RESENHA
Rosana Areal Carvalho
Doutora em Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo (USP); Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP); Coordena o Grupo de História da Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e participa do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (GEPHE/FAE/UFMG). E-mail: rosanareal@ichs.ufop.br
Contato
JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura impressa e educação da mulher no século XIX. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. 298p.
"CORPO E ALMA" DE O MENTOR DAS BRASILEIRAS
A coletânea de artigos escritos por pesquisadores representativos dos vários grupos de pesquisa em História da Educação espalhados pelo Brasil, publicada em 2002, "Novos temas em história da educação brasileira: instituições escolares e educação na imprensa", apresentou um balanço sobre o uso da imprensa como fonte para a história da educação. Tônica comum a esses artigos era o despertar da atenção dos estudiosos para o horizonte que se abria com o uso desse corpus documental. Apesar da fragilidade numérica das pesquisas em andamento, era possível vislumbrar a riqueza, a diversidade e as possibilidades delineadas pelas mesmas. Podemos dizer que a tarefa de casa está sendo cumprida. E bem!
Os trabalhos se avolumaram em várias direções. Ora tomando a imprensa de circulação ampla, buscando os debates em torno da educação que se queria imprimir; ora a imprensa pedagógica como objeto, com o fito de compreender os discursos disseminados entre os pares, assim como as instruções morais e intelectuais que se queriam necessárias para a formação dos professores.
A essa não pouca riqueza, somam-se os novos olhares sobre a história da educação: os diálogos com outros campos do conhecimento, por exemplo, possibilitam uma leitura mais minuciosa e próxima da realidade. Cultura impressa e educação da mulher no século XIX, de Mônica Yumi Jinzenji, é um bom exemplo disso. Formada em Psicologia, Mônica voltou-se para o campo da educação desde as primeiras experiências como docente, lecionando Psicologia da Educação e outras disciplinas afins. No mestrado, iniciou suas pesquisas tomando a imprensa como fonte, quando desenvolveu um estudo sobre a escolarização da infância pobre retratada na imprensa mineira durante a primeira metade do século XIX.
Em Cultura impressa e educação da mulher no século XIX, o ofício de historiadora foi cumprido com êxito: diante de uma documentação restrita, soube mostrar, através do contexto e de outras fontes, as pistas que explicavam as particularidades e apontavam para as possibilidades de análise do jornal O Mentor das Brasileiras. Esse periódico foi publicado em São João del-Rei, entre 1829 e 1832, dirigido para o público feminino, e se "afirmava como defensor e difusor dos ideais liberais, podendo ser caracterizado como representante da tendência moderada" (p. 20).
A obra é também um exemplo dos estudos de história da educação que vão além da escolarização. Essa posição é fundamental quando se trata do século XIX, período em que a escola ainda não era o local privilegiado para as ações do ensino, da instrução. Trata-se de compreender o processo educativo mais amplo, estabelecido em locais diversos, como a casa, a igreja, a praça e os tantos suportes impressos: catecismos, livros, jornais, manuais. Além da instrução propriamente dita, descortina-se o olhar para a educação de valores e costumes, construindo, em paralelo, uma história da educação e dos costumes.
Reconhecida a importância dos jornais como possibilidade de apreensão de parte da dinâmica cultural, fica estabelecido o valor do trabalho desenvolvido por Mônica Yumi. Mais valor se agrega à obra quando nos deparamos com o minucioso trabalho de pesquisa e a vasta bibliografia utilizada, cobrindo aspectos múltiplos em torno do tema e bem inseridos no campo da história da educação. A autora não se furtou a buscar subsídios na história do livro e da leitura, da escolarização e da imprensa no Brasil, enveredando-se, até mesmo, pela historiografia brasileira.
Em tempos de Iluminismo, o jornalismo se convertia num eficaz instrumento de difusão das "luzes da razão", assumindo uma dimensão pedagógica que tem sido explorada, em várias vertentes, pela historiografia brasileira. Impressiona, é verdade, a profusão de periódicos que vão se disseminando pelo Brasil, nas primeiras décadas do século XIX, noticiando o fervilhar político vivido durante e pelo Império. Editores e redatores se colocavam como paladinos para o esclarecimento político da população. Portanto, temos aí um veio fértil para os estudos de história da educação, quando "o jornalista se confundia com o educador. Ele via como sua missão suprir a falta de escolas e de livros através dos seus escritos jornalísticos" (LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p. 22).
O tema é, por si só, instigante, inquietante e atraente. Imprensa e educação feminina no século XIX. O que nos diria o senso comum, ou melhor, a "historiografia" consagrada na voz do povo sobre esse assunto? Era permitido às mulheres o acesso à educação ou à instrução? Sabiam ler? Podiam ler os jornais? Não seria tal atividade privilégio dos homens?
Como já dito, o livro versa sobre um periódico que circulou em São João del-Rei, num tempo curto, mas rico em revelações quanto à cultura construída em torno da figura feminina. O Mentor das Brasileiras apropriava-se de outros suportes impressos como fonte para seus artigos, delineando um novo público que se criava, imbuído do dever de suprir a "deficiente" educação das senhoras. Marcado pelos debates morais, políticos e sociais da época, não deixou de atender, com singular, mas enfática restrição, aquilo que é tratado como frivolidade feminina: os assuntos da moda.
O prenúncio de um trabalho precioso já está no sumário, dada a variedade dos temas e das leituras indicadas pelo jornal para o público leitor. A pergunta surge imediatamente: será mesmo que às mulheres não era proporcionada uma educação? O fato de não irem à escola caracterizava-as como não educadas? Ou, havia, sim, uma educação feminina, num sentido particular à época, ao papel social da mulher e ao conceito de escola para a sociedade?
Na introdução do trabalho, a autora apresenta uma fábula, recurso textual com fins pedagógicos, que distinguia O Mentor das Brasileiras dos demais periódicos da época, para indicar as principais temáticas que compunham a cultura política dos primeiros tempos imperiais. O caráter educativo dos jornais e a produção da mulher virtuosa e patriota, estudadas nessa obra, apontam para as mudanças que se operavam socialmente. Tais mudanças eram desdobramentos da separação entre as esferas pública e privada, em voga desde o final do século XVIII. Apontavam para a necessidade de certa ilustração que permitisse às mulheres ocuparem um papel mais visível na sociedade.
Em que pese ser a moderação o maior valor a ser ensinado às mulheres, como propagado pelo jornal, Mônica Yumi afirma que também é possível classificar O Mentor das Brasileiras como um jornal liberal exaltado, tomando por base duas bandeiras assumidas pelo impresso. Uma delas, a defesa da educação feminina e sua necessária participação política; sendo a outra a efetiva "participação no processo de implementação e legitimação das escolas nas primeiras décadas do período imperial brasileiro" (p. 213).
Para atender à ousada proposta de uma "investigação das práticas de leitura, da apropriação de textos e das práticas de produção de O Mentor das Brasileiras enquanto práticas políticas para forjar a mulher virtuosa e patriota; e a reflexão acerca da necessidade de relativizar ou complexificar a distinção entre público versus privado no entendimento dessa 'nova' mulher" (p. 30), o percurso das fontes foi extremamente variado. Como a autora relata, um incêndio na tipografia que produzia O Mentor das Brasileiras eo Astro de Minas, jornal contemporâneo àquele, limitou as informações relativas à produção, circulação e recepção de O Mentor.
De forma a cobrir essa lacuna, Mônica buscou outros periódicos contemporâneos, em especial aqueles citados pelo próprio jornal prática comum entre as gazetas oitocentistas era a republicação de artigos, "constituindo uma rede de intercomunicações". Não se limitou à análise do conteúdo divulgado pelo jornal, mas também à sua materialidade e circulação, apoiando-se nas contribuições de Roger Chartier para os estudos da história da leitura. O produto final, seja um jornal, seja um livro, é resultante do trabalho de impressores, tipógrafos, capistas, editores, etc.
Se foi possível encontrar os periódicos com os quais dialogava O Mentor das Brasileiras, mais difícil foi o exercício de confronto com periódicos de posição política divergente, posto que a seleção dos vencedores eliminou, quase por completo, o jornalismo restaurador. Dificuldade semelhante encontrou para identificar a autoria dos artigos publicados, pois o uso de pseudônimo era largamente utilizado à época.
Ainda no campo das apropriações de outros textos feitos pelo jornal, a autora se esmerou em identificar os livros utilizados: edições disponíveis, traduções, a circulação desses livros no Brasil, indícios de uma biblioteca particular do redator e/ou o acervo da Biblioteca Pública de São João del-Rei, criada em 1827. "O circuito do impresso", título da primeira parte do livro, cuida "de uma análise mais relacionada ao jornal e seu entorno". Nessa parte, encontramos o primoroso exercício de inserção de um objeto particular no contexto geral.
"Da educação do bello sexo" intitula a segunda parte do livro, na qual Mônica desenvolve uma análise do conteúdo do jornal. Foi essa a missão assumida pelo O Mentor das Brasileiras de forma responsável e discreta, para não provocar reações às mães de família que educavam suas filhas de forma diversa à proposta por ele. Buscava estimular o interesse das senhoras para temas variados, em especial os assuntos políticos, mostrando como a educação levada a termo pelo "Antigo Regime" era, em tudo, prejudicial para os tempos constitucionais. Enfim, "para complementar a formação moral e cívica das mulheres, o texto com maior índice de recomendação era a Constituição do Império, considerada doutrina máxima e leitura obrigatória de todo cidadão" (p. 170).
O leque da bibliografia disponibilizada pelo jornal para o seu público é impressionante: desde a história do Brasil, com textos extraídos da obra de Alphonse de Beauchamp, às fábulas de Fedro, passando por extensa bibliografia francesa e inglesa, incluindo Adam Smith, Jane Marcet, Jonathan Swift, Thomas Paine, além dos franceses Volney, Montesquieu, Voltaire e Pierre Blanchard. Da literatura às noções de economia política, passando pelo Emílio, de Rousseau.
O Mentor das Brasileiras contrapunha-se, sem dúvida, a muitos periódicos contemporâneos que expressavam outra representação feminina. Pautava-se por um discurso prescritivo, defendendo a necessidade de posicionamento político das mulheres no contexto liberal sem, contudo, deixar de lado os valores morais que constituíam uma mulher virtuosa no seu papel de mãe e esposa. Resumindo: a educação política, moral e escolar conformava a representação do patriotismo feminino que se queria constituir.
A valorização da educação pública é presença constante nos números do jornal. Enaltecia as atividades escolares ao noticiar os exames finais, verdadeiros espetáculos que mobilizavam a sociedade. Publicava os discursos das professoras, e todo o movimento em torno das escolas públicas era acompanhado pelo O Mentor. Num legítimo esforço em prol da escolarização, dava voz a personagens bastante significativas, em especial, às professoras. A isso, soma-se uma paciente busca no Arquivo Público Mineiro, feita por Mônica Yumi, resultando na construção de perfis denunciadores de uma nova sociedade que se forjava.
O certo é que, ao longo de dois anos e meio de publicação, O Mentor das Brasileiras amealhou exaustivos esforços voltados à educação da mulher nos campos moral, político e instrutivo. Usando de variados recursos pedagógicos, alertou para a importância da participação social e política feminina, mostrando que, para além da beleza física externa e passageira ,se fazia necessário cultivar os bens do espírito. Selecionava as obras que julgava mais apropriadas a partir de critérios de censura. Assim, assuntos polêmicos ou imagens que pudessem ferir os sentimentos femininos eram omitidos. Tudo isso foi feito por um homem José Alcibíades Carneiro. Além de redator de O Mentor das Brasileiras, era professor de latim e ocupou cargos políticos junto à municipalidade sãojoanense.
Enfim, saudamos a publicação dessa tese, pois o livro ocupa um espaço privilegiado na disseminação do conhecimento, seja pela circulação ainda mais usual do que os meios eletrônicos, seja pelo exemplo de pesquisa que contém.
O esforço foi recompensado: o estudo feito sobre O Mentor das Brasileiras contribui não só para melhor compreendermos a imprensa no Brasil durante a primeira metade do século XIX, como também para um delineamento mais específico da cultura política e da educação da mulher, apresentando outra dimensão educativa e de circulação de notícias, valores e exemplos morais. A pesquisa lança luz sobre o senso comum de que às mulheres não era dado o direito da educação e mostra o jornal, ou melhor, os periódicos, como um dos responsáveis pelo crescimento da escolarização feminina ao longo do século XIX.
Cultura impressa e educação da mulher no século XIX chama a atenção para se repensar o dualismo público versus privado, considerando a existência de inúmeras interpenetrações. Mesmo para os tempos coloniais já é possível identificar a existência de uma circulação de dinheiro, serviços e objetos alheia ao domínio masculino. Para o século XIX, com as mudanças sociais advindas das revoluções oitocentistas, o universo feminino se amplia. Professoras, escritoras e cientistas, personagens que vão se tornando públicas pelo O Mentor das Brasileiras, são apenas alguns exemplos. Foi O Mentor das Brasileiras um bom conselheiro? Vale a pena conferir.
Contato:
Universidade Federal de Ouro Preto Instituto de Ciências Humanas e Sociais Departamento de Educação
Rua do Seminário Centro
CEP 35420-000 Mariana, MG Brasil
Recebido: 14/04/2011
Aprovado: 19/04/2011
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
11 Set 2012 -
Data do Fascículo
Jun 2012