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Globalização das estruturas econômicas e identidade nacional

DOSSIÊ AMÉRICA LATINA

Globalização das estruturas econômicas e identidade nacional

Celso Furtado

Os ajustamentos sem precedentes que neste fim de século estão ocorrendo nas relações internacionais requerem para sua compreensão uma visão global apoiada não apenas na análise econômica, mas também na imaginação prospectiva que nos habilita a pensar o futuro como história. Sem essa visão global, estaremos incapacitados para captar o sentido dos acontecimentos que nos concernem mais diretamente e, mais ainda, para agir conscientemente como sujeitos históricos.

Respondendo a essa preocupação, farei inicialmente algumas reflexões sobre o perfil emergente da realidade mundial para, em seguida, mergulhar na problemática que nos preocupa mais diretamente.

Não devemos perder de vista que a economia mundial atravessa uma recessão de causas estruturais sem precedentes por sua abrangência. Essa recessão se manifestou desde o começo dos anos 80 nos países do Terceiro Mundo como conseqüência da brusca elevação das taxas de juros dos mercados internacionais e da intensa drenagem de capitais para os Estados Unidos, o que explica a falsa euforia econômica desfrutada pela população norte-americana na segunda metade da década de 80. O vértice da tensão que se manifesta na economia mundial situa-se na inflação reprimida da economia norte-americana, inflação causada pelo longo declínio da taxa de poupança conjugado com o elevado déficit na conta corrente da balança de pagamentos. A baixa na taxa de poupança resulta da convergência de déficits do governo federal, com persistente redução da poupança privada. Com efeito, a taxa de poupança da economia dos Estados Unidos reduziu-se à metade do nível observado nos três decênios anteriores a 1980: seu nível atual corresponde a um terço da média da taxa de poupança dos países da OCDE e a menos de um quarto da do Japão. Em conseqüência, os Estados Unidos deixaram de ser o maior credor e provedor mundial de capitais para ocupar a posição de maior devedor. Sua dívida externa atualmente supera um trilhão de dólares.

Esse desequilíbrio estrutural da economia dos Estados Unidos já se prolonga por mais de um decênio e é a causa da drenagem para aquele país de mais de metade da poupança disponível para investimentos internacionais (1 1 Cf. The USA's Twin deficits. World Imbalances, Helsinqui, WIDER, Relatório de 1989. ). Muito provavelmente, esse desequilíbrio persistirá por alguns anos, e a solução que venha a ser dada ao problema pesará seriamente na configuração futura da estrutura de poder mundial. O declínio dos Estados Unidos como centro econômico hegemônico abre fase de reacomodação de forças com reflexos difíceis de serem previstos na área latino-americana, a qual atravessa período de crise de suas estruturas políticas.

Outra fonte de tensão a considerar é o amplo processo de destruição-reconstrução das economias do leste europeu, as quais continuarão a absorver parte da poupança gerada pelos demais países, sem que tenham possibilidade de remunerar adequadamente esses capitais, também contribuindo para manter elevadas as taxas de juros. Diferentemente do que pensavam os observadores internacionais em um primeiro momento, esse processo será longo, podendo absorver todo o presente decênio; a queda no nível de produção foi de 4,5% em 1990 e, em 1991, alcançou 15,4%, devendo superar 10% no ano atual. O processo de reciclagem institucional será necessariamente profundo e abre enormes possibilidades à cooperação do capital internacional. Esses países dispõem de recursos humanos que os colocam em posição vantajosa na concorrência com os países do Terceiro Mundo. Superada a fase de reconstrução institucional, tudo leva a crer que naquela região abrir-se-á a nova fronteira dinâmica da economia capitalista. Ora, esse amplo processo de reconstrução econômica, incluída a parte oriental da Alemanha, reforça a tendência à elevação das taxas de juros em detrimento das economias endividadas do Terceiro Mundo.

A integração dos países da Europa Ocidental é irreversível, mesmo que não sejam alcançados os ambiciosos objetivos de Maastricht. Esse processo reforça os grandes grupos econômicos operando transnacionalmente, mas abre espaço para a dinamização dos agentes atuantes em esferas culturais outras que as especificamente econômicas e financeiras. A debilitação dos instrumentos de política macroeconômica exigirá ação compensatória em outras áreas abertas à invenção política. Na Europa Ocidental, ocorre a mais importante experiência de superação do Estado nacional como instrumento de ordenação de sociedades que conciliam os ideais de liberdade e de bem-estar social, o que pressupõe um grau de homogeneidade social, próprio das economias desenvolvidas.

Independentemente das mudanças na configuração da estrutura do poder político mundial, deve prosseguir a realocação de atividades produtivas provocada pelo impacto das novas técnicas de comunicação e tratamento da informação, o que tende a concentrar em áreas privilegiadas do Primeiro Mundo as atividades criativas, inovadoras ou simplesmente aquelas que são instrumento de poder.

Tudo indica o prosseguimento do avanço das empresas transnacionais, graças à crescente concentração do poder financeiro e aos acordos no âmbito do GATT sobre patentes e controle da atividade intelectual, o que contribui para aumentar o fosso existente entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

Com o avanço da internacionalização dos circuitos econômicos, financeiros e tecnológicos, debilitam-se os sistemas econômicos nacionais. As atividades estatais tendem a circunscrever-se às áreas sociais e culturais. Os países marcados por acentuada heterogeneidade cultural e/ou econômica serão submetidos a crescentes pressões dasarticuladoras. A contrapartida da internacionalização avassaladora é o afrouxamento dos vínculos de solidariedade histórica que unem, no quadro de certas nacionalidades, populações marcadas por acentuadas disparidades de nível de vida.

A atividade política internacional favorecerá cada vez mais a abordagem dos problemas ligados a equilíbrio ecológico, controle do uso de drogas, combate das enfermidades contagiosas, erradicação da fome e manutenção da paz. A esfera econômica será crescentemente dominada pelas empresas internacionalizadas, as quais balizarão o espaço a ser ocupado por atividades de âmbito local e/ou informais. A importância relativa destas últimas definirá o grau de subdesenvolvimento de cada região: áreas desenvolvidas e subdesenvolvidas estarão assim estruturalmente integradas numa compartimentação do espaço político que cristaliza as desigualdades sociais.

Escola de Governo

Há momentos críticos na vida de uma nação, em que se decide literalmente o seu futuro.

Chegamos hoje a uma dessas encruzilhadas históricas, diante da qual somos compelidos a escolher, sem adiantamentos ou subterfúgios, o rumo a seguir. No passado, sempre fomos considerados, como no título do livro famoso de Stefan Zweig, o país do futuro. Mas tratava-se, aos nossos olhos, de uma feliz fatalidade histórica, não de uma escolha deliberada. Alguém (o Deus brasileiro?) tomara a iniciativa de decidir por nós, Hoje, dissipada a doce ilusão de que a força do destino nos dispensaria da enorme responsabilidade de pensar e querer, somos confrontados com a dura exigência de construir, livres e solitários, o modelo do nosso futuro. A prudência nos aconselha, em tais circunstâncias, a buscar o conselho daqueles raros sábios, capazes de enxergar ao longe, mais além do quotidiano. Celso Furtado é um deles.

No texto denso que Estudos Avançados publica nesta edição, reaparece o tema central de suas reflexões e preocupações dos últimos anos, expressas mais longamente em Brasil — a construção interrompida, (Paz e Terra, 1992).

A política de industrialização por substituição de importações, graças à qual nos tornamos pelo espaço de meio século a fronteria em mais rápida expansão da economia mundial, esgotou-se ao final da década de 70. Desde então, estacionamos à margem da estrada, por onde passaram celeremente várias nações asiáticas, que há pouco mais de 30 anos se arrastavam em nossa rabeira. Pior: chegamos a recuar nessa caminhada. O nosso atual PIB per capita é 7% inferior ao que havíamos alcançado em 1980. Ao mesmo tempo, por força da perdurante estagnação, realizamos a proeza de acentuar ainda mais a extraordinária desigualdade na distribuição da renda, que tanto impressiona os observadores estrangeiros*

Para tratar a moléstia, a singela receita que uma ideologia da moda procura aviar consiste em suprimir o papel dirigente do Estado e abrir indiscriminadamente as fronteiras ao influxo do comércio exterior. Os efeitos previsíveis dessa fórmula simplista, numa sociedade marcada por profundas distorções regionais e estruturais, irão certamente muito além do abandono de uma verdadeira política industrial. Celso Furtado aponta para o esfacelamento do mercado interno, com a previsível reprodução das tendências dissociativas que marcaram a nossa vida política na época pré-industrial.

Se o diagnóstico é correto, a correção dessa navegação às cegas, sem rumo e sem pilotagem, exige a montagem de um projeto nacional de desenvolvimento que conjugue "uma vontade política fundada em amplo consenso social com condições objetivas que poucos países do Terceiro Mundo reúnem atualmente".

É nessa direção de estímulo e coordenação das grandes lideranças sócio-econômicas, tendo em vista o processo de revisão constitucional de 1993, que se vem empenhando a Escola de Governo. E foi exatamente com esse objetivo que ela teve a honra de patrocinar a conferência de Celso Furtado.

A idéia de se criar uma Escola de Governo foi retornada em fins de 1991 por um grupo de professores universitários e profíssionais liberais de São Paulo, com o fito de preencher uma escandalosa lacuna em nosso, sistema educacional superior: a formação de governantes, vale dizer, de pessoal capacitado a conceber políticas públicas e a dirigir o Estado. Trata-se de um curso complementar e condensado, oferecido a quem tenha aptidão a exercer atividade política, ainda que não apresente as condições de escolaridade necessárias para seguir um curso universitário.

O programa do curso desenvolve-se em dois semestres letivos, estruturando-se em torno de duas diretrizes fundamentais: o conhecimento da realidade brasileira e a preparação ao desenvolvimento nacional. No primeiro semestre expõe-se o quadro geral onde se desenvolve a atividade política: a organização político administrativa do País, a organização econômico-financeira e o contexto das relações internacionais. O segundo semestre é dedicado ao estudo da decisão política e das políticas públicas. Além de aulas expositivas, organizam-se debates com personalidades do mundo político e administrativo.

Oxalá as nossas universidades, curando-se, tardiamente embora, da perniciosa especialite mercadológica que as infectou, decidam-se afinal a enfrentar a grande tarefa que delas se espera há tantos anos: criar aquela massa crítica de dirigentes políticos, capaz de reverter, em verdadeira reação em cadeia, as sombrias expectativas do abandono nacional no subdesenvolvimento.

* Fábio Konder Comparato é diretor da Escola de Governo, doutor pela Universidade de Paris e professor titular da Faculdade de Direito da USP.

A estrutura internacional de poder evoluiu para assumir a forma de grandes blocos de nações-sedes de empresas transnacionais que dispõem de rico acervo de conhecimentos além de pessoal capacitado. O intercâmbio internacional de serviços, particularmente os financeiros e tecnológicos, cresce em detrimento do de bens tradicionais. Na dinâmica desse sistema, prevalecem as forças tendentes a reproduzir a atual clivagem desenvolvimento/subdesenvolvimento. Para escapar a esse sistema de forças articuladas planetariamente, é necessário que se conjugue vontade política fundada em amplo consenso social com condições objetivas que poucos países do Terceiro Mundo reúnem atualmente.

A preservação da identidade nacional

Convém refletir sobre esses ajustamentos estruturais globais em curso de realização, se pretendemos identificar o espaço dentro do qual faremos nossas opções históricas, sem perder de vista que somos ainda um país em construção. Como preservar nossa identidade cultural e unidade política em um mundo dominado por grupos transnacionais que fundam seu poder no controle da tecnologia, da informação e do capital financeiro? E esse o desafio com que nos deparamos. Para enfrentá-lo, devemos começar por refletir seriamente sobre a situação de perda de rumo em que nos encontramos.

O chamado desenvolvimento econômico, no Brasil, reflete a expansão de um mercado interno que se revelou de enorme potencialidade. Longe de ser simples continuação da economia primário-exportadora herdada da era colonial — constelação de núcleos regionais autônomos —, a industrialização assumiu a forma de construção de um sistema econômico com considerável autonomia no que respeita à formação de poupança e à geração de demanda efetiva. Graças aos efeitos de sinergia, esse sistema representava mais do que a soma dos elementos que o formavam.

Assim, mesmo sem haver gozado de situação privilegiada como os Estados Unidos um século antes — grande influxo de capitais e de quadros técnicos originários das regiões mais desenvolvidas da Europa —, o Brasil seria no terceiro quartel do século XX a fronteira em expansão mais rápida do mundo capitalista.

Durante três séculos a economia brasileira baseara-se na exploração extensiva de recursos em grande parte não renováveis: da exploração florestal dos seus primórdios até a grande mineração de ferro, passando pelo uso destrutivo dos solos nos vários ciclos agrícolas, por muito tempo fomos um caso exemplar do que hoje se conhece como desenvolvimento não sustentável. Civilização predatória, estávamos condenados a enfrentar imensa crise quando completássemos a destruição da base de recursos não renováveis (ou renováveis a custos crescentes), ou quando a demanda internacional de tais recursos fosse reduzida pela incidência de fatores tecnológicos ou econômicos.

É somente no século atual que a economia brasileira deixa de fundar seu dinamismo na depredação de recursos naturais e passa a apoiá-lo de forma principal na assimilação de avanços tecnológicos e na acumulação de capital reprodutível. Isso, graças ao processo de industrialização que passou a ser o motor do desenvolvimento do país a partir da grande depressão dos anos 30.

Lançamos as bases de um sistema industrial em época de grandes dificuldades internacionais, cabendo ao Estado papel decisivo na hábil estratégia então adotada. O sacrifício imposto à população foi compartilhado por todas as classes sociais, inclusive aqueles grupos antes habituados a terem acesso a bens de consumo importados. Durante alguns decênios o país teve de se reestruturar, reduzindo consideravelmente suas importações de bens de consumo enquanto a população crescia, particularmente nas áreas urbanas. Nova realidade social começava a emergir: os ricos, consumindo produtos nacionais, já não eram vistos como habitantes de outro planeta, e a classe média em formação ocupava espaços crescentes e assumia posições de liderança no plano cultural.

A mudança do quadro internacional manifestou-se desde inícios dos anos 70: a crise do dólar, seguida do primeiro choque petroleiro, deu origem a grande massa de liquidez internacional com a baixa nas taxas de juros, conduzindo ao processo de sobreendividamento de grande número de países do Terceiro Mundo. O que vem em seguida é a dolorosa história dos ajustamentos impostos aos países devedores: de absorvedores passam estes a supridores de capitais internacionais, devendo concomitantemente aumentar o esforço de poupança e reduzir o investimento interno. Esses ajustamentos exigem consenso e disciplina social difíceis de serem alcançados em qualquer país, e mais ainda em sociedades marcadas por profundas desigualdades e atraso político, como é a brasileira. Daí a crise atual, que já se prolonga por mais de um decênio, nos parecer insuperável, sendo notória a incapacidade do Estado para enfrentá-la. Mas não tenhamos dúvida de que é possível superá-la, se o país manifestar a vontade política necessária para aumentar a taxa de poupança e enfrentar os credores a fim de compatibilizar as transferências de recursos para o exterior com as exigências da retomada do crescimento.

Aumentar o esforço para aprofundar a inserção externa da economia — o que atualmente se apresenta como requisito da modernização — somente se justifica se esse esforço for realizado em quadro de autêntica política de desenvolvimento socioeconômico, o que não é o caso se o aumento das exportações tem como contrapartida contração do mercado interno. Se os baixos preços de exportação, que nos dão a ilusão de sermos competitivos, refletem a existência de capacidade produtiva ociosa, estaremos pagando preços reais exorbitantes pelas divisas que adquirirmos para servir a dívida externa.

Não devemos perder de vista que a lógica das transações internacionais sempre operou em detrimento dos países de economia dependente. As extraordinárias taxas de crescimento conhecidas pela economia brasileira nas quatro décadas compreendidas entre os anos 30 e 70 refletiram especificamente um dinamismo fundado na expansão do mercado interno. Durante esse período manteve-se estacionária ou em declínio a participação da produção orientada para os mercados externos.

Nunca é demais recordar que os preços reais dos produtos primários exportados pelos países do Terceiro Mundo apresentam historicamente tendência declinante. A média desses preços no qüinqüênio 1986-90 correspondeu aproximadamente à metade do que fora quarenta anos antes, ou seja, 1948-55. Um grupo de analistas do Banco Mundial concluiu, em estudo recente, prolongar-se esse declínio por mais de um século ( The World Bank Economic Review, janeiro de 1988), declínio que vem se acentuando. Entre 1989 e 1991 os preços dos produtos primários exportados pelos países pobres declinaram em média 20%, queda que se aproxima daquela ocorrida na depressão de 1980-82, deflagradora da crise da dívida externa desses países. Prisioneiros de uma lógica perversa, muitos países pobres procuram compensar a baixa de preços aumentando as exportações e obtendo financiamento externo, inclusive de agências multilaterais, para aumentar a produção. A concorrência desabrida resultante levou, nos anos recentes, à ruína os produtores de café e de cacau. A renda auferida pelos produtores de café foi reduzida à metade e ainda maiores foram as perdas dos de cacau e açúcar, em conseqüência do desmantelamento dos tênues mecanismos de defesa dos preços, existentes em época anterior à onda de desregulamentação.

A pressão conjugada da oferta de mão-de-obra gerada pelo crescimento demográfico e da rigidez da procura de produtos primários nos mercados internacionais levaria necessariamente os países pobres a buscar o caminho da industrialização. Contudo, poucos dentre eles reúnem as condições de dimensão demográfica, base de recursos naturais e liderança empresarial para apoiar essa industrialização na construção do mercado interno. A grande maioria dos países pobres que buscam industrializar-se fica na dependência de acesso marginal ao mercado internacional como subcontratantes de empresas transnacionais. Foram poucos os que avançaram na construção de um sistema econômico com certo grau de autonomia na geração da demanda efetiva e no financiamento dos investimentos reprodutivos.

As barreiras que enfrentam esses países para terem acesso aos mercados internacionais não se manifestam apenas na degradação dos preços reais dos produtos primários exportados. Essa tendência, assinalada por Raúl Prebish há quase meio-século, tem explicação simples na natureza mesma desses produtos, cuja importância relativa declina com o crescimento da renda de uma população. Ocorre, entretanto, serem as dificuldades enfrentadas pelos países pobres, em seu esforço para penetrar nos mercados internacionais, ainda mais amplas do que supunham os primeiros teóricos do subdesenvolvimento, os quais se limitavam a observar a natureza dos produtos sem dar atenção à estrutura dos mercados internacionais. Ora, tudo leva a crer que nestes as manifestações do entendido por poder de mercado assumem considerável importância. E necessário não perder de vista que, no concernente aos produtos manufaturados, as transações internacionais são, via de regra, constituídas por operações internas às grandes firmas no regime de preços administrados.

Estudo recente da comissão Sul (2 2 Cf. Non-Alignment in the 1990s, South Center, estudo preparado para a Conferência de Jakarta, 1992. ) pôs em evidência que os preços dos produtos manufaturados exportados pelos países do Terceiro Mundo tiveram crescimento de 12% em termos nominais (em dólares) nos anos 80; durante esse mesmo decênio, os preços das manufaturas exportadas pelos países industrializados cresceram 35%. Se ajustarmos o poder de compra gerado pelas manufaturas exportadas pelos países do Terceiro Mundo pelos preços das máquinas e equipamentos por eles importadas veremos que a perda alcançou 32% no referido decênio. Dessa forma, o ganho de espaço nos mercados internacionais de manufaturas vem exigindo dos países pobres esforço crescente. E certo que não exista desenvolvimento sem acesso à tecnologia moderna, e esse acesso se dá preferencialmente via comércio internacional. O que aconteceu no passado, em um país com as potencialidades do Brasil, foi o acesso ao mercado internacional desempenhar papel apenas coadjuvante na promoção do desenvolvimento, sendo o impulso principal gerado internamente.

Se temos em conta que nossa economia dificilmente pode recuperar seu dinamismo apoiando-se basicamente nas relações externas, cabe indagar se não terá sido erro abandonar a estratégia de construção do mercado interno como motor de crescimento. Não digo que esse abandono haja sido deliberado ou mesmo consciente. Ele refletiu mudanças conjunturais e mesmo estruturais da economia internacional que não soubemos enfrentar com decisão e imaginação. Perdemos uma década, durante a qual a capacidade de autogoverno de que dispunha o país se deteriorou consideravelmente, com redução da eficácia dos instrumentos de política macroeconômica. Os compromissos que estamos formalizando com os credores internacionais — sindicato de bancos e FMI — limitam ainda mais nossa margem de manobra.

Os sistemas econômicos de grandes dimensões territoriais é acentuadas disparidades regionais e estruturais — Brasil, India e China aparecem em primeiro plano — dificilmente sobreviverão se perderem a força coesiva gerada pela expansão do mercado interno. Nesses casos, por mais importante que seja a inserção internacional, esta não é suficiente para dinamizar o sistema econômico. Num mundo dominado por empresas transnacionais, esses sistemas heterogêneos somente sobrevivem e crescem por vontade política apoiada em um projeto com raízes históricas.

A teoria do desenvolvimento econômico dos grandes sistemas heterogêneos — social ou culturalmente — ainda está por ser escrita. O fracasso da União Soviética veio demonstrar cabalmente que tais sistemas já não sobrevivem apoiando-se tão-somente em estruturas de dominação burocrática e militar. O considerável crescimento econômico apoiado na industrialização e com base no mercado interno, durante o meio-século que se inicia nos anos 30, deu origem no Brasil a fortes vínculos de interdependência entre regiões que no longo período primário-exportador poucas relações econômicas mantinham umas com as outras.

É certo que o dinamismo do mercado interno em boa medida fundou-se na cooperação de empresas estrangeiras, numa época na qual a disputa de capitais na área internacional era bem menos intensa do que atualmente e nosso endividamento externo muito menor. Portanto, o primeiro desafio a ser enfrentado pelo Brasil é o de aumentar sua capacidade de autofinanciamento, o que requer maior esforço de poupança pública e privada e maiores disciplina e transparência no uso das divisas geradas pelas exportações.

Esforço maior de poupança e mais disciplina social somente serão alcançados se sair da recessão, vale dizer, se for melhor utilizada a capacidade produtiva já existente. Para isso é necessário recuperar a eficácia dos instrumentos de comando macroeconômico, saneando as finanças públicas e disciplinado os fluxos externos monetários e financeiros. No Brasil, a eficácia da ação do governo começa por sua capacidade de disciplinar as relações externas. Resta saber se o terreno já perdido nessa área essencial poderá ainda ser recuperado. Ou se já é algo esdrúxulo falar de sistema econômico e de identidade nacional com respeito ao nosso país.

Notas

  • 1
    Cf. The USA's Twin deficits.
    World Imbalances, Helsinqui, WIDER, Relatório de 1989.
  • 2
    Cf.
    Non-Alignment in the 1990s, South Center, estudo preparado para a Conferência de Jakarta, 1992.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2006
    • Data do Fascículo
      Dez 1992
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