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A RELAÇÃO ESCOLA-ESTADO: PROVOCAÇÕES DE NIETZSCHE E FOUCAULT PARA PENSARMOS NOSSA ATUALIDADE

LA RELACIÓN ESCUELA-ESTADO: PROVOCACIONES DE NIETZSCHE Y FOUCAULT PARA PENSARMOS NUESTRA ACUTALIDAD

RESUMO:

O presente artigo tem como temática central pensar a instituição escolar e sua relação direta com o Estado. Trata-se de escrutinar sobre tal díade e problematizar as estratégias que são colocadas em operação para que a defesa pela sua obrigatoriedade se torne quase inquestionável no campo educacional. Acompanhado por Friedrich Nietzsche e Michel Foucault, o texto examina as críticas desenvolvidas por esses autores quanto ao par escola-Estado. De Nietzsche, valemo-nos das problematizações a respeito da pequenez que se faz da escola quando da união com o Estado. De Foucault, utilizamos as discussões a respeito do Estado para problematizar o modo como a sua articulação com a escola se tornou um instrumento privilegiado para o fortalecimento de uma governamentalidade. Defendemos que somente é possível pensar problematicamente a escola quando acionamos em nós a crítica ácida à governamentalidade. Cabe recusar o que somos para abrir passagem a outros horizontes de subjetividade, tramados pela resistência ao instituído e às verdades de autoridade.

Palavras-chave:
Escola; Estado; governamentalidade; Friedrich Nietzsche; Michel Foucault

RESÚMEN:

El presente artículo tiene como tema central pensar la escuela y su relación directa con el Estado. Se trata de escudriñar sobre esta díada y problematizar las estrategias que se ponen en funcionamiento para que la defensa de su obligatorialidad se vuelva casi incuestionable en el campo educativo. Acompañado por Friedrich Nietzsche y Michel Foucault, el texto examina las críticas desarrolladas por los autores con respecto a la pareja escuela-estado. Desde Nietzsche, el texto hace uso de las problematizaciones relacionadas a la pequeñez que se hace de la escuela cuando esta se une al Estado. Desde Foucault, las discusiones sobre el Estado se utilizan para problematizar la forma en que su articulación con la escuela se ha convertido en un instrumento privilegiado para fortalecer la gubernamentalidad. El texto argumenta que solo es posible pensar, problemáticamente sobre la escuela, cuando desencadenamos una crítica ácida de la gubernamentalidad en nosotros. Es necesario rechazar lo que somos para dar paso a otros horizontes de subjetividad, tejidos por la resistencia a lo instituido y a las verdades de autoridad.

Palabras clave:
escuela; Estado; gubernamentalidad; Friedrich Nietzsche; Michel Foucault

ABSTRACT:

The present article aims to think about schools and their relation with the State. It is about to scrutinize this dyad and problematize strategies implemented to defend compulsory education as an unquestionable theme in the educational field. Accompanied by Friedrich Nietzsche and Michel Foucault, the text discusses the criticisms developed by the authors related to the pair school-State. From Nietzsche, the text draws upon his problematizations related to the belittling of school since its union with the State. From Foucault, the text bases its discussion on the State to debate how its articulation with schools became a privileged instrument to reinforce governmentality. The text argues that is only possible to think of schools problematically when we activate on us an acid criticism related to governmentality. We must refuse what we are to open possibilities to others' horizons of subjectivity, woven by the resistance against the instituted and authority truths.

Keywords:
school; State; governmentality; Friedrich Nietzsche; Michel Foucault

INTRODUÇÃO

As discussões a respeito da escola e de seu funcionamento não são questões novas. Elas povoam o campo educacional, tornando-se, assim, recorrentes. Diferentes pensadores têm debatido a respeito da garantia e da necessidade da escolarização, do fim dessas instituições ou, ainda, do ensino domiciliar. O fato é que a discussão sobre a escola está na pauta de nossas questões éticas e políticas no cenário da Educação. O que esperamos da escola? O que queremos dela? Por que lutamos por ela? Para nós, educadores, essas perguntas são da maior relevância e merecem o nosso debruçar filosófico.

Este texto baseia-se na perspectiva da filosofia da diferença, em especial nos estudos de Friedrich Nietzsche e de Michel Foucault, para olhar a instituição escolar a partir de uma crítica à nossa atualidade. Não se trata de defender posição a favor ou contra a escola, mas escrutinar o seu funcionamento, bem como as estratégias colocadas em operação para que a defesa pela sua obrigatoriedade se torne quase inquestionável no campo educacional.

Partimos de uma díade já consolidada em nossa sociedade: a relação escola-Estado. Pretendemos, com este texto, problematizar o modo como sua articulação se tornou um instrumento bastante privilegiado para o fortalecimento de uma governamentalidade. Para isso, lançamos mão dos filósofos já anunciados.

O artigo foca-se em dois elementos centrais, um em Nietzsche, outro em Foucault. Fazendo uso das conferências de Nietzsche na Universidade da Basiléia, em 1872, anunciamos e provocamos a aliança escola-Estado que vinha sendo firmada na Alemanha naquele momento. Na sequência, aproximamos a crítica do filósofo alemão ao modo como Foucault entende o Estado e suas correlações com o conceito de governamentalidade. Nesse sentido, nosso intuito é trazer à baila uma provocação à escola nessa aliança já consolidada com o Estado a partir da governamentalidade como grade de inteligibilidade em nosso tempo atual.

Fazer isso, a nosso ver, é nos potencializarmos para exercer a crítica que Foucault (1978)FOUCAULT, Michel. O que é a crítica. Conferência proferida à Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978. Disponível em: Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf . Acesso em: 9 maio 2020.
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nos ensinou. É fazê-la de modo ácido e com os “pés no chão”. Não se trata daquele modo já bastante difundido entre nós de olhar para a escola “como lugar de formação crítica e emancipada”. Levantar bandeiras a favor da homogeneização e da repetição, agora renovadas, da institucionalização escolar, não nos levará a caminhos outros. Não é dessa crítica que tratamos no interior deste texto. A crítica aqui assume, na companhia de Foucault, “a arte de não ser governado assim e a esse preço” (1978, p. 4).

Talvez desse modo, munidos do exercício do diagnóstico sobre tais relações e da potência do pensamento para enxergarmos as estratégias governamentais que são acionadas para a necessidade da escolarização, seja possível criarmos fissuras nas tão tramadas redes de articulação entre esse par solidificado há pelo menos três séculos: a escola e o Estado.

NIETZSCHE E A CRÍTICA AOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO

O jovem Nietzsche, em 1872, apresentou cinco conferências na Universidade da Basiléia, Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino. Com sua ácida crítica à modernidade, o filósofo discutiu as intrínsecas relações entre ensino e Estado. Este último tinha a tarefa de proliferar a cultura - aquela que Nietzsche criticava ferozmente: uma cultura das massas, uma cultura universal, da utilidade. Uma cultura então marcada pela transposição de uma educação utilitarista constituída por uma lógica econômica. A elevação cultural do indivíduo fora esquecida em favor de uma cultura instrumentalizada que investia no discurso de uma formação essencialmente técnica, visando atender às demandas do mercado. Uma cultura massificada, universalizante, que apostava no ensino compulsório e destinado à formação do rebanho. “A cultura mais universal é exatamente a barbárie” (NIETZSCHE, 2003aNIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino [1872]. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola, 2003a. p. 40-137., p. 62). Nesse sentido, ainda segundo o filósofo alemão, uma barbárie cultivada.

As duras críticas feitas por Nietzsche nessas conferências são tributárias ao seu diagnóstico da modernidade. Uma crítica aos costumes e aos valores assumidos naquele tempo. Um tempo que relegou a filosofia a um patamar inferior e entregou as atividades pedagógicas nas mãos do Estado. A instrumentalização dos estabelecimentos de ensino foi uma das estratégias para o fortalecimento do Estado na formação dos seus homens.

Com a Guerra Franco-Prussiana, de 1871, ocorreram inúmeras modificações no ensino na Alemanha, contexto do qual falava Nietzsche. As mudanças econômicas efetivaram transformações no cenário do ensino e da cultura. Tratava-se, a partir daquele momento, nos ginásios alemães, de formar para as ciências, ou ainda para uma certa “miséria de viver” (FRAGOSO, 1974FRAGOSO, Myriam X. Nietzsche e a educação. In: Revista Trans/Form/Ação, Marília, v. 1, p. 277-293, 1974. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-31731974000100017. Acesso em: 9 maio 2020.
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, p. 278). Aquela era uma “cultura nacional” fabricada pelo Estado e consolidada na formação das massas nos estabelecimentos de ensino. Nietzsche teceu inúmeras críticas a essas modificações no cenário educacional e ao modelo prussiano de escola, que foi admirado e imitado em muitos Estados.

Evidentemente estes outros Estados supõem que isso traga benefícios para a estabilidade e para a formação do Estado, mais ou menos como ocorre com este famoso serviço militar obrigatório que se tornou completamente popular. Quando se vê que todo mundo carrega periodicamente e com orgulho o uniforme militar, quando se vê que quase todo mundo, graças aos ginásios, assimilou uma cultura de Estado uniformizada, aqui os indivíduos hiperbólicos poderiam quase falar de um regulamento digno da antiguidade, desta potência do Estado que não foi realizada senão uma vez na Antiguidade, e que quase todos os jovens são instintivamente solicitados a considerar como o desabrochar e o objetivo supremo da existência humana (NIETZSCHE, 2003aNIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino [1872]. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola, 2003a. p. 40-137., p. 98).

Foi com esse olhar bastante enérgico contra as forças estatais que o filósofo se dedicou a demarcar o engessamento e a pequenez que se estabeleceram nos espaços escolares da época e que persistiram como herança na organização dos estabelecimentos de ensino da contemporaneidade. O Estado tomou para si a escola como o espaço para a disseminação da cultura. No entanto, não era de qualquer cultura que se tratava, mas daquela que, pelas malhas do Estado, havia sido definida como a ideal a ser ensinada, tendo permissão para adentrar nos estabelecimentos de ensino.

Para Nietzsche, há uma diferença bastante clara entre estabelecimentos de ensino e instituições educacionais. As primeiras se dedicam à formação de uma educação em rebanho, para as massas, para formação de funcionários do Estado. As segundas inclinam-se à elevação cultural, uma formação para poucos, que se volta às necessidades da filosofia, à inclinação para a arte e ao conhecimento do espírito grego. A distinção nietzschiana ainda permanece válida quando se trata de observar as nuances que produzem a diferença entre ensino e educação. Enquanto o primeiro se associa fortemente à instrução e, portanto, à técnica - ao conhecer e ao fazer -, a segunda diz respeito à formação em um sentido amplo: à dimensão do ser.

As críticas ferozes produzidas por Nietzsche nas conferências da Universidade da Basiléia estavam voltadas aos estabelecimentos de ensino daquela época, num lugar bastante definido: a Alemanha. Seu objetivo com esses escritos era evidenciar a pobreza da cultura presente naquelas instituições. Tratava-se de denunciar a fragilidade e a pequenez de espírito característicos daqueles espaços. Instrui-se o indivíduo para uma determinada profissão. Define-se, pelas determinações estatais, o que é cultura e qual será ensinada para formação do rebanho. A isso não é possível chamar educação, pois em tais espaços não há “estabelecimentos para a cultura” (NIETZSCHE, 2003aNIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino [1872]. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola, 2003a. p. 40-137.).

A cultura, no sentido nietzschiano, não poderia ser repassada a partir de um rol de conteúdos a serem ensinados pela via da memorização. “[...] a cultura não pode se reproduzir e crescer quando a educação está orientada para uma profissão, uma carreira, uma função, um cargo, quando é movida pelo ‘espírito utilitário’, quando é verificada através de exames obrigatórios e integradores, quando é extensiva e universalizada” (SOBRINHO, 2003SOBRINHO, Noéli Correia de Melo. A pedagogia de Nietzsche. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola , 2003. p. 7-39., p. 11, grifo da autora). A cultura, para Nietzsche, assume-se como aquela que se produz pela via da criação e da experimentação. Somente assim será possível potencializar as forças individuais, em oposição à formação de homens iguais ou ainda à formação de um rebanho. Seres singulares, únicos, os verdadeiros guerreiros, no sentido nietzschiano.

Ao analisarmos os escritos do filósofo, fica evidente o quanto ele se distancia da defesa de uma educação compulsória, definida e exigida pelo Estado. Com essa educação, somente é possível a existência de homens de rebanho, de homens que pensam e agem a partir das definições estabelecidas pelo Estado. O seu fortalecimento se dá, pari passu, com a obrigatoriedade desse ensino, uma vez que, assim, suas exigências são estabelecidas junto à pobreza do espírito pedagógico da época.

[...] Por um caminho direto, por exemplo, por um ensino elementar obrigatório para todos, com isso não nos aproximamos do que se chama de formação do povo, senão de uma maneira superficial e grosseira: as regiões autênticas e mais profundas, nas quais a grande massa pode ter um contato com a cultura, quer dizer, aquele lugar onde o povo conserva seus instintos religiosos, onde continua a operar com o sistema poético das suas imagens místicas, onde continua fiel aos seus costumes, ao seu direito, ao solo de sua pátria, à sua língua, todas estas regiões dificilmente podem ser atingidas por uma via direta e, em todo caso, só por medidas obrigatórias e destruidoras: mas favorecer realmente, nestes assuntos sérios, a formação de um povo não é senão opor-se a estas medidas obrigatórias e destruidoras, e conservar esta inconsciência salutar, esta palidez do povo que lhe dá saúde e sem cujo efeito, sem cujo remédio, nenhuma cultura pode se manter, em vista da tensão e da excitação devoradoras dos seus efeitos (NIETZSCHE, 2003aNIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino [1872]. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola, 2003a. p. 40-137., p. 90).

Podemos destacar duas razões para que Nietzsche criticasse fielmente a defesa da escolarização de massas. Uma delas refere-se ao que vimos discutindo aqui: com a definição de uma educação marcada pelo Estado, não poderíamos jamais atingir a possibilidade de criação e experimentação, uma vez que o ensino estaria destinado a fortalecer e atingir os objetivos estatais, e a cultura estaria fadada a uma universalização. A outra razão refere-se à educação aristocrática, dirigida apenas a alguns homens possíveis, somente aqueles que a educação não se daria a governar. Seria uma espécie de cultura de estufa para plantas excepcionais (NIETZSCHE, 2003aNIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino [1872]. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola, 2003a. p. 40-137.). Tratar-se-ia de uma educação elitista, definida apenas para alguns e que possibilitaria a aparição do homem superior. No entanto, Nietzsche observa tal possibilidade apenas quando a educação não é determinada pelo Estado e por um tipo específico de cultura. Ao guerreiro seria preciso espaço de criação para elevação cultural. Não seria nas instituições definidas pelas exigências estatais que o guerreiro poderia emergir.

Com essas considerações a respeito das críticas nietzscheanas sobre ensino, não queremos defender a criação de uma educação aristocrática. Cada qual a seu tempo. O nosso é de outra ordem e, sem dúvida, ganhamos no sentido de direitos e conquistas com a democratização do ensino. Porém, trata-se de atualizar o pensamento de Nietzsche e levá-lo ao limite tal como ele nos ensinou. Faremos isso exercendo a crítica a respeito da estatização da escola. Se até aqui discutimos as conferências de Nietzsche sobre o tema, pretendemos, na continuidade, nos unirmos a Foucault, ainda ecoando em nós os estudos do filósofo alemão. Os estudos sobre governamentalidade (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a., 2008bFOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.) nos ajudarão a tensionar nosso pensamento e a problematizar os modos como, na atualidade, o Estado é imiscuído em diferentes estratégias que fortalecem em nós a necessidade de sua defesa e permanência.

Com isso, não se trata de acabar com as escolas, mas de esticar o pensamento para estranhá-las e potencializar em nós a defesa dos espaços escolares, não para formação da cultura de massa, e, sim, talvez, caminhando com Nietzsche e Foucault, para encontrarmos os traçados da estatização da escola e sua fragilidade justamente por isso. Assim é que assumiremos a posição de estranhamento dessa verdade pouco questionada entre nós do campo educacional: a relação direta entre a garantia de direitos com a educação compulsória e o dever do Estado. “Entre os servidores do que é ‘evidente’ e os solitários, estamos nós, os lutadores, quer dizer, os que estão cheios de esperança” (NIETZSCHE, 2003aNIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino [1872]. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola, 2003a. p. 40-137., p. 44).

Trata-se, em alguma medida, de fortalecermos em nós a aposta na educação escolar; no entanto, não aquela escolarização que outrora Nietzsche já criticava, mas, sim, uma escolarização do riso, da alegria, da potencialidade do encontro e do desejo pela criação e experimentação de outros possíveis. E, uma vez mais, seu ensinamento se produz em nós: é preciso guerrear com causas vencedoras (NIETZSCHE, 2003bNIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: de como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre: L&PM, 2003b.). A estatização da escola é uma delas.

GOVERNO E ESTADO EM FOUCAULT

Como vimos, Nietzsche, com Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino, tensiona a relação entre educação escolarizada e o Estado. Nesta seção, pretendemos aproximar a crítica realizada por Nietzsche ao par escola-Estado e os estudos de Foucault sobre governamentalidade, no intuito de pensarmos, contemporaneamente, essa díade.

Como sabemos, as relações de poder-saber para o filósofo francês não estão localizadas no Estado. São múltiplas, microfísicas e capilares (FOUCAULT, 1990FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 9ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.). Assim como Nietzsche, Foucault também não via a sinonímia entre Estado e poder, ou pelo menos não depositava no Estado o lugar de referência ao poder.

É a partir da grade de análise nietzschiana que olharemos as críticas estabelecidas por Foucault acerca do conceito de governo e problematizaremos a relação escola-Estado. Trata-se de entender a escola como um investimento do Estado para que a governamentalidade possa operar, ou seja, a escola não se destina unicamente a ser uma ferramenta do Estado, mas o complementa, extrapolando-o. Sobre isso, cabe entendermos que não se trata de acabar com o Estado, mas talvez efetuar dois movimentos bastante necessários para ativarmos em nós a crítica política a que nos convida Foucault: a) problematizarmos os modos como o Estado se imiscui em nossas vidas; e, b) potencializarmos em nós modos outros de fazer a escola. Para isso, parece prudente nos liberarmos da individualização do Estado para “[...] promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos” (FOUCAULT, 1995FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Apêndice da 2ª edição. Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1995., p. 239).

Por isso, neste artigo, com o intuito de aproximar as críticas de Nietzsche sobre a relação escola-Estado e os estudos de Foucault, gostaríamos de “[...] retomar o problema do Estado. Ou da questão do Estado, ou da fobia do Estado, a partir da análise [da] governamentalidade” (FOUCAULT, 2008bFOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b., p. 104). É importante ter claro que a preocupação de Foucault não estava em fazer uma teoria do Estado. Quando o filósofo se preocupa com ele, é para entendê-lo não como o lugar do poder ou como um “universal político” (FOUCAULT, 2008bFOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.). O que está presente em suas análises é a importância das instituições e de suas estatizações na fabricação do sujeito moderno. Com os estudos foucaultianos, entendemos que o problema da estatização compõe os questionamentos acionados por ele.

[...] O Estado não é universal, o Estado não tem em si uma fonte autônoma de poder. O Estado nada mais é que o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou de perpétuas estatizações, de transações incessantes que modificam, que deslocam, que subvertem, que fazem deslizar insidiosamente, pouco importa, as fontes de financiamento, as modalidades de investimento, os centros de decisão, as formas e os tipos de controle, as relações entre as autoridades locais, etc. Em suma, o Estado não tem entranhas, como se sabe, não só pelo fato de não ter sentimentos, nem bons nem maus, mas não tem entranhas no sentido de que não tem interior. O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalidades múltiplas (FOUCAULT, 2008bFOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b., p. 106).

Assim, a partir dessa perspectiva política, olhar para o Estado tem sentido para entendermos os modos como historicamente ele conseguiu sobreviver. Segundo o autor, a governamentalidade pode ser uma das condições para que o Estado ainda exista do modo como ele se apresenta hoje. “[...] o Estado em sua sobrevivência e o Estado em seus limites só devem ser compreendidos a partir de táticas gerais da governamentalidade” (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a., p. 145). Nesse sentido, entender as práticas de governo - e com isso a relação escola-Estado - torna-se fundamental para mirar a governamentalidade que se produz para conduzir os indivíduos. Que procedimentos são colocados em marcha? Que cálculos, técnicas e táticas são operacionalizados para o exercício do poder sobre a população? Tais estratégias de ação são operacionalizadas no intuito de conduzir o sujeito e, mais amplamente, a população. O objetivo consiste em governar o sujeito, dobrá-lo sobre sua vontade e, talvez, mais: produzir outras vontades, conduzindo suas ações.

A governamentalidade enquanto um estudo das práticas de governo, dos modos como age sobre indivíduos vivos, merece ser encarada a partir do seu conjunto de instituições - a escola, por exemplo, por suas táticas e estratégias produzidas para governar pessoas e coletividades. Por isso, os modos de governar estão atrelados à população, a esse conjunto de indivíduos, no intuito de melhorar suas condições de vida e aumentar suas riquezas. O governo ocorre a serviço dessa população, de seus governados. “[...] a população vai ser o objeto que o governo deverá levar em conta nas suas observações, em seu saber, para chegar efetivamente a governar de maneira racional e refletida” (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a., p. 140).

Há diferentes governos operando para a condução da população. Daí um deslocamento importante no que se refere ao Estado enquanto instância superior. Nele há a proliferação de formas de governo através de diferentes instâncias, seja a família, o pedagogo ou o professor. Assim, é preciso investir em estratégias de captura dos sujeitos para que o governo possa alcançar seu fim, seu objetivo, e para que a população possa se coadunar com esse mesmo intuito. Assim, é possível afirmar que o governo dispõe as coisas tendo como objetivo um determinado fim.

Diferentemente da soberania, que agia para o cumprimento da lei, o governo vale-se de táticas e estratégias para dispor as coisas; no limite, vale-se das leis como táticas, ou seja, as táticas contribuem, decisivamente, para colocar em operação a governamentalidade. “[...] a finalidade do governo está nas coisas que ele dirige; ela deve ser buscada na perfeição, na maximização ou na intensificação dos processos que ele dirige, e os instrumentos do governo, em vez de serem leis, vão ser diferentes táticas” (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a., p. 132).

Pensando na união escola-Estado, deparamo-nos com diferentes leis que exigem a presença do sujeito no espaço escolar. Uma garantia de direitos ao cidadão e um conjunto de deveres ao Estado. A mais recente lei de obrigatoriedade escolar refere-se à exigência de crianças a partir dos 4 anos com matrícula efetivada na Educação Infantil (BRASIL, 2013BRASIL. Lei 12.796, de 4 de abril de 2013. Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12796.htm . Acesso em: 6 maio 2020.
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). No entanto, não são somente essas leis que produzem a nossa governamentalidade, senão a proliferação de diferentes instrumentos, de um conjunto de táticas e estratégias sutis, microfísicas, persuasivas, no intuito de convencer a população da importância da escola.

Agenciando diferentes grupos populacionais em defesa da obrigatoriedade da escola, temos a família, por exemplo, como um dispositivo para captura dos sujeitos nas malhas escolares. Enquanto apoio indispensável do governo, a família auxiliará, decisivamente, no controle da população dos escolares. É com ela que as reativações acerca da importância da escola são constantemente acionadas. Portanto, a família é “[...] um instrumento privilegiado para o governo das populações” (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a., p. 139).

A família, como importante instrumento para o governo da população, torna-se um dos meios possíveis para que as finalidades do governo possam alcançar sucesso. Acionar as famílias, convencê-las a respeito de determinados objetivos, eis aqui uma estratégia que pode garantir o sucesso no alcance de determinado fim. Dispor das coisas e colocá-las em lugares estratégicos para que as ações governamentais tenham êxito. É nesse sentido que a família passa, agora, a ser um instrumento que será utilizado para que se possa “melhorar a sorte das populações” (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População. Curso no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a., p. 140).

Uma outra tática que aciona o sucesso do par escola-Estado são os saberes especializados como a pedagogia, a psicologia e a assistência social. Seus saberes nos convencem da necessidade da escolarização na idade certa, do bom desenvolvimento psicológico do indivíduo na interação com seus pares ou ainda da urgência da escola como prática social de emancipação dos sujeitos. Novamente, aqui, não se trata da lei da obrigatoriedade da escola, mas de um conjunto de elementos que, transpostos de modo a serem entendidos pelos pais, por exemplo, através dos meios de comunicação ou de uma conversa informal com esses profissionais, convencem os primeiros da necessidade da escola.

Tais argumentos, além de serem comumente anunciados no interior dos muros escolares, os transpõem. Basta uma rápida busca na Internet para vermos inúmeras propagandas, banners, campanhas publicitárias reverberando a necessidade da escola para a formação do sujeito. Assim como os saberes políticos que se produzem nos diferentes campos das humanas, há uma rede de espectro bastante amplo para convencer as famílias da necessidade da matrícula nas escolas. Ouvir tais discursos, pela chancela de profissionais expertos em suas áreas, não é um modo de ativar em nós a urgência da matrícula de nossos filhos? Muito mais do que a obrigação acionada pela lei, trata-se de táticas de gerenciamento populacional, de estratégias que investem num conjunto de elementos para conduzir nosso olhar não para a obrigação de seguir a lei, mas para entendermos a escola como um direito e uma possível garantia de melhoria de vida.

Nessa esteira, Foucault ajuda-nos a entender as aproximações entre os mecanismos de coerção e os conteúdos de conhecimento. As relações poder-saber se produzem e se tornam robustas na efetivação de um determinado fim político, ou, ainda, governamental.

[...] Mecanismos de coerção diversos, talvez mesmo conjuntos legislativos, regulamentos, dispositivos materiais, fenômenos de autoridade etc.; conteúdos de conhecimento que se tomará igualmente em sua diversidade e em sua heterogeneidade, e que se reterá em função dos efeitos de poder de que são portadores enquanto válidos, como fazendo parte de um sistema de conhecimento. O que se busca então não é saber o que é verdadeiro ou falso, fundamentado ou não fundamentado, real ou ilusório, científico ou ideológico, legítimo ou abusivo. Procura-se saber quais são os elos, quais são as conexões que podem ser observadas entre mecanismos de coerção e elementos de conhecimento, quais jogos de emissão e de suporte se desenvolvem uns nos outros, o que faz com que tal elemento de conhecimento possa tomar efeitos de poder afetados num tal sistema a um elemento verdadeiro ou provável ou incerto ou falso, e o que faz com que tal procedimento de coerção adquira a forma e as justificações próprias a um elemento racional, calculado, tecnicamente eficaz etc. (FOUCAULT, 1978FOUCAULT, Michel. O que é a crítica. Conferência proferida à Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978. Disponível em: Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf . Acesso em: 9 maio 2020.
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, p. 13).

É nas tramas das relações poder-saber que se investe uma maquinaria governamental, acionando na população a necessidade da escola. Seja pelos mecanismos de coerção, encarnados nas legislações e no fortalecimento do Estado, seja nos conteúdos de conhecimento, tramados pelo saberes dos expertos, temos aí a robustez quase inabalável do par escola-Estado. O fim governamental que se estabelece parece que adquire seu sucesso. E aquilo que o torna potente é a massa populacional compreender que suas atitudes são de uma suposta liberdade de ação: “eu quero e matriculo meus filhos na escola”.

Olhar para essa instituição como um elemento bastante importante para o governamento populacional, faz-nos entender porque somos capturados pela necessidade da escola. Observando as estratégias e táticas governamentais, compreendemos que nossas ações não são privadas ou fruto de nossa esclarecida consciência; são, isto sim, resultados, supostamente livres, de nosso assujeitamento diante das relações de poder que se produzem nas tramas de uma governamentalidade. Nossas escolhas, inclusive aquelas em que nos sentimos sujeitos que agem e definem o rumo de suas vidas, são compostas pelas táticas de governo que nos constituem enquanto sujeitos de direitos. A esse respeito, Silvio Gallo, ao tratar de nossa “governamentalidade democrática” no Brasil, nos diz:

Somos assujeitados a cidadãos; somos, compulsoriamente, subjetivados para obedecer aos princípios básicos de uma sociedade democrática. Devemos participar; devemos confessar nossa verdade política no voto; devemos confessar nossa verdade técnica no trabalho; devemos confessar a verdade do que somos nos mais diversos processos sociais, porque somos cidadãos de direitos. Temos direito à educação, direito à saúde, direito ao trabalho etc., temos direito de ser, por isso somos. A biopolítica da governamentalidade democrática produz o “sujeito de direitos” (GALLO, 2017GALLO, Silvio. Biopolítica e Subjetividade: resistência? Educar em Revista, Curitiba, n. 66, p. 77-94, out./dez. 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/er/n66/0104-4060-er-66-77.pdf . Acesso em: 6 maio 2020.
https://www.scielo.br/pdf/er/n66/0104-40...
, p. 89) [grifo do autor].

Para a tradição moderna crítica, a escola toma os sujeitos-estudantes como indivíduos que merecem essa garantia de direitos. Em tempos biopolíticos e num país como o Brasil, a escola pública é um direito de todos os brasileiros, e nossas resistências aos choques e ataques políticos que estamos enfrentando devem permanecer. No entanto, a partir das lentes foucaultianas, a escola é também uma instituição de sequestro e um dispositivo importante para que, capturando suas massas populacionais, governando condutas ao dispor das coisas, possa alcançar um determinado fim. Estamos emaranhados nas redes de uma governamentalidade que precisa da escola para existir. Ainda, considerando-se todas as críticas direcionadas à instituição escolar, parece que estamos muito longe de abandonar o projeto moderno de escolarização. Daí que nos parece necessário, para nossa crítica política, enxergar a escola menos como uma conquista - ainda que ela seja também isso! - e mais como uma importante maquinaria de nossa sociedade moderna, que é acionada por nossa governamentalidade. Esse que chamamos de sujeito de direitos nada mais é do que um efeito das relações de poder-saber (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. O Poder Psiquiátrico. Curso no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006.).

Em nome da segurança da população, com a consolidação das estratégias biopolíticas, temos a defesa pelos direitos do homem pela via dos dispositivos legais. A escola compulsória foi um desses mecanismos. Por isso, a condução de condutas e a fabricação de um determinado tipo de indivíduo podem ser consideradas marcas da educação escolarizada. Essa já era uma das ácidas críticas feitas por Nietzsche nas suas conferências de 1872. Aquela pergunta clássica de um Projeto Político Pedagógico tem sua aderência aqui: “qual sujeito queremos formar?” Essa parece ser uma pergunta das mais proeminentes no interior da escola, mas que não se produz atrelada a seus muros, senão articulada com as demandas de um tipo de Estado. A escola, como instituição governamental - seja de competência pública ou privada, pois ambas respondem às determinações do Estado -, define, sob suas diretrizes, que sujeito é esse que deve ser transformado ao ingressar na instituição. Ela, na qualidade de um direito do cidadão e um dever do Estado, produz verdades e sentidos para a fabricação de escolares, articulados ao tipo de sociedade que se quer e em que se vive.

Olhar a educação escolarizada como, basicamente, um direito de todos é retirar desse acontecimento moderno a problematização política que merece o nosso debruçar. Colocar a escola como um direito do cidadão e um dever do Estado, posiciona-a e a evidencia como uma máquina estatal, gerenciando o controle sobre seus conteúdos, objetivos de formação para com o sujeito de direitos. Poderíamos ver aí a condução das condutas dos sujeitos que ali habitam? Questionar a relação escola-Estado, a escola enquanto universalidade ou ainda enquanto um “bem público”, é questionar a governamentalidade que se produz no seu interior e fora dela. É preciso nossa ousadia para isso. É preciso criar elementos que nos coloquem com potência para problematizar essas verdades que circulam na sociedade como indubitáveis.

PROVOCAÇÕES POSSÍVEIS À ESCOLA: AMARRANDO AS DISCUSSÕES

Se a crítica nietzschiana e a foucaultiana nos acompanharam neste texto, foi porque a díade escola-Estado foi, minimamente, estranhada por nós. Talvez desse estranhamento possam emergir estudantes outros, professores outros, escolas outras. Essa é nossa aposta!

Foucault (1995FOUCAULT, Michel. O Sujeito e o Poder. Apêndice da 2ª edição. Michel Foucault entrevistado por Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow. In: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1995.) nos ensinou que os perigos do poder se encontram por todos os lados. Mas também foi ele quem nos ajudou a entender que, justo por estarmos emaranhados nas redes políticas de poder, as resistências são possíveis. A produção de novas subjetividades passa pelo exercício político de compreendermos as tramas governamentais que nos fabricam para que possamos a elas resistir. Liberarmo-nos do Estado para recusar aquilo que somos pode ser uma aposta na ativação da crítica foucaultiana.

“Como não ser governado assim”? (FOUCAULT, 1978FOUCAULT, Michel. O que é a crítica. Conferência proferida à Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978. Disponível em: Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf . Acesso em: 9 maio 2020.
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, p. 3). Com esse exercício crítico, Foucault provoca-nos a pensar possibilidades múltiplas no cotidiano da vida. Gostaríamos de, com essa provocação, nos lançarmos a pensar as potências que sabemos haver por dentro da escola.

A nossa resistência ao “não ser governado assim” passa pelo exercício de ativar em nós a dúvida, o questionamento a respeito das verdades professadas pela autoridade, no caso, aqui, a autoridade do par escola-Estado. Não se trata de recusá-las de antemão; trata-se, isto sim, de colocá-las na linha da problematização, do encontro com as indagações daquilo que nos é dado como tranquilo e certo já há alguns séculos. Antes de pensarmos possibilidades outras para a escola, é preciso estranhar o encontro tão bem tramado entre ela e o Estado. Daí, sim, a nosso ver, a criação e a experimentação de possíveis no espaço escolar podem ser produzidas por nós.

[...] a crítica é o movimento pelo qual o sujeito se dá o direito de interrogar a verdade sobre seus efeitos de poder e o poder sobre seus discursos de verdade; pois bem, a crítica será a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida. A crítica teria essencialmente por função o desassujeitamento no jogo do que se poderia chamar, em uma palavra, a política da verdade (FOUCAULT, 1978FOUCAULT, Michel. O que é a crítica. Conferência proferida à Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978. Disponível em: Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf . Acesso em: 9 maio 2020.
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, p. 5).

Exercida em nós a ativação crítica, abrimos passagem para a potência de pensamento: que escola é essa pela qual, ainda, lutamos? Uma escola que tem, sim, o par com o Estado. Uma escola que é, sim, definida pelas tramas governamentais. Essa é a escola que temos. Dela não nos separaremos. Mas como é possível resistir então?

Talvez “com os pés no chão” e entendendo a estatização da escola, seja possível produzirmos fissuras. Voltamos a dizer: somente são possíveis porque acionamos em nós a crítica ácida à governamentalidade. Cabe, então, recusar o que somos para abrir passagem a outros horizontes de subjetividade, tramados pela resistência ao instituído, às verdades de autoridade.

Assim, nossa aposta é na produção de encontros outros, produzidos no interior dessa escola que temos: estatizada, a serviço da governamentalidade, definidora de conteúdos e de um tipo específico de sujeito que se quer formar. Sim! É dessa escola que falamos. Não se trata de construir uma nova escola. Trata-se de repensá-la, de acionar em nós a amargura da crítica e lutar contra as formas de assujeitamento no interior da própria instituição.

Os encontros, as coletividades, a sociabilidade nos espaços escolares podem ser acionados pelo exercício de pensar a vida, para além do aprisionamento a um saber de competências e habilidades, exclusivamente. Apostamos, junto com Gallo, numa escola outra “[...] que seja um lugar de aprender a viver, um lugar de exercício de inquietar-se consigo mesmo, de vivenciar o cuidado de si, de conhecer-se para ser e para bem viver, de produzir a si mesmo como um sujeito singular” (2015GALLO, Silvio. Pensar a escola com Foucault: além da sombra da vigilância. In: CARVALHO, Alexandre Filordi de; GALLO, Silvio (Org.). Repensar a educação: 40 anos após Vigiar e Punir. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2015. p. 427-449., p. 445). Assim, a potência está em deslocar o olhar do conteúdo ou da moral que assola a escola para um olhar com e sobre a vida. Que nos coloque a pensar em nossas escolhas, nossas renúncias e nossos modos de existir e conviver em tempos atuais.

É dessa instigação que somos acionados, fabricados e fraturados enquanto professores. É do desejo e da potência da vida que entendemos se tratar essa escola. Estatizada, sim; mas também cheia de brechas e de possíveis resistências. Talvez tenhamos que exercer em nós a crítica de que nos fala Foucault (1978)FOUCAULT, Michel. O que é a crítica. Conferência proferida à Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978. Disponível em: Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf . Acesso em: 9 maio 2020.
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para abrir passagens a esses outros possíveis no interior dessa instituição. Daí porque não se trata de acabar com a escola ou com a estatização, ou ainda com a obrigatoriedade a ela atribuída. Nossa luta deve permanecer para pensarmos os possíveis respiros nessa mesma escola. No exercício político da crítica nietzschiana e foucaultiana, encontramos respiros que nos levam à criação e à experimentação de encontros outros e modos outros de fazer, pedagogias outras. Que encontros são esses? Não nos cabe dizer, apenas ativar em nós e provocar nossos pares a acionar a crítica política que nos enche de potência para pensar na escola que temos.

Ninguém pode construir no teu lugar a ponte que te seria preciso tu mesmo transpor no fluxo da vida - ninguém, exceto tu. Certamente, existem as veredas e as pontes e os semideuses inumeráveis que te oferecerão para te levar para o outro lado do rio, mas somente na medida em que te vendesses inteiramente: tu te colocarias como penhor e te perderias. Há no mundo um único caminho sobre o qual ninguém, exceto tu, poderia trilhar. Para onde ele leva? Não perguntes nada, deves seguir este caminho. Quem foi que anunciou esse princípio: “Um homem nunca se eleva mais alto senão quando desconhece para onde seu caminho poderia levá-lo”? (NIETZSCHE, 2003cNIETZSCHE, Friedrich. Schopenhauer educador [1874]. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro/São Paulo: Ed. PUC-Rio/Loyola, 2003c. p. 138-222., p. 140).

Por fim, é preciso evidenciar que a problematização oferecida pelo presente texto - que toma como referência os escritos de Nietzsche e Foucault - serve para que possamos continuar a (re)pensar as instituições escolares como herança moderna ainda na contemporaneidade. Trata-se, assim, de evidenciar o quanto esses espaços permanecem instrumentalizados em favor de um modo específico de se pensar o Estado, de uma racionalização estatal específica. Em que pese haja o tensionamento no próprio discurso educativo em direção à promoção de uma espécie de cisão entre escola e sociedade, é exatamente essa análise do par Estado-escola que demonstra o quanto esse agenciamento é necessário e, também, indissociável.

O desejo aqui foi realizar uma operação de visibilidade crítica. Crítica não da escolarização compulsória ou da escola - como temos afirmado ao longo do trabalho -, mas de como nossos olhares atentos nos permitem perceber como isso se converte em estratégia para inserir sujeitos no interior de uma escola que os faz elaborar uma série de relações consigo e com os outros, mediadas pela conformação de uma razão de Estado que visa sua própria subsistência.

A crítica nietzschiana, nesse sentido, toma efeito pelo fato de que, ao nos referirmos ao espaço escolar, há uma despontencialização do sujeito que não pode mais tomar as rédeas da sua educação em nome de um ideal de sujeito que praticamente se torna um ativo estatal, passando a ser produzido sob demanda. Tal percepção se alarga com Foucault quando, de sua análise sobre a governamentalidade, nos permite perceber o quanto as escolas passam a se tornar instituições necessárias para o Estado ao se insinuarem sobre a organização curricular e os modos de circulação das coisas, das pessoas, dos discursos, das verdades.

Por fim, o que colocamos em evidência é a ideia de necessidade: a escola como o bem necessário. Ao ser justificada por uma série de profissionais que a compõem e atuam cotidianamente em seus diferentes espaços, não podemos nos eximir ou nos mantermos refratários à problematização de uma educação balizada pelo Estado. Isso seria assumir a ingênua condição que nos levaria a esvaziarmos não apenas a educação enquanto significante, mas as próprias potências do campo educacional, que passaria a estar descolado de ações, práticas e análises de ordem política, assumindo uma condição inerte. Afinal, o que, para além da política, seria capaz de colocar esse campo em movimento?

REFERÊNCIAS

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  • FOUCAULT, Michel. O que é a crítica Conferência proferida à Sociedade Francesa de Filosofia em 27 de maio de 1978. Disponível em: Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/critica.pdf Acesso em: 9 maio 2020.
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  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder 9ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
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  • FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População Curso no Collège de france (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a.
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FINANCIAMENTO

  • A pesquisa que deu origem a este artigo contou com financiamento do CNPq.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2020
  • Aceito
    24 Ago 2021
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