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Sob os olhares de Janus, o foco é no conhecimento

Durante um debate no plenário do Senado em 2004, ouvi um argumento que considerei forte para a consolidação de um bom governo e, concomitantemente, para o desenvolvimento de uma nação: a conciliação entre o equilíbrio fiscal, o desenvolvimento e a democracia.

Considerando que o Brasil passou mais de trezentos anos sob o domínio de Portugal, quase quarenta anos da chamada política do “café com leite”, cerca de trinta anos sob governos militares e quinze anos da ditadura de Getulio Vargas, temos uma ideia das causas do atraso econômico e tecnológico do Brasil e consecutivamente a dependência também política.

A partir do primeiro império, nosso país teve oito constituições: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988. E apenas as de 1946 e 1988 foram consideradas constituições cidadãs. Quanto a governos democraticamente eleitos e que realizaram plenamente seus mandatos sob a égide dessas constituições cidadãs, foram apenas Juscelino Kubitschek (cinco anos), Fernando Henrique Cardoso (oito anos) e Luiz Inácio Lula da Silva (oito anos) que, somados, chegam a míseros 21 anos de mandato. Ainda assim, nesse período tivemos o problema da tal PEC da reeleição de FHC, considerada um “gol de mão”. Portanto, sob esse ponto de vista, a DEMOCRACIA brasileira tem apenas 21 anos, com ressalvas.

Do ponto de vista da economia, nosso DESENVOLVIMENTO sofreu tanto quanto a nossa DEMOCRACIA. As melhores experiências vividas pelo país durante o primeiro século pós-1822 se deram com o Barão de Mauá: bancos, estaleiros, fundições, ferrovias, eletricidade, portos. Atuou fortemente na infraestrutura e na industrialização do país. Um visionário! No campo do conhecimento foram criadas as Escolas de Direito, Medicina e Engenharia para formação de “massa crítica” e, posteriormente, a criação da primeira Universidade brasileira.

Em 1922, um século depois do grito da independência, nosso país ainda estava praticamente nos primeiros passos de sua industrialização. O forte de nossa economia ainda estava na produção agrária/agrícola e o café era o “carro-chefe”. Quanto ao conhecimento, ainda não possuíamos a nossa primeira universidade, que só chegou em 1934 com a USP. Ou seja, não se produziu nenhum “Barão de Mauá” nesse período e o Brasil continuava na condição de colônia.

Pensando para 2022, em 2004 o Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) da Presidência da República publicou o caderno 01/2004 intitulado “Projeto Brasil 3 Tempos”, no qual se propunha os rumos dos investimentos e diretrizes políticas que tirasse definitivamente o Brasil da condição de colônia para a condição de potência mundial. Para tanto, o documento definiu que as datas magnas a serem trabalhadas eram: Brasil 2007, Brasil 2015 e Brasil 2022. Nesse caso, as principais diretrizes eram exatamente a da conciliação do equilíbrio fiscal com o desenvolvimento e a democracia, e como tal, a busca da tão sonhada independência econômica, tecnológica e política. Vejamos o enunciado do Projeto Brasil 3 Tempos:

O Brasil 3 Tempos tem por finalidade: definir objetivos estratégicos nacionais e de longo prazo que possam levar à construção de um pacto entre a sociedade e o Estado brasileiros acerca de valores, caminhos e soluções para a conquista desses objetivos estratégicos; e criar as condições para a institucionalização da gestão estratégica dos objetivos nacionais de longo prazo. Por meio deste projeto, busca-se propor, no médio prazo, um cenário positivo para o Brasil, como sociedade satisfatoriamente desenvolvida, plenamente democrática, mais igualitária, portadora de valores inclusivos de cidadania, inserida de maneira soberana na economia mundial e participante dos processos decisórios internacionais. (Cadernos NAE 01/2004 p.5)

Considero o “Brasil 3 Tempos” um documento ousado e muito patriótico para os padrões históricos. O documento passou a ser leitura obrigatória para minha atuação parlamentar (naquele momento ocupava uma cadeira no Senado Federal). Chamo aqui a atenção para as diretrizes temporais do projeto:

No ano de 2007, terá início um novo governo e é necessário garantir a coerência do PPA com a proposta que venha a ser pactuada. Em 2015, o Brasil deverá ter cumprido as Metas do Milênio estabelecidas pela ONU, das quais o Brasil é signatário e outros desafios que a própria Nação estabelecer para si, eventualmente como resultado do presente projeto. Em 2022, finalmente, espera-se que a Nação brasileira possa comemorar 200 anos de independência em um contexto de máximo bem-estar social e desenvolvimento econômico, possíveis. (Caderno NAE 01/2004, p.9)

Em 2004 tive a oportunidade de visitar a Alemanha, algumas Universidades, empresas, e ter conversas com autoridades políticas. Chamou-me a atenção o fato de a Alemanha ter sido um dos últimos países mais importantes da Europa a aderir ao sistema capitalista, ter protagonizado duas guerras mundiais e ter sido um dos articuladores da criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), que evoluiu para a atual União Europeia. Tudo isso entre a segunda metade do século XIX e a primeira do século XX. Esse ciclo é uma prova da conciliação política/econômica/científica, que consideramos a força motriz para alavancar o desenvolvimento de uma nação. Ou seja: não há desenvolvimento sem a ciência. E sem o desenvolvimento não há democracia. Portanto, a ciência é imprescindível para a soberania de qualquer país.

Como vemos na história do nosso país, a industrialização é tão incipiente quanto a democracia, colocando a nação na condição de dependência tecnológica, econômica e política perante o mundo. Para avançarmos em soberania é preciso avançar na industrialização, que requer avanços em ciência e na educação de base. Portanto, a composição do Poder Político do Brasil passa pela associação com o Poder Econômico e o Poder Científico, e vai muito além dos propósitos observados na Tríplice Hélice. Uma possível concertação social.

Em 2003 fui relator ad hoc do Plano Plurianual 2004/2007, trabalho que me possibilitou estudar os macronúmeros do Brasil. Fui procurado pelo pessoal da Marinha para recuperar o PPA, o Programa do Submarino de propulsão nuclear/Prosub. Foi a partir dessas conversas que passei a me interessar pelo campo da ciência. Mergulhei de cabeça buscando entender e também prestar minha contribuição ao país para o desenvolvimento de nosso conhecimento. Uma vez por mês, passei a visitar universidades, indústrias e todos os centros de pesquisa que fosse possível.

Em 2007, o governo Lula lançou o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), com o objetivo de investir cerca de 500 bilhões de reais na primeira fase do Plano, em infraestrutura, logística, expansão da rede universitária, entre outros projetos. Em meio a essas medidas impactantes, a SBPC propôs ao então presidente Lula uma nova legislação para a ciência, mas não andou. Uma das justas preocupações do momento era que, para o Brasil crescer 7% a.a num ciclo de média ou de longa duração, seria imprescindível também acelerar a pesquisa, ou o país teria que importar muita tecnologia, o que comprometeria o alcance da sonhada soberania em 2022.

Em 2011, ao assumir o mandato de deputado federal, participei de uma reunião do Consect/Confap em Belo Horizonte. Lá fui informado da situação dos pesquisadores brasileiros que, em relação à legislação, sofriam um verdadeiro calvário. Firmamos o compromisso de trabalharmos juntos para melhorar essa realidade. Naquele momento nasceu a ideia de elaborar o Código Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Foi um trabalho a muitas mãos, especialmente da comunidade científica, mas que também envolveu empresas, governos federal e estaduais, e naturalmente, o Congresso Nacional. O Código, que logo foi transformado em Novo Marco Legal de CT&I, tem como principal objetivo destravar a pesquisa e aproximar Governo/Empresa/Universidade, relação conhecida no mundo como Tríplice Hélice.

O trabalho contou com a contribuição de 57 instituições, obtendo o consenso do Congresso Nacional dado o alcance da lei. E pelo fato de esse esforço ter a participação de muita gente diretamente envolvida com a pesquisa, conseguimos atender as principais necessidades de cientistas quanto a destravamento, desburocratização e, enfim, garantir maior segurança jurídica para o ambiente da ciência brasileira.

Em meio a esse trabalho conjunto de diferentes setores da sociedade, ainda foi possível expandir os conceitos de ciência e tecnologia e incluir a inovação no texto da nossa Carta Magna por meio da Emenda Constitucional 85/2015. Além disso, outra grande conquista foi estabelecer na Constituição a previsão de criação da Lei do Sistema Nacional de CT&I, cuja colaboração entre as esferas do setor público e as diversas manifestações do setor privado pode apontar para uma política mais efetiva e sustentável de financiamento e gestão de CT&I em nosso país.

Essa mesma união que nos levou ao novo Marco Legal de C&T também nos permitiu influenciar diretamente sobre os destinos da tramitação da Lei de Acesso à Biodiversidade (Lei n.13.123/2015), cuja proposta estava parada na Câmara há mais de 10 anos, e a Lei das Fundações de Apoio, que iniciou pela Medida Provisória 614/2013 e se tornou a Lei n.12.863/13.

A nova legislação, que revogou e/ou alterou nove outras leis já existentes e que ampliou os preceitos constitucionais de ciência e tecnologia, foi elaborada com o objetivo de promover uma série de ações para o incentivo à pesquisa e ao desenvolvimento científico e tecnológico no Brasil.

Uma dessas ações é regulamentar as parcerias de longo prazo entre os setores público e privado, dando maior flexibilidade de atuação às instituições científicas, tecnológicas e de inovação (ICT) e respectivas entidades de apoio. Antes passíveis de punição, agora os professores de universidades públicas, em regime de dedicação exclusiva, poderão dedicar oito horas semanais a iniciativas fora da universidade. Isso porque a nova lei cria mais facilidades para as universidades públicas e permite que os pesquisadores colaborem com entidades privadas.

Uma das novidades é a possibilidade de dispensa de licitação pela administração pública, nas contratações de serviços ou produtos inovadores de empresas de micro, pequeno e médio portes. A nova norma também altera a Lei n.8.666/93 para estabelecer nova hipótese de dispensa de licitação para a contratação de bens e serviços destinados a atividades de pesquisa e desenvolvimento.

A lei passou a estabelecer a possibilidade de utilização do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) para ações em órgãos e entidades dedicados a ciência, tecnologia e inovação. Além disso, a proposição prevê a possibilidade de governadores e prefeitos estabelecerem regime simplificado, com regras próprias para as aquisições nessas áreas.

A Lei n.13.243/16 promoverá forte impacto nos próximos anos, impulsionando parcerias entre a iniciativa privada e o setor público. Ela será capaz de incentivar novos investimentos em pesquisa pelo setor privado porque, com regras claras, dá maior garantia às empresas que investirem em inovação. Ao mesmo tempo, o marco legal também dá mais segurança ao governo. A partir de agora os institutos, os centros de pesquisa, os laboratórios das universidades poderão se dedicar mais à pesquisa de ponta, particularmente aquela voltada para a geração de produtos, de equipamentos, de alimentos, de riqueza e emprego, e colocar o Brasil como referência mundial na área de produção de patentes.

A nova lei nos garante a oportunidade de sairmos da produção apenas de papers e passarmos para as parcerias com a indústria para a produção de bens e serviços capazes de oferecer maior eficiência com menor custo para resolver os problemas enfrentados pela sociedade nos dias atuais. Nesse sentido, o trabalho conjunto e a aplicação de recursos entre governos, universidades e empresas se mostram como caminho mais viável para construirmos o desenvolvimento sustentável, tendo os benefícios desse crescimento revertidos para todos os brasileiros.

Temos clareza da importância do Brasil na produção de alimentos, mas não podemos depender quase que exclusivamente das commodities agrícolas ou minerais para o superávit da nossa balança comercial. Hoje temos uma legislação moderna que poderá nos levar a um novo patamar nas relações comerciais com outros países quando passarmos a oferecer alta tecnologia que tornem outras nações dependentes da nossa produção industrial. Portanto, temos cientistas capazes e uma legislação que facilita a relação público-privada na produção científica.

Como toda rosa tem espinhos, tivemos o problema dos vetos, que foi como um buraco no casco do navio, e agora passamos pelo problema do Decreto de Regulamentação. Esse Decreto é muito importante para garantir o que está previsto na Lei. Caso contrário, ele terá força para devolver as travas que a lei procura tirar.

Vivemos hoje uma crise política, não exatamente de combate à corrupção, isso é apenas uma fachada. E sim, de visão de projeto de Estado e Sociedade. Volto a lembrar a história do Brasil. Nosso país sempre esteve dominado por uma visão de subserviência, de dependência e colonialista. Um país para NÃO dar certo, Nunca! Pois essa sempre foi a visão de seus colonizadores, que se reproduz na visão de seus dominadores. O sonho da industrialização de Getulio Vargas com a criação da Petrobras, CSN; o sonho de Juscelino Kubitschek com seu Plano de Metas 50 anos em 5; o sonho da Reforma Agrária de João Goulart e o Projeto Brasil 3 Tempos de Lula foram destruídos por golpes de Estado para transformar o nosso país na eterna “República de Bananas”.

Somente a luta intransigente de brasileiros soberanos e nacionalistas, que morando num país detentor de 8,5 milhões de km2 de terras continentais agricultáveis, maior reserva florestal tropical do Planeta, 4,5 milhões de km2 de águas oceânicas, imensas reservas de petróleo, outras riquezas minerais, terras férteis, uma poderosa agricultura, clima favorável, alta riqueza hídrica e tantas outras coisas, poderá recolocar nosso país na condição de potência mundial.

Finalizo citando o patriota Sérgio Mascarenhas, um dos nossos craques, que em sua crônica “O conhecimento mora no desconhecido”, disse:

[...] Essa coragem de inventar, de inovar, é característica, por exemplo, de Pelé, na nossa cultura futebolística, mas, infelizmente, ainda está ausente na educação brasileira, que acaba transformando preciosos talentos em medíocres repetidores de conceitos decorados sem contestação. O mesmo ocorre com a cultura empresarial de nosso país, quando importadora de ‘caixas-pretas’, ou com nossa pseudoeconomia, quando se compõe de meras “finanças rentistas ou especulativas”. Brasil, saia de “cima do muro” e salte para um futuro com educação, inovação, ciência e tecnologia! (Sérgio Mascarenhas, Os olhares de Janus. Brasília/DF. Embrapa, 2009)

Recuso-me a acreditar que Deus criou o mundo para separar o povo entre bilionários e miseráveis. Isso é apenas fruto de decisões políticas históricas, e como tal, temos o dever de combater. Temos que convocar os brasileiros de bem para libertar nosso país de interesses espúrios.

Parabenizo os cientistas brasileiros por pensarem e trabalharem por um Brasil forte, soberano, independente justo e solidário!

É uma honra trabalhar com vocês.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2017
  • Aceito
    20 Jul 2017
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