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Lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão associada com infusão de imunoglobulina intravenosa em paciente pediátrico

RESUMO

Relato de caso de paciente com imunodeficiência que necessitava de reposição regular de imunoglobulina endovenosa. Ela apresentou um episódio de lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão após uso de produto de imunoglobulina diferente daquele que recebia habitualmente. Evoluiu com alterações respiratórias (hipóxia, dispneia e alteração de ausculta pulmonar) minutos após o fim da infusão, necessitando de suporte respiratório não invasivo. A paciente recebeu alta hospitalar após 36 horas, com boa evolução. Obteve recuperação total dos sintomas, sem mais reações nas infusões subsequentes de imunoglobulina (sendo optado por não mais prescrever o produto que foi usado quando ocorreu o episódio de lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão). Apesar de rara, essa reação é potencialmente grave, não possui tratamento específico além de terapia de suporte, e há pouca informação na literatura sobre o risco de recorrência. A decisão sobre o seguimento da terapia com imunoglobulina após esse efeito adverso deve ser analisada individualmente, avaliando os possíveis riscos e benefícios para o paciente.

Descritores:
Lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão; Imunoglobulinas; Imunoglobulinas intravenosas; Síndromes de imunodeficiência; Efeitos colaterais e reações adversas relacionados a medicamentos; Criança

ABSTRACT

Case report of a patient with an immunodeficiency who demands regular replacement of intravenous immunoglobulin. She presented an episode of transfusion-related acute lung injury shortly after using an immunoglobulin product different than the one she usually received. The patient evolved with respiratory changes (hypoxia, dyspnea, change in pulmonary auscultation) minutes after the end of the infusion, and received non-invasive respiratory support. She was discharged after 36 hours with good outcome. The patient achieved full recovery, showing no further reactions in subsequent immunoglobulin infusions (no longer receiving the product that was used when she had the episode of transfusion-related acute lung injury). Although rare, this reaction is potentially serious and has no specific treatment other than supportive therapy. The literature is scarce regarding the risk of recurrence. The decision on whether to proceed with immunoglobulin therapy after this adverse effect should be analyzed individually, assessing the possible risks and benefits for the patient.

Keywords:
Transfusion-related acute lung injury; Immunoglobulins; Immunoglobulins, intravenous; Immunologic deficiency syndromes; Drug-related side effects and adverse reactions; Child

INTRODUÇÃO

O uso de imunoglubulina intravenosa (IVIG) tem aumentado em diferentes condições e situações. O órgão regulador norte-americano Food and Drug Administration (FDA) aprovou uma lista de produtos e indicações clínicas para o uso da IVIG, e a maioria deles está relacionada à prevenção de infecções no contexto de imunodeficiência ou para tratamento de condição autoimune.(11. Balch A, Wilkes J, Thorell E, Pavia A, Sherwin CM, Enioutina EY. Changing trends in IVIG use in pediatric patients: a retrospective review of practices in a network of major USA pediatric hospitals. Int Immunopharmacol. 2019;76:105868.)Mais de 300 erros inatos da imunidade têm sido descritos,(22. Picard C, Bobby Gaspar H, Al-Herz W, Bousfiha A, Casanova JL, Chatila T, et al. International Union of Immunological Societies: 2017 Primary Immunodeficiency Diseases Committee Report on Inborn Errors of Immunity. J Clin Immunol. 2018;38(1):96-128.)e muitos deles demandam reposição regular de imunoglobulina desde a infância.

Os efeitos adversos são relativamente comuns, ocorrendo em 5% a 15% das infusões. A maioria é leve e relacionada à velocidade de infusão do produto. Porém, reações mais graves podem ocorrer (anafilaxia, meningite asséptica, trombose ou insuficiência renal aguda) e causar morbidade debilitante ou mortalidade em casos raros.(33. Perez EE, Orange JS, Bonilla F, Chinen J, Chinn IK, Dorsey M, et al. Update on the use of immunoglobulin in human disease: a review of evidence. J Allergy Clin Immunol. 2017;139(3S):S1-46. Review.)

A lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão (TRALI - transfusion-related acute lung injury ) é a principal causa de morte por transfusão, de acordo com o FDA.(44. Semple JW, McVey MJ, Kim M, Rebetz J, Kuebler WM, Kapur R. Targeting transfusion-related acute lung injury: The Journey From Basic Science to Novel Therapies. Crit Care Med. 2018;46(5):e452-8. Review.)A TRALI consiste em edema pulmonar agudo não cardiogênico associada com hipóxia, que ocorre durante ou horas após a transfusão. Apesar disso, a TRALI é mais comumente relacionada à transfusão de hemácias ou plaquetas, e poucos casos foram descritos após infusão de IVIG.

Neste relato de caso, apresentamos uma paciente com imunodeficiência primária e doença pulmonar associada, que apresentou TRALI logo após receber infusão com IVIG, sendo o resultado favorável.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 12 anos, com diagnóstico de deficiência de antígeno 4 de linfócito T citotóxico (CTLA-4 - cytotoxic T-lymphocyte-associated protein 4 ). Tinha histórico de sinusite recorrente, otite média e amidalite desde os 3 anos de idade. Entre os 7 e os 9 anos de idade, a paciente apresentou episódios recorrentes de anemia hemolítica autoimune e episódio de trombocitopenia imune. Desde o diagnóstico de imunodeficiência primária (PID - primary immunodeficiency ) com hipogamaglobulinemia aos 9 anos de idade, ela recebeu infusão de IVIG a cada 3 semanas e profilaxia antimicrobiana com sulfametoxazol-trimetoprima.

Aos 10 anos de idade, a paciente apresentou doença pulmonar intersticial granulomatosa-linfocítica (GLILD - granulomatous-lymphocytic interstitial lung disease ), uma complicação pulmonar não infecciosa, para a qual recebeu tratamento com rituximabe e micofenolato de mofetila. Poucos meses após a interrupção da terapia imunossupressora, a paciente apresentou pneumonia fúngica.

Na sexta semana de tratamento com voriconazol para infecção pulmonar por Aspergillus sp , a paciente foi hospitalizada para receber dose regular de IVIG (580mg/kg), porém o produto disponível (3%, Sandoglobulina®, CSL Behring, lote 4302500091) era diferente do usado em infusões anteriores. O exame físico estava normal, com 95% de saturação de oxigênio (SatO2) em temperatura ambiente. Os exames laboratoriais realizados no mesmo dia mostraram função renal normal. A infusão IVIG começou em 1mL/kg/hora, e a taxa de infusão foi aumentada a cada 30 minutos, até atingir 6,7mL/kg/h. A paciente recebeu o total de 600mL da solução de imunoglobulina (concentração 3%) e permaneceu sem sintomas durante a infusão.

Cerca de 30 minutos após o fim da administração, a paciente relatou aumento da dispneia e apresentou estertores bilaterais na ausculta, hipoxemia (SatO2de 88% a 89% em temperatura ambiente), frequência respiratória de 28bpm, frequência cardíaca de 125bpm, pressão arterial de 114x68mmHg, temperatura axilar de 37.1°C, sem outros sintomas ou sinais. Suporte de oxigênio não invasivo em uma fração de oxigênio inspirado de 50% foi oferecido, resultando em SatO2de 99%, e a paciente foi transferida para unidade de emergência. A radiografia do tórax mostrou sinais de infiltrado difuso bilateral, a maioria na base dos pulmões, com silhueta cardíaca normal ( Figura 1 ).

Figura 1
Radiografia basal do paciente (A), 4 horas após administração de imunoglobulina intravenosa (B) e 3 meses depois (C)

A paciente recebeu dose única de furosemida endovenosa (0,5mg/kg) devido à hipótese inicial de sobrecarga de volume. O ecocardiograma não mostrou sinais de abnormalidade, com fração de ejeção de 79%. A paciente não demostrou outros sinais de congestão. Após 24 horas, ela apresentava SatO2>93% em ar ambiente, sem outras queixas, e, após 36 horas do evento, permanecia assintomática e teve alta hospitalar.

Após 3 semanas, a paciente recebeu infusão IVIG com o mesmo produto que utilizava anteriormente à reação sem efeitos adversos. Um ano após o relato do efeito adverso, a paciente continua em reposição regular de IVIG sem outras complicações.

DISCUSSÃO

A lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão é um efeito adverso raro associado à transfusão e pode ser potencialmente grave. O principal manejo é de suporte e inclui assistência respiratória e controle adequado de hidratação e balanço hídrico. É importante que o problema seja reconhecido rapidamente, para manejo adequado do paciente e, assim, evitam-se intervenções desnecessárias.

A fisiopatologia dessa reação compreende a hipótese de dois golpes: os neutrófilos do paciente que já estão em estado alterado, devido à condição pulmonar patológica (primeiro golpe), e os anticorpos ou outros fatores do produto transfundido reagem contra esses neutrófilos ativados, gerando, assim, a lesão vascular do endotélio dos pulmões (segundo golpe).(44. Semple JW, McVey MJ, Kim M, Rebetz J, Kuebler WM, Kapur R. Targeting transfusion-related acute lung injury: The Journey From Basic Science to Novel Therapies. Crit Care Med. 2018;46(5):e452-8. Review.)A paciente descrita, por sua imunodeficiência, tinha histórico de lesão pulmonar, tanto infecto e imunomediada.

Apesar de raros, existem, na literatura, casos relatados de TRALI após IVIG, os quais foram recentemente revisados por Baudel et al.(55. Baudel JL, Vigneron C, Pras-landre V, Joffre J, Marjot F, Ait-Oufella H, et al. Transfusion-related acute lung injury (TRALI) after intravenous immunoglobulins: French multicentre study and literature review. Clin Rheumatol. 2020;39(2):541-6.)De acordo com nosso conhecimento, apenas três outros casos de TRALI foram descritos na população pediátrica,(55. Baudel JL, Vigneron C, Pras-landre V, Joffre J, Marjot F, Ait-Oufella H, et al. Transfusion-related acute lung injury (TRALI) after intravenous immunoglobulins: French multicentre study and literature review. Clin Rheumatol. 2020;39(2):541-6.,66. Ray S, Gupta RK, Jain D. Transfusion-related acute lung injury due to iatrogenic IVIG overdose in guillain-barre syndrome. J Pediatr Neurosci. 2019;14(3):140-2.)e o presente caso é o primeiro a relatar uma criança que recebeu doses posteriores de IVIG após evento de TRALI.

Imunodeficiências primárias são doenças crônicas e frequentemente requerem terapia de reposição de imunoglobulina ao longo da vida. Portanto, é relevante considerar que a incidência de efeitos adversos significantes por ocasião da troca de produtos IVIG é de 15% a 18%.(33. Perez EE, Orange JS, Bonilla F, Chinen J, Chinn IK, Dorsey M, et al. Update on the use of immunoglobulin in human disease: a review of evidence. J Allergy Clin Immunol. 2017;139(3S):S1-46. Review.)Além disso, apesar de a troca da infusão intravenosa para a subcutânea ser uma opção para outros eventos adversos de imunoglobulina,(77. Guo Y, Tian X, Wang X, Xiao Z. Adverse effects of immunoglobulin therapy. Front Immunol. 2018;9:1299. Review.)poucos relatos ou orientações existem para apoiar essa mudança após episódio de TRALI. Consequentemente, deve-se ter atenção ao considerar a segurança de infusões subsequentes após episódio de TRALI.

No presente relato, a paciente desenvolveu TRALI após a infusão de IVIG de uma marca diferente da usual e não apresentou reação quando, mais tarde, recebeu o produto que usava habitualmente. A literatura é limitada e heterogênea, evitando conclusões sobre o estado clínico do paciente, a marca ou os lotes específicos do IVIG serem os fatores mais importantes que determinaram a reação adversa. O risco de recorrência de TRALI não é discutido em revisão publicada recentemente.(55. Baudel JL, Vigneron C, Pras-landre V, Joffre J, Marjot F, Ait-Oufella H, et al. Transfusion-related acute lung injury (TRALI) after intravenous immunoglobulins: French multicentre study and literature review. Clin Rheumatol. 2020;39(2):541-6.)Há outros três relatos de pacientes que receberam infusões de IVIG subsequentes após troca de lote do produto(88. Stoclin A, Delbos F, Dauriat G, Brugière O, Boeri N, Métivier AC, et al. Transfusion-related acute lung injury after intravenous immunoglobulin treatment in a lung transplant recipient. Vox Sang. 2013;104(2):175-8.

9. Quest GR, Gaal H, Clarke G, Nahirniak S. Transfusion-related acute lung injury after transfusion of pooled immune globulin: a case report. Transfusion. 2014;54(12):3088-91.
-1010. Reddy DR, Guru PK, Blessing MM, Stubbs JR, Rabinstein AA, Wijdicks EF. Transfusion-related acute lung injury after ivig for myasthenic crisis. Neurocrit Care. 2015;23(2):259-61.)( Tabela 1 ).

Tabela 1
Características dos pacientes relatadas na literatura que receberam infusões endovenosas de imunoglobulina repetidas após lesão pulmonar aguda relacionada à transfusão

Devido à escassez de informações consistentes em relação às chances de recorrência de TRALI,(1111. Looney MR, Gropper MA, Matthay MA. Transfusion-related acute lung injury: a review. Chest. 2004;126(1):249-58. Review.)em tais casos, as decisões devem ser tomadas individualmente, levando em considerações possíveis riscos e benefícios.

O presente relato amplia os dados escassos existentes na literatura sobre TRALI relacionada à IVIG e especialmente em relação à sua recidiva. Nosso relato pode contribuir para a decisão sobre infusões subsequentes em pacientes que enfrentam esses eventos adversos potencialmente sérios.

REFERENCES

  • 1
    Balch A, Wilkes J, Thorell E, Pavia A, Sherwin CM, Enioutina EY. Changing trends in IVIG use in pediatric patients: a retrospective review of practices in a network of major USA pediatric hospitals. Int Immunopharmacol. 2019;76:105868.
  • 2
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  • 3
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  • 7
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  • 8
    Stoclin A, Delbos F, Dauriat G, Brugière O, Boeri N, Métivier AC, et al. Transfusion-related acute lung injury after intravenous immunoglobulin treatment in a lung transplant recipient. Vox Sang. 2013;104(2):175-8.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2020
  • Aceito
    19 Jun 2020
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