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Intersetorialidade e melhorias urbanas em territórios periféricos: o caso de São Miguel Paulista

RESUMO

O presente artigo analisa os desafios de intervenção em territórios periféricos marcados por múltiplas condições de vulnerabilidade, propondo que o tema seja abordado a partir da lógica dos problemas complexos, que não dispõe de uma solução única e linear para a sua superação. Nesse contexto, apresenta a importância de que as políticas públicas para esse assunto sejam baseadas em processos de planejamento implementação de formas intersetoriais e contínuas. Reconhecendo a dificuldade da máquina estatal para agir a partir da lógica intersetorial, o artigo se vale de exemplos de trabalhos realizados na periferia de São Miguel Paulista pela Fundação Tide Setubal para propor que a intersetorialidade seja promovida a partir do orçamento público, da mensuração de impacto e do protagonismo das comunidades. Comentando a partir desses três eixos, o artigo constrói um racional de como aprimorar as intervenções territoriais e reduzir as desigualdades socioespaciais com base no reconhecimento da centralidade territorial na formulação e implementação das políticas públicas.

PALAVRAS-CHAVE:
Desigualdades socioespaciais; Orçamento regionalizado; Mensuração de impacto; Protagonismo comunitário

ABSTRACT

The present article analyses the challenges concerning public interventions in urban peripheries marked by multiple vulnerabilities conditions and proposes to approach the subject by the means of a complex problem, meaning it does not support a simple or linear solution to be overcome. In this context, it presents the importance for the public action to consider planning and implementation in terms of an intersectoral and continuous process. Recognizing the difficulty for the Brazilian public structure to act in an intersectoral way, the article takes some examples of initiatives held in São Miguel Paulista by Tide Setubal Foundation in order to propose that an intersectoral approach can be promoted by public regional budgeting, impact measurement and community protagonism. Commenting from these three levers, the article builds up a rationale of how to improve territorial interventions and reduce socio-spatial inequalities by recognizing the centrality of the territory in the formulation and implementation of policies.

KEYWORDS:
Socio-spatial inequality; Regionalized public budgeting; Social-impact measurement; Community protagonism

Territórios periféricos e intersetorialidade

As desigualdades sociais de manifestam de diversas maneiras. Um dos vetores de aprofundamento e retroalimentação dessas desigualdades é o território. Em ambientes urbanos, determinados bairros concentram diversos tipos de oportunidades e acesso a bens e serviços em detrimento de outros, onde esses são escassos ou ausentes. Em algumas localidades, a renda é menor, há poucos e piores espaços de cultura e lazer, baixa oferta de emprego, de acesso a serviços públicos de qualidade, menor disponibilidade de moradia segura e salubre e vários outros aspectos que se somam para criar um ambiente onde convergem múltiplas vulnerabilidades, enquanto em outros locais, o sentido da convergência é oposto. Ou seja, há uma divisão espacial da reprodução das desigualdades.

Essa segregação socioespacial de recursos - materiais e imateriais, públicos e privados - cristaliza as diferenças existentes entre as diferentes localidades e cria estigmas entre os moradores de cada uma dessas áreas. O conceito de periferia nasce dessa segregação, da diferenciação entre aquelas pessoas que vivem em territórios inseridos no conceito da cidade formal, o centro, e aqueles que estão à margem, que não pertencem a esse espaço, que ocupam áreas em que a população é majoritariamente de baixa renda, com infraestrutura deficiente, presença de assentamentos precários, insuficiência de equipamentos sociais, ausência de áreas livres e verdes e deficiência de rede de telefonia e conectividade.

Essa diferenciação acrescenta barreiras subjetivas às barreiras objetivas já existentes para a superação de dificuldades dos territórios periféricos. Esses bairros passam a ser espaços de risco de circulação e seus moradores começam a carregar em suas identidades o preço desses estigmas, sendo vistos com desconfiança em entrevistas de trabalho e alijados do direito de almejar posições e condições de vida alheias à sua própria realidade, reduzida a uma imagem negativa de periferia carente. Constitui-se numa armadilha ao desenvolvimento, que passa não só pelas deficiências de investimento nessas localidades, mas também pelas consequências da segregação na formação da subjetividade dos indivíduos que ali vivem.

Diante dessas questões, não resta dúvida de que atuar para reverter as desigualdades socioespaciais a partir de uma intervenção em territórios periféricos é um tema complexo, ou seja, uma questão que não apresenta uma linearidade de causa e efeito única, e que, portanto, precisa ser abordada a partir da multiplicidade de conexões que a definem. Boas iniciativas para melhoria de algum dos aspectos de vulnerabilidade em territórios periféricos podem não atingir os resultados pretendidos simplesmente porque agem apenas de maneira parcial sobre o problema.

A título de exemplo, podemos citar uma iniciativa educacional de formação de professores e melhoria da gestão e da infraestrutura escolar que busque aprimorar os índices de aprendizagem de alunos em uma unidade de ensino localizada em um território em situação de vulnerabilidade. Esse tipo de ação pode não ser bem-sucedida em sua meta - ou atingir resultados aquém do esperado - simplesmente porque não controla os efeitos contrários negativos dos outros aspectos que interferem na aprendizagem e que não estão dentro da escola. As crianças que passam a disfrutar de um ambiente escolar mais estruturado e qualificado dispõem de melhores condições para se desenvolver, mas se continuam chegando a suas casas e convivendo em ambientes insalubres e sem espaço adequado para o estudo, ou se não dispõem de espaços de convivência e lazer estimulantes e seguros em seu tempo livre, essa oportunidade de melhoria de desenvolvimento tem uma chance muito menor de se materializar. Algo será aproveitado, mas dificilmente os resultados do esforço empreendido serão uma virada definitiva no ciclo negativo de vulnerabilidade ao qual aquela comunidade escolar está exposta. Isso porque, como mencionado anteriormente, as vulnerabilidades que afetam territórios periféricos são fenômenos multidimensionais e multideterminados, com efeitos persistentes e sem solução fácil (Bichir; Canatto, 2019BICHIR, R.; CANATO, P. Solucionando problemas complexos? Desafios da implementação de políticas intersetoriais. In: PIRES, R. R. C. (Org.) Implementando desigualdades: reprodução de desigualdades na implementação de políticas públicas. Rio de Janeiro: Ipea, 2019. p.243-66.).

Assim, em um cenário como esse de problemas complexos, é fundamental conceber soluções integradas, planejadas e implementadas de forma intersetorial, que sejam capazes de abordar as diversas camadas que interferem no fenômeno negativo que se pretende desconstruir. A questão que se coloca é que a intersetorialidade não está dada nos processos de implementação de projetos sociais e políticas públicas, ela precisa ser produzida (Pires, 2016PIRES, R. R. C. Intersetorialidade, arranjos institucionais e instrumentos da ação pública. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Cadernos de Estudos Desenvolvimento Social em Debate, n.26. 2016. Disponível em: <http://aplicacoes.mds.gov.br/sagirmps/ferramentas/docs/Caderno%20de%20Estudos%2026.pdf>.
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). O poder público não está construído para a intersetorialidade, assim como a academia e a geração do conhecimento também não. A tradição é de construção de ambientes e esferas de atuação especializadas em setores. Economia, cultura, educação, saúde, esporte são áreas de atuação que se organizam como órgãos públicos, áreas do conhecimento e causas específicas na organização da sociedade, criando clusters de convivência pouco permeáveis à elaboração conjunta. Para que a intersetorialidade possa existir, são preciso espaços orgânicos de integração dessas diferentes lógicas.

Assim, ainda que haja evidências na necessidade de uma atuação intersetorial, ela é difícil de se materializar a partir das instituições atualmente estabelecidas. Tomemos como exemplo a lógica do poder público e a pesquisa “Atributos Urbanos e Saúde do Coração”, desenvolvida em parceria pelo Grupo de Estudos Espaço Urbano e Saúde do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP) e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. A pesquisa analisa as possíveis relações entre as condições do ambiente construído da cidade de São Paulo e sua incidência nas condições de saúde da população, em específico, de infarto agudo do miocárdio. Uma das conclusões apresentadas é que a presença de equipamentos de lazer no entorno de residência tende a reduzir a ocorrência das consequências severas dessa doença do coração. Um dos desdobramentos possíveis dessa conclusão seria o de que, caso um gestor público optasse por considerar os dados apresentados, ao determinar uma meta de redução dos infartos agudos de miocárdio ele deveria dialogar diretamente com os investimentos na área do esporte. Ou seja, seria desejável um planejamento conjunto da alocação de equipamentos públicos esportivos para que os resultados em saúde pudessem ser obtidos. Esse tipo de tomada de decisão intersetorial é pouco comum e difícil de ser estimulado a partir das estruturas de governança do poder público. A mais provável é que o esporte fizesse seu próprio planejamento de alocação de novos investimentos, baseado na rede de esportes e em seus objetivos, sem tomar como diretriz principal a preocupação identificada pela saúde.

Nesse sentido, pode-se dizer que a institucionalidade estatal tem momentos insuficientes de manifestação da intersetorialidade em seus processos. Um dos pontos em que ela acontece é a política urbana, objeto central que aqui está sendo discutido. As secretarias de planejamento urbano seriam o espaço per se de encontro das múltiplas intencionalidades das demais áreas de atuação governamental, com potencial para otimizar esse encontro a partir de um olhar socioespacial, que fizesse a organização das prioridades a partir dos territórios e suas articulações nas cidades. Entretanto, o planejamento urbano acabou se transformando em uma área de especialidade em si, focando seus esforços em normatizações, estudos e regulamentações da construção das cidades, que embora tenham gerado importantes constrangimentos positivos para o investimento público e privado, não garantiu esse espaço de convergência de debates do planejamento setorial a partir do vetor da localização. As secretarias de planejamento urbano nos municípios brasileiros, quando existentes, não dispõem de poder suficiente para organizar a tomada de decisão das demais áreas, ocupando um papel paralelo na estrutura hierárquica e, por vezes, com menor capacidade orçamentária e de enforcement.

Um outro espaço em que a intersetorialidade se manifesta é na distribuição do orçamento público. As áreas de orçamento dos governos municipais ou estaduais são obrigadas, pela sua própria natureza, a lidar com todas as áreas de governo. Nesse sentido, seriam um espaço privilegiado de estímulo à tomada de decisão intersetorial. No entanto, aqui também a lógica da especialização e da atuação bilateral acaba se impondo. Ainda que seja necessário fazer escolhas orçamentárias que impactem trade-offs intersetoriais - alocar mais recursos na Assistência retirando recursos da Cultura, por exemplo -, tais decisões não são feitas de maneira intersetorial, ou seja, não são construídos cenários de alocação de recursos que considerem diversas composições de recursos possíveis entre os diferentes setores e seus respectivos resultados combinados. Ou seja, não se analisa o impacto integrado das ações setoriais sobre a geração coletiva de valor público. As escolhas se limitam a comparar resultados setoriais, independentemente do potencial existente no olhar integrado, e das perdas evidentes da não atuação simultânea como no exemplo da educação.

Sem a provocação da intersetorialidade pela área urbana ou orçamentária, as decisões públicas se mantêm segmentadas, o que significa que dificilmente as desigualdades socioespaciais poderão ser endereçadas. A intersetorialidade é uma característica necessária para a busca pela redução das desigualdades, de modo a colocar o território em sua especificidade como foco da ação pública. Sendo assim, parece-nos urgente formular e propor alternativas para a construção dessa intersetorialidade, seja por dentro da máquina pública, seja a partir de transformações nas formas de interação do poder público com a sociedade civil.

Trazemos, a seguir, três propostas de estratégias que podem ajudar a colocar a intersetorialidade no centro da ação pública e, a partir daí, promover melhorias efetivas nos atributos urbanos de territórios periféricos. As propostas são resultantes de estudos e reflexões realizados a partir da intervenção da Fundação Tide Setubal1 1 A Fundação Tide Setubal é uma organização não governamental e de origem familiar criada em 2006. As periferias urbanas são o foco do trabalho e o bairro de São Miguel Paulista foi o ponto de partida para a atuação. Essa região na zona leste de São Paulo foi onde Tide Setubal realizou ações sociais na década de 1970, inspirando a criação da entidade. A atuação da Fundação Tide Setubal busca articular e fomentar oportunidades para quem vive nas periferias, identificar soluções para a redução das desigualdades e promover alternativas que contribuam para a qualidade de vida nos territórios, com a melhora da infraestrutura e dos serviços oferecidos, conectando diferentes atores e gerando modelos que possam ganhar escala e alcançar políticas públicas. no território de São Miguel Paulista, zona leste do município de São Paulo, que deverá ilustrar parte dos apontamentos dos itens a seguir.

O orçamento público regionalizado e a promoção da intersetorialidade

Conforme mencionado anteriormente, o orçamento público carrega por natureza a lógica da intersetorialidade, embora ela se manifeste mais como somatório de setores do que como organização de áreas distintas para a construção de um todo intersetorial. A secundarização do processo de tomada de decisão intersetorial no âmbito do orçamento é resultado de práticas e procedimentos que o burocratizaram e tornaram o ciclo orçamentário um processo inercial, que muitas vezes apenas replica as decisões do ano anterior em sua fase de planejamento e que posterga para o momento da execução as decisões acerca da pequena parcela discricionária dos recursos públicos. Na medida em que a decisão é tomada apenas na execução, e não no planejamento, o espaço para a decisão intersetorial se estreita.

Como uma forma de tentar quebrar essa inércia burocrática e promover a intersetorialidade, diversos municípios do mundo têm proposto mecanismos de regionalização do orçamento para a promoção da integração de projetos e a aplicação de recursos com maior equidade (Marin; Almeida, 2023MARIN, P.; ALMEIDA, M. Orçamento regionalizado como ferramenta de combate às desigualdades socioespaciais: reflexões a partir do PPA 2022-2025 do município de São Paulo. In: Boletim de Análise Político-Institucional, 34/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. - n.1 (2011). Brasília: Ipea, 2023). A cidade de São Paulo passou a fazer parte desse grupo com o Plano Plurianual de 2022 a 2025. Ao longo da elaboração desse Plano, a Secretaria da Fazenda municipal criou, em conjunto com organizações da sociedade civil, um índice de regionalização do orçamento, uma fórmula de distribuição de um recurso discricionário determinado que leva em consideração critérios territoriais de vulnerabilidade para a alocação dos recursos.2 2 O índice de regionalização do orçamento foi uma proposta elaborada originalmente em 2020 pela Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo no âmbito do projeto (Re)age SP, virando o jogo das desigualdades. A formulação original do índice e seu embasamento teórico pode ser encontrada em: <https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/redistribuicao-territorial-do-orcamento-publico-uma-proposta-para-virar-o-jogo-das-desigualdades/> . Após o debate público ensejado por essas organizações da sociedade civil, a Prefeitura de São Paulo organizou em 2021 uma metodologia própria que foi levada ao legislativo e aprovada como parte do PPA 2022-2025. São consideradas nove variáveis para a determinação do índice: o número de famílias inscritas no CadÚnico, a taxa de empregos formais por habitante, a taxa de mortes evitáveis, a falta de acesso à água e esgoto, o número de domicílios em favela e a população. As diversas regiões da cidade, áreas administrativas divididas como subprefeituras, foram classificadas a partir desses elementos, de modo a constituir-se num ranking de vulnerabilidade dos territórios municipais. Ou seja, criou-se uma lógica de demanda do olhar público a partir de uma fórmula concreta. As áreas que apresentavam relativamente pior situação no conjunto dos indicadores pontuavam mais e deveriam receber, segundo a lógica do índice, um volume relativamente maior de investimentos do município.

A intersetorialidade se apresenta a partir do momento em que o Plano define um montante total de recursos a ser distribuído conforme a regra, no caso, R$ 5 bilhões, mas não faz designação de um órgão exclusivo para direcionamento do recurso. Ou seja, a parcela de valor destinada a cada região da cidade não é atribuída a um gestor regional, mas sim diluída entre o conjunto das secretarias setoriais. Isso significa que saúde, educação, habitação, cultura etc. passam a ter que se articular para avaliar conjuntamente se seus planos de investimento na cidade respondem de maneira consistente à demanda de volume de recursos colocadas pelo índice. As decisões oriundas da alocação de recursos exigida pelo índice são intersetoriais e compartilhadas, e isso é uma novidade no processo de tomada de decisão orçamentária.

Quadro 1
Índice de distribuição orçamentária do PPA regionalizado 2022-2025 Município de São Paulo

O índice promove, assim, um incentivo à criação de orçamentos regionais, o que também pode ser uma estratégia de otimização da tomada de decisão dos orçamentos setoriais. Em um estudo realizado pela Fundação Tide Setubal, foram analisados todos os planos setoriais existentes no município de São Paulo para uma determinada região, São Miguel Paulista. Embora os planos não tenham o costume de atribuir valores para as ações pretendidas, o estudo avançou no processo de orçamentação do conjunto dos projetos e investimentos previstos,

chegando ao montante aproximado de R$ 8 bilhões para a realização do que é chamado de “planejamento dos sonhos de São Miguel Paulista” (FTAS, 2021b). Ora, se tomarmos por base o valor destinado para essa região do município de São Paulo para o período do PPA 2022-2025 (Quadro 2), veremos que a expectativa de destinação de recursos para essa região em quatro anos é de R$ 209,5 milhões. Com base nesses parâmetros, seriam necessários, portanto, mais de 38 anos para que os planos existentes pudessem ser implementados, o equivalente a 9,5 gestões municipais.

Quadro 2
Distribuição orçamentária entre regiões - PPA regionalizado 2022-2025

Em um cenário como esse, fica explícita a importância de um processo de priorização intersetorial. Frente a um conjunto de demandas tão superior à disponibilidade de recursos, regras de distribuição setoriais tendem a viabilizar uma implementação muito aquém do necessário de todas as áreas, com resultados possivelmente muito insuficientes para alterar de maneira significativa a realidade local. A busca por uma otimização intersetorial pode ajudar na busca de soluções de sinergia que viabilizem coletivamente um maior uso de recursos e com mais resultados para a região em questão.

O mesmo estudo (FTAS, 2021b) chegou a elaborar cenários intersetoriais possíveis de utilização dos recursos.

Optou-se por trabalhar com três propostas de cenários mais realistas, cada um privilegiando ações distintas adequadas ao orçamento da Prefeitura para os próximos quatro anos. O primeiro cenário, denominado São Miguel + Digna, tem foco no combate emergencial às maiores vulnerabilidades dos territórios, como falta de saneamento, carência alimentar, moradia precária, evasão escolar e baixíssima renda familiar. O segundo cenário, São Miguel + Integrada, aposta na vocação da Subprefeitura como um lugar de moradia e de serviços, com acesso fácil e rápido para o centro e outros bairros da cidade de São Paulo nos quais haja oportunidades de trabalho, estudo, cultura e lazer. Já o terceiro cenário, São Miguel + Humanizada, tem maior foco em políticas sociais e educação. (FTAS, 2021b, p.13)

A elaboração de cenários materializa as possibilidades de intervenção intersetorial e facilita a tomada de decisão que melhor responde aos anseios do gestor e/ou da população local. Na experiência realizada pelo estudo, os três cenários foram debatidos por um conjunto de moradores da região de São Miguel Paulista, que acabaram por criar um quarto cenário de composição de projetos que lhes pareceu mais adequado e aderente às necessidades imediatas da população. A criação de um cenário de investimentos factível, consensuado entre um grupo diverso de moradores e baseado em ações previamente indicadas por especialistas das diferentes áreas é algo extremamente difícil de se alcançar, e que só foi possível porque as alternativas de ação existentes e a restrição orçamentária realista foram conhecidos e organizados de uma maneira intersetorial, o que torna o experimento particularmente relevante.

Esse exemplo retrata uma realidade que não é incomum nos municípios brasileiros. Como as necessidades e vulnerabilidades são muitas, os planos setoriais costumam propor uma quantidade de ações muito maiores do que os recursos disponíveis, sem necessariamente construir caminhos de priorização e faseamento. Diante disso, a construção de cenários intersetoriais regionalizados pode ajudar a selecionar prioridades de cada um dos planos capazes de criar a melhor sinergia e gerar mais valor público territorial.

Assim, talvez a unificação da lógica urbana e da lógica orçamentária, presentes no experimento realizado em São Miguel Paulista, sejam parte da resposta de como promover a intersetorialidade na gestão pública. Unindo dois elos naturalmente transversais e que, de um lado, delimitam o espaço e, com ele, um vetor de organização de resultados e objetivos da política pública e, de outro, possuem poder para disciplinar as diversas secretarias que, do ponto de vista orçamentário, acabam se subordinando aos critérios estabelecidos pelo gestor dessa área. Sentido territorial e capacidade orçamentária seriam assim, as duas apostas para a promoção da intersetorialidade.

Um dos aspectos fundamentais para implementar as soluções observadas nos exemplos foi a organização de informações e a disponibilidade de dados, aspectos que merecem um aprofundamento quando se trata de ações em territórios em condição de vulnerabilidade.

O papel da mensuração de impacto na promoção da intersetorialidade

A melhoria dos atributos urbanos em territórios vulneráveis é, como vimos, um desafio complexo que exige ações intersetoriais. Há uma hipótese permanente em todo o argumento de que a ação combinada entre diferentes setores gera sinergias que melhoram os resultados públicos obtidos e, com isso, otimizam o uso dos recursos escassos disponíveis. Embora seja um argumento lógico plausível, será que é possível efetivamente testar essa hipótese e validar com evidências essa ideia da otimização a partir de um olhar intersetorial?

Em um estudo denominado A Lupa na Cidade (Lazzarini et al., 2020LAZZARINI, S. et al. A Lupa na Cidade: painel de indicadores de desenvolvimento em áreas urbanas vulneráveis. 2020. Disponível em: <https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/a-lupa-na-cidade-painel-de-indicadores-de-desenvolvimento-de-areas-urbanas-vulneraveis/>
https://fundacaotidesetubal.org.br/publi...
), a Fundação Tide Setubal e o Insper Metricis buscaram construir uma Teoria da Mudança para o desenvolvimento de territórios vulneráveis que fosse capaz de apontar os principais efeitos intersetoriais nos resultados desejados para a melhoria das condições de vida em uma localidade. Foram estabelecidos 37 resultados de intervenção desejados. Alguns exemplos de resultados são o nível de aprendizagem adequado das crianças e jovens, a presença de hábitos saudáveis, a satisfação da população com o território, a ausência de enchentes e espaços públicos limpos seguros e atrativos. Para se alcançar tais resultados, foram elaboradas atividades de nove diferentes macrotemas - educação, saúde, emprego e renda, mobilidade, infraestrutura, lazer e cultura, capital social, moradia e segurança. Embora o estudo aprofunde nos diagnósticos setoriais que envolvem cada macrotema, o foco é na organização da interrelação entre os temas para o alcance dos resultados. A Figura 1 demonstra esquematicamente a relação encontrada.

Figura 1
Teoria da Mudança para Territórios em situação de Vulnerabilidade.

Além de organizar essas relações intersetoriais de causa e efeito, o estudo propôs um conjunto de indicadores capazes de mensurar os resultados desejados pela Teoria da Mudança, de modo a permitir uma análise mensurável das diferentes intervenções.

A partir desse trabalho, a Fundação Tide Setubal aplicou o framework desenvolvido por essa Teoria da Mudança a um perímetro específico da região de São Miguel Paulista, o bairro do Jardim Lapena, local em que já atuava há vários anos. A ideia foi a de aproveitar a experiência e a capacidade de mobilização da organização para criar um plano de avaliação e mensuração dos impactos de uma ação intersetorial e de longo prazo em um determinado território. Assim, foi definida uma linha de base no ano de 2021 para o Jardim Lapena em que todos os 58 indicadores que devem monitorar o alcance dos 37 resultados foram coletados. Elaborou-se um mapa de atividades e organizações que podem executar parte das ações apontadas pela Teoria da Mudança e foram identificados os pontos indispensáveis de mobilização do poder público e de outros agentes do setor privado, tratando-se, portanto, de um plano intersetorial e interinstitucional.

A metodologia envolveu também a seleção e a coleta de informações para um território controle, uma área com características socioeconômicas e geográficas similares às do Jardim Lapena mas que não é objeto de uma intervenção intencional e integrada. Desse modo, as informações das duas regiões passarão a ser monitoradas a cada dois anos para verificação de como as ações realizadas em cada um dos casos, com maior intersetorialidade no Jardim Lapena e menor no território controle, estão efetivamente alterando os indicadores de resultado para os dois territórios.

Tomemos como exemplo o resultado 14, no qual se espera que a população seja satisfeita com o nível de convívio no território e carregue um sentimento de pertencimento. Esse resultado é particularmente importante para os territórios periféricos em razão dos estigmas que os moradores dessas localidades passam a carregar por causa da segregação socioespacial à qual são submetidos, conforme mencionado no início deste texto. Para o alcance desse resultado, a Teoria da Mudança propõe que sejam necessárias ações no âmbito de infraestrutura - melhoria dos serviços urbanos, do tratamento de resíduos sólidos, das áreas de convívio, entre outros - e do que se chamou de capital social, aqui associado às iniciativas de caráter comunitário, como atividades de lazer local, estabelecimento de redes de solidariedade e outras propostas de promoção da vida em coletividade. A Figura 2 resume a interação proposta para o resultado 14.

Figura 2
Teoria da Mudança e interação para obtenção de resultados.

Para mensurar esse sentimento de pertencimento e satisfação, a solução encontrada foi uma coleta de primária de dados de percepção diretamente com os moradores. Foi estabelecida uma escala de 0 a 10 sobre o nível de satisfação, sendo que o Jardim Lapena obteve um resultado de 7,28 de média e o território controle de 8,26.

Tendo uma referência mensurável de partida e monitorando a sua evolução, será possível não apenas analisar a efetividade das ações realizadas no bairro, mas também o potencial de alavancagem de melhorias de uma intervenção intersetorial. No exemplo específico sobre pertencimento e satisfação, cabe mencionar que o Jardim Lapena já apresenta um volume de iniciativas associativas e de caráter comunitário superior ao seu território controle. Isso poderia indicar uma necessidade de investimento em infraestrutura para que o resultado obtido pudesse ser aprimorado. No final do ano de 2022, foram aprovadas pela Prefeitura do Município de São Paulo algumas obras de melhoria das condições de caminhabilidade e convivência para o bairro. Uma vez realizadas as obras e coletado novamente o indicador, poderemos ter uma percepção mais efetiva dos impactos dessas intervenções na mudança da qualidade de vida dos moradores daquela região.

Em ambientes com problemas complexos e com disponibilidade de recursos inferiores aos necessários para a superação do conjunto dos problemas, a mensuração e o monitoramento são fundamentais para a identificação dos melhores pontos de otimização. O aprendizado em um caso particular, como esse do nosso exemplo, pode auxiliar em planos de ação para outros territórios periféricos e a metodologia em si pode inspirar a elaboração de ações mais integradas entre diferentes setores. Ou seja, o próprio ato de apontar resultados compartilhados que exigem ações coletivas pode ser um mecanismo de incentivo às ações intersetoriais e de maior efetividade para a melhoria dos atributos urbanos em territórios periféricos.

Por fim, vale um comentário em relação ao nível do indicador de satisfação mencionado no exemplo. Ao falar de territórios em situação de vulnerabilidade, é comum que sejam ressaltadas as carências ali existentes e os problemas que precisam de resolução. Nesse contexto, uma inferência possível seria que os níveis de satisfação com o bairro seriam bastante baixos, mas não é o que encontramos como evidência, seja no Jardim Lapena, seja no território controle.

De maneira geral, apesar das carências materiais, os territórios periféricos são espaços de muita potência e promotores de convivência e geração de redes de auxílio que acaba fortalecendo a identidade e a sensação de pertencimento dos seus moradores. Trata-se de um processo contraditório. Ainda que sigam passando por constrangimentos em outros bairros ao declarar seu local de residência, há um sentimento de acolhimento e de que, na adversidade, é o bairro que se junta para resolver e apoiar os seus moradores.

O papel da comunidade na garantia da intersetorialidade

Chegamos assim à terceira proposta para a garantia de uma ação consistente e intersetorial em territórios periféricos: a comunidade local. Já identificamos que os problemas são complexos, que exigem intersetorialidade e um conjunto de ações que possivelmente não dispõe de volume suficiente de recursos para serem implementadas. Sendo assim, melhorias nesses ambientes urbanos exigem planejamento, priorização conjunta e continuidade para que, na medida do disponível, os investimentos garantam uma espiral positiva de desenvolvimento.

Do ponto de vista do tempo, um dos principais desafios da implantação de soluções nessas localidades é a descontinuidade. Projetos do poder público sofrem com idas e vindas do ambiente político e problemas de redirecionamento abrupto de recursos, o que afeta particularmente os investimentos em infraestrutura em função destes em geral serem de duração maior do que os tempos de uma determinada gestão. A comunidade local pode ser um grande ativo exatamente nesse ponto, garantindo a permanência da intersetorialidade e dos projetos ao longo do tempo, isso se ela tiver acesso aos planos e projetos estabelecidos e conhecer parte dos processos pelos quais esses planos têm que passar para ser viabilizados.

Assim, para alcançar a atribuição desse papel a um grupo de moradores locais, o primeiro passo é a construção de um planejamento de ação local que mobilize as organizações - públicas, privadas, comunitárias - em torno de objetivos comuns e explícitos. A Teoria da Mudança apresentada no item anterior pode servir de horizonte para a construção de ações e objetivos específicos para uma determinada localidade, mas os próprios planos setoriais também servem de ponto de partida para esse tipo de iniciativa. Além disso, é comum a existência de organizações e coletivos locais preocupados com o bem-estar da comunidade e que podem servir de apoio para esse tipo de planejamento se fossem estimulados para esse fim.

No caso do Jardim Lapena, a pandemia acabou contribuindo para a formação de um potente coletivo local de mulheres que ajudará a ilustrar a potência dessas organizações nos territórios periféricos. Durante o período de isolamento social, a Fundação Tide Setubal organizou um trabalho de distribuição de máscaras, álcool gel e cestas básicas para os moradores em alta vulnerabilidade. No momento da distribuição, duas colaboradoras da Fundação se perderam entre as vielas do bairro tentando encontrar um idoso que havia sido indicado para receber o auxílio. Sem saber como retomar seu caminho, ligaram para uma conhecida que sabiam morar nas redondezas. A pessoa as encontrou, indicou o caminho para o idoso que procuravam e ainda apontou outras pessoas que considerava em alta vulnerabilidade e para as quais o apoio seria de grande valia. Ao final do dia, as duas colaboradoras da Fundação Tide Setubal disseram à mulher que as ajudara que ela havia sido sua guardiã ao longo do dia. A pessoa respondeu que gostaria de poder fazer isso sempre e que tinha amigas em outras regiões do bairro que também gostariam de apoiar em projetos de cuidado com a comunidade. Nascia ali o coletivo As Guardiãs do Bairro.

As Guardiãs são hoje um coletivo de 169 mulheres distribuídas pelo bairro do Jardim Lapena que acompanham os casos de maior vulnerabilidade e buscam encontrar respostas e alternativas de apoio. Passaram por cursos de formação junto à Secretaria de Assistência Social do Município de São Paulo e ajudam com encaminhamentos diretamente relacionados com a rede pública. Mas além disso, o coletivo passou a desenvolver ações de sustentabilidade, compostagem e conscientização ambiental das famílias. Outro ponto fundamental é que o coletivo funciona como uma rede de apoio para essas mulheres, que enfrentam seus próprios desafios de saúde mental, violência doméstica e acesso a renda, tendo no grupo das Guardiãs um espaço de acolhimento e segurança emocional - e, quando possível, até mesmo material - para o enfretamento dessas situações.

Assim, mais do que um coletivo de assistência, as Guardiãs do Bairro são um exemplo de comprometimento comunitário com a melhoria da vida nesse território periférico. Organizações como essa podem ajudar no planejamento local, na escolha de cenários de investimento e serem, elas próprias, guardiãs de um processo mais longo de desenvolvimento local que transcenda gestões públicas municipais. Os moradores do bairro permanecem e conhecem a dinâmica das mazelas que vivem, bem como alternativas de solução eficientes. Com o devido apoio técnico e espaço institucional de organização e escuta, podem representar uma força organizadora e sustentadora de processos de melhorias contínuos do espaço urbano.

É sabido que os territórios periféricos são dinâmicos, como é a vida econômica e social de seus habitantes. Aprimorar os atributos urbanos dessas áreas requer mais do que projetos pontuais grandiosos e grandes investimentos. Exige a constituição de um movimento contínuo de decisões intersetoriais e monitoramento de sua implementação para que as iniciativas criem sinergias e vivenciem um processo progressivo de melhoria urbana. Diversos interesses e gestões vão passar por um território, cabe a esses novos modelos de governança local saber aproveitar o que for possível de cada nova onda e fazer com que os investimentos contribuam para um projeto contínuo mais longo e bem identificado com as necessidades locais.

Além disso, é fundamental que se compreenda que a melhoria urbana em áreas como infraestrutura e segurança não devem vir em detrimento das conquistas de convivência comunitária muito ricas que esses territórios conquistaram em função de sua própria capacidade de resposta às adversidades, como o caso das guardiãs. Observar essa dinâmica própria e orientar a política pública a partir do seu fortalecimento pode ser um dos grandes caminhos de alcance da intersetorialidade e da melhoria dos atributos dos territórios vulneráveis.

Para problemas complexos, não há soluções simples. Mas alguns direcionamentos podem ser fundamentais. Pensar a intersetorialidade a partir do orçamento, da mensuração de resultados e do protagonismo local pode ser uma chave importante para a virada da roda no sentido da redução das desigualdades socioespaciais. Simplificando, a superação dos desafios em periferias talvez esteja em seu reconhecimento como tal. Afirmar que o território da política pública importa, em toda sua multidimensionalidade, e orientar recursos e esforços de governança para isso, é suficiente para repensar nossas ferramentas e alcançar conquistas profundas no campo da melhoria da vida e da redução da vulnerabilidade.

Referências

Notas

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    A Fundação Tide Setubal é uma organização não governamental e de origem familiar criada em 2006. As periferias urbanas são o foco do trabalho e o bairro de São Miguel Paulista foi o ponto de partida para a atuação. Essa região na zona leste de São Paulo foi onde Tide Setubal realizou ações sociais na década de 1970, inspirando a criação da entidade. A atuação da Fundação Tide Setubal busca articular e fomentar oportunidades para quem vive nas periferias, identificar soluções para a redução das desigualdades e promover alternativas que contribuam para a qualidade de vida nos territórios, com a melhora da infraestrutura e dos serviços oferecidos, conectando diferentes atores e gerando modelos que possam ganhar escala e alcançar políticas públicas.
  • 2
    O índice de regionalização do orçamento foi uma proposta elaborada originalmente em 2020 pela Fundação Tide Setubal e a Rede Nossa São Paulo no âmbito do projeto (Re)age SP, virando o jogo das desigualdades. A formulação original do índice e seu embasamento teórico pode ser encontrada em: <https://fundacaotidesetubal.org.br/publicacoes/redistribuicao-territorial-do-orcamento-publico-uma-proposta-para-virar-o-jogo-das-desigualdades/> . Após o debate público ensejado por essas organizações da sociedade civil, a Prefeitura de São Paulo organizou em 2021 uma metodologia própria que foi levada ao legislativo e aprovada como parte do PPA 2022-2025.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Aceito
    10 Ago 2023
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