BRASIL: DILEMAS E DESAFIOS III
O fator político na formação nacional
Celso Furtado
A EXISTÊNCIA de um Estado nacional introduz uma dimensão política nos cálculos econômicos, tornando-os mais elusivos e complexos. Exemplos de prevalência de critérios políticos na tomada de decisões em matéria econômica podem ser facilmente encontrados em qualquer país, particularmente na sua fase formativa e nos momentos de crises maiores.
A emergência precoce de um sistema político criou condições para que se realizassem transferências inter-regionais de população e renda no vasto território que veio a constituir o Brasil. Assim, pouca dúvida pode haver de que a população que se fixou na região amazônica na segunda metade do século XIX ter-se-ia dispersado com a crise da borracha, não fora a reserva de um mercado interno que se expandiu rapidamente a partir dos anos 1920. A importação de borracha a baixo preço teria sido a solução indicada pela lógica dos mercados. Evitar o esvaziamento demográfico da região era uma opção política de elevado custo econômico no horizonte de tempo com que operam os mercados.
Da mesma forma, quando se instalou a indústria automobilística brasileira, uma região como o Nordeste, que desfrutava de um saldo significativo em seu comércio com o exterior, teve de renunciar à importação de veículos para adquirir um produto nacional de preço mais alto e nem sempre da mesma qualidade. Era uma decisão política, portanto fora do alcance da racionalidade dos mercados, a menos que destes se tenha uma visão nacional, ou seja, política.
Seria ingênuo ignorar que a evolução das técnicas conduz à planetarização dos circuitos econômicos sob o controle de empresas transnacionais. Mas como desconhecer que o esvaziamento dos sistemas decisórios nacionais será de conseqüências imprevisíveis para a ordenação política de vastas regiões do mundo, em particular para os países subdesenvolvidos de grande área territorial e profundas disparidades regionais de renda, como é o Brasil?
Um dos traços característicos do desenvolvimento atual em todo o mundo é a lenta absorção de mão-de-obra, o que se traduz em desemprego crônico e em pressão para baixar os salários da mão-de-obra não especializada. O que se vem chamando de sociedade de serviços constitui uma mistura de elevada taxa de desemprego estrutural com uma parcela expressiva de população trabalhando a tempo parcial e precariamente. Nos Estados Unidos, 60% dos empregos criados nos dois últimos decênios são remunerados com salários inferiores ao piso histórico.
Um sistema econômico nacional não é outra coisa senão a prevalência de critérios políticos sobre a lógica dos mercados na busca do bem-estar coletivo. O conceito de produtividade social, introduzido nos anos 30 no estudo de economias em prolongada recessão, não se aplica às economias cujo dinamismo se funda na expansão do mercado externo. O conceito de produtividade social carece de fundamento lógico para as empresas transnacionais. Ora, na ausência desse conceito o estudo do subdesenvolvimento perde substância.
Se deixamos de lado toda referência a sistema econômico nacional e a produtividade social, a idéia mesma de política econômica perde seu significado corrente. Estaremos de volta à economia de mercado em estado puro, na forma em que a concebeu Adam Smith, e que exclui a noção de poder de mercado. Ora, esse sistema de concorrência pura e perfeita está mais distante das estruturas transnacionalizadas do que os tradicionais sistemas econômicos nacionais.
As elevadas taxas de crescimento que conheceram as economias desenvolvidas na segunda metade do século XX foram em grande parte fruto da abertura crescente de seus mercados, a qual estimulou a concorrência e permitiu a grande concentração de poder econômico que está na base das empresas transnacionais. Mas o fator decisivo desse extraordinário período de crescimento foi o progresso das técnicas de coordenação e regulação macroeconômica, viabilizado pela chamada revolução keynesiana. Contudo, enquanto não emergir um confiável sistema de regulação plurinacional, essa coordenação será insuficiente, traduzindo-se em desemprego crônico de recursos produtivos. Por outro lado, à medida que avance o processo de integração de espaços plurinacionais, é de esperar que ocorram amplas transferências inter-regionais de recursos, intensificando-se inclusive as migrações demográficas. O freio a esse processo de integração virá de fatores culturais, pois não será surpresa se grupos de população lutarem para preservar suas raízes culturais e valores específicos ameaçados pela homogeneização dos padrões de comportamento que a racionalidade econômica impõe.
O rápido crescimento da economia brasileira entre os anos 30 e 70 apoiou-se em boa medida em transferências inter-regionais de recursos e em concentração social de renda facilitada pela mobilidade geográfica da população. Se houvesse obstáculos institucionais à mobilidade da mão-de-obra, os salários reais ter-se-iam elevado de forma bem mais acentuada nas regiões em rápida industrialização do Sul do país. Nesse caso, o crescimento global da economia teria sido menor, e a urbanização, menos intensa.
Ora, a partir do momento em que o motor do crescimento deixa de ser a formação do mercado interno para ser a integração com a economia internacional, os efeitos de sinergia gerados pela interdependência das distintas regiões do país desaparecem, enfraquecendo consideravelmente os vínculos de solidariedade entre elas. Se se instalam plataformas de exportação no Nordeste, no estilo das maquiladoras mexicanas, a integração regional com o exterior far-se-á por vários meios, em detrimento da articulação em nível nacional.
Na lógica das empresas transnacionais, as relações externas, comerciais ou financeiras, são vistas, de preferência, como operações internas da empresa, e cerca de metade das transações do comércio internacional já são atualmente operações realizadas no âmbito interno de empresas. As decisões sobre o que importar e o que produzir localmente, onde completar o processo produtivo, a que mercados internos e externos se dirigir são tomadas no âmbito da empresa, que tem sua própria balança de pagamentos externos e se financia onde melhor lhe convém.
Nessas circunstâncias, já não se contará com a integração das economias regionais e a formação do mercado interno em geral como um motor do crescimento (engine of growth, na expressão dos teóricos do imediato pós-guerra). A alternativa consiste em apoiar-se, de preferência, no mercado internacional, o que significa depender da dinâmica das empresas transnacionais. Ora, o estilo de desenvolvimento que estas impõem caracteriza-se por uma lenta geração de emprego, ou seja, por uma margem crescente de desemprego estrutural. A experiência dos países que integram a União Européia tem demonstrado sobejamente que o enfraquecimento das formas de coordenação e regulação macroeconômica, no plano nacional, se traduz por um debilitamento da acumulação e por um aumento da taxa de desemprego. É natural que esses efeitos se manifestem agravados em países que interrompem a formação do mercado nacional para privilegiar a integração internacional.
Nos países desenvolvidos que empreenderam a integração dos espaços econômicos respectivos, as transferências regionais de recursos, condicionadas a parâmetros culturais, se estimam em dezenas de bilhões de dólares; é o que está acontecendo nos países ibéricos depois de sua incorporação à União Européia, e, em escala ainda maior (e em mais curto prazo), nas províncias que formavam a antiga Alemanha Oriental. Mas no caso da União Européia e da Alemanha em particular, existe ampla margem de mão-de-obra expatriada (magrebinos e turcos, entre outros), que pode ser contraída para facilitar a transição. Tratando-se de uma economia subdesenvolvida, a exaustão dos efeitos de sinergia provocados pela integração internacional indiscriminada terá necessariamente resultados mais graves no plano social. É de imaginar que o espírito corporativo se exacerbe com a contração do mercado de trabalho e que, em conseqüência, se caminhe para uma redução, de forma disfarçada, da mobilidade geográfica da mão-de-obra. Havendo solidariedade entre patrões e empregados que dificulte o acesso a segmentos privilegiados do mercado de trabalho, os reflexos no plano político virão sem demora, compartimentando-se regionalmente os interesses envolvidos. É a gestação de conflitos regionais cujo alcance conhecemos pela história trágica de outros povos.
A regionalização dos interesses políticos, que se manifesta tão fortemente por toda parte, foi contida no passado, em seus efeitos centrífugos, pelo exercício de um poder hegemônico regional, o qual foi sendo substituído pela interdependência dos interesses econômicos que emergiu com a formação de um sistema nacional. Ter acesso a um mercado mais amplo ou poder deslocar-se territorialmente em busca de emprego são fatores que emprestaram um conteúdo real à idéia de unidade nacional. Mas se a lógica dos interesses é ditada pelas conexões internacionais, e os interesses corporativos se organizam para dificultar a mobilidade da mão-de-obra, os vínculos de solidariedade entre regiões terão necessariamente que se debilitar.
Os deslocamentos de população permitiram no Brasil, durante muito tempo, baratear a mão-de-obra nas áreas que absorviam o essencial dos investimentos industriais. Concentrava-se a renda, mas ao mesmo tempo cresciam os investimentos e o mercado interno. Na fase atual, em que se pretende derivar o dinamismo da integração internacional, o que importa é fomentar o espírito competitivo em atividades com vocação para a exportação, o que aponta para um perfil industrial de alta capitalização e reduzido nível de emprego. Nessas circunstâncias, o que mais interessa ao empresário é obter um elevado desempenho no uso dos equipamentos especializados que utiliza, e, acima de tudo, a disciplina e regularidade no trabalho, sem o que a integração transnacional se inviabiliza.
A ordem econômica que se está implantando na Europa ocidental constitui uma antecipação do modelo que se nos oferece como paródia. Tudo se subordina à preservação da estabilidade dos preços, a que se pretende chegar mediante criação de Bancos Centrais no estilo do Bundes-bank da Alemanha, que é formalmente independente dos poderes públicos. A característica desse tipo de instituição financeira é que ela não tem o direito de emprestar ao governo, o que significa que a emissão de moeda deixa de ser uma válvula de alívio das autoridades monetárias. Ora, essa prática coloca o problema de como operar um governo que não tem liberdade para se endividar, cabendo-lhe apelar para o mercado financeiro internacional com as limitações que daí derivam no plano cambial. Em tais circunstâncias, deixam de ter operacionalidade os dois instrumentos básicos de regulação macroeconômica: a política monetária e a política fiscal. O sistema que se está implantando na União Européia é definido por parâmetros rígidos: o déficit orçamentário não excederá 3% do PIB, a dívida pública não poderá superar 60% desse mesmo PIB, e o déficit público limitar-se-á ao montante dos investimentos públicos, cujo teto também será de 3% do PIB. Essas exigências vão certamente limitar o acesso pleno à Comunidade Européia a um número reduzido de países, mas deixam bem claro que se caminha para uma ordem econômica caracterizada por baixas taxas de crescimento e pelo declínio da iniciativa pública no campo das atividades econômicas. O crescimento econômico fica na estrita dependência da iniciativa das grandes empresas que atuam no plano transnacional. Contudo, a União Européia está realizando esforço financeiro para corrigir os desníveis regionais de renda, esforço que está fora do alcance de países pobres como o nosso.
Em um país ainda em formação, como é o Brasil, a predominância da lógica das empresas transnacionais na ordenação das atividades econômicas conduzirá quase necessariamente a tensões inter-regionais, à exacerbação de rivalidades corporativas e à formação de bolsões de miséria, tudo apontando para a inviabilização do país como projeto nacional.
Em meio milênio de história, partindo de uma constelação de feitorias, de populações indígenas desgarradas, de escravos transplantados de outro continente, de aventureiros europeus e asiáticos em busca de um destino melhor, chegamos a um povo de extraordinária polivalência cultural, um país sem paralelo pela vastidão territorial e homogeneidade lingüística e religiosa. Mas nos falta a experiência de provas cruciais, como as que conheceram outros povos cuja sobrevivência chegou a estar ameaçada. E nos falta também um verdadeiro conhecimento de nossas possibilidades, e principalmente de nossas fraquezas. Mas não ignoramos que o tempo histórico se acelera, e que a contagem desse tempo se faz contra nós. Trata-se de saber se temos um futuro como nação que conta na construção do devenir humano. Ou se prevalecerão as forças que se empenham em interromper o nosso processo histórico de formação de um Estado-nação.
Celso Furtado, economista, é o maior pensador atual da economia brasileira e latino-americana. A sua trajetória começou na Cepal no início dos anos 50, continuou com a superintendência da Sudene sob os governos Kubitschek, Jânio e Goulart (de quem foi ministro do Planejamento) e interrompeu-se com o Golpe Militar de 1964 que o levou a exilar-se na França. Começou então o seu magistério universitário como intérprete do desenvolvimento capitalista e de seus impasses nas economias ditas periféricas. A partir da década de 70 a sua obra, vasta e diferenciada, alcança renome internacional, tornando-se referência obrigatória para todos os que estudam problemas ligados ao desenvolvimento. Escreveu, entre outros, os seguintes livros: Formação econômica do Brasil (1959), A operação Nordeste (1960), Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1961), A pré-revolução brasileira (1962), Dialética do subdesenvolvimento (1964), Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina (1966), Teoria e política do desenvolvimento econômico (1967), Um projeto para o Brasil (1968), A economia latino-americana (1969), Análise do "modelo" brasileiro (1972), A hegemonia dos Estados Unidos e o subdesenvolvimento da América Latina (1973), O mito do desenvolvimento econômico (1974), Prefácio a nova Economia Política (1976), A fantasia organizada (1985), A fantasia desfeita (1989), O Brasil pós-milagre (1981), A nova dependência (1982), Não - à recessão e ao desemprego (1983), Cultura e desenvolvimento em época de crise (1985).
O tema 'O fator político na formação nacional' está mais desenvolvido pelo autor em Brasil, a construção interrompida (Paz e Terra, 1992).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Abr 2005 -
Data do Fascículo
Dez 2000