtividade fossem repassados à força de trabalho, e não somente aos donos dos meios de produção, o crescimento dos rendimentos dos trabalhadores possibilitaria a ampliação do consumo de bens agrícolas e de consumo de bens não duráveis, a grande absorção de mão de obra e a baixa densidade de capital; e, portanto, dar-se-ia um enorme potencial para o crescimento à economia do país. Assim, para Furtado, era possível aumentar o valor do produto global, mediante simples modificação no perfil da demanda global alterando-se os direitos de propriedade da terra por meio de uma reforma agrária.
O que era preciso para mudar esse perfil da demanda? Segundo Furtado, apenas duas medidas, além da reforma agrária: a) tributar o consumo das classes altas; b) orientar os novos investimentos públicos, financiados pela tributação das classes altas, para atividades com maior capacidade de absorção de mão de obra. Note-se, no entanto, que existe uma hipótese básica, salientada por Furtado: essas medidas só poderiam se realizar caso os donos dos meios de produção - as camadas altas da população - concordassem em reduzir sua participação na renda global, pois essa classe teria o poder político de impedir qualquer tipo de redistribuição de renda. Essas duas medidas modificariam o perfil da demanda global, e essa redistribuição de renda garantiria, por si só, uma retomada vigorosa do crescimento econômico, pois a concentração de renda seria a causa do subemprego crescente dos fatores produtivos. Furtado destaca que, no Brasil, os salários não têm nenhuma relação com as elevações da produtividade.
Devemos lembrar o que Furtado escreve em Um projeto para o Brasil: uma ação global em várias frentes. A primeira delas seria a alteração do perfil da demanda mediante uma melhor redistribuição da renda e dos investimentos. As outras ações seriam: a) atacar o latifúndio, pois esse concentra renda e dispensa mão de obra, a grande propriedade é um obstáculo ao desenvolvimento; b) incrementar as exportações industriais para vencer a insuficiente capacidade de importar (desequilíbrio externo); c) reter no país e transferir para a população os frutos do progresso técnico das grandes empresas transnacionais, nacionalizar a direção das empresas transnacionais; d) investir no ser humano (educação e cultura).
Furtado conclui o livro acreditando que o desenvolvimento dependeria cada vez mais da ampliação do mercado interno. O fator dinâmico externo jamais seria condição suficiente para o desenvolvimento.
Considerações finais
Obviamente, um processo como o vivido pelo Brasil do Milagre é possível somente onde a democracia é, tal como o desenvolvimento econômico, uma mentira. O regime militar conseguiu conciliar a manutenção do êxodo rural e os salários baixos para os trabalhadores de menor qualificação profissional, e com a concentração de renda surgiu a demanda por bens de consumo produzidos por empresas estrangeiras. Fosse uma democracia, teríamos, ao menos, a oposição firme dos trabalhadores urbanos.
O conjunto bibliográfico analisado aqui possui uma constância, apesar de cada obra ter especialidades que as diferenciam: a procura pelo entendimento do subdesenvolvimento brasileiro. Essa procura se apresenta na análise da gênese de nossa estrutura econômica em Formação econômica do Brasil, na denúncia dos efeitos perversos que requereu a continuidade do processo de crescimento econômico em Análise do modelo brasileiro e em O mito do desenvolvimento econômico e, por fim, na proposta dos objetivos que fossem alternativos às suas consequências em Um projeto para o Brasil. Nesses termos, Furtado descrê de fatalismos corriqueiros, em que tudo é passível de sacrifício, menos as regras que regiam a dinâmica da economia brasileira e internacional. Furtado empregou instrumentos próprios à ciência econômica para fazer a crítica de um processo que no início da década de 1970 era intocável: o Milagre.
A disposição de Celso Furtado em continuar lutando pelo país mesmo com a saúde abalada foi um estímulo para nós. Em suas entrevistas e conferências em 2000, Furtado se mostrou atento às nossas mazelas e desafios. Ele argumentava que a concentração de renda se fizera com o benefício de uma acumulação interna que de alguma forma modernizou o país, mas que passou a ser feita em benefício da acumulação financeira.
Quando observamos que parcela crescente da receita pública foi despendida no financiamento da dívida pública - que se inflou entre 1994 e 2003, pela política monetária e cambial praticada pelo Banco Central -, concluímos que estávamos indo contra a maré dos avanços conseguidos até o início dos anos 1980. Furtado continuou sendo nossa esperança de sermos ouvidos além dos muros das poucas universidades que se mantiveram críticas à política econômica praticada no Brasil após 1990.
Referências
- FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Editora UnB., 1962.
- _______. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965.
- _______. Um projeto para o Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1969.
- _______. Análise do modelo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972. (Col. Perspectivas do Homem).
- _______. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
- _______. Teoria e política do desenvolvimento econômico. São Paulo: Editora Abril, 1983. (Coleção Os Economistas).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2020
Histórico
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Recebido
12 Jun 2020 -
Aceito
14 Ago 2020