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Investigando as interações em sala de aula: Wallon e as vinculações afetivas entre crianças de cinco anos

Investigating interactions in the classroom: Wallon and affective bonds among 5-year old children

Resumos

Na psicogenética de Henri Wallon a dimensão afetiva ocupa lugar central, tanto do ponto de vista da construção da pessoa quanto do conhecimento. Defendese, assim, que o fortalecimento dos vínculos entre criança e adulto contribui efetivamente para os processos de ensinoaprendizagem. A pesquisa empírica envolveu 24 crianças de cinco anos e duas professoras de uma escola pública do município de Curitiba/PR. Cinco instrumentos foram utilizados: desenhos com relatos; filmagens livres; jogo Gira-gira; emocionômetro; e autoscopia (autoanálise das imagens videogravadas de professoras e de alunos, acompanhada de entrevista). Os dados foram organizados em categorias e analisados qualitativamente. A afetividade manifestou-se nos vínculos que as crianças formam com os adultos, os pares, a natureza. Características importantes do estágio do personalismo (sedução, oposição e imitação) foram observadas. A qualidade das interações mostrouse determinante na condução das atividades de aprendizagem.

Afetividade; Interação; Relação Professor-aluno


In Henri Wallon's psychogenetic model, the affective dimension occupies a central role concerning the development of one's self and knowledge. As such, we sup port the idea that the strengthening of bonds between child and adults effectively con tributes to teachinglearning processes. This empirical research involved 24 five-year old children and 2 teachers from a public school in the city of Curitiba (Paraná/Brazil). Five instruments were used: drawings with reports, free filming, "turna-round" game, "emo tion meter", and self-scope (self-analysis of videotaped images of teachers and students, followed by interview). Data were organized in categories and then analyzed qualitative ly. Affection was observed in the children's bonds with adults, their peers, as well as nature. Important characteristics of the stage of personalism (seduction, opposition and copying) were also present. The quality of interactions appeared to have a determining impact in the carrying out of the learning activities.

Affection; Interaction; Teacher-pupil Relationship


ARTIGOS ARTICLES

2. A EDUCAÇÃO DIMENSÕES DO ENSINO E DA APRENDIZAGEM

Investigando as interações em sala de aula: Wallon e as vinculações afetivas entre crianças de cinco anos1 1 O presente artigo apresenta uma parte da dissertação de mestrado da segunda autora, realizada na Linha de Pesquisa Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano, da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, orientada pela primeira autora.

Investigating interactions in the classroom: Wallon and affective bonds among 5-year old children

Helga Loos-Sant'AnaI; Liege GasparimII

IDoutora em Educação pela Universidade de Campinas (UNICAMP); Professora do Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação e da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: helgaloos@yahoo.com.br

IIMestre em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). E-mail: gasparim7@hotmail.com

Contato

RESUMO

Na psicogenética de Henri Wallon a dimensão afetiva ocupa lugar central, tanto do ponto de vista da construção da pessoa quanto do conhecimento. Defendese, assim, que o fortalecimento dos vínculos entre criança e adulto contribui efetivamente para os processos de ensinoaprendizagem. A pesquisa empírica envolveu 24 crianças de cinco anos e duas professoras de uma escola pública do município de Curitiba/PR. Cinco instrumentos foram utilizados: desenhos com relatos; filmagens livres; jogo Gira-gira; emocionômetro; e autoscopia (autoanálise das imagens videogravadas de professoras e de alunos, acompanhada de entrevista). Os dados foram organizados em categorias e analisados qualitativamente. A afetividade manifestou-se nos vínculos que as crianças formam com os adultos, os pares, a natureza. Características importantes do estágio do personalismo (sedução, oposição e imitação) foram observadas. A qualidade das interações mostrouse determinante na condução das atividades de aprendizagem.

Palavras-chave: Afetividade; Interação; Relação Professor-aluno.

ABSTRACT

In Henri Wallon's psychogenetic model, the affective dimension occupies a central role concerning the development of one's self and knowledge. As such, we sup port the idea that the strengthening of bonds between child and adults effectively con tributes to teachinglearning processes. This empirical research involved 24 five-year old children and 2 teachers from a public school in the city of Curitiba (Paraná/Brazil). Five instruments were used: drawings with reports, free filming, "turna-round" game, "emo tion meter", and self-scope (self-analysis of videotaped images of teachers and students, followed by interview). Data were organized in categories and then analyzed qualitative ly. Affection was observed in the children's bonds with adults, their peers, as well as nature. Important characteristics of the stage of personalism (seduction, opposition and copying) were also present. The quality of interactions appeared to have a determining impact in the carrying out of the learning activities.

Keywords: Affection; Interaction; Teacher-pupil Relationship.

Introdução

Este artigo ajuda a fornecer respostas sobre o papel da afetividade no desenvolvimento humano, defendendo-se a análise desse aspecto como de suma importância na tarefa educativa em salas de aula. A afetividade vem sendo cada vez mais discutida e aceita como um dos importantes elementos desencadeadores do funcionamento cognitivo do ser humano. Assim, a qualidade das interações promovidas no espaço da sala de aula contribuirá, em grande medida, para levar o aluno ao desenvolvimento pleno de suas capacidades, sejam elas cognitivas, afetivas ou motoras. A intensificação das relações entre professor-aluno, as formas de comunicação estabelecidas, os aspectos afetivo-emocionais que se processam internamente ao indivíduo e permitem a construção de recursos para lidar com as situações da vida são processos que podem ser considerados alicerces da construção do conhecimento. E que, por isso mesmo, justificam a presente pesquisa.

O estudo se iniciou com a revisão de obras escritas, especialmente de Henri Wallon e de estudiosos desse autor, no intuito de fornecer subsídios para a temática da afetividade e de sua importância no desenvolvimento humano. Na sequência, procedeuse a uma pesquisa de campo, que foi delineada no sentido de buscar esclarecer alguns dos aspectos envolvidos nas interações entre adulto e criança na escola, incluindo os tipos de afetividade que se estabelecem e suas consequências. Assim sendo, os objetivos principais do estudo foram investigar como a qualidade das interações estabelecidas entre professor e aluno interfere nas situações de aprendizagem no contexto escolar, e pesquisar como a criança e o professor percebem, do ponto de vista da afetividade, tais interações.

A afetividade como base para o desenvolvimento na perspectiva de Wallon

A afetividade é um tema central na obra de Wallon. O autor apresenta a dimensão afetiva como ponto extremamente importante em sua teoria psicogenética, sendo que, para ele, o nascimento da afetividade é anterior ao da inteligência. Seus trabalhos apresentam grande abertura às emoções como constituição intermediária entre o corpo, sua fisiologia, seus reflexos e as condutas psíquicas de adaptação.

Sua teoria do desenvolvimento é eminentemente integradora: os processos cognitivos, afetivos e motores estão interligados, imbricados uns nos outros. A denominação em partes é simplesmente uma maneira didática para o entendimento de sua proposta. O estudioso dedicou grande parte de seus estudos para compreender o papel da afetividade, que inclui emoções, sentimentos e paixões como constituintes do ser humano. Lança explicações sobre o papel das emoções na vida, desmistificando a dicotomia razão e emoção:

O conjunto afetividade oferece as funções responsáveis pelas emoções, pelos sentimentos e pela paixão. Afetividade refere-se à capacidade do ser humano de ser afetado pelo mundo interno e externo, por sensações ligadas a tonalidades agradáveis e desagradáveis (ALMEIDA, 2010, p.26).

Chama-se a afetividade de "conjunto" por esta fazer parte de muitas situações que se integram e formam o indivíduo em sua totalidade. Afetividade é a "qualidade do fruto", na raiz da palavra. O termo "qualidade" abre um leque de possibilidades para designar o que nos afeta ou o que e quem afetamos, bem como a maneira como somos impactados por esses afetos.

De acordo com Wallon, os três campos funcionais – afetivo, motor, cognitivo – funcionam de forma integrada; a pessoa é o todo que integra esses campos, sendo, ela própria, um campo funcional (GALVÃO, 2010). É, portanto, a unidade do ser. Explicam Ferreira e Acioly-Régnier (2010), porém, que o desenvolvimento da pessoa como um ser completo não ocorre de maneira linear e contínua, mas apresenta movimentos que implicam integração, conflitos e alternâncias na predominância dos conjuntos funcionais. Ao longo dos estágios de desenvolvimento propostos pelo autor, os quais serão citados a seguir, ocorre uma alternância entre as forças do campo da afetividade e as do campo da cognição, em termos de prevalência. Porém, essa alternância de domínios funcionais não exclui a presença de conjuntos não dominantes, já que estes continuam interagindo entre si, formando a complexidade presente na personalidade da pessoa.

A afetividade está presente no sujeito desde o seu nascimento, sendo sua expressividade possibilitada por meio prioritariamente corporal, o que indica a satisfação ou não de suas necessidades de sobrevivência e daquilo que lhe traz agrado e desagrado. Nos primeiros anos de vida, constata-se também o desenvolvimento motor mais acentuado, pois é dessa forma que o ser humano dialoga com seu mundo externo, por meio de suas atividades corporais.

O conjunto motor, que possibilita os movimentos e a expressão da vida psíquica por meio do corpo, é o primeiro que precisa desenvolverse para possibilitar a sobrevivência, mas ele continua a permear todas as idades. Para Wallon (1941/2007), duas dimensões do movimento fazem parte do desenvolvimento precoce infantil: uma é a expressiva, a das emoções, e a outra é a instrumental, que envolve o movimento e a ação direta sobre o meio físico, concreto.

O pensamento também vai, gradativamente, construindo-se, sendo sustentado pelo movimento. O conjunto funcional cognitivo oferece um conjunto de funções para lidar com o meio e resolver as situações da realidade. É responsável pela aquisição, transformação e manutenção do conhecimento por meio das representações, noções, ideias, memória, criatividade, imagens, imaginação; enfim, pelas funções psicológicas superiores que levam o indivíduo a interagir com o seu meio de forma eficiente. À medida que o sujeito se desenvolve, as necessidades vãose tornando mais intelectualizadas, porém nunca deixarão de existir nessa totalidade.

Os estágios do desenvolvimento e sua importância para a prática educativa

O desenvolvimento é um processo constante. Não obstante, Wallon (1942/2008) construiu uma sequência de estágios para buscar explicar, em mais detalhes, como o indivíduo se relaciona com o ambiente e com os outros humanos, e, finalmente, se constitui como pessoa, o último e mais completo dos conjuntos funcionais de sua teoria. Os estágios propostos por ele são denominados impulsivo-emocional; sensório-motor; projetivo; personalismo; categorial; puberdade-adolescência;e adulto. Os referidos estágios obedecem a uma sequência temporal que representa a lógica da construção do psiquismo humano, sendo que estes não implicam apenas acréscimo de atividades mais coordenadas, mais complexas, mas, sim, uma reorganização qualitativa que abrange a maneira como os conjuntos funcionais são articulados.

O princípio da alternância funcional, postulado por Wallon (1942/2008), explica por que as dimensões da afetividade e da inteligência se revezam ao longo dos referidos estágios. Nos estágios impulsivoemocional, personalismo e puberdade-adolescência, predomina o movimento "para si mesmo" (força centrípeta), havendo uma maior prevalência do conjunto funcional afetivo. Já nos estágios sensório-motor, projetivo e categorial, nos quais o movimento se dá "para fora", para o conhecimento do outro (força centrífuga), o predomínio é do conjunto funcional cognitivo (FERREIRA; ACIOLYRÉGNIER, 2010). Estilos particulares de comportamento acabam, assim, caracterizando cada um dos estágios.

O conhecimento sobre a organização dos estágios amplia as possibilidades na prática pedagógica em sala de aula, pois um domínio maior sobre as fases do desenvolvimento fornece esclarecimentos sobre o funcionamento psicológico da criança e do adolescente. A identificação das características de cada estágio, por parte do professor, poderá proporcionar um melhor planejamento das condições de ensino e a elaboração de atividades que promovam um entrosamento mais produtivo entre os conteúdos da escola e as necessidades da pessoa em desenvolvimento, tornando a aprendizagem mais prazerosa e com significado individual. O conhecimento dos estágios fornece subsídios ao educador para um entendimento sobre a interrelação entre as interações mútuas/recíprocas entre afetividade e inteligência, bem como da predominância de cada um desses campos, de maneira que possa investir em atividades ora mais cognitivas, ora mais de diálogo e de relacionamento interpessoal.

Manifestações emocionais da criança de cinco anos: o estágio do personalismo

Dentre os estágios de desenvolvimento postulados por Wallon, o presente trabalho concentra-se no estágio do personalismo, que, para o autor, caracteriza as crianças entre os três e os seis anos. Nesse período, são percebidas muitas modificações em seu comportamento, as quais contribuem decisivamente para a formação da personalidade e para o desenvolvimento da pessoa (o conjunto funcional integrado).

Mesmo ocorrendo transformações intelectuais importantes, o interesse da criança está bastante voltado para as relações sociais, principalmente para o contato com as pessoas ao seu redor, as quais são importantes parceiros nos processos de autoafirmação. Assim sendo, consciência de si a partir do outro é a construção mais importante desse momento. A referência do outro, por meio das ações de oposição, sedução e imitação, é importante para a constituição do eu psíquico (WALLON, 1941/2007). As crises de oposição ao adulto, buscando a independência progressiva do eu, ajudam a criança a se fortalecer como um indivíduo que busca autonomia. A criança quer fazer prevalecer suas vontades e, por isso, é, muitas vezes, desobediente, fazendo o contrário do que os adultos impõem.

Porém a criança, obviamente, ainda necessita da admiração e do modelo do outro para completar sua construção e ampliar suas competências. Nesse sentido, outro fator marcante, nesse período, é a imitação, que faz com que a criança procure modelos para a sua constituição. Já que ela está construindo e buscando afirmar a sua identidade, necessita de variadas fontes de identificação. Wallon atribui à imitação uma origem subjetiva. Haveria uma tendência natural de modelar-se aos outros. Esse colocarse no outro e colocar o outro em si – que é o exercitar da alteridade – teria como consequência atitudes ou gestos que dão origem aos sentimentos. O processo da imitação automática ou espontânea não se dirige a todas as pessoas e objetos, mas sim àquelas pessoas que lhe despertam sentimentos, desejos de participação efetiva, isto é, afetividade.

A autoestima e o autoconceito são conjuntos de recursos internos que dão subsídios para a elaboração do sentido do "eu" (LOOS; CASSEMIRO, 2010). A criança, desde muito pequena, está inserida em grupos que constituem o seu meio social, e esses espaços são oportunidades de comparações e feedbacks entre pares e adultos, os quais geram elementos que vão construindo seu self e sua identidade. Portanto, os pares também são elementos significativos nessas construções, pois são meios de avaliação externa, bem como base para a autoavaliação de suas conquistas.

Por isso, as atividades grupais são muito importantes para o desenvolvimento individual nessa fase, pois tudo o que acontece ao redor da criança é considerado e, então, agregado ou não, na formação do seu eu. É um período em que o mundo interfere amplamente na constituição interior do sujeito, como confirma Gulassa:

O grupo solicita que a criança continuamente se perceba e compare suas semelhanças e suas diferenças com os outros. Essa experiência a leva a tomar consciência de si como pessoa, a saber distinguir e classificar a si própria em relação aos outros (GULASSA, 2004, p.102).

O trabalho em grupo proporciona situações em que a criança lidará com momentos de conflito e de cooperação. A criança aprende com outras crianças a partilhar, a resolver mais rapidamente um desafio, a conquistar seu espaço no grupo e, desde muito cedo, a importância das atividades realizadas em equipe. Identifica-se e pertence aos grupos com afinidades e identidade cultural. As crianças comparam desenhos, trocam ideias, ajudam e pedem ajuda para concluir as tarefas solicitadas.

Aqui fica clara a relevância de o professor conhecer as etapas pelas quais uma criança atravessa, pois, à sua frente, não há somente um aluno, mas uma pessoa construindo-se e estruturando seu pensamento, sua afetividade, sua identidade e sua autonomia. É a hora em que o indivíduo começa a refletir a respeito das suas diferenças em relação ao outro e ao mundo. A oposição marcada pelo conflito pode, assim, ser vista como geradora de crescimento individual, considerando-se que, para manter sua posição, há de se ter uma argumentação que sustente um dado posicionamento.

E é nesse sentido que se fazem relevantes estudos tais como o que aqui se apresenta, o qual se propõe a investigar como as interações e a afetividade estabelecidas entre professor e aluno interferem nas situações de aprendizagem e de desenvolvimento propiciadas pelo contexto escolar.

Metodologia

A presente pesquisa tem cunho qualitativo, caracterizando-se como um estudo exploratório, e a coleta de dados foi realizada no próprio espaço escolar. Participaram da pesquisa as professoras e os 24 alunos de uma turma de Educação Infantil, na faixa etária dos cinco anos, em uma escola pública do município de Curitiba/PR que oferece turno integral. A escolha dessa faixa etária se deu pelo fato de as crianças, nesse período, estarem vivenciando o estágio do personalismo, de acordo com a teoria de Wallon, em que há uma forte preponderância da afetividade. Tendo-se como premissas básicas do estudo que a Educação Infantil deve oportunizar o desenvolvimento integral da criança, incluindo sua dimensão interacional-afetiva, e que esta é fundamental para que as demais aprendizagens encontrem espaço, julgou-se que analisar as interações em um grupo de crianças dessa idade seria promissor para se apreender um pouco mais acerca de como se definem os contornos de sua identidade na interface com os demais aspectos que configuram seu ambiente.

Portanto, criou-se a oportunidade de observar e identificar, em ações, palavras e registros das crianças que se encontram na fase do personalismo, manifestações de oposição ao adulto, de imitação e de sedução, bem como de busca pela admiração das professoras e pessoas com quem possuem vínculos e se situam como referências para essas crianças. Buscou-se também precisar se essas manifestações mostram-se como elementos significativos no engajamento das atividades propostas em sala de aula.

Cinco tipos de instrumentos foram utilizados: (1) desenhos com relatos; (2) emocionômetro; (3) jogo Gira-gira; (4) filmagens livres; e (5) autoscopia. Cada uma dessas categorias será melhor explicitada a seguir.

Como o objeto do estudo é observar as relações entre professor e aluno, bem como as linguagens emocionais que se manifestam nessa interlocução, foi escolhida a técnica do desenho da dupla educativa (gráfica e verbal), sistematizada por Ocampo e Oris (2000). Solicita-se que a criança desenhe uma pessoa que aprende e uma que ensina; em seguida, sugerese que ela formule uma história envolvendo esses dois personagens, a qual pode ser oral ou por escrito, dependendo do nível da aquisição da escrita em que a criança se encontra. Pretendeu-se, por meio da análise dos desenhos e dos relatos feitos pelas crianças, desvelar componentes da área afetiva dos sujeitos em questão, assim como o processo simbólico representado no grafismo. Foram três os desenhos solicitados no presente estudo, cujas sessões se deram em dias alternados, com as seguintes consígnias: (1) desenhar sua sala de aula; (2) desenhar alguém ensinando e alguém aprendendo; (3) desenhar uma situação em que se sente feliz ("fico feliz quando...").

O emocionômetro é um instrumento que auxilia as crianças a verbalizarem as emoções advindas de situações vivenciadas no cotidiano da escola, oportunizando o autoconhecimento e o reconhecimento do que o outro sente (alteridade), aprendendo a mostrar empatia ao ouvir os sentimentos, as vontades e os desejos do outro. Não se sabe ao certo sua origem, mas se trata de uma técnica amplamente utilizada, em variadas versões, normalmente, na forma de dinâmica de grupo. É base de uma atividade que, além de aprofundar as relações interpessoais, visa à preparação emocional para a elaboração de estratégias necessárias para enfrentar as situações reais envolvendo as quatro emoções básicas: alegria, medo, raiva e tristeza. O adulto responsável pela atividade deverá compreender algumas orientações na condução do emocionômetro, como alertam Gottman e De Claire:

Perceber a emoção da criança; reconhecer a emoção como uma oportunidade de intimidade e transmissão de experiência; escutar com empatia, legitimando os sentimentos da criança; ajudar a criança a nomear e verbalizar as emoções; impor limites e, ao mesmo tempo, ajudar a criança a resolver seus problemas (GOTTMAN; DE CLAIRE, 1997, p.80).

O trabalho com o emocionômetro foi proposto com a intenção de verificar se essa preparação emocional deixaria os alunos mais seguros nas interações e envolvidos nas atividades realizadas em sala de aula, bem como analisar se o espaço criado para o trabalho com os conflitos internos e de natureza interpessoal poderia desencadear um ambiente mais acolhedor para as atividades de aprendizagem.

Os jogos e brincadeiras são meios oportunos de se levar a criança a desenvolver atividades que a deixem à vontade, apresentando menos interferências em sua análise. O jogo, por ser mais livre de pressões e avaliações do que outras atividades realizadas na escola, oportuniza a criação de um clima adequado para a investigação e a busca de soluções para as questões que surgem nas brincadeiras. O jogo selecionado para a presente pesquisa, o Gira-Gira, está de acordo com a idade de cinco anos e tem como objetivo montar os nomes de animais. A intenção da atividade, de acordo com o objetivo geral da pesquisa, é verificar as comunicações que se estabelecem entre professor e alunos por meio da explicação das regras e condução do jogo; ainda, se a forma de interação entre o professor e alunos interfere no interesse dos alunos na tarefa a ser executada e na relação com o objeto de conhecimento – no caso, a alfabetização – nos desafios que se apresentam.

A filmagem livre foi escolhida como uma das formas de registro, nesta pesquisa, com o objetivo de captar momentos em que as crianças estavam em interação com seus professores e colegas na sala de aula ou em outros espaços da escola, em atividades que fazem parte do próprio contexto da turma em seu funcionamento cotidiano (mesmo aquelas que não foram propostas especificamente para a pesquisa) e momentos livres. Esse procedimento também foi utilizado como base para a autoscopia, técnica detalhada a seguir.

Os momentos de coleta dos dados referentes à técnica da autoscopia foram coletivos e individuais: primeiramente, coletivos, durante as filmagens livres e de outras atividades, e, em um segundo momento, individuais, quando o participante em questão era chamado para fazer a confrontação da imagem de si na tela. Essa técnica consiste em realizar filmagens do sujeito de pesquisa, individualmente ou em grupo e, posteriormente, submetê-lo à observação do conteúdo filmado para que exprima comentários sobre ele. Tassoni assim explica a finalidade da autoscopia: "O material videogravado é submetido a sessões de análise a posteriori da ação e possibilita a apreensão do processo reflexivo do ator (ou atores), através de suas verbalizações durante a análise das cenas videogravadas" (TASSONI, 2008, p.73).

As professoras da classe, então, assistiram a algumas videogravações visando à reflexão sobre sua prática pedagógica. Na autoscopia, o professor deve comentar sobre sua postura, consistindo em um processo de autoavaliação. A entrevista com as professoras constituiu parte da técnica da autoscopia, buscando explorar a temática em questão no presente trabalho, tendo as seguintes questões sido apresentadas às professoras antes da análise das cenas: (1) Como você se relaciona com seus alunos?; (2) Quais são os principais desafios da docência em sala de aula?; (3) Você acha que a qualidade das vinculações afetivas entre professor e aluno interfere na aprendizagem dos alunos?; (4) Quais são as formas pelas quais você demonstra afetividade para com seus alunos?; Você acredita que a forma de falar, agir e olhar o aluno poderá interferir no engajamento dele nas atividades propostas?; (6) Você acredita que se o professor procurar "ler" a linguagem emocional do aluno poderá ajudá-lo e, assim, voltar a atenção dele às atividades propostas?; (7) Quais emoções você acha que estão presentes na relação entre aluno e professor? E entre as crianças? E entre o aluno e o conhecimento?; (8) Você irá assistir a algumas cenas de atividades que foram filmadas e eu gostaria que você fizesse a avaliação de sua própria postura. Pode ser?

Já no caso dos alunos, a autoscopia envolveu as seguintes questões, que tiveram o objetivo principal de situar as crianças em relação à atividade que seria analisada: (1) Você se lembra desse dia?; (2) O que vocês estão fazendo?; (3) Você gostou de fazer isso?; (4) O que fez você gostar? A professora sempre faz assim?; (5) O que você acha?; (6) O que você sente?

Faz-se importante ressaltar que o projeto deste estudo foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade à qual está vinculado. Além disso, os demais cuidados éticos foram considerados, os pais (ou responsáveis) pelas crianças foram informados e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando seus filhos a participarem. Visando a resguardar o anonimato dos participantes, seus nomes verdadeiros foram substituídos por pseudônimos, os quais serão aqui mencionados, quando necessário.

Análise dos resultados

O tratamento inicial dos dados foi orientado pela análise temática geral, constituindo-se por três etapas, conforme proposta por Minayo (2000): (1) pré-análise: várias sessões foram realizadas em que o material videogravado foi assistido e transcrito; (2) exploração do material: as principais informações, tendo em vista os objetivos do estudo, foram categorizadas em expressões-chave de acordo com o conteúdo predominante, tomando-se o cuidado de não desvinculá-las de seu contexto de compreensão; (3) tratamento dos resultados obtidos e interpretação: consiste em destacar significados explícitos e implícitos no material, relacionando-os com o referencial teórico que fundamenta a pesquisa em questão.

Essa análise permite, basicamente, realizar operações de desmembramento do conteúdo bruto em unidades (categorias), segundo reagrupamentos analógicos, buscando descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação e preocupando-se com a frequência de aparecimento de tais núcleos na amostra em questão.

Quanto ao instrumento desenho, também se assumiu uma postura inicialmente mais descritiva das expressões gráficas dos participantes, sendo que, depois, contextualizando-se com os relatos, é que se permitiram algumas interpretações, buscando-se construir sentidos quanto à identificação dos espaços considerados importantes pelas crianças na escola e situações de interação significativas representadas por elas.

Já no que diz respeito à autoscopia, a técnica requereu alguns cuidados em seus procedimentos de análise, conforme explicitados por Tassoni (2008). Primeiramente, dentre as sessões de filmagem livre, foram selecionados conjuntos de cenas que se mostraram apropriadas para a aplicação da técnica, tendo sido sua aplicação também videogravada. A análise das cenas e a discussão com os sujeitos escolhidos para observar e comentar sua atuação (as duas professoras e as duas alunas da turma) basearam-se na identificação de momentos significativos de interação estabelecidos com e entre as crianças, bem como nos possíveis impactos de seu comportamento no âmbito da afetividade das pessoas envolvidas e, ainda, buscando-se inferências sobre a relação destes com a aprendizagem.

1. Desenho com relatos

Conforme já descrito, os desenhos das crianças receberam um título, bem como foram acompanhados de pequenos relatos feitos por elas. As categorias criadas a partir do material gráfico e verbal representam os tipos de interação que se mostram importantes para as crianças participantes do estudo. O gráfico a seguir (FIG. 1) indica a frequência com que os registros dos participantes, classificados de acordo com as categorias mencionadas na legenda, aparecem no decorrer do estudo, tendo sido avaliado o instrumento desenho em suas três modalidades. A base para o cálculo da porcentagem que representa cada categoria em relação ao todo foi o total de vezes em que os participantes da pesquisa apareceram em cada categoria, considerandose os três desenhos:


Verifica-se que, de uma forma geral, consideradas em um primeiro momento todas as manifestações gráficas dos participantes, obtevese maior frequência nos tipos de interação que se estabelecem na escola com os adultos (principalmente com as professoras); com o adulto na família; por meio de brincadeiras; em contato com a natureza; em situações de aprendizagem. Com menor freqüência, apareceram interações com os amigos (par a par) e na relação consigo mesmo. Uma segunda análise foi empreendida, agora considerando cada modalidade de desenho realizada, buscando-se os eixos de significação que emergiram no material gráfico:

1.1. Desenho "sala de aula"

No primeiro desenho, a "sala de aula" foi apresentada como: o ensino formal dos conteúdos escolares; as brincadeiras com os colegas; a relação com a pesquisadora; a escola. Sob a denominação "escola", apareceram registros (34%) de outros espaços na escola que consideram importantes no sentido de propiciar interações significativas, além da sala de aula: o pátio; o parque; o caminho da escola; e cenas de situações diversificadas de aprendizagem: as professoras ensinando artes; poesia; desenho; pintura; massinha; joguinho; a família levando-os para a escola. Fica enfatizada, nos desenhos, a escola como espaço de aprendizagem, tendo o adulto como sua principal referência, o norteador das situações e atividades da escola. As crianças aparecem sorrindo e algumas escritas apresentam elementos afetivos como "beijo pesquisadora".

Os desenhos de situações formais de ensino são registrados com as professoras da turma e pesquisadora em uma posição hierárquica, que sugere poder: adulto maior que os alunos; alunos sentados e professoras em pé. Os desenhos trouxeram o ensino de diversos conteúdos escolares: alfabeto, artes, ensaio da festa, desenho, números, poesia na fala das crianças.

As brincadeiras e as situações formais de ensino, somados, perfazem 58% do total dos desenhos da turma. A interação acontece por meio de brincadeiras entre as crianças, entre seus pares, e aparecem, nos desenhos, elementos significativos, simbolizando sentimentos: coração, sorriso no rosto, crianças de mãos dadas.

1.2. Desenho "Alguém ensinando e alguém aprendendo"

Neste segundo momento de desenho, observou-se que 96% das crianças apontavam um adulto como sendo a pessoa ensinante no processo de ensino-aprendizagem: as professoras, a pesquisadora, alguém da família. De maneira geral, os registros apontaram para as atividades de aprendizagem com os conteúdos formais escolares, construção de princípios éticos de convivência e a relação com a natureza. Trata-se, na verdade, de conteúdos que perfazem a proposta pedagógica da escola. A relação com a natureza ficou muito destacada em toda a pesquisa de campo, provavelmente, por se tratar de conteúdo do último bimestre que estava sendo trabalhado em toda a pré-escola. Em um único desenho, aparece uma criança colocando seu amigo como alguém ensinante e outra criança como aprendente (4%).

Conforme já destacado, Wallon (1942/2008) enfatiza a imitação, a sedução e a oposição no estágio do personalismo. Nesta etapa da pesquisa, já foram observados, nos registros, elementos que remetem a esses três fatores, importantes para a constituição do eu psíquico. A vinculação das crianças com as professoras é demonstrada nos desenhos enfatizando alguns aspectos presentes nas interações entre elas: com a professora Letícia (do turno da manhã) há menos indicações nos desenhos que com a professora Manoela (do turno da tarde).

1.3. Desenho "Eu fico feliz quando..."

Nesta etapa, notouse que 38% dos registros estavam relacionados ao contato com a natureza. No bimestre em que a pesquisa de campo foi realizada, o planejamento da pré-escola estava direcionado ao ambiente, de maneira geral. As crianças expressaram alguns dos momentos vivenciados e respectivos sentimentos de felicidade que se afirmam com tonalidades agradáveis em relação ao meio e à natureza. Os desenhos apresentavam símbolos gráficos (coração, por exemplo), expressando amor aos animais, aos amigos, às professoras, às plantas, aos astros.

Outro fator significativo expresso nos desenhos foram as brincadeiras, todas relacionadas com o grupo de amigos. Quase sempre aparecem três crianças ou mais nos desenhos. A consígnia solicitada predispunha para uma colocação individual, porém, mesmo quando faziam menção a si mesmos, na maior parte das vezes, inseriamse em um grupo.

2. Emocionômetro

O emocionômetro foi trabalhado somente no período da tarde, já que foi a professora Manoela, responsável por esse período, que se disponibilizou a explorar o instrumento. Após a explicação da dinâmica de funcionamento da atividade, as crianças demonstraram grande entusiasmo. Fizeram questão de escrever seus nomes nas tiras de cartolina, com muito capricho, e escolheram um lugar na sala para fixar o quadro de feltro. Na primeira vez, colocaram seus nomes ao lado da tarjeta que indicava a emoção alegria, e quem desejou compartilhou com a turma o porquê de estar sentindo alegria. Nas vezes subsequentes, os alunos passaram a variar os sentimentos que buscavam expressar, utilizando as demais tarjetas, que indicavam medo, raiva e tristeza.

Em um dos dias de coleta, foi realizada uma atividade em que se colocou uma seleção de músicas instrumentais que constam no CD Sentir a música (guitarra, piano, trompete, acordeão e flauta), o qual acompanha o instrumento emocionômetro, em sua versão utilizada nesta pesquisa. As músicas buscavam refletir as quatro emoções básicas (alegria, tristeza, medo e raiva), e as crianças as ouviram e foram dizendo qual emoção estava sendo representada em cada uma. Dessa forma, as quatro emoções básicas ficaram evidenciadas, preparando as crianças para a atividade do emocionômetro, preparada para aquele dia, tendo sido também oportunizada a elas a percepção de que estímulos sonoros também podem desencadear emoções nas pessoas.

3. Jogo Gira-Gira

Para o jogo do Gira-Gira, a sala foi dividida em dois grupos, e se solicitou aos alunos a montagem da palavra indicada pelo desenho do animal que foi sorteado. Muitos deles ainda não estavam alfabetizados, mas a intenção era verificar como o grupo reagiria frente ao desafio e resolveria a situação. A professora explicou as regras do jogo, e as crianças ficaram atentas ao material colorido e aos bichos.

Constatou-se que, no grupo 1, dentre os alunos que tinham mais domínio sobre a escrita, alguns tomaram a frente na execução do jogo, enquanto os outros ajudavam os colegas. No grupo 2, somente uma criança dominava a escrita, enquanto as outras ficaram brincando com as letras móveis individualmente. Percebeu-se que os alunos que não conseguiam montar a palavra estavam dispersos, com brincadeiras entre eles. O grupo que estava ganhando a disputa comemorava a cada palavra construída. Observou-se, por meio da postura dos alunos, a expressão de seus sentimentos em relação ao insucesso. Por exemplo, toda vez que a professora destacava o fracasso da equipe, Pedro abaixava a cabeça sobre a mesa.

O grupo 1 era mais coeso, envolvido, sendo que as crianças expressavam sentimentos de êxito a cada palavra concluída. A organização da equipe e a liderança por parte do aluno que possuía mais conhecimentos levavam as crianças em busca do resultado. Os mais avançados na alfabetização incentivavam a procura das letras que precisavam. Os que tinham menos conhecimento, mas reconheciam as letras pedidas, contribuíam com suas possibilidades. Porém, em uma das rodadas, a professora percebeu que ficou uma letra errada na equipe e realizou uma votação para a mudança de pontos, pois a equipe 2 demorou mais, mas escreveu certo. A maioria votou para que o ponto fosse para a equipe que escreveu corretamente. A equipe que estava ganhando não desanimou com o ponto perdido e voltou sua atenção para a próxima palavra. Na contagem final, a equipe vencedora expressou suas conquistas, e seus sentimentos ficaram claramente evidenciados: alegria, excitação, euforia. Já a equipe que perdeu expressou desânimo, raiva, falta de espírito coletivo, algo que necessita ser mais bem trabalhado entre as crianças desse grupo.

Nessa atividade, verificou-se a importância da qualidade nas interações do grupo como elemento incentivador para o engajamento nas atividades de aprendizagem. A obtenção do êxito em cumprir com o objetivo proposto no jogo desencadeou o espírito de coletividade para ir em busca das metas em conjunto com seus pares. A falta de liderança no outro grupo demonstrou que, sem um comando entre eles, a concretização do objetivo dificilmente seria alcançada. Dessa forma, constatou-se que o grupo 2 não se solidificou, e houve uma única vez em que chegou ao objetivo do jogo – a formação do nome do animal – porém, por meio de um esforço individual. A professora tentou sensibilizálos para a vantagem do trabalho em equipe, mas não houve acolhimento pelos alunos. Ficou aparente a decepção da professora em não conseguir ajudar a equipe que estava perdendo.

4. Filmagens livres

As filmagens foram realizadas em quase todo o tempo em que se desenvolveu a pesquisa de campo, ou seja, ao longo dos dois meses de contato com as crianças, excetuandose as aplicações dos desenhos. Foram gravadas as atividades planejadas pelas professoras e executadas nos dias de pesquisa na escola, as atividades propostas pela pesquisadora para a execução pelas professoras e três atividades realizadas pela pesquisadora com os alunos, totalizando dez sessões de filmagem. Foram acompanhadas e filmadas duas sessões de relaxamento, uma atividade "Jogo da forca"; uma atividade na horta; um ensaio para a festa de fim de ano; uma sessão de contação de histórias ("A casa sonolenta"); uma brincadeira "Passa anel"; o jogo "Gira-gira"; além de uma sessão de autoscopia com as professoras e uma com as alunas.

As filmagens mostraramse recurso inestimável para o registro e análise das interações vivenciadas pelos participantes durante a pesquisa. Foi possível, por meio delas, além de se visualizar uma sequência de ações e, aos poucos, configurar um perfil de interações nos dois períodos de atividade (manhã e tarde) do grupo pesquisado, organizar previamente as cenas para a realização da autoscopia, bem como as categorias a serem exploradas através desse instrumento.

5. Autoscopia

5.1. Autoscopia com as professoras

A partir do discurso das professoras, durante a observação das cenas filmadas, bem como de suas respostas às perguntas que lhes foram endereçadas, foram criadas quatro categorias principais de análise: (1) Relação entre professor e aluno; (2) Qualidade das vinculações afetivas; (3) Linguagem emocional em sala de aula; (4) Verbalização das emoções. A síntese dos resultados, por categoria, será descrita na sequência. Antes, acredita-se, vale a pena tecer alguns comentários acerca da atitude de ambas as professoras frente à tarefa.

As duas professoras mostraram posturas bem diferenciadas na autoscopia, concordando com aspectos que já haviam sido observados em sala de aula. Manoela se mostrou muito receptiva às imagens de sua atuação, prestou atenção em toda a filmagem e, de maneira descontraída, comentou: "Como estou gorda, hein?!"

Já Letícia, desde o início, pareceu atenta em organizar seus recursos internos para lidar com uma eventual crítica ao seu trabalho com os alunos. Percebeu-se, em sua postura, certa dificuldade em olhar para si mesma, de observar sua própria atuação em sala. A professora não assistia a uma cena inteira para somente então comentar; antecipava a filmagem, relatando a atividade e justificando, com muitos argumentos, seus comportamentos. Poder-se-ia supor, a julgar por sua postura defensiva, que talvez sua autoestima e autoconfiança estejam baixas devido a avaliações recebidas de outras pessoas. Cada professor tem sua própria trajetória, e o modo como se relaciona com o mundo e vivencia suas relações interpessoais influenciará sua relação com os alunos.

(1) Relação entre professor e aluno

A primeira pergunta feita às professoras sobre a relação entre professor e alunos trouxe elementos significativos para o entendimento das emoções e das interações entre os participantes desse grupo. Ambas as professoras afirmaram a importância do vínculo afetivo para o bom andamento do trabalho realizado e proposto aos alunos. Os sentimentos de amizade, confiança, segurança, por meio de limites bem delineados, foram os pontos fortes nas respostas às perguntas. A seguir, podese visualizar uma das respostas da professora Manoela sobre a relação entre professor e aluno:

Manoela:No dia a dia, a gente tem que criar uma amizade com as crianças. Eles têm que sentir uma confiança em mim, eu tinha dúvida do meu comportamento porque, às vezes, eu não conseguia ser firme com eles. O professor tem que ter amizade, brincar com a criança e, quando necessário, ter o pulso firme, nós não estamos aqui só para brincar.

Esse diálogo apontou alguns dos aspectos importantes quando se trata da relação entre professor e aluno. O professor sensível tem condições de ler seu aluno corporalmente e perceber, nessa linguagem, as vontades e necessidades dos seus alunos. O sentimento de confiança e a firmeza dos limites impostos às crianças são vias pelas quais, no cotidiano da sala de aula, o professor poderá dar continuidade às tarefas solicitadas. A afetividade se expressa pelo acolhimento do que o aluno traz e pela confiança em ter a liberdade de perguntar e resolver suas dúvidas.

Já a professora Letícia, mesmo parecendo muito preocupada em dar as respostas "corretas" às perguntas, foi fidedigna à sua postura em sala de aula. Demonstrou, em sua conversa, a dificuldade com o grupo de professores na escola e como isso estava interferindo em sua atuação em sala de aula:

Letícia: É essencial, né, a afetividade com as crianças. Só que, às vezes, a afetividade que a gente fala muito e, às vezes, confunde que uma atitude da gente é interpretada como falta de afetividade com as crianças. E para quem está no dia a dia, vendo, sabe que não é. Sabe que a gente tem um momento que a gente brinca, a gente senta, a gente canta com eles e tem afetividade.

O autoconhecimento e as relações interpessoais também são fatores importantes para o professor, pois, em seu grupo, espera um retorno positivo de sua atuação, a valorização do seu trabalho.

(2) Qualidade das vinculações afetivas

A qualidade das vinculações afetivas presentes na relação professor e aluno e as formas pelas quais são representadas podem ser identificadas e elencadas na entrevista às professoras quando questionadas sobre se a vinculação entre o professor e o aluno interfere no desencadeamento das atividades de aprendizagem. As professoras afirmaram que sim. A professora Manoela disse:

Manoela: Com certeza! Eu acho que em tudo. Se eles têm uma confiança em mim, um vínculo, eles gostam, eles vão ter mais coragem de perguntar, não vão ficar fechadinhos, com medo. O medo impede de perguntar para o professor, pois não sabem qual será a reação do professor.

Na fala da professora, apareceu o medo como estado que pode interferir no processo de engajamento nas atividades de aprendizagem. Para Wallon (1941/2007), as emoções possuem a função de mobilizar o próprio indivíduo e também mobilizar o outro. Nesse caso, se o professor amedronta o aluno, este não terá suporte para o engajamento na atividade.

A professora Letícia destacou como elemento principal da qualidade da vinculação as formas de externar a afetividade como a própria atenção do professor ao aluno, como expressa em seu comentário: "Às vezes, acontece da criança vir e você não dar aquela atenção naquele momento. E isso confunde. A afetividade vem junto com o cuidar, dar um abraço, um beijo, as regras, os limites, os combinados."

Além de sua própria avaliação em sala de aula, as professoras entrevistadas concordaram entre si quanto ao fato de o sentimento de confiança trazer segurança ao relacionamento entre professor e aluno.

A qualidade das vinculações também aparece na maneira como o professor se relaciona com o mundo como um todo, naquilo em que ele acredita e transpõe de sua vida pessoal para a escola. O professor, como todo ser humano, carrega em si um histórico de vida com todas as nuances afetivas, cognitivas, biológicas, sociais que o constituem – um ser em sua totalidade. O professor também já elaborou muitas relações em seu meio social e familiar para chegar ao adulto que é hoje e que está em sala de aula, atuante com seus alunos. Há uma trajetória de vida pessoal que é a biografia afetivo-cognitiva, que se reflete naquela profissional, teórica e prática, na escola, na faculdade, contínua, em serviço. Aquilo que ele construiu em sua jornada é a sua biografia, seus recursos identitários, e será considerado em sua postura e atuação no cotidiano escolar.

(3) Linguagem emocional em sala de aula

A linguagem emocional em sala de aula está presente de muitas formas, e o professor deveria estar atento às manifestações emocionais de seus alunos, pois, devido ao contato próximo e cotidiano, ele tem condições de ler e perceber o estado emocional, interferindo para que desenvolva melhor o aprendizado das crianças. A professora Manoela relata o que pensa a respeito das linguagens emocionais:

Manoela: Eu acho que sim, porque se você consegue identificar no gesto que eles não estejam bem naquele dia, você consegue elaborar uma atividade de uma forma diferenciada. Puxando mais aquela criança para contar o que está acontecendo, fazendo uma brincadeira diferente, deixando de fazer o que tinha planejado que, às vezes, você percebe que algumas crianças estão precisando de atenção. Ajuda bastante.

Segundo Mahoney (2004), o professor pode ler seu aluno: o olhar, a tonicidade, o cansaço, a atenção, o interesse são indicadores do andamento dos processos de aprendizagem. A professora Letícia relata abaixo esse indicador:

Letícia: Pelo olhar deles. Nesse ponto eu sou muito perceptiva. Percebo muito fácil quando a criança está triste. Quando eles não estão bem. Ele está muito quieto e ele não é assim. Com o tempo você vai aprendendo a conhecer as crianças. Ela está brincando, mas não é do jeito dela.

A técnica da autoscopia teve, como objetivo principal, coletar dados sobre a atuação das professoras em relação às interações e vínculos afetivos na sala de aula, bem como propiciar a confrontação de sua imagem na tela como oportunidade de reflexão acerca de sua postura. A linguagem emocional também ficou evidente na própria postura assumida pelas professoras diante da tarefa.

(4) Verbalização das emoções

Como foi dito anteriormente, o emocionômetro é uma ferramenta que o professor pode utilizar para criar um momento de verbalização das emoções e construção de posturas e atitudes que venham a ser benéficas para os alunos. Essa categoria foi criada, na autoscopia, pelo fato de a técnica ter sido aplicada aos alunos e de se desejar um feedback das professoras acerca do trabalho com o emocionômetro. A professora Manoela, que conduziu a atividade, relatou:

Manoela: Eu fazia com eles quando eles acordavam. Alguma coisa que eles se chateavam com os amigos iam lá e mudavam. Mas, quando estavam tristes, se tinha acontecido alguma coisa, eles não queriam contar. Aí eu não sabia se insistia para contar para ajudar ou deixava. Mas, eles gostaram, participaram bastante e é uma forma de avaliar como eles estão naquele dia. Eles adoraram fazer e eu acho bem gratificante e deveria ter em todas as salas. Poderia entrar na rotina na parte da manhã, eles fazem calendário, chamada, e já aproveitar e fazer. Eu acho bacana!

O diálogo e as atividades específicas em que os alunos têm a oportunidade de organizar, nomear e expressar suas emoções pode ser um dos caminhos para a tranquilidade necessária ao desempenho das atividades em sala de aula. Esse espaço criado pode vir a se tornar um diferencial de volta à calma em situações em que a elevação da temperatura emocional se mostrou presente.

5.2. Autoscopia com os alunos

A pesquisadora informou às alunas selecionadas, Bia e Juliana, que mostraria algumas filmagens para que elas assistissem e falassem sobre as atividades que apareceriam na tela, sobre seus comportamentos e seus sentimentos. A escolha das alunas se deu pela disponibilidade das crianças em interagirem com o grupo, com as professoras e com a pesquisadora. A partir da análise das filmagens das crianças nas atividades, bem como de seu discurso na autoscopia, foram criadas três categorias principais: (1) Interação entre a criança e os adultos; (2) Interação entre pares; e (3) Verbalização das emoções. A descrição dos resultados obedecerá à ordem das categorias:

(1) Interação entre a criança e os adultos

Explicou-se às alunas como seria a atividade: assistiriam às filmagens e conversariam com a pesquisadora. Bia se mostrou disponível, porém mexia seu corpo, demonstrando um pouco de ansiedade. A pesquisadora perguntou se ela se lembrava da atividade que foi filmada. E ela respondeu: "A Bia, o Neto, o Luca... e eu."

Bia falou, inicialmente, na terceira pessoa, e, depois, na primeira, para se identificar. Oscilava em sua linguagem quando se referia a si própria e aos outros, o que é uma das características da criança por volta dos três anos de idade, quando se inicia o estágio do personalismo.

A outra aluna, Juliana, que ficou bem concentrada, olhando a primeira filmagem, não comentou nada. A pesquisadora iniciou com uma pergunta para que a aluna participasse da atividade: "Você lembra desse dia?", ao que Juliana respondeu: "A gente estava fazendo feio."

O comentário estava relacionado ao modo como a sua equipe estava reagindo no jogo da forca. O seu grupo estava perdendo, e, em alguns momentos, os alunos gritavam e falavam palavrões. Bia também observou seus comportamentos inadequados de atuação naquela situação, e isso apareceu em sua fala. Enquanto assistia à atividade, Bia ficava mexendo continuamente o pé, demonstrando alguma ansiedade ao analisar suas ações. Fez então o comentário:

Bia: Estamos fazendo o que viu lá fora. A gente foi lá fora plantar as nossas flores. Quando a gente voltou a profe falou para a gente fazer a flor com aquele negócio de terra. E eu fiz uma borboleta e uma joaninha. Eu gostei de fazer porque eu gosto de desenhar em casa, na escola. Eu pergunto para minha vó se eu posso desenhar e ela deixa antes de eu dormir.

A aluna começou a rir quando viu que estava jogando terra sem a professora ver. A aluna comentou que estava fazendo a atividade porque gostava da pesquisadora. Nessa idade, a criança se utiliza de muitos meios para seduzir o adulto na busca pelo vínculo afetivo. É a demonstração de que o adulto é importante e está afetando a sua constituição como pessoa nos aspectos afetivo, cognitivo e motor.

Outra característica do estágio do personalismo é a oposição ao adulto, conforme salientado anteriormente. A crise de oposição existe para que um indivíduo possa se afirmar na configuração de uma pessoa única, buscando a independência do seu eu. Assim, em suas atitudes na escola, Bia demonstra, até de forma agressiva, essa diferenciação, que, às vezes, pode ser marcada por conflitos. É claro que a criança tem seus argumentos, mas, como a lógica da criança é diferente da do adulto, é, muitas vezes, avaliada como frágil.

(2) Interação entre pares

A interação entre pares na Educação Infantil é importante para

o desenvolvimento da linguagem, da criatividade, da convivência com outras crianças, do relacionamento no grupo. A aluna Juliana mostrou, em sua fisionomia, a alegria em se perceber na filmagem e pertencendo ao grupo de amigos. A pesquisadora perguntou, de maneira a iniciar a atividade:

Pesquisadora: Você já achou você na filmagem?'

Juliana:Sim, sim, sim. [Ela sorri o tempo todo, assistindo ao vídeo; mostra com o dedo que se localizou na cena].

Juliana:Nós estamos brincando de forca. Pesquisadora: Você gosta de forca?

Juliana: Nós estamos gritando "revolta" pra jogar de novo!... Sabia que Felipe ia sair da escola?

Pesquisadora: Como você ficou?

Juliana: Fiquei triste!

Juliana assistiu, bem concentrada, a toda a filmagem e só falou quando a pesquisadora perguntou. Ela sorriu quando sua equipe comemorou porque estava vencendo no jogo. A reação das crianças mostra, mais uma vez, a importância do grupo, as relações e vínculos que se estabelecem e contribuem para a formação de sua personalidade. O meio escolar, ao propor atividades que privilegiem trabalhos em grupos e atitudes de cooperação, permite à criança experimentar situações novas em que, ora ela pode ser protagonista, ora pode ser coadjuvante, e deve, em ambas as situações, aprender a lidar com os sentimentos advindos dessas circunstâncias. Em sua fala, Juliana voltou à questão da derrota de sua equipe e do sentimento de raiva enquanto a outra equipe comemorava:

Pesquisadora: O que aconteceu ali?

Juliana: Eu fiquei brava porque eles gritaram.

Pesquisadora: Você não gostou que eles ganharam ou que eles gritaram?

Juliana: Não gostei que eles gritaram. É ruim.

Era apenas uma brincadeira, mas as emoções envolvidas nela geraram aproximações e conflitos entre os alunos, enfatizando o papel do professor em lidar com essa turbulência em sala de aula. Uma maneira de tornar esse trabalho mais profícuo é propiciar a verbalização das emoções que estão emergindo, categoria que esteve presente nas filmagens e foi bem observada nas entrevistas da autoscopia.

(3) Verbalização das emoções

As verbalizações das emoções foram comentadas nas entrevistas de Juliana e de Bia, tendo em vista o trabalho com o emocionômetro. As crianças entenderam o procedimento da atividade e participavam, considerando divertido colocar seu nome no cartaz. A autoscopia demonstra que a atividade trouxe repercussões agradáveis para a aluna Juliana:

Pesquisadora: O que vocês faziam no emocionômetro?

Juliana: Colocava o nome. No feliz e no triste.

Pesquisadora: Por que você colocou no triste?

Juliana: Não lembro.

Pesquisadora: Depois você conseguiu mudar?

Juliana: Sim.

Pesquisadora: Você gostava de fazer o emocionômetro?

Juliana: Sim, eu achava legal.

Pesquisadora: Com quem você fazia o emocionômetro?

Juliana: Fazia com a Mariana. Era gostoso colocar o nome lá.

Bia relatou, com mais detalhes, a experiência a respeito da atividade. Nomeou as quatro emoções básicas trabalhadas no emocionômetro: alegria, tristeza, medo e raiva. Quando questionada sobre sua motivação para a atividade, respondeu que gostava de participar porque foi a pesquisadora que levou o emocionômetro para a sala de aula. A aluna compreendeu perfeitamente que o objetivo era colocar o seu nome no desenho que simbolizava o sentimento que melhor representava seu humor naquele dia, como se pode averiguar no diálogo abaixo:

Pesquisadora: Bia, você lembra do emocionômetro?

Bia: Sim!

Pesquisadora: Onde está?

Bia: Está na sala. E é como a gente fica.

Pesquisadora: Você gostou de fazer essa atividade?

Bia: "Eu tinha que colocar o nome no feliz, triste, medo e bravo. Porque eu sempre gosto de você e que você trouxe esse negócio para colocar o nome como está se sentindo hoje. Quando eu me mudar para a outra escola, mas eu vou sentir saudades de vocês e não vou poder ficar na escola de novo. E nas férias eu venho com a minha mãe se ela não for trabalhar.

A aluna relacionou a realização da atividade à qualidade das interações vivenciadas com aquele grupo, ressaltando o apreço pela pesquisadora e pelas demais pessoas da escola. Pode-se tomar tal dado como um dos indicadores da forte interrelação entre a qualidade dos vínculos afetivos e o engajamento nas situações de aprendizagem, temática explorada pelo presente estudo.

Discussão

Wallon atribui à criança um status de pessoa que deve ser entendida em cada momento próprio de desenvolvimento no qual se encontra. Tal posição walloniana implica repensar as práticas e as teorias em educação que colocam a criança em uma posição objetificante, e não como sujeitos de direito e de desejo (FERREIRA; ACIOLY-RÉGNIER, 2010). Nesse sentido, investigar a qualidade das interações estabelecidas entre os indivíduos que participam do contexto escolar e suas repercussões no nível da afetividade mostrase de suma importância. Interação significa "ação que se exerce mutuamente entre duas ou mais coisas, ou duas ou mais pessoas; ação recíproca" (FERREIRA, 2004, p.1.117). Disso se depreende que o homem tornase humano na interação com outro humano. Ou, como expressa Dantas (1992, p.107), "é na interação que o sujeito se constrói". E é nessa perspectiva que se situa o presente estudo, retomando conceitos importantes de Wallon relativos ao desenvolvimento humano e relacionandoos com o que pode ser observado na prática escolar.

Podese dizer que a afetividade é a qualidade pela qual afetamos e somos afetados nas interações que experienciamos (SANT'ANA; LOOS; CEBULSKI, 2010). Assim, ao se pesquisar aqui sobre afetividade, conseguiu-se captar justamente representações e vivências de interações consideradas significativas pelas crianças do grupo analisado. Por meio dos instrumentos escolhidos, várias informações articuláveis entre si vieram à tona, todas compondo facetas e mostras das diversas maneiras pelas quais somos, desde crianças, afetados pelas interações próximas. Em muitos momentos, foram percebidos elementos relativos à qualidade da vinculação dos alunos com seus pares: nos desenhos, além das imagens representadas, verificaram-se crianças buscando a opinião do colega sentado ao lado, emprestando lápis de cor. Nos jogos filmados em atividades livres, o espírito de coletividade também era intenso: o jogo da forca, o ensaio para festa de fim de ano, a brincadeira de "passa-anel".

O jogo gira-gira tinha, como um de seus objetivos específicos, ressaltar a postura e a linguagem da professora, e também o modo como esta poderia interferir no engajamento dos alunos na atividade. Verificou-se que uma das equipes trabalhou coletivamente. As lideranças surgiram, nesse grupo, representadas pelas crianças que estavam mais aptas à alfabetização, as quais utilizaram seus conhecimentos e organizaram a equipe em busca do objetivo a ser alcançado. O grupo que não conseguiu articularse foi o que não elegeu uma liderança, e cada um trabalhava individualmente. A professora, durante a autoscopia, questionou-se, ansiosamente, sobre a forma como ela explicou a atividade, e, como eles nunca haviam tido contato com aquele jogo, a explicação dada poderia ser um dos fatores influenciadores no fracasso de uma das equipes. Algumas considerações relativas a essa situação foram elencadas, por exemplo, a falta de preparo da professora para lidar com situações de conflito no grupo e consigo mesma, internamente. Um pouco mais de preparo emocional talvez pudesse conduzir a outros encaminhamentos, por exemplo, parar o jogo e dar um novo início, ou fornecer uma explicação diferente, ou propor uma nova estratégia de condução (jogar em pequenos grupos para que os outros observassem). Pode-se, a partir dessa experiência, inferir que as posturas e as formas de comunicação dos professores para com seus alunos interferem em seus desempenhos nas situações de aprendizagem.

A utilização do emocionômetro mostrou-se uma oportunidade de percepção das próprias emoções e sua verbalização, ajudando as crianças a se aproximarem do que acontece interiormente. Repercute na organização de atitudes e ações a partir da consciência do que se está sentindo. É um trabalho que pode iniciarse desde cedo, para aprender a se colocar no lugar do outro nesse diálogo intenso entre o sentir, o pensar e o agir – ou seja, o desenvolvimento da alteridade, da busca da qualidade nas interações.

A pouco e pouco e cada vez melhor, conseguem distinguir melhor os vários sentimentos. Além disso, devem aprender a reconhecer as próprias emoções. Isto significa: poder e ousar, admitir e aceitar que se está a experimentar uma determinada emoção. Isto implica: deixar existir o sentimento, não o esconder ou reprimir, mas vivê-lo plenamente (DEPONDT; KOG; MOONS, 2004, p.9).

Como se trata de uma atividade para ser realizada diariamente, não foi possível acompanhar os efeitos de sua aplicação no comportamento dos alunos; porém, as declarações da professora e das alunas que participaram da autoscopia sobre o emocionômetro mostraramse bastante positivas.

Muito embora tenha sido uma escolha "ousada" na pesquisa propor a autoscopia a crianças de cinco anos (não se encontram na literatura relatos de autoscopia aplicada a crianças tão novas), a experiência mostrouse interessante, já que apareceram indicativos claros de comportamentos característicos do estágio descrito pelo principal autor de referência deste trabalho, Henri Wallon. No caso das professoras, ambas reafirmaram a importância do vínculo afetivo para o bom andamento do trabalho realizado e proposto aos alunos. Destacaram como elemento principal da qualidade da vinculação afetiva as formas de externar a afetividade, como a própria atenção do professor ao aluno, e que a confiança mútua traz segurança ao relacionamento. A qualidade das vinculações também depende da maneira como o professor se relaciona, naquilo em que ele acredita e transpõe de sua vida pessoal para a escola.

Considerações finais

Já se reúnem vários elementos, tanto práticos quanto teóricos, para se valorizar o papel da afetividade no desenvolvimento e na educação. Porém, como afirmam Ferreira e Acioly-Régnier (2010), apesar de sua premência e importância, ainda não se conseguiu estabelecer um corpo abrangente e consistente de ações educativas que permita um enfrentamento desse desafio, permanecendo-se no nível de tentativas e projetos de intenções. Segundo tais autores, entre as causas que estão na raiz dessa dificuldade de lidar adequadamente com a problemática está o fato de não se dispor de modelos integrais de compreensão do ser humano pela reflexão pedagógica. É preciso ainda um grande esforço para vencer as tentações do reducionismo bastante comum nos campos educativo e psicológico.

Nesse sentido, a presente pesquisa, apesar de ser circunscrita a um grupo pequeno de sujeitos, soma-se a outras que vêm buscando combater o reducionismo e salientar o papel da afetividade nas ações pedagógicas, repensando o papel das interações harmônicas e adequadamente conduzidas. Foram nítidos os indicadores de como as relações que a criança estabelece com o adulto são referenciais significativos para a elaboração do seu eu, de sua personalidade. A análise do modo como essas interações ocorrem é importante para que os educadores percebam o significado dessa maneira infantil de operar e, consequentemente, de se construir. Os educadores, tendo em mente que se tornam referência para seus alunos, terão melhores condições de medir suas palavras, suas atitudes e comportamentos. E, quanto mais lúcidos estiverem quanto aos aspectos significativos do desenvolvimento dos alunos, melhores possibilidades apresentarão de intervenção e mediação da ação educativa em sala de aula, com base em um referencial mais integrado que lhes permita organizar melhor o ambiente, suas ações e antever formas mais efetivas de interlocução com as crianças e adolescentes, pessoas em desenvolvimento.

NOTA

Contato:

Universidade Federal do Paraná

Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação

Rua General Carneiro, 460

Edifício Dom Pedro | 4º andar

CEP 80060150

Curitiba | PR | Brasil

Recebido: 24/08/2012

Aprovado: 19/08/2013

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  • 1
    O presente artigo apresenta uma parte da dissertação de mestrado da segunda autora, realizada na Linha de Pesquisa Cognição, Aprendizagem e Desenvolvimento Humano, da Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná, orientada pela primeira autora.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      24 Ago 2012
    • Aceito
      19 Ago 2013
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