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O TRABALHO DOCENTE NO ENFRENTAMENTO DO GERENCIALISMO NAS NIVERSIDADES FEDERAIS BRASILEIRAS: REPERCUSSÕES NA SUBJETIVIDADE

TEACHING WORK IN COPING WITH THE MANAGERIALISM AT BRAZILIAN FEDERAL UNIVERSITIES: REPERCUSSIONS ON THE SUBJECTIVITY

RESUMO:

Este artigo analisa o processo de reconfiguração das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) a partir da Reforma do Estado de 1995 no Brasil e, em especial, os limites e as possibilidades de enfrentamento das adversidades vivenciadas pela categoria docente provenientes das amarras impostas pelo modelo gerencialista. Identifica-se a cultura acadêmica como indutora de práticas predominantemente pragmáticas e competitivas, como também propiciadora do individualismo, da rivalidade entre os pares e da consequente fragilização do coletivo. Análises teóricas são articuladas a entrevistas semiestruturadas realizadas com docentes de IFES. Constata-se que o docente imerso nessa cultura tende a naturalizar essa lógica empreendedora e a considerar o espaço acadêmico primordialmente como um lugar de autonomia, criação e realização profissional, por vezes, sem uma análise mais crítica e profunda do cotidiano laboral e, sobretudo, sem um movimento de resistência com vistas à transformação desse contexto, colocando, portanto, em risco a sua saúde.

Palavras-chave:
Trabalho docente; Subjetividade; Gerencialismo; Universidades federais

ABSTRACT:

This article analyzes the Higher Education Federal Institutes (IFES) reconfiguration process from the 1995 State Reform and, in particular, the limits and possibilities of coping with the adversities experienced by the teachers' category, from the restrains imposed by the managerial model. The work has identified the academic culture as inductive mainly of pragmatic and competitive practices, as well as favoring individualism, rivalry among pairs and consequent collective weakening. Theoretical analysis are articulated to the semi-structured interviews, conducted with teachers from IFES. It is found that the teacher, immersed in this culture, tends to naturalize such entrepreneurial logic and consider the academy as a space for autonomy, creation and professional achievement, sometimes, without more critical and deeper analysis of the daily labor, especially without a resistance movement in order to change such context, putting their health in risk.

Keywords:
Teaching; Subjectivity; Managerialism; Federal universities

Introdução

Este artigo tem como objeto de análise central o processo de reconfiguração das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) a partir da Reforma do Estado de 1995 no Brasil e, em especial, os limites e as possibilidades da categoria docente de enfrentar as amarras impostas pelo modelo gerencialista.

Para o alcance de tal proposta, tomam-se por norte algumas questões problematizadoras, tais como: de que modo essa categoria de trabalhadores tem enfrentado o processo de intensificação e precarização da sua atividade laboral? Em que medida os docentes imersos em uma cultura acadêmica regida por princípios gerencialistas conseguem agir criticamente? Quais são as principais repercussões da implementação do modelo gerencial na subjetividade e na saúde dos docentes das IFES?

Utilizam-se, ainda, a título de ilustração e enriquecimento da discussão sobre a temática, dados da pesquisa "Trabalho docente na expansão da educação superior: as repercussões do REUNI no trabalho docente e na cultura das IFES", de cujo campo empírico fazem parte as seguintes instituições: Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal do Tocantins (UFT) e Universidade de Brasília (UnB) (RIBEIRO; LEDA, 2013RIBEIRO, C. V. S; LEDA, D. B. Trabalho docente na expansão da educação superior: as repercussões do REUNI no trabalho docente e na cultura das IFES. Relatório final de pesquisa. Universidade Federal do Maranhão, 2013.)1 1 A pesquisa contou com financiamento do CNPq (Chamada CNPq/CAPES N º 07-2011) . A escolha dessas instituições ocorreu na direta dependência do que foi analisado nos dois primeiros anos da investigação, especialmente, dos dados extraídos do Relatório de Acompanhamento do REUNI (ANDIFES, 2010). Seleção essa orientada pelo percentual de aumento do número de vagas nos cursos de graduação presencial no período 2006/2010, sendo as escolhidas as seguintes universidades com significativa oferta de vagas discentes: região Norte (UFT - 76%), região Centro-Oeste (UnB - 86%) e região Nordeste (UFMA - 54%). . Este estudo foi realizado no biênio 2012-2013, como parte do projeto integrado "Políticas da Expansão da Educação Superior no Brasil", desenvolvido por pesquisadores da Rede Universitas, oriundos de diversas instituições de ensino superior do país.

Ao longo de todo o artigo, são apresentadas análises teóricas articuladas a entrevistas semiestruturadas, realizadas, entre março e novembro de 2013, com docentes dessas três instituições federais de educação superior, após assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Cada um dos relatos dos docentes foi identificado por um número, que variou de 01 a 12, como garantia de sigilo, acompanhado da abreviatura da instituição à qual o docente pertence. Cabe esclarecer que não houve o intuito de realizar uma quantidade representativa de entrevistas. A amostra foi do tipo proposital, isto é, foram identificados os casos de interesse a partir da própria população que estava sendo pesquisada, ou seja, por meio dos próprios entrevistados (NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004NOGUEIRA-MARTINS, M.; BÓGUS, C. Considerações sobre a metodologia qualitativa como recurso para o estudo das ações de humanização em saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 3, p. 44-57, set./dez. 2004. ).

As entrevistas seguiram um roteiro semiestruturado e foram gravadas, com autorização prévia dos entrevistados, sendo os discursos transcritos na íntegra. Para isso, tratou-se de ultrapassar os limites do imediatamente presente em tais manifestações para buscar as raízes da conjuntura que as produziu, que, por sua vez, não são prontamente observáveis. Esse conjunto (manifestações fenomênicas e seu processo de construção não perceptível de imediato) que compõe a totalidade social foi analisado pelo materialismo histórico dialético. Desse modo, as análises realizadas nesta pesquisa não têm a intenção de generalização, mas evidenciam elementos comuns com situações vivenciadas e identificadas, também, por distintos pesquisadores, conteúdos estes apresentados e articulados ao longo do texto.

As IFES e o embaralhamento das fronteiras entre o público e o privado

Durante as últimas duas décadas do século XX, em razão de uma crise econômica também considerada como uma crise do Estado-Providência,2 2 O Estado-providência, também chamado de Estado de Bem-Estar, caracterizou-se por um Estado previdenciário e arbitral na relação capital e trabalho, com a concessão de "{...} direitos sociais de educação, saúde, transporte, moradia, garantias de emprego e seguro desemprego" (FRIGOTTO, 1995, p. 82). ocorreram mudanças importantes que afetaram de forma significativa os serviços públicos, influenciando de maneira profunda as políticas, os programas, as estruturas e a cultura das organizações estatais (CHANLAT, 2002CHANLAT, J. F. O gerencialismo e a ética do bem comum: a questão da motivação para o trabalho nos serviços públicos. In: CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE LA ADMINISTRACIÓN PÚBLICA, 7., 2002, Lisboa. Anais... Lisboa: CLAD, 2002. p. 8-11.).

As mudanças em questão geraram um movimento reformista que apresenta como eixo central a substituição do modelo burocrático de administração pública pelo modelo de administração gerencial. Nessa direção, a administração pública precisa abandonar seu estilo burocrático - visto como pouco ágil, dispendioso, que não responde adequadamente às demandas dos cidadãos - para funcionar no estilo de uma administração gerencial, o que implica estar pautada na descentralização e na flexibilização administrativa, livre das amarras rígidas da burocracia clássica (BRESSER-PEREIRA, 2006BRESSER-PEREIRA, L. Da administração pública burocrática à gerencial. In: BRESSER-PEREIRA, L.; SPINK, P. (Org.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. 7 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 237-270.).

O referido movimento provoca um sentimento antiburocrático em boa parte da opinião pública, que passa a defender o modelo de gestão do setor privado como o ideal, frente à degradação das instituições públicas. Essas instituições vieram incorporando paulatinamente a lógica e os mecanismos que regem as empresas privadas, com o objetivo de propiciar agilidade, eficiência e qualidade aos serviços públicos, adotando, assim, uma postura mais empresarial, direcionada para a geração de receitas e um maior controle dos gastos públicos.

Esse modelo de gestão com características mais empresariais, conhecido como gerencialismo, disseminou-se em vários países do mundo e guarda uma estreita relação, em suas ações e valores, com a reestruturação produtiva do pós-fordismo, substituindo a hierarquia centralizada burocrática por formas mais flexíveis de controle (PAULA, 2005PAULA, A. P. Por uma nova gestão pública: limites e potencialidades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro: FGV , 2005. ).

De acordo com Chanlat (2002CHANLAT, J. F. O gerencialismo e a ética do bem comum: a questão da motivação para o trabalho nos serviços públicos. In: CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE LA ADMINISTRACIÓN PÚBLICA, 7., 2002, Lisboa. Anais... Lisboa: CLAD, 2002. p. 8-11.), o gerencialismo descreve, explica e interpreta o mundo a partir das categorias da gestão privada, tomando como base noções e princípios administrativos, tais como: inovação, eficácia, produtividade, performance, competência, empreendedorismo, qualidade total, cliente, produto, marketing, desempenho, excelência e reengenharia. Esses pressupostos "{...} estão cada vez mais entrelaçados no tecido social, pois não é mais possível ignorar que as organizações empresariais exercem uma grande influência na sociedade" (PAULA, 2005PAULA, A. P. Por uma nova gestão pública: limites e potencialidades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro: FGV , 2005. , p. 57). Hoje, tudo se gerencia: a família, as relações amorosas, a sexualidade, os sentimentos, a inteligência, a educação, a saúde etc.

A valorização de padrões flexíveis e inovadores do modelo gerencialista, em detrimento dos procedimentos rígidos e obsoletos do modelo burocrático, produz uma demanda para o desenvolvimento de habilidades cognitivas e comportamentais, supostamente capazes de garantir o sucesso em todas as esferas da vida, especialmente no trabalho. O sujeito sob essa lógica deve desenvolver a capacidade de

{...} análise, síntese, estabelecimento de relações, rapidez de respostas e criatividade diante de situações desconhecidas, comunicação clara e precisa, interpretação e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade para trabalhar em grupo, gerenciar processos, eleger prioridades, criticar respostas, avaliar procedimentos, resistir a pressões, enfrentar mudanças permanentes, aliar raciocínio lógico-formal à intuição criadora, estudar continuamente, e assim por diante. (KUENZER, 2002KUENZER, A. Exclusão includente e inclusão excludente: a nova forma de dualidade estrutural que objetiva as novas relações entre educação e trabalho. In: LOMBARDI, José; SAVIANI, Dermeval; SANFELICE, José. (Org.). Capitalismo, trabalho e educação. Campinas, SP: Autores Associados: HISTEDBR, 2002. p. 77-95., p. 86)

A presença crescente do pensamento gerencial transforma o gerente em uma das figuras centrais da sociedade contemporânea. Nessa perspectiva, Gurgel (2003GURGEL, C. A gerência do pensamento: gestão contemporânea e consciência neoliberal. São Paulo: Cortez, 2003., p. 27) comenta que há diferentes exigências na formação das novas técnicas gerenciais no capitalismo contemporâneo:

Os gerentes são armados, na sua formação, não apenas, da razão instrumental, que os faz gestores da reprodução econômica. Mas também o são, e hoje de modo privilegiado, gestores da reprodução das condições de produção, dentre elas as condições ideológicas e a condição social convenientes.

No caso brasileiro, o processo de reconfiguração do Estado calcado na lógica do Estado gerencialista ganhou força com a indicação de Bresser-Pereira para assumir o Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995. Tal reconfiguração tornava-se imperativa, segundo Bresser-Pereira, em função da globalização, da integração dos mercados e da alta competitividade, em escala internacional. Então, da redefinição das funções do Estado, surgiram as três formas de propriedade: pública estatal, pública não estatal e privada. Para tal, foi proposta a subdivisão do aparelho do Estado em quatro setores:

a) núcleo estratégico - constituído por legislativo, judiciário, presidência e cúpula dos ministérios. Também integram essa categoria os governadores, seus secretários e a alta administração pública estadual;

b) atividades exclusivas - englobam as atividades que garantem o cumprimento das leis e das políticas públicas. Compreendem as forças armadas, a polícia, as agências de fiscalização, de financiamento, de regulamentação, de controle social e de seguridade social;

c) serviços não exclusivos - abrangem os serviços de educação, saúde, cultura e pesquisa científica. Esses serviços podem ficar sob o controle do Estado, podem ser privatizados ou ser subsidiados pelo Estado, mas são controlados pela sociedade, isto é, passam a ser convertidos em organizações públicas não estatais;

d) setor de produção de bens e serviços para o mercado - constituído pelas empresas estatais (BRESSER-PEREIRA, 2006BRESSER-PEREIRA, L. Da administração pública burocrática à gerencial. In: BRESSER-PEREIRA, L.; SPINK, P. (Org.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. 7 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 237-270.).

Tendo como referência essa classificação, cabe uma análise mais focada no setor de serviços não exclusivos, categoria que abrange os serviços da educação e, mais especificamente, inclui as IFES.

Na defesa de sua tese de publicização dos serviços não exclusivos do Estado, Bresser-Pereira (2006)BRESSER-PEREIRA, L. Da administração pública burocrática à gerencial. In: BRESSER-PEREIRA, L.; SPINK, P. (Org.). Reforma do Estado e administração pública gerencial. 7 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 237-270. apresenta o exemplo dos Estados Unidos, onde todas as universidades são organizações públicas não estatais. Esclarece que, nesse país, essas instituições são entidades independentes controladas pelo Estado e pela sociedade civil, sendo parcialmente subsidiadas ou financiadas pelo Estado. Não empregam servidores públicos e não visam ao lucro.

Cabe ressaltar que esse processo gerou muitos movimentos de enfrentamento e resistência, que, no caso da educação superior, foram organizados por docentes, técnico-administrativos e estudantes das universidades públicas, impedindo que se concretizasse a transformação das IFES em instituições públicas não estatais. Contudo, apesar da resistência desses setores, é visível um processo gradual de implementação da política traçada pelo Plano Diretor. Identifica-se, a partir de 1995, "{...} uma crescente desresponsabilização do Estado com a educação superior, por meio da redução de verbas públicas para seu financiamento e {...} do estímulo ao empresariamento deste nível de ensino {...}" (LIMA, 2007LIMA, K. Contra-reforma na educação superior: de FHC a Lula. São Paulo: Xamã, 2007., p. 126).

Para Chauí (1999CHAUÍ, M. A universidade em ruínas. In: TRINDADE, H. (Org.). Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis, RJ: Vozes, São Paulo: Atlas, 1999. p. 211-222., 2003CHAUÍ, M. A universidade pública sob nova perspectiva. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 24, p. 5-15, set. /dez. 2003.), a inclusão das instituições educacionais no setor de serviços não exclusivos coloca direitos sociais como a educação no âmbito dos serviços definidos pelo mercado. Com essa medida, portanto, há um encolhimento dos direitos sociais adquiridos, pois toda e qualquer aquisição, sob essa nova ótica, deve se pautar pela ideologia do mérito e da competitividade do mercado, como forma de banir o comodismo e a passividade trazidos pelo intervencionismo estatal, que rebaixa a capacidade de iniciativa dos indivíduos em resolverem seus problemas.

Esse processo gradual de desobrigação do Estado na manutenção integral das instituições públicas da educação superior, tão bem articulado com as transformações impostas pelo ideário neoliberal e as orientações de organismos multilaterais, não fica restrito aos mandatos de Collor de Melo (1990-1992), Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Os governos do Partido dos Trabalhadores (PT) que assumem a gestão do Estado a partir de 2003 também se submetem aos marcos regulatórios previamente fixados.

Partindo de uma análise da conjuntura e das medidas legais tomadas até o momento, pode-se inferir que as políticas de educação superior implementadas a partir dos anos de 1990 apontam para um processo gradual e contínuo de privatização. Sguissardi e Silva Júnior (2009SGUISSARDI, V.; SILVA JÚNIOR, J. R. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã , 2009.) identificam a produção de um arcabouço jurídico para a reforma das universidades, resultando, assim, no primeiro e decisivo passo para a mercantilização da universidade estatal.

O Estado, ao restringir a transferência de recursos para a manutenção das instituições públicas, induziu-as a buscar fontes alternativas de financiamento no setor privado, a adotar medidas administrativas de cunho privatizante e a demonstrar comportamentos adaptativos aos ditames do mercado. Assim, torna-se cada vez mais frequente, no interior dessas instituições, a constituição de parcerias, convênios e contratos, que objetivam, principalmente, a captação de financiamento privado.

É crescente o processo de privatização indireta e interna, por meio de parcerias constituídas entre empresas privadas e institutos de pesquisa das universidades públicas, não raramente, subsidiadas com recursos do Estado. Nessa aliança, os professores, pressionados pelas imposições do mercado, expostos a condições precárias de trabalho, perdem parte de sua autonomia de trabalho em troca de complementos salariais e de fornecimento de infraestrutura para a realização de suas pesquisas.

É comum nos editais o privilegiamento das pesquisas aplicadas em detrimento das pesquisas básicas e críticas. Consequentemente, os professores envolvidos neste último grupo são ofuscados pelos professores empreendedores, e as áreas das ciências humanas e das ciências sociais são duramente atingidas devido ao menor apelo comercial dos seus projetos.

Frente a esse cenário, París (2002PARÍS, C. O animal cultural: biologia e cultura na realidade humana. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2002.) traz uma pertinente crítica à ciência e à figura dos cientistas inseridos na sociedade capitalista diante do processo de heteronomia da produção científica. Trata-se de uma reflexão urgente a ser feita no âmbito acadêmico e que deve ser desencadeada pelos docentes que não desejam ser cúmplices de tal processo:

{...} a ciência não só se converteu em momento chave do desenvolvimento industrial, senão que ela mesma se industrializou. E o que aspirava ser uma atividade absolutamente livre e realizadora foi submetida, pelo poder, ao mesmo jugo da alienação do trabalho {...} o trabalho do cientista se parcializou e dividiu, transformando o pesquisador no operário de uma construção cujo sentido, em grande medida, muitas vezes lhe escapa. (PARÍS, 2002PARÍS, C. O animal cultural: biologia e cultura na realidade humana. São Carlos, SP: EdUFSCar, 2002., p. 220)

Conforme exposto, intensifica-se o financiamento privado nas instituições de ensino superior públicas, o que naturaliza a busca de recursos suplementares. Segundo observação de Leda (2009LEDA, D. B. Trabalho docente no ensino superior: análise das condições de saúde e de trabalho em instituições privadas do estado do Maranhão. 2009. 225 p. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009., p.115): "É o pragmatismo do mercado invadindo o espaço público, a total perda do caráter público da investigação científica, o que transforma a ciência em força produtiva e os pesquisadores em 'mestres' ao seu dispor". É o que se percebe no relato de um dos entrevistados:

{...} nós temos alguns colegas que pela área que trabalham têm atuação mais forte com o mercado, com empresas {...}, mas é interessante que sempre trazendo benefício para o Instituto {...} Como a Universidade não tem dinheiro, o Instituto não tem, tem uns colegas que têm dinheiro, que têm projeto... (ENTREVISTADO 1, UnB)

Sevcenko (2001SEVCENKO, N. A corrida para o século XXI: no loop da montanha russa. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 6) discute essa temática e, em um tom crítico, delineia as expectativas para o docente dos tempos atuais:

O professor ideal agora é um híbrido de cientista e corretor de valores. Grande parte do seu tempo deve ser dedicado a preencher relatórios, alimentar estatísticas, levantar verbas e promover visibilidade para si e seu departamento. O campus vai se reconfigurando num gigantesco pregão. O gerenciamento de meio acabou se tornando fim na universidade. A ideia é que todos se empenhem no limite de suas forças {...}.

Esse perfil empreendedor obteve na Lei de Inovação Tecnológica (BRASIL, 2004BRASIL. Lei nº 10.973, de 02 de dezembro de 2004. Dispõe sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo e dá outras providências. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/Lei/10.973.htm >. Acesso em: 23 jun. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
), por exemplo, um forte aliado para institucionalizar a complementação de renda no âmbito acadêmico público. Nessa mesma perspectiva, bem recentemente se institucionalizou o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (BRASIL, 2016BRASIL. Lei nº 13.243/2016, de 02 de dezembro de 2004. Dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13243.htm >. Acesso em: 23 jun. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Tal perfil tem sérios impactos nos modos de reconfiguração da relação pós-graduação e pesquisa, conforme discute Oliveira (2015OLIVEIRA, J. A pós-graduação e a pesquisa no Brasil: processos de regulação e de reconfiguração da formação e da produção do trabalho acadêmico. In: SEMINÁRIO REDE UNIVERSITAS, 23., 2015, Belém-PA. Anais... Belém-PA, 2015. p. 1069 -1084.).

Os efeitos desses marcos regulatórios são bastante compro-metedores para a autonomia das universidades, respondendo, assim, às ingerências de organismos internacionais, como o Banco Mundial, na vida acadêmica, como bem sinaliza Santos (2004SANTOS, B. A universidade no século XXI: para uma reforma democrática e emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez, 2004., p. 30):

O zelo reformista do Banco dispara em todas as direções onde identifica as deficiências da universidade pública e, nelas, a posição de poder dos docentes é um dos principais alvos. A liberdade acadêmica é vista como um obstáculo à empresarialização da universidade e à responsabilização da universidade ante as empresas que pretendem os seus serviços. O poder da universidade deve deslocar-se dos docentes para os administradores treinados para promover parcerias com agentes privados {...}.

Perante esse cenário, a progressiva banalização da privatização interna das instituições públicas de ensino superior tem certa cumplicidade de alguns servidores técnico-administrativos e docentes, aparentemente alheios ao processo de cooptação a que estão submetidos, frente à sedução de ganhos financeiros e de maior valorização no mercado acadêmico.

O processo de reconfiguração do Estado e as repercussões na subjetividade do professor

Diante desse contexto, é importante investigar os impactos da cultura gerencialista no trabalho do professor e, sobretudo, identificar as possibilidades e os limites do docente no enfrentamento da lógica produtivista que permeia seu cotidiano laboral. Uma questão de grande relevância, que deve ser analisada, é o aumento progressivo da demanda de trabalho do professor. Este, para atender ao grande e diversificado rol de atividades exigido pela "nova" cultura acadêmica - cada vez mais atrelada a princípios de flexibilidade, de empreendedorismo e de autossuperação -, precisa atuar como um "faz-tudo" e apresentar características "heroicas" para alcançar um lugar de destaque no ambiente organizacional. Quanto a essa questão, um docente assim se manifestou:

Você como ser humano é multifacetado. Ora você está num cargo administrativo, ora você está na sala de aula, de graduação, de pós-graduação, ora você está no seu grupo de pesquisa, na elaboração do seu projeto de pesquisa. {...} a gente vai embarcando nesse movimento, em nome da produção {...}. (ENTREVISTADO 5, UFMA, grifo nosso)

A cultura do gerencialismo impregnada pela ideologia da excelência atravessa o dia a dia do docente e imprime uma busca infindável por um padrão de sucesso sempre mutável e pela necessidade contínua de superação do outro e de si mesmo. Em uma crítica a tal contexto, Bernardo (2014BERNARDO, M. H. Produtivismo e precariedade subjetiva na universidade pública: o desgaste mental dos docentes. Psicologia e Sociedade, Belo Horizonte, n. 26, número especial, p. 129-139, 2014., p. 134) tece o seguinte comentário: "Observa-se, assim, que a ameaça a quem não se mantém no padrão esperado não é a demissão, mas o rebaixamento na carreira, que, vale dizer, implica não apenas perda salarial, mas também perda de prestígio na comunidade científica".

Nessa perspectiva, a posse do título de doutor comparece como imposição, condição primeira para valorização do trabalho, melhoria salarial e acesso aos editais de financiamento. Dificilmente o docente consegue reconhecimento no espaço institucional sem o atendimento desse requisito. As falas de dois docentes ilustram esse ponto:

Como eu tenho só mestrado, eu não consigo um PIBIC, submeter o meu projeto PIBIC, porque eu não tenho aquela pontuação, não consigo aprovar. Então, se eu não tenho dinheiro, não tenho bolsa, o aluno não vem. Tem aluno aqui que tem duas bolsas, então o aluno quer bolsa. Ele quer trabalhar e quer ganhar bolsa, ele quer dinheiro, ele não quer só voluntariado. Então {...} dificulta a minha vida - se eu não tenho doutorado. Ou seja {...}. Se eu não fizer meu doutorado, não existe campo. Eu não vejo nenhuma perspectiva para uma pessoa que não seja doutor dentro da universidade federal. Por isso estou me empenhando, a minha vida em cima disso, para eu sair, porque agora que eu posso realmente sair. (ENTREVISTADO 2, UFT, grifo nosso)

E aqui os professores que chegam sem doutorado, vivem uma situação. Eu vejo pelos meus colegas. Eu cheguei aqui com doutorado. Dizem que aquivocê não tem uma cidadania universitária, porque não pode participar de nada literalmente. Não tem nenhum edital que contemple essas pessoas. (ENTREVISTADO 3, UnB, grifo nosso)

O entendimento dessa problemática requer, também, discutir o binômio qualificação/competência, tão em voga nos tempos atuais. O primeiro termo está mais ligado aos diplomas e aos títulos conquistados, portanto, consolidados, e o segundo, a um conjunto de recursos permanentemente adquiridos para dar conta do cotidiano de trabalho, que tem novas exigências a cada momento.

No caso das instituições públicas de educação superior, a posse do título de doutor qualifica o docente para a inserção em um programa de pós-graduação e participação em diversos editais internos da instituição e de agências de fomento. Contudo, cabe ressaltar que ser professor da pós não significa abrir mão dos compromissos da graduação. As IFES exigem que o docente da pós mantenha também um vínculo com a graduação, e a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) vê essa articulação com bons olhos. Nessa direção, atividades são acumuladas - mais salas de aula, orientações de alunos, bancas, reuniões, elaborações de pareceres, comissões e atividades burocráticas (suprindo a lacuna do número deficitário de servidores administrativos). Surge, ainda, a demanda de mais tempo de produção, utilizado tanto na elaboração de projetos de pesquisa para concorrer aos editais de financiamento como na escrita de textos e artigos científicos, que devem ser encaminhados para periódicos bem-classificados (segundo critérios e classificação Qualis3 3 "Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela Capes para estratificação da qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação". Disponível em: <http://www.capes.gov.br>. Acesso em: 23 abr. 2016. de cada área), para cumprir às exigências da CAPES. Esses requisitos estão relacionados ao conceito de competência discutido anteriormente.

Para atender aos ordenamentos dessa conjuntura, torna-se necessário um trabalho extra, sem limites, o qual requer um processo de captura da subjetividade, que Lourau (2004LOURAU, R. Implicação e sobreimplicação. In: ALTOÉ, Sônia (Org.) René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: HUCITEC, 2004. p. 186-198. ) analisa através dos conceitos de "implicação" e "sobreimplicação". Para a discussão da "implicação", ele considera que este conceito diz respeito aos

{...} juízos de valor sobre nós mesmos, sobre os demais, destinados a medir o grau de ativismo, de identificação com uma tarefa ou instituição, a quantidade de tempo/dinheiro que lhe dedicamos (estando lá, estando presentes), bem como a carga afetiva investida na cooperação. (LOURAU, 2004LOURAU, R. Implicação e sobreimplicação. In: ALTOÉ, Sônia (Org.) René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: HUCITEC, 2004. p. 186-198. , p. 169)

No caso da "sobreimplicação", o autor designa que ela emana do conceito de "implicação" e relaciona-se à subjetividade capturada pelo mercado, que não só produz sobretrabalho, mas também "{...} estresse rentável, doença, morte, como também cash-flow - benefício absolutamente nítido consagrado ao reinvestimento e, portanto, ao crescimento indefinido da empresa-instituição {...}" (LOURAU, 2004LOURAU, R. Implicação e sobreimplicação. In: ALTOÉ, Sônia (Org.) René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: HUCITEC, 2004. p. 186-198. , p. 195).

Muitas das atividades da docência têm sido marcadas pela lógica da avaliação quantitativa, vinculada ao pagamento de gratificações, à ascensão na carreira e ao financiamento de pesquisas conforme a produtividade, à custa de muita implicação e sobreimplicação. Tal como se constitui o trabalho no campo privado, é possível perceber que a nova configuração estatal tem trazido aos professores das instituições públicas uma "{...} exigência desmedida de produtividade" (BORSOI, 2012BORSOI, I. Trabalho e produtivismo: saúde e modo de vida de docentes de instituições públicas de Ensino Superior. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, , v. 15, n. 1, p. 81-100, 2012., p. 88). Esse aspecto, de certa forma, podemos ver naturalizado em falas como a do docente a seguir:

{...} minha produção é mera consequência do meu querer. {...} Primeiro porque minha personalidade realmente é essa. Em 10 anos na universidade, eu nunca saí de férias, nunca. Minha esposa está pressionando para eu sair agora porque eu tenho 30 dias, mas mesmo saindo por 30, eu tenho 3 finais de semana em Pernambuco dando aula, é minha característica, talvez a minha personalidade, não sei... talvez um psicólogo explique. (ENTREVISTADO 10, UFMA)

Assim como esse docente, muitos não percebem as armadilhas escondidas nos discursos que exaltam a produtividade no trabalho e tornam-se cúmplices, concordando, assim, com gestores que estimulam a criação da figura do professor produtivo, bem-afinado com os princípios do modelo gerencialista importado do setor privado. A supracitada fala vai ao encontro de uma das questões da pesquisa, que seria analisar em que medida os docentes imersos em uma cultura acadêmica regida por princípios gerencialistas conseguem agir criticamente. A maior parte dos entrevistados revelou-se subserviente a tais princípios, seja pela incipiente análise crítica, seja pela frágil mobilização diante das condições adversas. Bernardo (2014BERNARDO, M. H. Produtivismo e precariedade subjetiva na universidade pública: o desgaste mental dos docentes. Psicologia e Sociedade, Belo Horizonte, n. 26, número especial, p. 129-139, 2014.) também constatou em seus estudos a dificuldade dos docentes de universidades públicas no enfrentamento da lógica produtivista. A autora sinaliza que a consciência da precarização e do desgaste do ambiente laboral a que estão submetidos não os poupa do risco de certa cooptação por este contexto. Ressalta, ainda, que inclusive professores com uma postura mais crítica, por vezes, podem sucumbir a uma rotina desmobilizadora.

Tal fato pode propiciar um terreno fértil para o acirramento da competitividade, da fragilização do coletivo e da naturalização da rivalidade entre os pares. Os depoimentos de alguns professores expressam bem essa tendência:

Eu acho que a docência, como qualquer campo de conhecimento, a Medicina, Química, Física, qualquer área, Enfermagem... todos esses campos têm espaço de disputa {...} o campo acadêmico não poderia ficar fora como um espaço de disputa. O que não me agrada, muitas das vezes, é a forma de disputa desleal do colega para o colega. {...} Então essa é a coisa que eu acho mais chata, que me aborrece profundamente, que é essa falta de afetividade entre nós colegas. (ENTREVISTADO 5, UFMA)

Mas tem muito cansaço, porque você tem que concorrer a edital, fazer muitos projetos. Tem que ficar disputando com outro colega. Isso é um absurdo. (ENTREVISTADO 3, UnB)

{...} a exigência universitária é outra, a lógica é outra e aí como essa... tem comparação, tem competitividade, tem disputa de espaço de poder. (ENTREVISTADO 7, UFT)

Questões como essas retratam o esgarçamento dos vínculos no contexto laboral do professor nas IFES. Identifica-se nesse cenário a precarização dos laços humanos, a qual, segundo Seligmann-Silva (2011SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez , 2011., p. 468), constitui parte importante do processo de precarização, que atinge "{...} todos os âmbitos da sociabilidade, isola os indivíduos e repercute de modo importante na vida afetiva e na subjetividade de cada um".

Além do desgaste das relações interpessoais e das antigas solidariedades, verifica-se o processo de precarização das condições de trabalho, compreendido por Alves (2007ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios da sociologia do trabalho. São Paulo: Práxis, 2007. Disponível em: <Disponível em: http://www.giovannialves.org/DRP.pdf >. Acesso em: 17 mar. 2016.
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) como a perda de direitos acumulados pelas mais diversas categorias de assalariados, como um processo de diluição (ou supressão) dos obstáculos constituídos pela luta de classes contra a voracidade do capital. Nesse sentido, a condição de servidor público não tem sido suficiente para proteger a categoria docente das universidades federais das intempéries do mundo do trabalho. As transformações em curso trazem consigo os moldes do setor privado para o contexto público, por meio: da perda de poder aquisitivo; da redução gradual de direitos trabalhistas; da ênfase no quantitativo; e da crescente exigência de cumprimento de metas produtivistas (BORSOI, 2012BORSOI, I. Trabalho e produtivismo: saúde e modo de vida de docentes de instituições públicas de Ensino Superior. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, , v. 15, n. 1, p. 81-100, 2012.).

As consequências de todo esse processo são múltiplas para um professor universitário e, pelo menos três aspectos - intrinsecamente relacionados - merecem consideração: a precarização do trabalho, a flexibilização das tarefas e uma nova relação que se estabelece com o tempo de trabalho. (MANCEBO, 2007MANCEBO, D. Trabalho docente: subjetividade, sobreimplicação e prazer. Psicologia: Reflexão & Crítica, Porto Alegre, v. 20, n. 1, p. 74-80, 2007., p. 77)

Segundo Borsoi (2012BORSOI, I. Trabalho e produtivismo: saúde e modo de vida de docentes de instituições públicas de Ensino Superior. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, São Paulo, , v. 15, n. 1, p. 81-100, 2012., p. 83), o trabalho docente, por sua natureza, permite que o professor o realize também "{...} fora do ambiente institucional {e} extrapole amiúde os limites específicos da jornada regimental contratada. {...} um computador conectado à internet e um telefone são suficientes para que mantenham seu elo com a instituição, onde quer que estejam". Dessa forma, o professor vivencia a ilusão de ter relativo controle e autonomia sobre seu tempo de trabalho, pois a sua jornada de trabalho não é monitorada por um sistema de ponto, como ocorre à maioria dos trabalhadores.

Nessa perspectiva, o tempo dedicado para produção se confunde com o tempo reservado para a esfera pessoal, social e familiar. O avanço tecnológico realmente favorece uma maior flexibilidade em horários e locais de realização das atividades, mas traz consigo uma grande invasão da dimensão privada pela dimensão laboral. As falas dos entrevistados abaixo revelam os limites tênues dos binômios tempo livre/tempo de trabalho, dia de semana/fim de semana e dia/noite.

As meninas vão pra minha casa final de semana, à noite a gente fica em casa, até onze horas fazendo projeto... Nos intervalos... Porque assim, como eu trabalho no hospital, meu horário é das sete a uma; então uma hora eu saio de lá, almoço lá e venho direto pra cá. Então, na verdade eu não entro aqui às 14, eu fico aqui de uma às seis, (pego as meninas) e trabalho muito final de semana para fazer essa parte de projetos e extensão. (ENTREVISTADO 2, UFT)

{...} eu não tinha vida particular, eu vivia naquela fazenda, final de semana eu ia para lá, eu trabalhava igual uma louca. (ENTREVISTADO 8, UFT)

{...} em virtude do conjunto de coisas que nós precisamos fazer eu devo ser claro. É, nós não temos, eu praticamente, já tem uns 3 finais de semana que eu não tenho, por exemplo, final de semana em casa. Eu trabalho lá, mas não estou lá. Porque eu tenho que preparar além das aulas, além das reuniões, eu preciso preparar projeto de pesquisa, eu tenho que submeter ao conselho de ética esse projeto de pesquisa, eu tenho que preparar projeto de iniciação científica, então quando é que eu vou fazer isso? Eu preciso ter tempo, eu acabo utilizando o espaço da família para fazer o trabalho que a gente não consegue fazer tudo aqui. (ENTREVISTADO 9, UFT)

A crescente indissociação entre tempos e espaços da vida pessoal e da vida profissional foi constatada também nos relatos da maioria dos professores na pesquisa realizada por Silva e Silva Júnior (2010SILVA, E. P.; SILVA JÚNIOR, J. R. Estranhamento e desumanização das relações de trabalho na Instituição Universitária Pública. Revista HISTEDBR {On-line}, Campinas, número especial, p. 223-238, 2010.). Diversos desses entrevistados afirmaram que as tarefas universitárias ocupam com regularidade muitas horas noturnas e fins de semana.

Assim, diante de tantas demandas, o professor vivencia um cotidiano permeado por uma lógica produtivista, cada vez mais atrelado a princípios de flexibilidade, polivalência e empreendedorismo. Nesse contexto, o docente, embebido pela ideologia da excelência, torna-se "{...} um trabalhador prisioneiro, do tempo e do afeto dedicados ao trabalho. Desloca o seu tempo de vida para o trabalho, impõe ritmos, cadências e rupturas que o afastam de suas necessidades" (SOBOLL; HORST, 2013SOBOLL, L.; HORST, A. C. Ideologia da excelência. In: VIEIRA, F. de O.; MENDES. A. M.; MERLO, A. R. (Org.). Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. Curitiba: Juruá , 2013. p. 225-230. , p. 229). A análise de tal problemática também foi central para pesquisadores como Sguissardi e Silva Júnior (2009SGUISSARDI, V.; SILVA JÚNIOR, J. R. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã , 2009.).Nessa direção, Alves (2011ALVES, G. Trabalho flexível, vida reduzida e precarização do homem-que-trabalha: perspectivas do capitalismo global no século XXI. In: ALVES, G.; VIZZACCARO-AMARAL, A. L.; MOTA, D. P. (Org.) Trabalho e saúde: a precarização do trabalho e a saúde do trabalhador no século XXI. São Paulo: LTr, 2011. p. 39-55., p. 49) fala em "vida reduzida", em que "{...} o capital avassala a possibilidade de desenvolvimento humano-pessoal dos indivíduos sociais, na medida em que ocupa o tempo de vida das pessoas com a lógica do trabalho estranhado e a lógica da mercadoria e do consumismo desenfreado". A busca incessante pela alta performance compromete não somente o seu tempo de descanso, que deveria entremear as suas atividades laborais, invade, ainda, o tempo das férias. A fronteira entre o tempo de produção e o tempo fora do trabalho "{...} torna-se cada vez mais porosa" (GAULEJAC, 2007GAULEJAC, V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida, SP: Ideias e Letras, 2007., p. 111). O depoimento que segue sinaliza claramente essa indefinição:

Nem sempre. Nem sempre {consigo tirar férias}. É o que eu tento fazer, mas nem sempre eu consigo. Porque as férias, elas precisam ser interrompidas em alguns momentos, por várias situações. É preciso sair, porque se eu ficar aqui fatalmente as férias serão interrompidas com uma frequência grande. (ENTREVISTADO 11, UFMA)

Em um cenário delineado pelo acúmulo de tarefas acadêmicas, quase sempre diversificadas, identifica-se o fenômeno da intensificação, que, segundo Dal Rosso (2008DAL ROSSO, S. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 197), está diretamente relacionado a "mais trabalho". Para o autor, a intensificação almeja um único objetivo: alcançar mais resultados do que se conseguiria em condições normais. Demanda que "{...} o trabalhador produza resultados quantitativa ou qualitativamente superiores, mantidas constantes as condições técnicas, a jornada e o número de funcionários" (DAL ROSSO, 2008DAL ROSSO, S. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008., p. 197).

A intensificação do cotidiano acadêmico do docente é identificada por boa parte dos entrevistados, que trazem em suas falas variados aspectos relacionados à sobrecarga. Bernardo (2014BERNARDO, M. H. Produtivismo e precariedade subjetiva na universidade pública: o desgaste mental dos docentes. Psicologia e Sociedade, Belo Horizonte, n. 26, número especial, p. 129-139, 2014., p. 135) também constatou na sua pesquisa com professores universitários um ambiente laboral marcado pela existência de pressões constantes e "{...} por um nível de produção artificialmente elevado, que se mescla com um discurso legitimador que parece distorcer a realidade".

Um agravante a mais que contribui para a sobrecarga do docente é a não contratação de servidores técnico-administrativos em número suficiente, levando-o a acrescentar à sua rotina tarefas burocráticas, o que afeta o tempo disponível para a realização das atividades próprias de suas funções. A redução gradativa do apoio administrativo no exercício das atividades acadêmicas, em perfeita sintonia com a máxima de realizar "mais com menos", comparece nos dados coletados nos mais diferentes estudos que abordam o trabalho nas IFES. Entre eles, podem-se destacar: Sguissard e Silva Júnior (2009)SGUISSARDI, V.; SILVA JÚNIOR, J. R. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã , 2009.; Ribeiro, Leda e Silva (2015RIBEIRO, C. V. S; LEDA, D. B.; SILVA, E. P. A expansão da educação superior pública e suas implicações no trabalho docente. Revista Educação em Questão, Natal-RN, v. 51, p. 147-174, 2015.); Fleury, Ribeiro e Macedo (2015FLEURY, A. R. D. ; RIBEIRO, C. V. S.; MACEDO, K. B. Reconhecimento e ressignificação do sofrimento no trabalho docente. In: MONTEIRO, J; VIEIRA, F.; MENDES, A. M.; (Org.). Trabalho e Prazer: teorias, pesquisas e práticas. Curitiba: Juruá, 2015. v. 1, p. 199-232.). Há uma tendência dessas instituições, no que diz respeito à nomeação de novos servidores, de não acompanharem o aumento de vagas de discentes proveniente de processos de expansão. Nesse cenário, o docente acumula uma série de novas obrigações, como relata o entrevistado a seguir:

Todo professor de alguma forma tem que saber gestão {...} captar recursos, prestar contas, tudo isto faz com que o professor transite por uma infinidade de áreas que não são próprias da sua área de formação, a universidade não oferece ao professor a oportunidade de trabalhar o seu potencial, porque ela exige que o professor tenha uma série de competências {...} hoje o que eu menos faço é aquilo para o que me preparei. (ENTREVISTADO 11, UFMA)

Nesse sentido, torna-se essencial uma análise mais aprofundada sobre a hipervalorização do tempo de trabalho em contraste com a desvalorização do tempo passado fora dele, ao ponto de se considerar o precioso espaço reservado para repouso nos fins de semana e nas férias como desperdício (GIANNINI, 2013GIANNINI, E. F. Tempo, trabalho e subjetividade: crises da atualidade. In: EWALD, A. et al. (Org.) Tempo e subjetividades: perspectivas plurais. Rio de Janeiro: 7 Letras: Pequeno Gesto, 2013. p. 283-318.). Longas jornadas de trabalho são, sem dúvida, um risco potencial para a saúde do trabalhador. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) sinaliza que a quantidade de horas trabalhadas por semana não deve exceder a 50 horas (LEE; MCCANN; MESSENGER, 2009LEE, S.; MCCANN, D.; MESSENGER, J. Duração do trabalho em todo o mundo: tendências de jornadas de trabalho, legislação e políticas numa perspectiva global comparada. Brasília: Organização Internacional do Trabalho, 2009.).

O desdobramento desse ritmo frenético no trabalho, tão característico do modelo gerencialista, pode ser identificado no aumento de: problemas vocais, pressão arterial, cardiopatias, exaustão física e enxaqueca. Além disso, há a produção de outros agravos psíquicos e psicossomáticos, como síndrome de Burnout, normopatia, depressão, ansiedade e dependência de substâncias psicoativas (NARDI, 2015NARDI, C. H. Subjetividade e Trabalho. In: BENDASSOLLI, P. F., BORGES-ANDRADE, J. E. Dicionário de Psicologia do Trabalho e das Organizações. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2015. p. 635-640.). Docentes entrevistados identificam claramente as repercussões da compressão do tempo do trabalho na sua saúde e reconhecem como eles têm enfrentado o processo de intensificação e precarização da sua atividade laboral:

Eu engordei 7 quilos na gestão. {...} Eu não tinha hipertensão, antes de vir trabalhar na universidade. Não tinha os quilos que eu tenho hoje. Tudo isso. Enfim, corria, fazia um exercício físico, sempre. Eu tinha alimentação mais regrada. Mas eu estou aqui, acabo comendo qualquer porcaria por aqui, porque fica em reunião direto. Interfere muito. Principalmente quem assume cargo de gestão, é o que mais se desgasta com saúde. (ENTREVISTADO 3, UnB)

Estou fazendo acompanhamento com psiquiatra. Ele disse, assim, que eu estou profundamente triste. Mas assim, na verdade, é excesso de trabalho. {...} eu tenho que aguentar a carga horária, agora a carga horária aumentou, no lugar de ser 180 horas, todo mundo tem que dar 206 horas, senão o curso não vai andar, por causa do número de professores. (ENTREVISTADO 2, UFT)

Os docentes nessa ciranda calcada em princípios gerencialistas tendem a desenvolver certa miopia em relação à intensificação do seu labor. "Perdem a noção das enormes energias gastas no trabalho {...} perdem a noção do valor do tempo que também é preciso ser desfrutado de modo social, relacional com amigos, familiares e até a sós consigo mesmos" (GIANNINI, 2013GIANNINI, E. F. Tempo, trabalho e subjetividade: crises da atualidade. In: EWALD, A. et al. (Org.) Tempo e subjetividades: perspectivas plurais. Rio de Janeiro: 7 Letras: Pequeno Gesto, 2013. p. 283-318., p. 297).

Tornam-se propensos a uma internalização do controle organizacional, manifestando uma rigorosa autogestão, que frequentemente se sobrepõe ao controle externo. Nesse cenário, os docentes destinam parte significativa do seu cotidiano não apenas ao cumprimento das exigências institucionais impostas - por exemplo, para produzir artigos dentro dos parâmetros estabelecidos pela CAPES -, mas, sobretudo, para superar os seus próprios resultados. Revelam-se fascinados pela possibilidade de sucesso e reconhecimento acadêmico e, embebidos pela ideologia da excelência, transformam-se em algozes de si mesmos ao alimentarem um modelo de gestão perverso. Na busca frenética pelo prestígio profissional, os docentes tornam-se vulneráveis, podendo ser cooptados pelo viés ideológico exercido pelo gerencialismo.

Frente a esse processo de "captura da subjetividade" - definido por Alves (2011ALVES, G. Trabalho flexível, vida reduzida e precarização do homem-que-trabalha: perspectivas do capitalismo global no século XXI. In: ALVES, G.; VIZZACCARO-AMARAL, A. L.; MOTA, D. P. (Org.) Trabalho e saúde: a precarização do trabalho e a saúde do trabalhador no século XXI. São Paulo: LTr, 2011. p. 39-55., p. 42) como algo "{...} intrinsecamente contraditório e densamente complexo, que articula mecanismos de coerção/consentimento e de manipulação {...}", mobilizador das instâncias consciente e inconsciente do psiquismo humano -, a postura acrítica e a naturalização das adversidades laborais podem ser uma constante.

Os professores imersos nessa cultura acadêmica, mesmo cientes dos dissabores provenientes da precarização das condições e das relações de trabalho, ainda assim tendem a expressar sentimento de implicação e prazer com a docência:

Eu acho que é uma das coisas prazerosas, você lapidar o outro {...} no sentido de formar a mente de alguém, de formar alguém pesquisador, de formar alguém que goste de estudar, que goste de ler, que goste de trabalhar {...} aí, não tem REUNI, não tem salário, eu acho que a gente trabalha muito, se você for levar em consideração o não, o não, as coisas negativas, você não iria trabalhar mesmo {...} a questão de estrutura física, as questões de condições de pesquisa, as questões da falta de amabilidade do outro, da afetividade do colega com você, ou de você também com o colega não é, essas coisas todas, você não iria trabalhar. (ENTREVISTADO 5, UFMA)

Não é incomum esses trabalhadores, nos seus discursos, afirmarem que gostam muito do que fazem e que se realizam no exercício profissional. Os depoimentos de alguns entrevistados ilustram claramente essa vivência:

Eu gosto de sala de aula. Eu me identifico com sala de aula. Você pode tá cheia de problemas, você chega ali, você esquece. Você desliga, você desconecta. (ENTREVISTADO, 12 UFT)

Quando eu dou aula, eu aprendo muito. {...} Estar em contato com minha área de atuação me dá prazer. (ENTREVISTADO 11, UFMA)

Trabalhar em pesquisa e dar aula me dá muito mais prazer. (ENTREVISTADO 4, UFMA)

Eu, particularmente, sou muito apaixonado pelo que eu faço. Acho que quando você faz com muita paixão, eu acho que é o que você ama, você consegue. (ENTREVISTADO 5, UFMA)

É uma situação paradoxal, muitos docentes, mesmo inseridos nesse contexto adverso, sentem-se desafiados, instigados, buscando honrar seus compromissos (reais ou imaginários) com a universidade. Nessa direção, tendem a considerar o espaço acadêmico primordialmente como um lugar de autonomia, criação e realização profissional, por vezes, sem uma análise mais crítica e profunda do cotidiano laboral e, sobretudo, sem um movimento de resistência com vistas à transformação desse contexto.

Considerações finais

Retomando o tema central do presente artigo, que aborda o processo de reconfiguração das IFES e busca analisar os limites e as possibilidades da categoria docente no enfrentamento das amarras impostas pelo modelo gerencialista, tecemos as considerações que se seguem.

Constatamos que essa categoria de trabalhadores tem sido paulatinamente submetida a um cotidiano laboral intensificado e precarizado, delineado por novas formas de controle, cada vez mais veladas e sutis. Identificamos que os modelos de gestão das IFES, marcadamente impregnados por princípios gerencialistas, sofisticam as estratégias destas de "captura da subjetividade" (ALVES, 2011ALVES, G. Trabalho flexível, vida reduzida e precarização do homem-que-trabalha: perspectivas do capitalismo global no século XXI. In: ALVES, G.; VIZZACCARO-AMARAL, A. L.; MOTA, D. P. (Org.) Trabalho e saúde: a precarização do trabalho e a saúde do trabalhador no século XXI. São Paulo: LTr, 2011. p. 39-55.) e exercem um importante domínio ideológico sobre os trabalhadores. Nesse cenário, não é incomum o docente adotar valores e objetivos defendidos pela instituição como seus e assumir passivamente uma demanda excessiva de atividades. O docente, na ânsia de ser reconhecido, prestigiado e aclamado pela comunidade acadêmica, intensifica seu ritmo de produção e incorpora ao seu dia a dia "mais trabalho" (DAL ROSSO, 2008DAL ROSSO, S. Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea. São Paulo: Boitempo, 2008.), a despeito do enorme dispêndio de energia física e psíquica que essa "escolha" acarreta. Revela, assim, um forte sentimento de pertencimento a uma organização sedutora, que habilmente o mantém envolvido por uma teia constituída a partir de um ideário produtivista.

Compreendemos a importância da identificação e da implicação do docente com seu trabalho, como também que o professor, ao vivenciar prazer na sua atividade laboral, chega a priorizar alguns compromissos da esfera profissional em detrimento de certas demandas da esfera familiar e social.

Podemos inferir que o docente, ainda que consiga desenvolver uma consciência crítica em relação às amarras impostas pelo gerencialismo, tende a não apresentar estratégias de resistência ao modelo vigente. As suas atitudes de enfrentamento são inexpressivas diante do processo de intensificação e precarização da sua atividade laboral. Esse trabalhador reconhece os dissabores da sua prática profissional, mas levanta atenuantes, lança mão de estratégias de racionalização, trazendo a paixão pela docência como um forte argumento para justificar a sua intensa rotina de trabalho. É comum a naturalização das adversidades, o que pode funcionar como uma armadilha, insensibilizando-o, imobilizando-o e contribuindo "{...} para tornar aceitável aquilo que não deveria sê-lo" (DEJOURS, 1999DEJOURS, C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 1999., p. 36). O docente, ao assumir tal atitude, pode dificultar a luta contra as pressões patogênicas do trabalho, pois o que é suportado não é enfrentado.

Verificamos que, frente a uma rotina frenética e desmobilizadora, permeada por um grande e diversificado rol de atividades acadêmicas, a tão salutar implicação no trabalho, por vezes, assume contornos de sobreimplicação (LOURAU, 2004LOURAU, R. Implicação e sobreimplicação. In: ALTOÉ, Sônia (Org.) René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: HUCITEC, 2004. p. 186-198. ). Nessa perspectiva, a dedicação exacerbada à docência pode ser compreendida como reflexo da captura da subjetividade dessa categoria de trabalhadores diante das novas demandas postas pela implementação dos princípios gerencialistas nas universidades.

O docente sobreimplicado, cooptado por essa lógica produtivista, quase não vive mais sem o trabalho intensificado; transforma-se, não raramente, em um algoz de si mesmo e de seus pares. Alterna sentimentos de prazer e empolgação com sentimentos de angústia e impotência no seu exercício profissional. Está imerso em um cotidiano laboral que não necessariamente produzirá números oficiais de afastamentos por problemas de saúde no trabalho, mas que, indiscutivelmente, revela-se potencialmente gerador de sofrimento e adoecimento.

Cabe ressaltar que, na conjuntura exposta, não há somente docentes resignados e adaptados à lógica gerencialista, embora o dia a dia dessa categoria acabe por favorecer posturas como as apresentadas nos relatos dos entrevistados desta pesquisa. Atitudes em contraponto à ideologia gerencialista - que escamoteia ou minimiza os problemas das organizações do trabalho, gerando sofrimento e adoecimento no ambiente laboral - também foram identificadas, apesar de menos frequentes e quase sempre tomadas individualmente. São enfrentamentos que sinalizam que a referida lógica, comumente internalizada e naturalizada, foi construída dentro de determinadas condições do contexto histórico, precisando, portanto, ser questionada e combatida.

Comungamos com Seligmann-Silva (2011SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez , 2011., p. 476) quando ela aponta a preservação do coletivo do trabalho como uma importante fonte de resistência, como uma proteção contra o estado de servidão. E, sobretudo, quando a autora sinaliza a importância da consciência de classe para "{...} identificar as armadilhas armadas sob a retórica da excelência {...}". Acreditamos que, apesar de a cultura da excelência se nutrir da fragilização e da dissolução do coletivo, a consciência de classe comparece como uma eficaz alternativa para a emancipação do trabalhador das teias do gerencialismo.

REFERÊNCIAS

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  • 1
    A pesquisa contou com financiamento do CNPq (Chamada CNPq/CAPES N º 07-2011) . A escolha dessas instituições ocorreu na direta dependência do que foi analisado nos dois primeiros anos da investigação, especialmente, dos dados extraídos do Relatório de Acompanhamento do REUNI (ANDIFES, 2010ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). Relatório de Acompanhamento do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais. Brasília: ANDIFES, 2010.). Seleção essa orientada pelo percentual de aumento do número de vagas nos cursos de graduação presencial no período 2006/2010, sendo as escolhidas as seguintes universidades com significativa oferta de vagas discentes: região Norte (UFT - 76%), região Centro-Oeste (UnB - 86%) e região Nordeste (UFMA - 54%).
  • 2
    O Estado-providência, também chamado de Estado de Bem-Estar, caracterizou-se por um Estado previdenciário e arbitral na relação capital e trabalho, com a concessão de "{...} direitos sociais de educação, saúde, transporte, moradia, garantias de emprego e seguro desemprego" (FRIGOTTO, 1995FRIGOTTO, G. Os delírios da razão: crise do capital e metamorfose conceitual no campo educacional. In: GENTILI, Pablo. (Org.). Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. Petrópolis, RJ, 1995. p. 77-108., p. 82).
  • 3
    "Qualis é o conjunto de procedimentos utilizados pela Capes para estratificação da qualidade da produção intelectual dos programas de pós-graduação". Disponível em: <http://www.capes.gov.br>. Acesso em: 23 abr. 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2016
  • Aceito
    28 Jul 2016
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