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Análise do processo de declaração de morte encefálica e seu impacto na doação de órgãos em um centro de referência em trauma

RESUMO

Objetivo

Caracterizar os processos de diagnóstico de morte encefálica e doação de órgãos em um centro de referência de trauma.

Métodos

Estudo observacional e transversal com pacientes notificados com morte encefálica em um centro de referência de trauma. Os dados foram obtidos por meio da coleta de prontuários e formulários de declaração de morte encefálica.

Resultados

Foram notificados com morte encefálica 159 pacientes, com prevalência do sexo masculino (82,6%), adultos jovens (97,61%) e vítimas de traumatismo craniencefálico (93,7%). A mediana do intervalo total de tempo para o diagnóstico de morte encefálica foi de 20,75 horas, sem diferença entre doadores de órgãos e não doadores. Tivemos intervalos de tempo excessivos na declaração de morte encefálica, mas sem efeito estatístico no número de doações de órgãos.

Conclusão

Foi baixa a eficácia na declaração de morte encefálica com base em intervalos de tempo mais longos, sem impacto na doação de órgãos.

Morte encefálica; Coma; Obtenção de tecidos e órgãos; Lesões encefálicas traumáticas; Ferimentos e lesões

ABSTRACT

Objective

To characterize the processes of brain death diagnosis and organ donation in a reference trauma center.

Methods

Observational and cross-sectional study with patients notified with brain death at a reference trauma center. Data were obtained through the collection of medical records and brain death declaration forms.

Results

One hundred fity-nine patients were notified with brain death, mostly male (82.6%), young adults (97.61%) and victims of brain traumatic injury (93.7%). Median of the total time interval for the diagnosis of brain death was 20.75 hours, with no difference between organ donors and non-donors. We had excessive time intervals on brain death declaration, but without statistical effect on organ donation numbers.

Conclusion

We had low efficacy in brain death declaration based on longer time intervals, with no impact on organ donation.

Brain death; Coma; Tissue and organ procurement; Brain injuries, traumatic; Wound and injuries

INTRODUÇÃO

A morte encefálica (ME) pode ser definida como a manifestação clínica de uma catástrofe cerebral, caracterizada por dano neurológico completo e irreparável, reconhecido por coma irreversível, ausência de reflexos no tronco encefálico e apneia.(11. Machado C. Diagnosis of brain death. Neurol Int. 2010;2(1):e2.)

O diagnóstico dessa condição tem implicações médicas, éticas e legais importantes, pois pode influenciar na retirada de todas as medidas de sustentação da vida ou na recuperação de órgãos para transplante. A declaração de ME é baseada no exame clínico, de acordo com padrões internacionais. Existem variações significativas nos métodos de declaração da ME em todo o mundo, e ainda entre diferentes regiões e hospitais no mesmo país.(22. Escudero D, Matesanz R, Soratti CA, Flores JI; nombre de la Red/Consejo Iberoamericano de Donación Y Transplante. [General considerations on brain death and recommendations on the clinical decisions after its diagnosis. Red/Consejo Iberoamericano de Donación y Trasplante]. Med Intensiva. 2009;33(9):450-4. Review. Spanish.,33. Escudero D, Valentín MO, Escalante JL, Sanmartín A, Perez-Basterrechea M, de Gea J, et al. Intensive care practices in brain death diagnosis and organ donation. Anaesthesia. 2015;70(10):1130-9.)

Todos os países exigem exames que confirmem a ausência de resposta do tronco cerebral. No entanto, existem diferenças quanto ao exame físico: no Brasil, são necessários dois exames físicos para o diagnóstico de ME, ao passo que, na Bélgica, na Holanda, na Noruega, na Suíça e na maioria dos estados dos Estados Unidos, é realizado um único exame físico.(44. Vinhas AM, Gros AM, Favero B, Bom JM, Faleiro L, Ceccato ME, et al. Evaluation of brain death diagnosis around the world. Acta Med. 2018; 39(1):387-97.)

O teste de apneia é um exame complementar essencial no protocolo brasileiro de declaração de ME, sendo realizado em todo o mundo, com diferenças nos níveis de pressão de dióxido de carbono (PaCO2) necessários para determinar a ME: no Brasil, seu nível é de cerca de 55mmHg, ao passo que, nos Estados Unidos, é de cerca de 60mmHg. Além disso, enquanto no Brasil e na maioria dos países europeus são necessários exames complementares, estes geralmente não são exigidos nos protocolos norte-americanos.(44. Vinhas AM, Gros AM, Favero B, Bom JM, Faleiro L, Ceccato ME, et al. Evaluation of brain death diagnosis around the world. Acta Med. 2018; 39(1):387-97.)

No Brasil, de janeiro a dezembro de 2017, foram notificados 10.629 potenciais doadores (pacientes diagnosticados com ME e sem contraindicações à doação de órgãos). No entanto, apenas 3.415 indivíduos (32%) tornaram-se doadores efetivos.(55. Registro Brasileiro de Transplantes (RBT). Dimensionamento dos Transplantes no Brasil e em cada estado (2010-2017) [Internet]. RBT; 2017 [citado 2018 Jul 13]. Disponível em: http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2017/rbt-imprensa-leitura-compressed.pdf
http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/fi...
) Os principais obstáculos a um maior número de doações de órgãos no Brasil podem ser atribuídos à falha na identificação de possíveis doadores, à recusa da família e a contraindicações clínicas.(66. Dell Agnolo CM, de Freitas RA, Toffolo VJ, de Oliveira ML, de Almeida DF, Carvalho MD, et al. Causes of organ donation failure in Brazil. Transplant Proc. 2012;44(8):2280-2.) Em 2017, houve uma atualização da lei brasileira sobre a declaração de ME (decreto 9.175, de 18 de outubro de 2017, e Resolução do Conselho Federal de Medicina 2.173/17, de 23 de novembro de 2017), com o objetivo de aumentar o número de doações bem-sucedidas de órgãos(77. Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto nº 9175, de 18 de outubro de 2017. Regulamenta a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, para tratar da disposição de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento [Internet]. Brasília (DF): Casa Civil; 2017 [citado 2019 Jul 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Decreto/D9175.htm7
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At...
,88. Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução CFM nº 2173, de 23 de novembro de 2017. Define os critérios do diagnóstico de morte encefálica [Internet]. Brasília (DF): CFM; 2017 [citado 2019 Jul 10]. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2017/2173
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visua...
) – Westphal et al., oferecem abrangente análise abrangente dessas mudanças.(99. Westphal GA, Veiga VC, Franke CA. Diagnosis of brain death in Brazil. Rev Bras Ter Intensiva. 2019;31(3):403-9.)

Uma doação bem-sucedida de órgãos está associada a um breve intervalo de tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico para ME.(1010. Lustbader D, O’Hara D, Wijdicks EF, MacLean L, Tajik W, Ying A, et al. Second brain death examination may negatively affect organ donation. Neurology. 2011;76(2):119-24.) A redução dos intervalos de tempo na declaração de ME provavelmente seria uma boa estratégia para aumentar o número de órgãos e tecidos disponíveis para transplante.

OBJETIVO

Caracterizar os processos de diagnóstico de morte encefálica e doação de órgãos em um centro de referência em trauma; verificar o perfil dos pacientes que tiveram o diagnóstico de morte encefálica; avaliar o impacto dos intervalos de tempo da declaração de morte encefálica na doação de órgãos; e checar os preditores de uma doação bem-sucedida de órgãos.

MÉTODOS

Delineamento e sujeitos do estudo

Estudo transversal realizado no Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência, um centro de referência em trauma de Belém, (PA), Brasil. Os dados foram obtidos por meio da compilação de prontuários e formulários de declaração de ME em documentos da Organização de Procura de Órgãos (OPO) de pacientes diagnosticados com ME entre junho de 2014 e junho de 2017. Incluímos todos os pacientes com idade acima de 2 anos e excluímos os pacientes sem dados referentes a informações essenciais da internação hospitalar. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Estado do Pará (CAAE: 65663717.0.0000.5174, parecer: 1.992.783), e como todos os pacientes eram falecidos, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi dispensado.

Como a coleta de dados ocorreu antes da nova lei brasileira sobre a declaração de ME, todos os casos seguiram a legislação anterior (lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, e Resolução do Conselho Federal de Medicina 1.480/97).(1111. Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências [Internet]. Brasília (DF): Casa Civil; 1997 [citado 2019 Jul 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
,1212. Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução CFM nº 1.480/1997. Define critérios para diagnóstico de morte encefálica [Internet]. Brasília (DF): CFM; 1997 [citado 2019 Jul 10]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm
http://www.portalmedico.org.br/resolucoe...
)

Avaliações

Um protocolo de pesquisa específico foi utilizado para registrar dados sobre as variáveis clínicas e epidemiológicas (idade, sexo, escore da escala de coma de Glasgow na admissão e causa da morte) e sobre as etapas da declaração de ME. Definiu-se ME iminente na admissão hospitalar de acordo com de Groot et al.(1313. de Groot YJ, Jansen NE, Bakker J, Kuiper MA, Aerdts S, Maas AI, et al. Imminent brain death: point of departure for potential heart-beating organ donor recognition. Intensive Care Med. 2010;36(9):1488-94.) Utilizamos as seguintes variáveis de tempo como medidas indiretas da efetividade da declaração de ME: tempo entre a internação hospitalar e a admissão na unidade de terapia intensiva (UTI), tempo entre a admissão na UTI e o primeiro exame clínico de ME, tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico de ME, e tempo entre o segundo exame clínico de ME e o exame complementar.

Dividimos os desfechos de doação de órgãos em estritos (doações “bem-sucedidas” ou “malsucedidas”) e amplos (“bem-sucedidas”, “malsucedidas por recusa familiar”, “malsucedidas por parada cardíaca” e “malsucedidas por outras causas”). “Outras causas” incluiu pacientes excluídos por normas médicas (não adequados para doação de órgãos) e outros motivos. Definimos “doação de órgão bem-sucedida” quando um órgão foi coletado de um paciente com ME para transplante.

Análise estatística

O software Microsoft Excel 2010 foi usado para compilar as folhas de dados. O teste de Shapiro-Wilk foi utilizado para avaliar a normalidade das amostras. Para avaliar as variáveis categóricas, foram utilizados o teste χ2 e o teste exato de Fisher. Para variáveis contínuas, foi utilizado o teste de Mann-Whitney para duas amostras independentes e o teste de Kruskal-Wallis para três ou mais amostras independentes. Foram realizadas análises de regressão logística univariada para os possíveis preditores de uma doação de órgãos bem-sucedida, com o desfecho estrito de doação de órgãos (“bem-sucedida” ou “malsucedida”) como variável dependente. Todas as inferências estatísticas foram calculadas no (SPSS) for Windows, versão 23.0 (SPSS Inc., Chicago, USA), adotando como critério de significância valor de p≤0,05.

RESULTADOS

Caraterísticas clínicas e epidemiológicas

Durante 3 anos, foram notificados 159 pacientes com ME (Tabela 1). A maioria dos pacientes com ME era do sexo masculino (82,6%), adultos jovens (idade entre 18 e 40 anos; n=97; 61%) e vítimas de lesão encefálica traumática (93,7%), conforme esperado em um centro de referência em trauma. Crianças e adolescentes representaram 17,6% (n=28). Aproximadamente um terço dos pacientes apresentava ME iminente na admissão hospitalar (34,8%), sem impacto na doação de órgãos (χ2=0,22; p=0,71). O segundo exame clínico foi realizado geralmente por neurologistas/neurocirurgiões (72,3%), e o número de doações de órgãos bem-sucedidas foi maior (41,1%) quando o primeiro exame clínico foi feito por neurologista/neurocirurgião (χ2=4,18; p=0,04). Todos os casos determinados como ME no primeiro exame clínico foram confirmados pelo segundo exame clínico. O Doppler transcraniano foi o exame complementar escolhido em todos os pacientes.

Tabela 1
Característica gerais dos pacientes com morte encefálica por desfechos estritos de doação de órgãos

Impacto dos intervalos de tempo para a declaração de morte encefálica na doação de órgãos

O intervalo mediano total da declaração de ME (do primeiro exame clínico de ME ao exame complementar final) foi de 20,75 horas (intervalo interquartil 14-29), sem diferença entre os pacientes com ME e doações de órgãos bem-sucedidas e malsucedidas (teste de Mann-Whitney =2.075; p=0,479) Não houve diferença entre os quatro intervalos de tempo analisados (tempo entre a admissão hospitalar e a admissão na UTI, tempo entre a admissão na UTI e o primeiro exame clínico de ME, tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico de ME, e tempo entre o segundo exame clínico de ME e o exame complementar) entre os pacientes com ME com doações de órgãos bem-sucedidas e malsucedidas. Tivemos longos intervalos de tempo antes do primeiro exame clínico de ME, principalmente no tocante ao tempo entre a admissão na UTI e o primeiro exame clínico de ME (mediana de 86,6 horas). Somente metade dos pacientes teve um tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico de ME de aproximadamente 6 a 12 horas, conforme recomendado pela resolução anterior do Conselho Federal de Medicina(1111. Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências [Internet]. Brasília (DF): Casa Civil; 1997 [citado 2019 Jul 10]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9434.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI...
,1212. Conselho Federal de Medicina (CFM). Resolução CFM nº 1.480/1997. Define critérios para diagnóstico de morte encefálica [Internet]. Brasília (DF): CFM; 1997 [citado 2019 Jul 10]. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1480_1997.htm
http://www.portalmedico.org.br/resolucoe...
) (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma de distribuição de pacientes com morte encefálica de acordo com o tempo entre o primeiro e o segundo exames clínicos

Analisamos se os diferentes intervalos de tempo poderiam aumentar ou reduzir o número de doações de órgãos bem-sucedidas. Para isso, usamos duas variáveis: o tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico de ME, e o tempo entre o segundo exame clínico de ME e o exame complementar. As duas variáveis de intervalo de tempo foram agrupadas em quatro quartis, e as proporções de desfechos amplos de doação de órgãos foram distribuídas nos grupos de intervalos de tempo (Tabela 2). Em relação ao tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico de ME, não houve diferença nas doações de órgãos bem-sucedidas entre o intervalo mais curto (<7 horas) e o intervalo mais longo (>15,5 horas; χ2=9,86; p=0,36), e a proporção de doações de órgãos malsucedidas por recusa familiar também foi semelhante entre os intervalos de tempo extremos. No tocante ao tempo entre o segundo exame clínico de ME e o exame complementar, a proporção de doações de órgãos bem-sucedidas diminuiu entre o intervalos mais curto (<2,5 horas) e o intervalo mais longo (>15 horas), e a proporção de doações de órgãos malsucedidas por recusa familiar aumentou inversamente; no entanto, essas diferenças não foram estatisticamente significativas (χ2=6,25; p=0,71).

Tabela 2
Efeito dos intervalos de tempo para a declaração de morte encefálica nos desfechos amplos de doação de órgãos

Preditores de doação de órgãos bem-sucedida após morte encefálica

Foram realizadas análises de regressão logística univariada para o papel dos preditores (idade, sexo, escore na escala de coma Glasgow na admissão e intervalos de tempo) nos desfechos estritos de doação de órgãos, e apenas a idade foi inversamente associada à probabilidade de uma doação de órgãos bem-sucedida (coeficiente B -0,027; razão de chances 0,973; intervalo de confiança de 95% 0,94-0,99; p=0,027) (Tabela 3).

Tabela 3
Análise univariada de preditores de doação de órgãos bem-sucedida após morte encefálica

DISCUSSÃO

Os presentes resultados mostraram que nossos pacientes com ME eram, em sua maioria, jovens adultos do sexo masculino que sofreram lesões encefálicas traumáticas. Estudos realizados no Brasil descreveram jovens do sexo masculino como o principal grupo associado a ME, mas a lesão encefálica traumática não foi a principal causa de morte desses pacientes.(1414. Rodrigues SL, Ferraz Neto JB, Sardinha LA, Araujo S, Zambelli HJ, Boin IF, et al. Profile of effective donors from organ and tissue procurement services. Rev Bras Ter Intensiva. 2014;26(1):21-7.

15. Pessoa JL, Schirmer J, Roza BA. Evaluation of the causes for family refusal to donate organs and tissue. Acta Paul Enferm. 2013;26(4):323-30.

16. Souza BS, Lira GG, Mola R. Notification of brain death in the hospital. Rev Rene. 2015;16(2):194-200.
-1717. Rocha DF, Nothen RR, Santos SR, Oliveira PC. Evaluation of the time of diagnosis of brain deaths reported to the Transplant Center of Rio Grande do Sul. Sci Med. 2015;25(3):ID21328.) Como nossa amostra foi coletada em um centro de referência em trauma, nossos resultados podem ter um viés de seleção.

Cerca de um terço desses pacientes havia sido internado em ME iminente, um conceito criado para aprimorar o reconhecimento clínico de potenciais doadores de órgãos, com alta sensibilidade e baixa especificidade para prever ME.(1313. de Groot YJ, Jansen NE, Bakker J, Kuiper MA, Aerdts S, Maas AI, et al. Imminent brain death: point of departure for potential heart-beating organ donor recognition. Intensive Care Med. 2010;36(9):1488-94.,1818. Zappa S, Fagoni N, Bertoni M, Selleri C, Venturini MA, Finazzi P, Metelli M, Rasulo F, Piva S, Latronico N; Imminent Brain Death (IBD) Network Investigators. Determination of Imminent Brain Death Using the Full Outline of Unresponsiveness Score and the Glasgow Coma Scale: A Prospective, Multicenter, Pilot Feasibility Study. J Intensive Care Med. 2020;35(2):203-7.) Em nossa amostra, a internação hospitalar com escore 3 na escala de coma de Glasgow não influenciou no número de doações de órgãos bem-sucedidas. Se medidas específicas de elucidação da ME para a família e terapia intensiva fossem usadas em pacientes com ME imediata, o número de doadores poderia ser maior.

Os intervalos de tempo para a declaração de ME em nosso estudo foram maiores do que o esperado, e atribuímos esse fato a problemas específicos do centro de referência (poucos neurologistas e neurocirurgiões, baixo nível de treinamento médico na declaração de ME, e baixa disponibilidade de exames complementares). Esses dados ajudaram a organização a melhorar seu protocolo de declaração de ME e a disponibilizar exames complementares.

No entanto, existe uma grande variabilidade em relação a esses intervalos de tempo em todo o mundo. Estudos anteriores descreveram um tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico de ME de 8,9 horas(1717. Rocha DF, Nothen RR, Santos SR, Oliveira PC. Evaluation of the time of diagnosis of brain deaths reported to the Transplant Center of Rio Grande do Sul. Sci Med. 2015;25(3):ID21328.) a 19,2 horas,(1010. Lustbader D, O’Hara D, Wijdicks EF, MacLean L, Tajik W, Ying A, et al. Second brain death examination may negatively affect organ donation. Neurology. 2011;76(2):119-24.) e o intervalo de tempo total da declaração de ME foi relatado como sendo de 14,4 horas.(1717. Rocha DF, Nothen RR, Santos SR, Oliveira PC. Evaluation of the time of diagnosis of brain deaths reported to the Transplant Center of Rio Grande do Sul. Sci Med. 2015;25(3):ID21328.) Um maior intervalo de tempo total da declaração de ME está associado a mais paradas cardíacas,(1919. Westphal GA, Slaviero TA, Montemezzo A, Lingiardi GT, de Souza FC, Carnin TC, et al. The effect of brain death protocol duration on potential donor losses due to cardiac arrest. Clin Transplant. 2016;30(11):1411-6.) maiores custos da terapia intensiva e pior qualidade dos órgãos destinados a transplante,(2020. Marinho A, Cardoso SS, Almeida VV. Os transplantes de órgãos nos Estados Brasileiros [Internet]. Rio de Janeiro (RJ): IPEA; 2007 [citado 2017 Nov 15]. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/1575/1/TD_1317.pdf
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream...
,2121. Wong J, Tan HL, Goh JP. Management of the brain dead organ donor. Trends Anaesthesia Critical Care. 2017;13:6-12.) e um menor intervalo entre a admissão e a declaração de ME aumenta o número de órgãos transplantados por doador.(2222. Resnick S, Seamon, MJ, Holena D, Pascual J, Reilly PM, Martin ND. Early declaration of death by neurologic criteria results in greater organ donor potential. J Surg Res. 2017;218:29-34.) Além disso, um tempo de isquemia fria maior do que 24 horas está associado à menor sobrevida do enxerto renal.(2323. Baptista A, Silva HT Jr, Pestana JO. Influence of deceased donor hemodynamic factors in transplant recipients renal function. J Bras Nefrol. 2013;35(4):289-98.)

Devemos levar em consideração a grande variabilidade no processo de declaração de ME em todo o mundo.(44. Vinhas AM, Gros AM, Favero B, Bom JM, Faleiro L, Ceccato ME, et al. Evaluation of brain death diagnosis around the world. Acta Med. 2018; 39(1):387-97.) Revisão recente relatou baixa homogeneidade no processo de declaração de ME em 91 países, com diferentes protocolos para teste de apneia, necessidade e tipo de exame complementar, número e qualificação de médicos, e critérios utilizados em crianças.(2424. Wahlster S, Widjicks EF, Patel PV, Greer DM, Hemphill JC 3rd, Carone M, et al. Brain death declaration: Practices and perceptions worldwide. Neurology. 2015;84(18):1870-9.)

Nosso estudo mostrou que o tempo entre o primeiro e o segundo exame clínico de ME não teve efeito no desfecho de doação de órgãos, tanto na comparação da proporção de doadores em quartis de intervalo distintos quanto na regressão logística univariada. Esse resultado difere das conclusões de estudo anterior, que analisou o efeito desse intervalo de tempo na doação de órgãos em 1.311 pacientes com ME.(1010. Lustbader D, O’Hara D, Wijdicks EF, MacLean L, Tajik W, Ying A, et al. Second brain death examination may negatively affect organ donation. Neurology. 2011;76(2):119-24.) Eles demonstraram que intervalos mais longos entre os dois exames de ME causaram redução na proporção de doadores, aumento na recusa familiar de doação de órgãos, e mais paradas cardíacas. Atribuímos esses resultados divergentes a diferenças no tamanho da amostra e na variabilidade da metodologia de declaração da ME.

Nosso estudo tem limitações importantes. O pequeno tamanho de amostra e o recrutamento de um único centro que recebe principalmente pacientes traumatizados podem prejudicar a capacidade de generalização dos resultados. A baixa proporção de doadores (35,2%) também pode interferir nos resultados finais. Como ponto forte, nosso trabalho é o primeiro estudo brasileiro que explorou os intervalos de tempo para a declaração do ME e seu impacto na doação de órgãos.

CONCLUSÃO

Foi baixa a eficácia da declaração de morte encefálica com base em intervalos de tempo mais longos para essa declaração, sem impacto na doação de órgãos. A redução do tempo entre os dois exames clínicos de morte encefálica e a rápida execução de exames complementares devem ser prioritárias nos hospitais para melhorar a qualidade da declaração de morte encefálica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    23 Out 2019
  • Aceito
    16 Fev 2020
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