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Terapia gênica: avanços, desafios e perspectivas

RESUMO

A habilidade de fazer modificações pontuais no genoma humano tem sido o objetivo da medicina desde o conhecimento do DNA como unidade básica da hereditariedade. Entende-se terapia gênica como a capacidade do melhoramento genético por meio da correção de genes alterados (mutados) ou modificações sítio-específicas, que tenham como alvo o tratamento terapêutico. Este tipo de procedimento tornou-se possível por conta dos avanços da genética e da bioengenharia, que permitiram a manipulação de vetores para a entrega do material extracromossomal em células-alvo. Um dos principais focos desta técnica é a otimização dos veículos de entrega (vetores) que, em sua maioria, são plasmídeos, nanoestruturados ou vírus − sendo estes últimos os mais estudados, devido à sua excelência em invadir as células e inserir seu material genético. No entanto, existe grande preocupação referente às respostas imunes exacerbadas e à manipulação do genoma, principalmente em linhagens germinativas. Estudos em células somáticas in vivo apresentaram resultados satisfatórios, e já existem protocolos aprovados para uso clínico. Os principais trials têm sido conduzidos nos Estados Unidos, Europa, Austrália e China. Recentes avanços biotecnológicos empregados para o aprimoramento da terapia gênica, como células-tronco pluripotentes induzidas em pacientes portadores de doenças hepáticas, imunoterapia com células T do receptor do antígeno quimera e edição genômica pelos sistema CRISPR/Cas9, são abordados nesta revisão.

Terapia gênica; Vetores genéticos; Transferência genética horizontal; CRISPR-Cas9; CAR-T cell; Terapia genética; Repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente espaçadas

ABSTRACT

The ability to make site-specific modifications to the human genome has been an objective in medicine since the recognition of the gene as the basic unit of heredity. Thus, gene therapy is understood as the ability of genetic improvement through the correction of altered (mutated) genes or site-specific modifications that target therapeutic treatment. This therapy became possible through the advances of genetics and bioengineering that enabled manipulating vectors for delivery of extrachromosomal material to target cells. One of the main focuses of this technique is the optimization of delivery vehicles (vectors) that are mostly plasmids, nanostructured or viruses. The viruses are more often investigated due to their excellence of invading cells and inserting their genetic material. However, there is great concern regarding exacerbated immune responses and genome manipulation, especially in germ line cells. In vivo studies in in somatic cell showed satisfactory results with approved protocols in clinical trials. These trials have been conducted in the United States, Europe, Australia and China. Recent biotechnological advances, such as induced pluripotent stem cells in patients with liver diseases, chimeric antigen receptor T-cell immunotherapy, and genomic editing by CRISPR/Cas9, are addressed in this review.

Gene therapy; Genetic Vectors; Gene transfer, horizontal; CRISPR-Cas9; CAR-T cell; Genetic therapy; Clustered regularly interspaced short palindromic repeats

INTRODUÇÃO

Em 1991, James Watson fez a seguinte declaração: “Muita gente se diz preocupada com a mudança em nossas instruções genéticas. Mas essas [instruções genéticas] são apenas um produto da evolução, moldadas para nos adaptar a certas condições que podem não mais existir. Todos sabemos o quanto somos imperfeitos. Por que não nos tornar um pouquinho mais aptos à sobrevivência?”.(11. Mukherjee S. Genetic therapies: posthuman gene therapy. In: Mukherjee S. The gene: an intimate history. Nova York: Scribner; 2016. Chap. 34. p. 415.) Desde os primórdios, humanos entendem que as características peculiares dos pais podem ser transmitidas para seus descendentes. As primeiras especulações foram originárias dos estudantes gregos antigos, e algumas destas teorias permaneceram por muitos séculos. Estudos genético-científicos foram iniciados no começo de 1850, quando o monge austríaco Gregor Mendel, em uma série de experimentos com ervilhas verdes, descreveu o padrão de herança, observando que os traços eram herdados como unidades separadas, os quais hoje conhecemos como genes. Até 1950, pouco se conhecia sobre a natureza física dos genes, quando, então, o bioquímico americano James Watson e o biofísico britânico Francis Crick desenvolveram o modelo revolucionário da dupla fita de DNA. Em 1970, pesquisadores descobriram uma série de enzimas que possibilitavam separar os genes em locais predeterminados ao longo da molécula de DNA e inseri-los de volta de uma forma reprodutível. Estes avanços genéticos prepararam um cenário para o surgimento da engenharia genética com produção de novos fármacos e anticorpos e, a partir de 1980, a terapia gênica foi contemplada pelos cientistas.(22. Friedmann T. A brief history of gene therapy. Nat Genet. 1992;2(2):93-8. Review.,33. Misra S. Human gene therapy: a brief overview of the genetic revolution. J Assoc Physicians India. 2013;61(2):127-33. Review.)

Nesta revisão, abordamos sobre terapia gênica, as diferentes metodologias de engenharia genética empregadas para esta técnica, suas limitações, aplicações e perspectivas.

Terapia gênica

A habilidade de fazer modificações pontuais no genoma humano tem sido o objetivo da Medicina desde o conhecimento do DNA como unidade básica da hereditariedade. Entende-se terapia gênica como a capacidade do melhoramento genético por meio da correção de genes alterados (mutados) ou modificações sítio-específicas, que tenham como alvo o tratamento terapêutico. Adiante, são descritas diferentes estratégias, que são usualmente empregadas para este fim.(44. Tebas P, Stein D, Tang WW, Frank I, Wang SQ, Lee G, et al. Gene editing of CCR5 in autologous CD4 T cells of persons infected with HIV. N Engl J Med. 2014;370(10):901-10.)

Atualmente, a terapia gênica é uma área predominantemente existente em laboratórios de pesquisa, e sua aplicação ainda é experimental.(55. Linden R. Gene therapy: what it is, what it is not and what it will be. Estud Av. 2010;24(70):31-69.) A maioria dos trials são conduzidos nos Estados Unidos, Europa e Austrália. O âmbito desta abordagem é amplo, com potencial tratamento de doenças causadas por desordens em genes recessivos (fibrose cística, hemofilia, distrofia muscular e anemia falciforme), doenças genéticas adquiridas como câncer, e determinadas infecções virais, como AIDS.(33. Misra S. Human gene therapy: a brief overview of the genetic revolution. J Assoc Physicians India. 2013;61(2):127-33. Review.,66. Ginter EK. [Gene therapy of hereditary diseases]. Vopr Med Khim. 2000; 46(3):265-78. Review. Russian.)

Uma das técnicas mais amplamente utilizada consiste na tecnologia do DNA recombinante, na qual o gene de interesse ou saudável é inserido em um vetor, que pode ser plasmídial, nanoestruturado ou viral, sendo este último o mais utilizado, por sua eficiência em invadir células e nelas introduzir seu material genético. Na tabela 1, são resumidos alguns protocolos de terapia gênica, aprovados e publicados para uso clínico, exemplificando a doença, o alvo e o tipo do vetor empregado.(33. Misra S. Human gene therapy: a brief overview of the genetic revolution. J Assoc Physicians India. 2013;61(2):127-33. Review.)

Tabela 1
Protocolos de terapia gênica

Embora vários protocolos sejam bem-sucedidos, o processo de terapia gênica permanece complexo, e muitas técnicas necessitam de novos desenvolvimentos. As células específicas do corpo que necessitam de tratamento devem ser identificadas e acessíveis. Um meio de distribuição eficaz das cópias do gene para as células deve estar disponível, e as doenças e suas estritas ligações genéticas necessitam ser completamente compreendidas.(33. Misra S. Human gene therapy: a brief overview of the genetic revolution. J Assoc Physicians India. 2013;61(2):127-33. Review.) Há ainda a importante questão do tipo celular alvo da terapia gênica que, atualmente, é subdividido em dois grandes grupos,: terapia gênica de linhagem germinativa(77. Mathews QL, Curiel DT. Gene therapy: human germline genetics modifications-assessing the scientific, socioethical, and religious issues. South Med J. 2007; 100(1):98-100.) e terapia gênica de células somáticas.(88. Bank A. Human somatic cell gene therapy. Bioessays. 1996;18(12):999-1007. Review.) Na terapia gênica de linhagem germinativa, as células germinativas, com, por exemplo, o espermatozoide e o óvulo, são modificadas pela introdução de genes funcionais, os quais são integrados ao genoma. As alterações são hereditárias e passam para gerações subsequentes. Em teoria, esta abordagem deve ser altamente eficaz na luta contra doenças genéticas e hereditárias. A terapia gênica de células somáticas é quando genes terapêuticos são transferidos para células somáticas de algum paciente. Qualquer modificação e quaisquer efeitos são restritos somente ao paciente e não são herdadas pelas futuras gerações.

Processo de terapia gênica: liberação do gene

Na terapia gênica, um gene normal é inserido no genoma para substituir um gene anormal responsável por causar determinada doença. De vários desafios envolvidos no processo, um dos mais consideráveis é a dificuldade na liberação do gene na célula-alvo. Assim, um carreador molecular denominado “vetor” é utilizado para a liberação do gene, a qual precisa ser muito específica, apresentar eficiência na liberação de um ou mais genes de tamanhos necessários para aplicações clínicas, não ser reconhecido pelo sistema imune e ser purificado em grandes quantidades e altas concentrações, para que o mesmo possa ser produzido e disponibilizado em grande escala. Uma vez que o vetor é inserido no paciente, este não pode induzir reações alérgicas ou processo inflamatório, deve aumentar as funções normais, corrigir deficiências ou inibir atividades deletérias. Ainda, deve ser seguro não somente para o paciente, mas também para o meio ambiente e para os profissionais que o manipulam. Por fim, o vetor deve ser capaz de expressar o gene, em geral, por toda a vida do paciente.(33. Misra S. Human gene therapy: a brief overview of the genetic revolution. J Assoc Physicians India. 2013;61(2):127-33. Review.,99. Gardlík R, Pálffy R, Hodosy J, Lukács J, Turna J, Celec P. Vectors and delivery systems in gene therapy. Med Sci Monit. 2005;11(4):RA110-21. Review.)

Embora a eficácia dos vetores virais seja comprovada, recentemente alguns estudos demonstraram que o uso destes carreadores apresentou diversas limitações. A presença do material genético viral no plasmídeo é um forte agravante, pois pode induzir uma resposta imune aguda, além de possível transformação oncogênica. Atualmente, existem duas abordagens principais para modificações genéticas das células, a saber: mediada por vírus (Tabela 2) e via mecanismos físicos, a partir de preparados obtidos por técnicas avançadas de nanotecnologia.(55. Linden R. Gene therapy: what it is, what it is not and what it will be. Estud Av. 2010;24(70):31-69.) Neste contexto, estão incluídos polímeros que formam redes que prendem um gene e soltam sua carga quando penetram nas células, como microinjeções de DNA,(1010. McDonnell WM, Askari FK. DNA vaccines. N Engl J Med.1996;334(1):42-5. Review.) polímeros catiônicos,(1111. Plank C, Tang MX, Wolfe AR, Szoka FC Jr. Branched cationic peptides for gene delivery: role of type and number of cationic residues in formation and in vitro activity of DNA polyplexes. Hum Gene Ther. 1999;10(2):319-32. Erratum in: Hum Gene Ther. 1999;10(13):2272.) lipossomos catiônicos(1212. Caplen NJ, Kinrade E, Sorgi F, Gao X, Gruenert D, Geddes D, et al. In vitro liposome-mediated DNA transfection of epithelial cell lines using the cationic liposome DC-Chol/DOPE. Gene Ther. 1995;2(9):603-13.,1313. Nabel GJ, Chang AE, Nabel EG, Plautz GE, Ensminger W, Fox BA, et al. Immunotherapy for cancer by direct gene transfer into tumors. Hum Gene Ther. 1994;5(1):57-77.) e bombardeamento de partículas.(1414. Yang Y, Nunes FA, Berencsi K, Furth EE, Gönczöl E, Wilson JM. Cellular immunity to viral antigens limits E1-deleted adenoviruses for gene therapy. Proc Natl Acad Sci U S A. 1994;91(10):4407-11.)

Tabela 2
Vetores virais para terapia gênica

Cada técnica de introdução de material genético exógeno difere entre si e depende do tipo de aplicação proposto. Algumas são mais eficientes, outras mais aptas a carrear genes grandes (>10kB) e integrar-se ao genoma, permitindo uma expressão permanente.(11. Mukherjee S. Genetic therapies: posthuman gene therapy. In: Mukherjee S. The gene: an intimate history. Nova York: Scribner; 2016. Chap. 34. p. 415.)

Terapia gênica e células-tronco hematopoiéticas

As células-tronco hematopoiéticas têm se tornado alvos ideais para a transferência gênica, devido ao elevado potencial de longevidade e à capacidade de autorrenovação. Um exemplo desta combinação de terapia gênica e células-tronco seria a geração de vetores de transferência gênica para a criação de células-tronco pluripotentes induzidas (iPS), a fim de gerar a diferenciação das iPS e proporcionar um fenótipo adicional a partir desta célula derivada diferenciada. Pacientes com doença hepática crônica com infecção pelo vírus da hepatite (por exemplo, vírus da hepatite B e vírus da hepatite C), que requerem transplante hepático, podem ser passíveis do transplante hepático de hepatócitos maduros ou derivados de iPS.(1515. Kay MA. State-of-the-art gene-based therapies: the road ahead. Nat Rev Genet. 2011;12(5):316-28. Review.) Não só a transferência de genes pode ser necessária para converter células-tronco em hepatócitos; como as células transplantadas são suscetíveis de serem reinfectadas pelo vírus da hepatite, a transferência de um vetor codificando um short hairpin RNA dirigido contra o vírus constituiria às células transplantadas resistência ou ‘imunidade’ à reinfecção. As células resistentes podem repovoar o fígado ao longo do tempo e restaurar a função hepática normal (Figura 1).(1515. Kay MA. State-of-the-art gene-based therapies: the road ahead. Nat Rev Genet. 2011;12(5):316-28. Review.)

Figura 1
Combinação de células-tronco e terapia gênica

Terapia com células T do receptor de antígeno quimérico

Na terapia com células T, o receptor de antígenos quiméricos (CAR-T cells - chimeric antigen receptor T cell therapy) é uma imunoterapia que envolve manipulação/reprogramação de células imunes (linfócitos T) dos próprios pacientes, a fim de reconhecer e atacar as células tumorais. O avanço inicial no desenho da primeira geração de CAR, realizado por Eshhar et al.,(1616. Eshhar Z, Waks T, Gross G, Schindler DG. Specific activation and targeting of cytotoxic lymphocytes through chimeric single chains consisting of antibody-binding domains and the gamma or zeta subunits of the immunoglobulin and T-cell receptors. Proc Natl Acad Sci U S A. 1993;90(2):720-4.) foi marcado pela fusão de um fragmento variável de cadeia única (scFv) a um domínio transmembrana e uma unidade de sinalização intracelular: a cadeia CD3 zeta.(1717. Gross G, Waks T, Eshhar Z. Expression of immunoglobulin-T-cell receptor chimeric molecules as functional receptors with antibody-type specificity. Proc Natl Acad Sci U S A. 1989;86(24):10024-8.,1818. Parham P. Antigen recognition by T lymphocytes. In: Parham P. The immune system. 3rd edition. Nova York: Garland Science; 2009. Chap. 5. p. 113.) Este desenho combinou o elemento alvo de um anticorpo monoclonal bem caracterizado com um domínio de sinalização, aumentando o reconhecimento do epítopo tumor-especifico e a ativação de células T, sem depender de moléculas do complexo de histocompatibilidade.

Um melhoramento na primeira geração de CAR foi feito por meio da integração de moléculas coestimuladoras necessárias para a transdução de sinal. O receptor estimulatório mais comumente usado nesta geração de CAR é o CD28. Este receptor age como segundo evento ativador da via, permitindo acentuada proliferação de células T, junto de um aumento na expressão de citocinas.(1919. Chambers CA, Allison JP. Co-stimulation in T cell responses. Curr Opin Immunol. 1997;9(3):396-404. Review.)

A mais recente geração de CAR incorporou a adição de um domínio coestimulatório para aumentar a função de CAR. Moléculas coestimulatórias como receptores do fator de necrose tumoral (CD134 ou CD137) são requeridas para esta metodologia. Em resumo, as mais recentes formas de CAR incluem o scFv, a cadeia inicial de CD3-ζ, junto das cadeias estimulatórias de CD28 e CD134 ou CD137.(2020. Wilkins O, Keeler AM, Flotte TR. CAR T-Cell Therapy: Progress and Prospects. Hum Gene Ther Methods. 2017;28(2):61-6. Review.)

Zhong et al., demonstraram, com a terceira geração de CAR, uma melhora na ativação de células T como resultado da ativação da via de Akt (proteína quinase B), que regula o ciclo celular. De acordo com outros estudos, esta última geração apresenta maior persistência das células T em comparação com CAR da segunda geração.(2121. Zhong XS, Matsushita M, Plotkin J, Riviere I, Sadelain M. Chimeric antigen receptors combining 4-1BB and CD28 signaling domains augment PI3kinase/AKT/Bcl-XL activation and CD8+ T cell-mediated tumor eradication. Mol Ther. 2010;18(2):413-20.)

O ponto mais crítico dos efeitos adversos da terapia CAR-T é a identificação de células não tumorais que expressam o epitopo alvo pelo CAR. Antígenos tumorais são moléculas altamente expressas nas células tumorais, mas não são exclusivas destas células. Por exemplo, o antígeno CD19 pode ser encontrado em células B normais ou malignas, e o desenho de CAR para o alvo CD19 é incapaz de distinguir as duas.(2020. Wilkins O, Keeler AM, Flotte TR. CAR T-Cell Therapy: Progress and Prospects. Hum Gene Ther Methods. 2017;28(2):61-6. Review.,2222. Maude SL, Frey N, Shaw PA, Aplenc R, Barrett DM, Bunin NJ, et al. Chimeric antigen receptor T cells for sustained remissions in leukemia. N Engl J Med. 2014;371(16):1507-17.) Outra toxicidade comum para a terapia de CAR-T (e muitas outras imunoterapias para o câncer) é a síndrome de liberação de citocinas (CRS - cytokine release syndrome). A ativação do sistema imune após infusão de CAR-T pode induzir um aumento rápido nos níveis de citocinas inflamatórias.(2020. Wilkins O, Keeler AM, Flotte TR. CAR T-Cell Therapy: Progress and Prospects. Hum Gene Ther Methods. 2017;28(2):61-6. Review.,2323. Lee DW, Gardner R, Porter DL, Louis CU, Ahmed N, Jensen M, et al. Current concepts in the diagnosis and management of cytokine release syndrome. Blood. 2014;124(2):188-95. Erratum in: Blood. 2015;126(8):1048. Dosage error in article text.)

Novos desenvolvimentos no desenho de vetores e ensaios em CAR-T dão equilíbrio e reforço na segurança para a ampliação da aplicação clínica. A melhoria progressiva nos ensaios de CAR já avançou, como foi observado da primeira à terceira geração. O conhecimento e a experiência adquirida na avaliação da toxicidade de CAR-T aumentarão o sucesso das melhorias progressivas para os futuros ensaios.

CRISPR-Cas9

Na década de 1980, foi identificada no genoma da bactéria Escherichia coli uma região com um padrão incomum, na qual uma sequência altamente variável era intercalada por uma sequência repetida sem função conhecida. Em 2005, foi postulado que as sequências variáveis eram de origem extracromossomal, atuando como uma memória imunológica contra fagos e plasmídeos, dando início ao então desconhecido sistema Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats (CRISPR) e Cas (Associated Proteins), que fulgura desde 2012 como uma das principais ferramentas biotecnológicas de edição genômica.(2424. Marraffini LA, Sontheimer EJ. CRISPR interference: RNA-directed adaptive immunity in bacteria and archaea. Nat Rev Genet. 2010;11(3):181-90. Review.) Oriundo do sistema imune-adaptativo de procariontes, este mecanismo reconhece o material genético invasor, cliva-o em pequenos fragmentos e o integra ao seu próprio DNA. Em uma segunda infecção pelo mesmo agente, ocorrem: transcrição do locus CRISPR, processamento do RNAm e criação de pequenos fragmentos de RNA (crRNAs), que formam complexos com as proteínas Cas, e estes reconhecem os ácidos nucleicos estranhos e finalmente o destroem.(2424. Marraffini LA, Sontheimer EJ. CRISPR interference: RNA-directed adaptive immunity in bacteria and archaea. Nat Rev Genet. 2010;11(3):181-90. Review.)

Com base neste mecanismo natural, foi desenvolvida a técnica CRISPR, que viabiliza a edição de sequências de DNA alvo-específica do genoma de qualquer organismo pela ação exclusiva de somente 3 moléculas: a nuclease (Cas9), responsável pela clivagem do DNA dupla fita; um RNA guia, que guia o complexo até o alvo; e o DNA alvo, conforme mostra a figura 2.(2525. Jinek M, Chylinski K, Fonfara I, Hauer M, Doudna JA, Charpentier E. A programmable dual-RNA-guided DNA endonuclease in adaptive bacterial immunity. Science. 2012;337(6096):816-21.,2626. Cong L, Ran FA, Cox D, Lin S, Barretto R, Habib N, et al. Multiplex genome engineering using CRISPR/Cas systems. Science. 2013;339(6121):819-23.)

Figura 2
Sistema CRISPR Cas-9. A técnica envolve basicamente três moléculas: uma nuclease (geralmente a Cas-9 tipo selvagem de Streptococcus pyogenes), um RNA guia (conhecido como single guide RNA) e o alvo (frequentemente o DNA)

Devido à sua simplicidade e à sua precisão quando comparada a outras técnicas (Zinc-Finger Nucleases, TALENs e Gene Targeting), o sistema CRISPR surge como uma versátil ferramenta que promove a edição gênica por meio do nocauteamento (gene knockout − KO), da integração de sequências exógenas (knock-in), da substituição alélica, dentre outros.(2727. Vieira GV, Cecílio NT, Arruda LM, Sales KU. Visão geral do mecanismo básico de ação. In: Pereira TC, organizador. Introdução à técnica de CRISPR. Ribeirão Preto: Cubo; 2016. Cap. 2. p. 54.,2828. Gori JL, Hsu PD, Maeder ML, Shen S, Welstead GG, Bumcrot D. Delivery and Specificity of CRISPR/Cas9 Genome Editing Technologies for Human Gene Therapy. Hum Gene Ther. 2015;26(7):443-51. Review.)

O RNA guia se hibridiza com o DNA alvo. A Cas-9 reconhece este complexo e deve mediar a clivagem da dupla fita do DNA e reparação na presença de um DNA doador (homólogo). O resultado deste processo é a integração de uma sequência exógena no genoma (knock-in) ou substituição alélica.

O rápido avanço desta nova tecnologia permitiu a realização de ensaios translacionais em células somáticas humanas, utilizando edição gênica por CRISPR. As primeiras aplicações com foco terapêutico já despontam descrevendo, inclusive, etapas de otimização dos sistemas de entrega e especificidade para a segurança e efetividade do sistema.(2828. Gori JL, Hsu PD, Maeder ML, Shen S, Welstead GG, Bumcrot D. Delivery and Specificity of CRISPR/Cas9 Genome Editing Technologies for Human Gene Therapy. Hum Gene Ther. 2015;26(7):443-51. Review.,2929. De Witt MA, Magis W, Bray NL, Wang T, Berman JR, Urbinati F, et al. Selection-free genome editing of the sickle mutation in human adult hematopoietic stem/progenitor cells. Sci Transl Med. 2016;8(360):360ra134.)

Pesquisadores da Universidade da Califórnia e Utah recentemente obtiveram sucesso na correção da mutação do gene da hemoglobina, que origina a anemia falciforme. Células CD34+ de pacientes portadores de anemia falciforme foram isoladas, editadas por CRISPR-Cas9 e, após 16 semanas, os resultados demonstraram redução dos níveis de expressão do gene mutado e um aumento da expressão gênica do tipo selvagem.(2929. De Witt MA, Magis W, Bray NL, Wang T, Berman JR, Urbinati F, et al. Selection-free genome editing of the sickle mutation in human adult hematopoietic stem/progenitor cells. Sci Transl Med. 2016;8(360):360ra134.)

A tecnologia em referência está sendo empregada majoritariamente em patologias genéticas monogênicas que, apesar de serem raras, podem atingir cerca de 10 mil doenças descritas.(44. Tebas P, Stein D, Tang WW, Frank I, Wang SQ, Lee G, et al. Gene editing of CCR5 in autologous CD4 T cells of persons infected with HIV. N Engl J Med. 2014;370(10):901-10.) Testes clínicos de fase 1 são previstos para 2017, assim como o surgimento de empresas voltadas para o uso clínico deste sistema.

Questões éticas

A possibilidade de modificar geneticamente linhagens germinativas tem sido alvo de discussões acaloradas no campo da ciência desde o passado. A bioética sempre está presente quando novas técnicas são criadas, para avaliar os riscos do procedimento e as implicações morais envolvidas.

Grande parte da comunidade científica aprova a terapia genética em células somáticas, principalmente quando se trata de doenças com desordens graves, como a fibrose cística e a distrofia muscular de Duchenne.

Porém, em 2015, pesquisadores chineses ultrapassaram as questões morais e anunciaram pela primeira vez a modificação genética de células embrionárias utilizando a técnica por CRISPR-Cas9. Na sequência, outro grupo chinês também relatou a realização do mesmo feito com o intuito de conferir resistência ao HIV pela inserção da mutação do gene CCR5. A análise genética mostrou que 4 dos 26 embriões foram modificados com sucesso. O resultado claramente revela a necessidade de aprimoramento da técnica, alertando que, possivelmente, tais ensaios poderiam ser testados previamente em modelos animais.(44. Tebas P, Stein D, Tang WW, Frank I, Wang SQ, Lee G, et al. Gene editing of CCR5 in autologous CD4 T cells of persons infected with HIV. N Engl J Med. 2014;370(10):901-10.,3030. Callaway E. Second Chinese team reports gene editing in human embryos. Nature. 2016; 08 April 2016. doi:10.1038/nature.2016.19718.
https://doi.org/10.1038/nature.2016.1971...
)

Estas publicações recentes reacenderam a polêmica de edições genéticas. De um lado, o Comitê de Ética japonês declarou que foi correta a forma como o experimento foi conduzido, pois houve aprovação do Comitê de Ética local para o estudo realizado, bem como o consentimento das doadoras dos óvulos. No Reino Unido, foi aprovado o primeiro projeto para a edição de embrião humano saudável. Em contrapartida, grupos de pesquisas americanos mantiveram-se conservadores, reiterando sua posição de não apoiarem este tipo de experimento e declarando esperarem por melhorias das técnicas e das definições de questões éticas.(3030. Callaway E. Second Chinese team reports gene editing in human embryos. Nature. 2016; 08 April 2016. doi:10.1038/nature.2016.19718.
https://doi.org/10.1038/nature.2016.1971...
)

COMENTARIO

Desde a declaração de James Watson, em 1991, em referência à possível otimização genética humana, a terapia gênica tem avançado no decorrer das décadas, seja pela otimização dos tipos de vetores, pela introdução de novas técnicas como as células-tronco pluripotentes induzidas em combinação com modelos atuais de edição gênica (CRISPR-Cas9), até por ensaios em células germinativas, trazendo consigo os contraditórios aspectos éticos e morais que margeiam a técnica.

Sucessos pontuais já solidificam a viabilidade de tratamentos por terapia gênica na prática clínica, sendo uma forma alternativa para pacientes com doenças congênitas ou desordens monogênicas e câncer, especialmente quando as intervenções farmacológica ou cirúrgica não apresentam bons resultados.

O desenho de novos vetores experimentais, o aumento da eficiência, a especificidade dos sistemas de entrega e a maior compreensão da indução da resposta inflamatória podem equilibrar o aprimoramento da segurança com a expansão da técnica na aplicação clínica. Ainda, o conhecimento e a experiência adquiridos com a avaliação cuidadosa da toxicidade destas tecnologias também permitem importantes avanços na aplicação destes métodos.

Portanto, historicamente, a terapia gênica, assim como a descoberta dos antibióticos e quimioterápicos, ou qualquer nova tecnologia necessita de mais estudos pré-clínicos elucidatórios. Futuramente, há a promessa da aplicação destas técnicas em vários campos da medicina e um maior percentual de estudos clínicos.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2017
  • Aceito
    28 Jun 2017
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