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Reforma política e crise de representatividade

DOSSIÊ CRISE DO CONGRESSO

Reforma política e crise de representatividade

Gilmar Mendes (Entrevista)

A CRISE DO Congresso foi o tema da entrevista exclusiva que o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, concedeu a ESTUDOS AVANÇADOS.

O ministro atribui a crise do Congresso ao modelo institucional vigente, negou que haja "judicialização da política" e defendeu a atuação do STF, "em sua função de guardião da Constituição".

Em janeiro de 2000, Gilmar Mendes foi nomeado advogado-geral da União. Dois anos depois, recebeu a indicação a ministro do Supremo Tribunal Federal. Durante o período como ministro do STF, assumiu o cargo de vice-presidente do STF no mandato da ministra Ellen Gracie. Em 23 de abril de 2008 foi empossado presidente do STF para o biênio 2008-2010.

Estudioso do direito - possui bacharelado, dois mestrados e um doutorado, entre 1973 e 1990, no Brasil e na Alemanha -, é professor da Universidade de Brasília (UnB), onde leciona Direito Constitucional nos cursos de graduação e pós-graduação. É autor de livros e artigos publicados em revistas acadêmicas.

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ESTUDOS AVANÇADOS - Alguns analistas afirmam que há uma crise no Congresso porque ele não vem correspondendo à missão de elaborar as leis reclamadas pela nação, enquanto diariamente há denúncias de clientelismo, nepotismo e de privilégios abusivos dos parlamentares. Na opinião de Vossa Excelência há uma crise no Congresso? Em caso afirmativo, quais as causas dessa crise?

Gilmar Mendes - A dificuldade em se elaborar e votar projetos de lei atualmente no Congresso não decorre apenas de uma crise momentânea, mas de um modelo institucional que dificulta que o Congresso seja capaz de elaborar sua própria pauta. Projetos importantíssimos passam anos em discussão sem nunca serem aprovados, enquanto a pauta é trancada pela necessidade de se apreciar medidas provisórias.

Há, no entanto, ações bem-sucedidas que mostram que com vontade política e cooperação é possível fazer mudanças reais. Um exemplo disso é o assim chamado "Pacto Republicano", uma iniciativa conjunta dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário para aprovar leis de suma importância para se aprimorar o funcionamento da Justiça brasileira, trazendo ganhos reais para a população brasileira.

Em de defesa do Constituição

ESTUDOS AVANÇADOS - Alguns analistas consideram que nos últimos anos está ocorrendo um processo de judicialização da política em razão da interferência do Supremo Tribunal Federal em atribuições da competência do Congresso. Como Vossa Excelência analisa essa questão?

Gilmar Mendes - A Constituição de 1988, mais do que um documento jurídico, representa uma conquista alcançada após mais de vinte anos de luta pela redemocratização. Nesse contexto, em resposta aos anseios da população, a Constituição positivou uma agenda social que em muito transcende aspectos meramente formais e que está estampada logo no início do seu texto. A realização dessa agenda social trazida pela Constituição configura um pressuposto para que alcancemos a democracia plena. Somente um desenvolvimento econômico sustentado e ainda a construção de um ambiente em que a prosperidade econômica esteja acompanhada de uma ampla integração social poderão produzir um regime democrático estável.

Assim, o Supremo Tribunal Federal, em sua função de guardião da Constituição, vê-se confrontado cotidianamente com a imensa responsabilidade política e econômica de interpretar e aplicar uma Constituição repleta de direitos e garantias fundamentais de caráter individual e coletivo. Todavia, o Tribunal, no cumprimento dessas complexas tarefas, não tem o condão de interferir negativamente nas atividades do legislador democrático. Não há "judicialização da política", pelo menos no sentido pejorativo do termo, quando as questões políticas estão configuradas como verdadeiras questões de direitos. Essa tem sido a orientação fixada pela Corte, a qual tem a real dimensão de que não lhe cabe substituir-se ao legislador, muito menos restringir o exercício da atividade política, de essencial importância ao Estado constitucional.

Os Poderes da República encontram-se preparados e maduros para o diálogo político inteligente e suprapartidário. Nos Estados constitucionais contemporâneos, legislador democrático e jurisdição constitucional têm papéis igualmente relevantes. A imanente e aparente tensão dialética entre democracia e Constituição, entre direitos fundamentais e soberania popular, entre jurisdição constitucional e legislador democrático é o que alimenta e engrandece o Estado de Direito, tornando-lhe possível o desenvolvimento, no contexto de uma sociedade aberta e plural, baseada em princípios e valores fundamentais.

É necessário reconhecer que estamos diante de uma realidade em que os dados desfavoráveis são contundentes, a demonstrar que a concretização dessa agenda social preconizada pela Constituição não é tarefa simples. Ressalte-se, no entanto, que o Supremo Tribunal Federal vem realizando exemplarmente a sua parcela dessa missão constitucional.

ESTUDOS AVANÇADOS - Numa entrevista, Vossa Excelência fez referência ao cenário de escândalos no Senado. Esses escândalos são prejudiciais ao processo de democratização e de desenvolvimento do Brasil?

Gilmar Mendes - Não há dúvida de que é necessário repensar o atual modelo institucional não só do Senado, mas de todo o sistema eleitoral. Faz-se premente a necessidade de uma reforma política que equacione certos problemas no funcionamento do nosso sistema político, dentre os quais merece destaque o que tem sido chamado de "crise de representatividade".

Dito isso, é importante ressaltar que, apesar de eventuais problemas pontuais, o atual modelo constitucional, iniciado com a promulgação da Constituição de 1988, tem se mostrado muito bem-sucedido. A Constituição foi concluída num momento simbólico, em que a inflação chegava a níveis galopantes. Passamos por graves crises econômicas nesse período, enfrentamos um impeachment, crise na comissão de orçamento, tumultos vários, mas sempre dentro dos estritos parâmetros da normalidade. Nesse sentido, merece destaque a força de nossas instituições políticas para lidar com crises da maior gravidade, permitindo, assim, que se tenha confiança em que também essa crise atual será superada.

Existe na Constituição de 1988 uma tentativa de se superar o modelo de democracia meramente formal a que nós nos acostumamos no passado. Ao longo desses anos, após 1988, pode-se perceber que a ampla proclamação de direitos pela Constituição serviu de estímulo a que as instituições de representação da sociedade civil se mobilizassem em favor da concretização daquelas promessas constitucionais. Não há dúvida de que, a partir de 1988, a sociedade civil brasileira saiu fortalecida.

Falta de representatividade

ESTUDOS AVANÇADOS - A existência de suplentes no Senado que não receberam votos do eleitorado, mas resultam do mecanismo de financiamento de campanhas eleitorais, não contribui para deslegitimar o Congresso?

Gilmar Mendes - Como já foi mencionado, o modelo como um todo deve ser reformado para que se permita ao Senado desempenhar de maneira adequada as suas importantíssimas competências, estabelecidas pela Constituição. Quanto a isso, o atual sistema de suplentes também deveria ser repensado porque, independentemente dos méritos daqueles que têm exercido a função de senadores, não há dúvida de que esse atual modelo contribui para um distanciamento entre os eleitores e a classe política, agravando o atual sentimento de falta de representatividade por parte da população. Ressalte-se ainda que o Supremo Tribunal Federal tem contribuído de maneira significativa nesse processo, extraindo da própria Constituição diretrizes que devem orientar o funcionamento do nosso sistema.

Nesse sentido, merece destaque decisão do Supremo Tribunal Federal em que se afirmou que a fidelidade partidária trata-se de garantia fundamental da vontade do eleitor, uma vez que, na realidade política atual, a mudança de legenda por aqueles que obtiveram o mandato no sistema proporcional constitui uma clara violação à sua vontade e um falseamento do modelo de representação popular pela via da democracia de partidos. A decisão do Tribunal, portanto, constitui um marco em nossa história republicana no sentido da consolidação da democracia e da efetivação dos direitos políticos fundamentais, e o maior beneficiado dessa decisão, sem sombra de dúvida, é o cidadão-eleitor.

Entrevista concedida em 8.10.2009.

@ - mgilmar@stf.jus.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    2009
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