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A experiência da intersubjetividade na pesquisa feminista: perspectivas metodológicas

Resumos

Este artigo tem a finalidade de contribuir com os estudos a respeito de metodologias de pesquisa. Para tanto, busca-se fazer uma reflexão acerca da experiência de uma pesquisa engajada em que se coloca em evidência a influência da trajetória existencial da pesquisadora na escolha do seu objeto de estudo e as perspectivas metodológicas que favorecem a experiência da intersubjetividade na produção do conhecimento. Em última instância, busca-se mostrar que é possível fazer pesquisa científica ancorada em um paradigma metodológico que rompe com a dicotomia sujeito/objeto. Para esta discussão, toma-se como referência uma investigação que pretendeu compreender como as mulheres se constituem sujeitos femininos de saber teológico e que dinâmicas de poder perpassam os processos de inserção e de construção da docência feminina, em um lugar marcado por discursos hegemônicos e por lógicas de gênero da ordem social masculina. Desse modo, destaca-se a perspectiva hermenêutica, por esta permitir captar os sentidos que as docentes atribuem às suas ações e às experiências vividas no universo do saber teológico. A hermenêutica, como metodologia de pesquisa, favorece a produção de um conhecimento que não se pretende universal, mas situado, subjetivo e aberto a novas perspectivas de interpretação. Tais características são centrais nas epistemologias feministas que buscam desmitificar a pura objetividade e a universalidade do conhecimento, mostrando que os sujeitos do saber estão sempre inseridos em uma determinada situação, posição e circunstância e, por isso, nenhum conhecimento se produz desdenenhum lugar.

Intersubjetividade; Experiência; Hermenêutica; Pesquisa feminista


This article aims to contribute to the studies of research methodology. To this end, we seek to reflect on the experience of an engaged research that clearly shows the influence of the researcher’s existential trajectory on the choice of her object of study, as well as the methodological perspectives that favor the experience of intersubjectivity in the production of knowledge. The ultimate goal is to show that scientific research can be conducted based on a methodological paradigm that breaks with the subject-object dichotomy. As a reference to this discussion, we take an investigation that sought to understand how women constitute themselves as female subjects of theological knowledge and what power dynamics pervade the processes of entering and constructing a female faculty career in a place marked by hegemonic discourses and gender logics of a male social order. Therefore, we emphasize the hermeneutic perspective, as it allows to capture the meanings that female professors assign to their actions and experiences in the universe of theological knowledge. Hermeneutics as a research methodology favor the production of knowledge that is not intended as universal, but rather situated, subjective, and open to new interpretation perspectives. Such characteristics are central in the feminist epistemologies that seek to demystify the pure objectivity and universality of knowledge, showing that the subjects of knowledge are always immersed in a certain situation, position, and circumstance, and that, therefore, no knowledge is produced from nowhere.

Intersubjectivity; Experience; Hermeneutics; Feminist research


Introdução

Este trabalho caracteriza-se como uma reflexão a respeito da metodologia de pesquisa adotada em uma tese de doutoramento, que se afasta das perspectivas centradas na pura objetividade do fazer científico. Isso porque, colocam-se em cena a influência da experiência subjetiva na escolha dos temas de investigação e os processos metodológicos que garantem a relação intersubjetiva na produção do conhecimento. Para isso, toma-se por base uma investigação em que se buscou compreender como as mulheres se constituem sujeitos femininos de saber teológico e que dinâmicas de poder perpassam os processos de inserção e de construção da docência feminina, em um lugar marcado por discursos hegemônicos e por lógicas de gênero da ordem social masculina.

A teologia como área de saber, ao longo da história, foi estruturada como umnão lugar para as mulheres. No Brasil, elas só tiveram acesso ao curso superior de teologia a partir da década de 1970, quando as mulheres foram se inserindo nas diferentes áreas acadêmicas. Esse fenômeno ocorreu impulsionado pelas transformações socioculturais e mobilizações feministas as quais, indubitavelmente, também influenciaram o ambiente religioso e eclesial. Contudo, ainda se constata uma grande assimetria entre os sujeitos femininos e masculinos na docência, como foi evidenciado na teseRelações de gênero, subjetividades e docência feminina: um estudo a partir do universo do ensino superior em teologia católica (FURLIN, 2014FURLIN, Neiva. Relações de gênero, subjetividades e docência feminina: um estudo a partir do universo do ensino superior em teologia católica. 2014. 386 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014.).

O objetivo deste ensaio, portanto, é compartilhar a reflexão a respeito da experiência de uma investigação engajada, em que se colocam em evidência a influência da trajetória existencial da pesquisadora na escolha do objeto de pesquisa e as perspectivas metodológicas que favorecem a experiência da intersubjetividade na produção do conhecimento, mostrando que é possível fazer pesquisa científica, com base em um paradigma metodológico que rompe com a dicotomia sujeito/objeto. Considerando que a escolha pelas técnicas de coleta do material necessário para um estudo científico é parte da metodologia e tem uma clara relação com os objetivos a que se propõe uma pesquisa, discutem-se, também, alguns aspectos como o aprendizado que vem da experiência de campo.

Nesse sentido, esta reflexão é uma forma de objetivar parte de um longo processo de construção dos caminhos de uma pesquisa, que envolve a escolha do tema, das técnicas para a coleta de dados empíricos e de uma metodologia para a compreensão e análise do material de campo. Certamente, este artigo pode trazer luz ou inspiração àqueles e àquelas que estão começando a trajetória de se produzirem artesões e artesãs da arte de construir conhecimento.

A escolha do tema de pesquisa: um processo puramente objetivo?

O interesse pelo tema da docência feminina na teologia em perspectiva analítica de gênero tem vínculo com minha trajetória de vida e de inserção no campo social e religioso1 1 - Neste artigo, assumo a redação em primeira pessoa, tendo em vista que uma das contribuições das epistemologias feministas foi a introdução de um novo estilo de fazer ciência social que dá voz à subjetividade reflexiva do sujeito social. Isto é, sem deslocar o estilo mais objetivo de uma escrita sem sujeito ou do nós, se produziu uma outra forma de escrever ciência em que o sujeito se coloca e assume sua construção científica. . Isso demarca claramente o meu lugar de fala e o meu engajamento social como mulher e como sujeito do conhecimento. Minha inserção em trabalhos pastorais nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) fez-me buscar aprofundamento teórico na área da teologia e, posteriormente, também no campo das ciências sociais. Assim, nos anos 1994 a 1997, frequentei um curso de extensão em teologia pastoral, em regime de férias, no Instituto de Teologia e Pastoral, vinculado à Universidade de Passo Fundo (RS).

Esse curso era destinado aos agentes de pastoral2 2 - Denominação dada às lideranças de comunidades que coordenam e dinamizam as pastorais sociais e eclesiais. e, por esse motivo, era frequentado por um número significativo de mulheres, considerando que a maior parte do trabalho pastoral, em geral, é realizada pelo universo feminino. No referido curso havia também uma participação reduzida de homens, praticamente todos leigos3 3 - A expressão leigo, no contexto eclesial, significa a pessoa que exerce liderança no âmbito eclesial, sem uma pertença à vida religiosa consagrada ou à hierarquia do serviço ordenado. A ordenação, na Igreja Católica, é conferida somente para o sexo masculino, por meio de um ritual específico. ou religiosos que não pretendiam seguir carreira eclesiástica. As pessoas que frequentavam o curso de teologia, em regime de férias, buscavam capacitação para atuar nas atividades pastorais ou para aprofundar o sentido da fé cristã. Já no curso regular anual, a situação se invertia, porque quase todos os estudantes de teologia eram do sexo masculino e buscavam a formação em vista do serviço ordenado. A atividade da docência, tanto no curso de teologia em regime de férias como no regular, era exercida, praticamente, por homens e celibatários4 4 - No curso de teologia de férias havia somente duas mulheres e um homem leigo no quadro dos professores. Esses ministravam as disciplinas de: introdução à sociologia, fundamentos litúrgicos e introdução à filosofia, disciplinas periféricas, na relação com as que são centrais em um curso teológico. . A ausência de mulheres na docência era justificada porque poucas delas possuíam a formação acadêmica na área da teologia, cuja questão ocultava outras dinâmicas que foram evidenciadas no estudo do meu doutorado.

Meu primeiro contato com o conceito de gênero ocorreu durante o curso de teologia em regime de férias, mais precisamente, no ano de 1995, por ocasião de uma jornada teológica em que se refletiu o tema – Mulher semente de vida na igreja e na sociedade, assessorado por mulheres estudantes do curso de teologia regular da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF), de Porto Alegre. A partir de então, tomei consciência de que o feminino e o masculino, bem como os papéis sociais destinados a cada sexo, são construções socioculturais e que as desigualdades de gênero foram construídas por uma determinada leitura cultural da diferença, fundada na fixidez dos corpos. Também me dei conta de como isso, ao longo da história, contribuiu para invisibilizar, discriminar e excluir as mulheres de diversos espaços, tanto da esfera social como da eclesial.

Assim, a perspectiva de gênero passou a ocupar um lugar importante em minha experiência de vida e de ação, sobretudo no trabalho de formação para lideranças eclesiais, nos grupos de leitura popular da bíblia e no trabalho pastoral, junto às comunidades de base. Minha visão sempre foi que mulheres e homens, tendo as mesmas oportunidades de formação profissional, adquirem igual capacidade intelectual e técnica para exercerem as diferentes atividades na esfera pública da sociedade e também nas instâncias eclesiais.

Durante a graduação em ciências sociais, o meu interesse pelos estudos de gênero foi se consolidando, sobretudo, após cursar a disciplina de sociologia das relações de gênero. Sendo assim, considero que a pesquisa de doutorado, de certa maneira, manteve vínculo com o trabalho monográfico de conclusão do curso de ciências sociais, intitulado A questão de gênero no MST: um estudo sobre o discurso e as práticas de participação da mulher5 5 - Monografia orientada pela professora Ângela Duarte Damasceno e defendida em março de 2003. . Esse vínculo diz respeito ao interesse por continuar aprofundando as ferramentas teóricas dos estudos de gênero, em sua relação com as ciências sociais, porém agora em outra temática de investigação. Isso, sem dúvida, acena que os temas que escolhemos para nossas pesquisas são, quase sempre, influenciados por nossas trajetórias de vida ou profissional, como têm mencionado alguns sociólogos.

Hoje se pode afirmar que o objeto é a continuação do sujeito por outros meios. Por isso, todo o conhecimento científico é autoconhecimento. A ciência não descobre, cria, e o ato criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente antes que se conheça o que com ele se pode conhecer de real. (SANTOS, 2004SANTOS Boaventura Souza de. Um discurso sobre as ciências. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2004., p. 83).

Essa concepção demarca uma ruptura com a dicotomia entre sujeito e objeto, herança da ciência moderna que, por um lado, consagrou o homem como sujeito epistêmico, mas, por outro, o expulsou como sujeito empírico. Embora essa postura nem sempre seja pacífica nas ciências sociais, hoje já se concebe que a construção do objeto de pesquisa não é uma escolha puramente objetiva, como bem tem escrito o sociólogo Wright Mills (1965)MILLS, Wright C. Do artesanato intelectual. In: MILLS, Wright C. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. p. 211-243., em sua obra A imaginação sociológica. Isto é, nossas escolhas estão sempre ligadas, indiretamente ou diretamente, às nossas trajetórias profissionais e experiências subjetivas. Nessa direção, o sociólogo Boaventura Santos (2004SANTOS Boaventura Souza de. Um discurso sobre as ciências. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2004., p. 85) assim escreve:

Hoje sabemos ou suspeitamos que nossas trajetórias pessoais e coletivas (enquanto comunidades científicas) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima de nosso conhecimento, sem o qual nossas investigações laboratoriais ou de arquivos, os nossos cálculos ou os nossos trabalhos de campo constituiriam um emaranhado de diligências absurdas sem fio nem pavio.

Boaventura Santos acredita que, embora a perspectiva subjetiva do conhecimento construído seja suspeitada ou insuspeitada, ela corre subterrânea e clandestinamente nos não ditos dos nossos trabalhos científicos, ainda que se pretendam posicionar no teor da ciência objetiva. Nesse sentido, a contribuição da teoria feminista também tem sido valiosa, para desmitificar a pura objetividade e universalidade do conhecimento, mostrando que ele é sempre situado e subjetivo, já que “nenhum trabalho teórico está distante da experiência de quem o escreve.” (ALCOFF, 1999ALCOFF, Linda. Merleau-Ponty y la teoría feminista sobre la experiencia. MORA - Revista del Instituto interdisciplinario de Estudios de Género, Facultad de Filosofía y Letras, Buenos Aires, n. 5, p. 122-138, 1999., p. 125).

Todas as correntes do feminismo partem da afirmação de que quem conhece é alguém que está inserido em uma determinada situação, posição e circunstância, considerando, com isso, que nenhum conhecimento se produz desde “nenhum lugar”. (BACH, 2010BACH, Ana María. Las voces de la experiencia: el viraje de la filosofía feminista. Buenos Aires: Biblos, 2010.). E, nisso, pode-se dizer que o feminismo se caracteriza como uma postura hermenêutica, cuja perspectiva metodológica considera que cada um de nós é habitante de uma cultura, de uma época, de uma situação geográfica e, aqui acrescento, de uma posição de gênero. E, portanto, é desde essas referências que interpretamos e compreendemos o mundo. Ou seja, olhamos para a realidade e produzimos saberes desde dentro e não a partir de uma neutralidade supra-humana.

Nesse sentido, vale lembrar, ainda, que uma das grandes contribuições dos estudos feministas foi a introdução de um modo diferente de fazer ciência, no qual a experiência e a posição do sujeito, em seu contexto, se constituem em elementos significativos.

Os estudos de gênero e as indagações sobre as epistemologias feministas introduziram, ao lado dos outros estilos de fazer ciência social, um estilo que deu mais lugar à reflexão sobre a subjetividade do/a autor/a e da construção das subjetividades dos sujeitos sociais. (MACHADO, 1998MACHADO, Lia Zanotto. Gênero, um novo Paradigma? Cadernos Pagu, Campinas-SP, n.11, p.107-125, 1998., p. 125).

Assim, sem deslocar o estilo mais objetivo de uma escrita sem sujeito ou do nós, produziu-se uma outra forma de escrever ciência, em que o sujeito se coloca e assume sua construção científica. Este novo estilo dá voz à subjetividade reflexiva do sujeito social e, sem dúvida, tem sido uma das contribuições valiosas do feminismo6 6 - Considerando isso, neste artigo assumo a escrita em primeira pessoa. .

As argumentações de estudiosos/as do campo da sociologia e da teoria feminista fizeram-me tomar consciência de minha condição de pesquisadora, alguém que é mulher, socializada na religião católica e que tinha uma relação próxima com o seu campo, cuja escolha do objeto resultava de uma trajetória existencial. Também, a consciência de ser um sujeito que produz saber, desde uma postura situada e contextual, cujo olhar influencia o processo do conhecimento. Tais características, longe de invalidar uma pesquisa, hoje se colocam como o ponto de partida para a realização dela.

Nessa perspectiva, Gilberto Velho (2003)VELHO, Gilberto. O desafio da proximidade. In: VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (Orgs.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. P. 11-19.já havia considerado que a complexidade da sociedade urbana contemporânea permite, na atualidade, que muitos antropólogos realizem estudos próximos de seu universo de origem, pesquisando situações mais ou menos conhecidas. Para o autor, essa situação é por si só o ponto de partida para realização de uma investigação e que exige do pesquisador/a um olhar de estranhamento e uma revisão crítica diante do que lhe é próximo, bem como o uso de ferramentas teórico-metodológicas que tornam um estudo com valor científico. Posso afirmar que pude experienciar essa mesma realidade quando busquei compreender e interpretar, cientificamente, o sentido que as mulheres docentes atribuíam às suas ações no interior do universo de saber teológico.Assim sendo, as bases teórico-analíticas que deram sustentação científica à minha pesquisa são oriundas das teorias feministas e dos estudos de gênero, em sua contribuição sociológica. E isso permite afirmar que o estudo a respeito da construção da docência feminina, no universo teológico, é parte do rol dos estudos feministas a respeito de ciência e gênero e carreiras profissionais majoritariamente masculinas.

Perspectivas metodológicas e a experiência da intersubjetividade

Nos processos de investigação científica, a abordagem qualitativa representou um avanço epistemológico por mostrar que o sujeito não é só objetivo – materialidade e processos concretos – mas também subjetivo. Nesse sentido, uma das primeiras grandes contribuições, para pensar a importância da subjetividade, vem dos estudos de Max Weber (1992)WEBER, Max. Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva. In: WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez: Unicamp, 1992. p. 313-348., cuja proposta foi aprofundada por teóricos de diferentes áreas acadêmicas. Assim, uma das especificidades da metodologia qualitativa é dar ênfase ao sujeito, que pode ser neutro. O diferencial da metodologia feminista é mostrar que o sujeito não é neutro e universal, mas generizado7 7 - O termo generizado/a é usado pela feminista Londa Schienbinger (2001, p. 145) para se referir aos comportamentos, interesses, ou valores culturais tipicamente masculinos ou femininos, cujas características não são concebidas inatas e nem arbitrárias, mas como realidades construídas por circunstâncias históricas que, por isso mesmo, podem mudar por outras circunstâncias históricas. Ao usar esse mesmo termo, estarei referindo-me às mesmas questões assinaladas pela autora. , histórico e situado. Entretanto, uma pesquisa só pode ser caracterizada como feminista se adotar as perspectivas teóricas e metodológicas do feminismo.

Assim sendo, a pesquisa de meu doutoramento deu voz às docentes que atuavam no ensino superior em teologia católica, de modo que elas participaram ativamente no processo da produção do conhecimento. Por meio das narrativas das docentes, sobre suas experiências vividas em uma instituição majoritariamente masculina, o estudo buscou compreender as dinâmicas envolvidas no processo de inserção, a percepção dessas mulheres sobre as suas experiências e sobre as dinâmicas de gênero e de poder que se articulavam no universo do saber teológico; a forma como elas se compreendiam e se constituíam sujeitos femininos de saber teológico e como construíam as suas possibilidades de agência em um espaço que, ao longo da história, foi estruturado como um lugar não inteligível para elas. SegundoLincoln; Guba (2006)LINCOLN, Yvonna S.; GUBA, Egon G. Controvérsias paradigmáticas, contradições e confluências emergentes. In: DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. São Paulo: Artmed: Bookman, 2006. p. 169-192., a voz pode significar, especialmente nas formas mais participativas de pesquisa, não apenas a voz de um pesquisador no texto, mas também a possibilidade de que os participantes da pesquisa falem por si mesmos. Para a socióloga inglesa Margaret S. Archer (2009)ARCHER, Margaret S. Reflexividade e tratamento em “primeira pessoa” em sociologia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA. 14., 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro. Anais do... Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Sociologia, 2009. Disponível em: <http://www.sbs2009.sbsociologia.com.br/>. Acesso em: 16 ago. 2009.
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:

Dar ‘voz’ às pessoas também nos dá melhores explicações sobre o que elas realmente fazem, substituindo generalizações empiricistas. Inversamente, quando se permite aos agentes avaliarem reflexivamente seus contextos sociais objetivos, em termos de suas preocupações pessoais, e decidir sobre o curso de sua ação social adequadamente, restabelece-se o agente ativo para a sociologia. Isso porque, as pessoas lutam por algum controle sobre o curso de suas próprias vidas e traçam seu caminho ativamente através do mundo, em vez de serem receptores passivos de pressões sociais. (ARCHER, 2009ARCHER, Margaret S. Reflexividade e tratamento em “primeira pessoa” em sociologia. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA. 14., 28 a 31 de julho de 2009, Rio de Janeiro. Anais do... Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Sociologia, 2009. Disponível em: <http://www.sbs2009.sbsociologia.com.br/>. Acesso em: 16 ago. 2009.
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, grifo meu).

Desse modo, para escutar as memórias reflexivas das experiências das mulheres, no processo de constituírem-se sujeitos de saber e o sentido que davam às suas ações, priorizei a abordagem qualitativa. A investigação qualitativa, segundoBriceño-León (2003BRICEÑO-LEÓN, Roberto. Quatro modelos de integração de técnicas qualitativas e quantitativas de investigação nas ciências sociais. In: GOLDENBERGER, Paulete; MARSIGLIA, Regina Maria Giffoni; GOMES, Maria Helena de Andréa. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 157-183., p. 161),

[...] permite ao investigador/a atuar desde dentro. Se aproxima da realidade do estudo de forma natural e permite colher dados ricos, através de estratégias não estruturadas.

Esse tipo de investigação abre “janelas” para que o sujeito da ação exponha suas motivações e significações mais profundas em relação a sua ação e visão de mundo.

Embora a pesquisa fosse de caráter qualitativo, foi necessário utilizar também a técnica de questionário, normalmente associadas às abordagens quantitativas. Na visão de Briceño-León (2003)BRICEÑO-LEÓN, Roberto. Quatro modelos de integração de técnicas qualitativas e quantitativas de investigação nas ciências sociais. In: GOLDENBERGER, Paulete; MARSIGLIA, Regina Maria Giffoni; GOMES, Maria Helena de Andréa. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 157-183., a integração das duas técnicas permite explorar as potencialidades que cada uma oferece. No caso da investigação realizada, a combinação dessas técnicas fez-se necessária para estabelecer um quadro de evidências, possibilitando a construção de conclusões mais sólidas e contextualizadas. As diferenças específicas das duas perspectivas, longe de ser obstáculo, apresentam-se como possibilidade que, adequadamente utilizadas, trazem produtos científicos de maior qualidade. Mais importante que a pureza de um método, é a sua:

[...] capacidade em dar respostas aos objetivos da investigação, a capacidade de compreender um processo social ou o comportamento dos indivíduos, a integração dos métodos quase se converte em uma necessidade. (BRICEÑO-LEÓN 2003BRICEÑO-LEÓN, Roberto. Quatro modelos de integração de técnicas qualitativas e quantitativas de investigação nas ciências sociais. In: GOLDENBERGER, Paulete; MARSIGLIA, Regina Maria Giffoni; GOMES, Maria Helena de Andréa. O clássico e o novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 157-183., p. 181).

Briceño-León afirma que uma investigação qualitativa permite, também, a interpretação de dados quantitativos, ou seja, os resultados qualitativos poderão ajudar na interpretação de dados quantitativos, não só pela confrontação de dados em si, mas pelo diálogo com os próprios indivíduos, os quais deixam de ser números agregados e passam a ser atores. Números não falam por si mesmos, precisam de uma teoria que lhes dê sentido e que os coloquem em confronto com a problemática da pesquisa. No estudo da tese, eles foram importantes para objetivar certas dinâmicas estruturais de gênero. Assim, tanto os dados estatísticos como as narrativas das docentes foram interpretadas à luz da categoria teórico-analítica de gênero, em que se tornou possível levar em conta as relações de poder, que são instituídas e se instituem nas relações sociais. Esse aspecto nos colocou, por sua vez, no conjunto de conteúdos que compõem a experiência vivida pelas mulheres docentes.

Para evidenciar um pouco desse processo interpretativo e analítico dos conteúdos que vêm da voz das interlocutoras da pesquisa, tomo como exemplo um fragmento na narrativa de Priscila. Baseada em sua experiência de ser docente do sexo feminino, em uma instituição hierárquica e masculina, ela relata, de maneira reflexiva, como as dinâmicas de poder impõem condições distintas para cada sexo, no processo de legitimação como sujeitos do ensino.

Ser mulher ou homem não é a mesma coisa no campo da teologia. Também não basta só ser homem, tem que ser padre. Há uma diferença, a teologia no seminário é o lugar do professor padre. A gente sabe que tem muitos padres na teologia que são bons professores, mas têm alguns que chegam a ser medíocres, mas ficam por serem padres. Ser mulher e estar nesse lugar, a gente precisa ser muito mais competente do que eles, mas muito mesmo. Você tem que aparecer na sua competência, tem que estudar, você tem que produzir e tal. Você tem que mostrar que os alunos gostam de você. Agora o padre não, ele pode dar uma aula qualquer, dar de qualquer jeito, os alunos reclamam e reclamam, mas ele continua lá, porque é o lugar dele, entendeu. Eu acho que para a gente ficar como professora precisa fazer um esforço enorme. Você tem que ser muito competente, tem que fazer um esforço de estudar e tal e estar em dia com as coisas. Mostrar que você sabe. Assim quando tem uma palestra, uma semana de teologia, você tem que fazer trabalho e mostrar que é competente para você poder ficar no seu lugar. (Priscila, 60 anos).

Subjacente à narrativa de Priscila, que revela uma ordem simbólica, na qual as mulheres se submetem a um duplo esforço para comprovar a sua capacidade intelectual e a sua legitimidade como sujeito mulher, está a vigência dos significados produzidos pelas representações simbólicas de gênero, inscritas no discurso teológico tradicional, que teve influência sobre as subjetividades femininas e as relações que se estabelecem numa estrutura de saber androcêntrica.

Para além de uma verdade científica, o conhecimento da moral teológica, no terreno da sexualidade, produziu a inferioridade das mulheres (mental, intelectual, moral ou espiritual), cujo discurso continua tendo vigência política na organização das estruturas eclesiais.

[...] o feminino, enquanto sinônimo de pejorativo, funcionou como formador de significados e organizador das diferenças sexuais e simbólicas, que era importante para o funcionamento dessas estruturas (BRAIDOTTI, 2004BRAIDOTTI, Rosi. Feminismo, diferencia sexual y subjetividad nómade. Barcelona:Gedisa, 2004., p. 61).

Cria-se, assim, dentro dessa representação, um sentido de hierarquia de posição e de reconhecimento, que não é dado sempre pela formação, mas que opera no nível do simbólico.

Na interpretação acima, estabelece-se uma relação intersubjetiva entre o conteúdo da narrativa de Priscila e o olhar analítico da pesquisadora. Desse modo, no estudo da tese não só busquei apreender, explicar e compreender o sentido da ação e da experiência dos sujeitos femininos da docência em teologia, mas também as relações de poder e de gênero inscritas em discursos e práticas institucionais.

Nesse sentido, Gadamer (1999)GADAMER, Hans-Gerg. Herméneutique et philosophie. Paris: Beauchesne, 1999. 8 8 - Hans-Georg Gadamer é um dos maiores estudiosos da hermenêutica. Sua metodologia inclui a experiência humana de mundo e da práxis da vida. assinala que a compreensão hermenêutica não é um procedimento mecânico e tecnicamente fechado, já que nada do que se interpreta pode ser entendido de uma vez só. A interpretação é sempre uma interpretação e o ato do entendimento, mais do que um desvelamento da verdade do objeto é a relação do que o “outro” (tu) coloca como verdade. Na pesquisa realizada, por meio das narrativas de mulheres docentes, foi possível constatar como as dinâmicas de poder e de gênero atravessam a trajetória que elas realizam dentro das instituições católicas, ou seja: os processos de inserção feminina no universo acadêmico; as estratégias políticas que elas produzem para ressignificar espaços, relações, práticas e para a reinvenção de si, na medida em que afirmam positivamente a alteridade, como uma estratégia política do devir sujeito feminino de saber teológico, em um universo regido por uma ordem simbólica e normativa e androcêntrica.

Minayo (2003)MINAYO, Maria Cecília de Souza. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 83-107. considera que o sujeito se objetiva em sua própria ação e disso decorre a sua subjetivação, ou seja, o sujeito se subjetiva em ação – subjetivação. Embora, seguramente, fosse necessário considerar a posição de gênero dos sujeitos implicados na pesquisa, cuja questão normalmente não é tratada na abordagem hermenêutica. Essa objetivação de si, que se realiza por meio da ação, é uma constante em muitas narrativas e um processo contínuo que se objetiva nas relações interativas entre docentes e discentes. Apenas situo, como exemplo, um fragmento da narrativa de Noemi (46 anos), quando ela fala a respeito do sentido da docência para a sua vida, de modo que ela se objetiva pela ação da docência.

Eu penso que a teologia, efetivamente, faz parte da minha vida, me dá a direção. Eu me vejo, sim, como uma educadora da fé. Desde o início, eu sempre fui uma educadora da fé, em cursos de teologia nas comunidades, em aulas de ensino religioso [...] Então, eu sinto essa missão de ser uma educadora na fé, que agora passa pela docência. Sinto-me educadora da fé, uma colaboradora na construção de sentidos e novos sentidos [...].

Vale lembrar que a perspectiva hermenêutica, além de permitir a interpretação e de estabelecer relações em diferentes direções, possibilita a intersubjetividade entre o sujeito pesquisador e o sujeito pesquisado, em um processo de compreensão e autocompreensão. Segundo Minayo (2003MINAYO, Maria Cecília de Souza. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 83-107., p. 92):

Compreender acaba sempre sendo compreender-se. A estrutura geral dessa forma de abordagem atinge sua concreção na compreensão histórica na medida em que aí se tornam operantes as vinculações concretas de costumes e tradições e as correspondentes possibilidades de seu futuro.

A hermenêutica, “propõe a intersubjeti-vidade como chão do processo científico da ação humana” (MINAYO, 2003MINAYO, Maria Cecília de Souza. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 83-107., p. 97), e como práxis interpretativa requer que se busquem as diferenças e semelhanças entre o contexto do autor e o contexto do investigador e que haja o compartilhamento entre o mundo observado e os sujeitos da pesquisa, com o mundo da vida do investigador, porque “compreender é sempre compreender-se”. Nesse caso, como pesquisadora, o meu olhar é de alguém que compartilha com os sujeitos/agentes da pesquisa a experiência vivida, como um lugar do constituir-se sujeito feminino de saber, no aqui e no agora da história presente.

Compartilhamos de um mesmo mundo simbólico, de imagens e de representações discursivas e linguísticas da ordem social masculina, que marcou nossas subjetividades. Somos mulheres latino-americanas, brancas, socializadas numa cultura ocidental, cristão--católica. Pisamos o mesmo chão cultural e compartilhamos, ainda, do desejo de uma afirmação positiva do sujeito feminino, em um lugar discursivo, acadêmico e eclesial masculino. Somos sujeitos do conhecimento e, por meio da valorização das experiências situadas das mulheres, buscamos produzir saberes contextuais e parciais e, com isso, compartilhamos da imaginação de poder construir um mundo melhor para nós mesmas e para todas as mulheres. Isso porque, no ato de produzir saberes, as docentes entrevistadas também têm assumido a hermenêutica como uma metodologia de interpretação crítica, na produção da chamada teologia feminista. Isto é, elas partem das experiências das mulheres para suspeitar do já dito nos discursos bíblicos, produzidos pelo olhar e pela experiência masculina. Com isso, além de estabelecerem uma crítica a um pensamento abstrato, universal e masculino, elas elaboram saberes alternativos, que ressignificam imagens e representações simbólicas, produzindo novas possibilidades para a subjetividade das mulheres.

Assim sendo, este estudo em que busquei compreender as experiências e as estratégias das mulheres, no produzirem-se docentes em um universo masculino, também me fez compreender a mim mesma, como sujeito feminino de saber. Gadamer (1999)GADAMER, Hans-Gerg. Herméneutique et philosophie. Paris: Beauchesne, 1999. já havia enfatizado que a compreensão requer o engajamento do pesquisador, no sentido de este assumir uma postura em que reconhece a sua experiência limiar e contínua de viver entre a familiaridade e a estranheza. Ou, como afirma Minayo (2003MINAYO, Maria Cecília de Souza. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 83-107., p. 98) a “atividade hermenêutica se move entre o familiar e o estranho, entre a intersubjetividade do acordo ilimitado e a quebra da possibilidade desse acordo”. Por meio dessa perspectiva, o sujeito do conhecimento interage com o sujeito da pesquisa e vice-versa, uma vez que no ato de compreender, o sujeito também se compreende. Na mesma direção, BoaventuraSantos (2004)SANTOS Boaventura Souza de. Um discurso sobre as ciências. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2004. afirma que a construção do conhecimento científico é também uma busca pelo autoconhecimento.

Assim sendo, mais do que nos situarmos em contextos semelhantes e de compartilharmos alguns significados do mundo vivido, a relação intersubjetiva, neste caso, estabelece-se porque como pesquisadora não posso me considerar a única autora do conhecimento, uma vez que a produção desse saber dependeu das narrativas reflexivas que as docentes elaboraram sobre si e sobre os sentidos dados às suas experiências vividas. Isso as fez participar como sujeitos da produção do conhecimento e com os conteúdos de gênero que foram problematizados por mim, como investigadora. Nesse sentido, o educador Alan Peshkin (1993PESHKIN, Alan. The goodness of qualitative research. Educational Researcher, v. 22, n. 2, p. 23-29, mar. 1993., p. 24) afirmou que “o caminho de nosso saber está atrelado ao conteúdo de nosso conhecimento e às nossas relações com os participantes da pesquisa”.

Nessa perspectiva, os argumentos de Minayo a respeito da relação intersubjetiva na pesquisa foram importantes, pois:

[...] o investigador não deve buscar nos textos/entrevistas uma verdade essencialista, mas o sentido que quis expressar quem os emitiu. Assim, o investigador só estará em condições de compreender o conteúdo significativo de qualquer documento/ entrevista se fizer o movimento de tornar presente, na interpretação, as razões do autor. Por outro lado, na interpretação nunca há a última palavra, o sentido de uma mensagem ou de uma realidade estará sempre aberto a várias direções, mas, principalmente, diante dos novos achados do contexto no qual foi produzido e diante, também, das novas perguntas que são colocadas. (MINAYO, 2003MINAYO, Maria Cecília de Souza. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 83-107., p. 98).

Essa proposta metodológica desloca o pesquisador da posição de protagonista da verdade científica, para um olhar que considera a posição relacional entre os sujeitos. Uma relação que é muito mais que a simples aproximação com as interlocutoras, porque se trata de uma postura em que, como pesquisadora, precisei me deixar tocar por suas narrativas, problematizando-as por meio de um olhar crítico e teórico. Isto é, pela relação intersubjetiva, a minha tarefa foi a de interpretar e compreender o sentido da ação das docentes, dos discursos e do contexto social em que elas estavam inseridas.

Para ilustrar um pouco dessa relação intersubjetiva, que permite à pesquisadora interpretar os sentidos dos conteúdos narrados, apresento como exemplo um fragmento da narrativa de uma das docentes. Em uma primeira compreensão, é possível perceber que essa docente usa como estratégia política a sua qualificação profissional, no intuito de conquistar um lugar na disciplina que tem a ver com a área de sua formação. Tal estratégia, no sentido de Fraser (1997)FRASER, Nancy. Iustitia interrupta: reflexiones sobre la posición “postsocialista”. Bogotá: Universidad de los Andes: Siglo del Hombre, 1997., configura-se como a luta pela justa redistribuição de poder de um sujeito que tem direito, sobretudo, quando parece estar em jogo a contratação de um professor com formação na mesma área que a sua.

Estou lecionando na minha área de formação. Só que demorou também. Eu já tive um desafio, por exemplo, de eu falar em conselho: ‘Vocês estão admitindo um professor para teologia pastoral’. Disseram: “Ah, parece que ele vai entrar a pedido de alguém e tal”. Perguntei, “mas por quê?” “Ah, porque aqui nós não temos professores formados na área e vamos precisar contratar um”. Eu falei: “Esqueceram que eu tenho formação na área e que eu estou fazendo doutorado. Tenho mais capacitação do que ele e fiz esse curso na mesma universidade que ele está fazendo”. Disseram: “Ai, me desculpa, eu não tinha pensado”. Entendeu? Daí, fui contratada, peguei a disciplina e tal. A mulher tem que se mostrar também e se adequar às situações, na hora certa. O problema é a capacitação, então, se o problema é esse, você tem que analisar até que ponto é verdade a justificativa que eles dão a uma situação. (Madalena, 55 anos).

A narrativa de Madalena evidencia a lógica de poder e de gênero que normatiza as práticas no universo da teologia. Essa narrativa parece sugerir que existe uma discriminação sutil, que não tem a ver com o nível de formação, já que ela é uma profissional qualificada, mas se dá pela diferença, cujo marcador é o sexo. Nesse caso, pode-se compreender a ênfase que ela dá à sua qualificação profissional como critério de igualdade. Boaventura de Souza Santos (2000) já dizia que as pessoas e os grupos sociais têm o direito a serem iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito de serem diferentes quando a igualdade as descaracteriza. Nesse sentido, Madalena parece interagir com as regras do campo acadêmico, ou seja, ela apropria-se do discurso da formação específica, que é válida para os sujeitos masculinos, como a possibilidade do vir a ser sujeito feminino de saber teológico, com igual direito de assumir a docência em disciplinas pontuais.

Nesse caso, pela perspectiva hermenêutica que favorece a relação intersubjetiva, a minha posição de sujeito do conhecimento foi somente produzir uma interpretação do conteúdo da narrativa de Madalena, que jamais pode ser a última. Isso porque, nessa perspectiva, toda a interpretação permanece aberta para novas possibilidades contextuais e novas perguntas. De modo que na hermenêutica não existe uma interpretação neutra e nem uma verdade absoluta, porque depende do lugar hermenêutico do pesquisador/a, isto é, do lugar social e teórico de onde o sujeito do conhecimento olha e interpreta a realidade.

Certamente, o meu olhar permitiu uma interpretação entre tantas outras possíveis. Desse modo, em uma postura hermenêutica concebe-se que o conhecimento não é algo puramente objetivo, no sentido de uma suposta neutralidade do mundo vivido, isto é, dos valores, das crenças e dos afetos que fazem parte das experiências contextualizadas dos autores e, também, se acredita que a história não é marcada por noções de efeito e causa. É, nesse sentido, que nos cabem as lições da genealogia.

Para a pesquisa de tese, junto com a proposta hermenêutica, assumi a perspectiva metodológica da genealogia, inspirada em Michel Foucault (1999)FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999., no que diz respeito ao tratamento dos elementos históricos, uma vez que não pretendia interpretar e compreender a história como continuidade linear, e nem buscar as origens desses processos, tanto da teologia quanto das relações dessas mulheres teólogas com a docência. Isso porque, a genealogia não está preocupada em traçar as relações de causa/efeito. Também não questiona o que os fatos representam, mas os motivos pelos quais eles assim estão representados, ou as condições que os possibilitaram. Em outras palavras, a pesquisa genealógica, ao buscar as condições que favorecem o aparecimento de novas práticas sociais ou de novos saberes, ao mesmo tempo, desvela a forma como o sujeito se constitui dentro e por meio dessas práticas e saberes. “Por isso, há uma implicação mútua entre pesquisa genealógica, práticas sociais e processos de subjetivação.” (ESPERANDIO, 2011ESPERANDIO, Mary R. G. Cartografias do sagrado na contemporaneidade: o nascimento da biorreligiosidade. INTERAÇÕES: cultura e comunidade, Uberlândia, v. 6, n. 9, p. 121-136, jan./jun. 2011., p. 124).

Por meio da genealogia, busquei compreender as condições nas quais os processos de subjetivação ocorriam. Por isso, de um lado, tomei os discursos teológicos tradicionais, carregados de representações e imagens simbólicas de gênero, de maneira descontínua, no sentido de evidenciar ausências e significados produzidos pelos discursos institucionais masculinos e seus efeitos na constituição da subjetividade feminina. Num segundo momento, tomei as narrativas das mulheres para compreender a ação e os significados contidos nas memórias que elas relataram sobre as suas trajetórias acadêmicas, cujas narrativas não são construídas como uma história contínua, mas por situações pontuadas e localizadas, que davam significado às suas práticas e experiências, no processo de se produzirem e se autocompreenderem como sujeitos de ação e de saber. Nessa direção, Teresa de Lauretis (2000LAURETIS, Teresa de. Genealogías feministas: un itinerario personal. In: LAURETIS, Teresa de. Diferencias: etapas de un camino a través del feminismo. Madrid: Horas y Horas, 2000. p. 7-31., p. 7) já dizia que “o caminho do pensamento, como o da vida, não é linear, mas está feito de voltas, antecipações, desvios e projeções.” Suas narrativas não são meramente memórias individuais, mas experiências compartilhadas, discursivamente mediadas e situadas, em um contexto social distinto, que assumem um caráter de historicidade.

Assim sendo, considerando a proposta genealógica de Foucault e as considerações de Lauretis, é possível dizer que as narrativas a respeito das experiências e as ações das mulheres no universo teológico evidenciam o processo de constituírem-se sujeitos femininos de saber no aqui e agora da história presente, em meio às dinâmicas de gênero de uma ordem simbólica masculina, porém como uma construção nunca acabada, que permanece sempre em estado de devir (BRAIDOTTI, 2004BRAIDOTTI, Rosi. Feminismo, diferencia sexual y subjetividad nómade. Barcelona:Gedisa, 2004.). Não é uma história do passado, mas do presente, “do tornar-se, aqui e agora, enraizada na prática, na contradição, na heterogeneidade”. (LAURETIS, 2000LAURETIS, Teresa de. Genealogías feministas: un itinerario personal. In: LAURETIS, Teresa de. Diferencias: etapas de un camino a través del feminismo. Madrid: Horas y Horas, 2000. p. 7-31., p. 27).

Por essas perspectivas metodológicas foi construído um processo de interlocução com as docentes, descobrindo os significados produzidos, no processo de tornarem-se sujeitos-agentes da prática do ensino e da produção do conhecimento, cujas ações questionam os princípios dos paradigmas metodológicos tradicionais, como o da neutralidade e objetividade cientifica.

A escolha das técnicas da pesquisa: uma reflexão

Evidentemente, as perguntas que se colocam para uma investigação acabam orientando a escolha das técnicas que melhor respondem aos objetivos dela. No caso de minha pesquisa, a coleta das informações e o levantamento dos dados empíricos necessários para atender aos objetivos do estudo exigiram uma combinação de técnicas que incluiu pesquisa bibliográfica, consulta a páginas eletrônicas das instituições católicas de ensino teológico, aplicação de questionário, participação de congressos de teólogos/as, análise de programas de ensino e a realização de entrevistas aprofundadas.

O instrumento para a coleta dos dados quantitativos foi enviado a todas as instituições católicas de ensino superior em teologia. No período da pesquisa9 9 - Ano de 2008. , havia 71 instituições, as quais se distribuíam em distintas categorias: universidades católicas, centros universitários, faculdades e institutos diocesanos10 10 - Essa última categoria refere-se às instituições em que o curso superior de teologia ainda não era legalizado junto ao Ministério da Educação. . Com o retorno de 40 questionários, obteve-se a participação de 56,3% das instituições existentes. Isso possibilitou estabelecer um quadro de evidência aproximado e válido acerca da representação feminina e masculina no universo do ensino da teologia. Permitiu, ainda, situar, de forma contextualizada, em nível nacional, algumas dinâmicas e aspectos dessas instituições, segundo os indicativos selecionados para o questionário11 11 - Os indicativos selecionados foram: tipo de instituição; tempo de funcionamento do curso de teologia; situação atual no MEC; número de discentes e docentes, por sexo; faixa etária dos/as docentes; nível de formação e local de formação dos/as docentes; critérios de contratação. .

Entre as técnicas utilizadas foi dado destaque às entrevistas em profundidade, como um meio de dar voz às interlocutoras da pesquisa e escutar as narrativas sobre suas trajetórias de inserção no campo acadêmico teológico, sobre suas ações, relações e experiências, no exercício das atividades da docência: ensino e produção de saber teológico.

Gaskell (2003)GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, Martin W; GASKELL, George (Eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 64-89. assinala que a entrevista qualitativa fornece os dados necessários para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e a sua situação. Possibilita a compreensão detalhada de crenças, atitudes, valores e motivações, no que se refere ao comportamento das pessoas em seus contextos sociais e específicos. Para esse autor, uma pesquisa que se utiliza de entrevistas permite a interação e a troca de ideias, de significados entre o entrevistador e o entrevistado, nas diferentes percepções a serem exploradas. Em outras palavras, possibilita a intersubjetividade dos sujeitos envolvidos.

Nessa mesma direção, Otávio Cruz Neto (1997)CRUZ NETO, Otávio. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, Maria Cecília de Sousa (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 51-66. afirma que a entrevista em profundidade possibilita o diálogo intensamente correspondido entre entrevistador e informante. Considerando as questões acima pontuadas, a escolha pela técnica de entrevista em profundidade foi porque ela oferecia maior possibilidade para a exploração de um roteiro de temáticas. Ela é indicada por Gaskell (2003GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, Martin W; GASKELL, George (Eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 64-89., p. 78), em algumas situações, tais como:

Quando o objetivo da pesquisa pretende explorar em profundidade o mundo da vida do indivíduo; quando o tópico se refere às experiências individuais detalhadas, escolhas e biografias pessoais.

Por meio da pesquisa bibliográfica e da coleta de dados quantitativos foi possível contextualizar a situação das instituições católicas de ensino teológico e apreender os níveis de participação de mulheres e homens na docência em teologia, em nível nacional. Isso possibilitou a seleção de mulheres de diferentes instituições para as entrevistas. Entretanto, diante dos objetivos da pesquisa, estabeleci alguns critérios para essa escolha, tais como: docentes com formação teológica; que ministrassem aulas no curso de graduação em teologia12 12 - Isso porque nas pontifícias universidades católicas existem docentes da área de teologia que ministram disciplinas de cultura religiosa, em diferentes cursos acadêmicos. , que tivessem produção na perspectiva feminista ou de gênero ou que tivessem tido algum contato com as teorias de gênero e do feminismo13 13 - Acredita-se que a pessoa que teve contato ou produz com essa perspectiva de conhecimento consegue perceber e problematizar melhor as dinâmicas de gênero que circulam no cotidiano das práticas sociais e isso se tornou um critério importante, diante da proposta desta pesquisa. , durante o processo de formação acadêmica; que fossem professoras de instituições com o curso de teologia, autorizado ou reconhecido pelo MEC, localizadas geograficamente na região sul e sudeste do Brasil.

Essa escolha por interlocutoras de instituições dessas regiões deve-se, primeiramente, porque era nelas que se encontrava o maior número de docentes com produção publicada, tendo como abordagens analíticas as contribuições dos estudos de gênero e da teoria feminista14 14 - Isso não significa que em outras regiões não existem teólogas que produzam nessa perspectiva. No entanto, as publicações de teólogas, que se autodenominam feministas, visibilizam a sua concentração nas regiões sudeste e sul. . Também, porque, de acordo com os dados empíricos, eram as regiões em que estava concentrado o maior número de instituições que ofereciam o curso de teologia e onde estavam situadas as instituições com maior reconhecimento, em termos acadêmicos.

Assim, tendo um conhecimento prévio do conjunto das principais instituições teológicas dessas regiões, e levando em conta as que tinham certo número de mulheres na docência e que podiam responder aos critérios selecionados para a escolha das possíveis interlocutoras da pesquisa, optei, inicialmente, por entrevistar mulheres de três dessas instituições, sendo duas universidades e uma faculdade.

No total, realizei 14 entrevistas, as quais foram gravadas, transcritas e categorizadas por temas, para fins de análise. O tempo médio das entrevistas foi em torno de uma hora e meia a duas horas. Seguiu-se um roteiro temático, aberto. Essa técnica permitiu que as docentes tivessem maior liberdade para falar a respeito do que elas consideravam mais importante dos diferentes temas abordados. Pelo fato de as perguntas serem abertas, muitas vezes certos temas retornavam em cena. Evidentemente, isso é uma das vantagens da entrevista em profundidade, já que ela possibilita explorar a mesma questão, a partir de diferentes perspectivas.

Durante este trabalho, optei por não entrevistar nenhum homem, considerando que a abordagem analítica das relações de gênero não se limita a pensar as relações entre homens e mulheres, dentro de um dado espaço social, mas também analisar as mulheres na relação com os discursos, com as práticas institucionais e com estruturas androcêntricas, que produzem relações desiguais e exclusão social. Sendo assim, priorizei os sujeitos femininos, no sentido de compreender as dinâmicas de inserção e de produção da docência, em instituições de ensino, majoritariamente masculinas.

Desse modo, o sujeito masculino foi tratado de maneira mais genérica, levando-se em conta os dados quantitativos, os discursos teológicos e, sobretudo, as narrativas das mulheres e as relações que estas construíam com os seus pares, no interior das instituições teológicas. Nesse sentido, dar voz às mulheres tem conteúdos políticos e simbólicos. Isso, porque se trata de um sujeito que foi durante muito tempo silenciado e que agora pode falar de si, de suas experiências, da ação que realiza na docência e da percepção que tem das relações que se estabelecem nas instituições teológicas, em um campo de saber, em que sempre reinou a voz do sujeito masculino. Nesse lugar socioeclesial, as mulheres foram definidas e pensadas segundo a visão patriarcal, de um sujeito que se pretendia único e universal. É uma das características dos estudos de gênero buscar as vozes caladas pela história e, nesse sentido, este estudo priorizou a voz do sujeito, mulheres professoras e produtoras de saberes. Mulheres que, de certa maneira, romperam barreiras de gênero, inserindo-se e atuando em um lugar profissional majoritariamente masculino, no qual ainda predominam relações hierárquicas e generizadas de poder.

Sentimentos e aprendizados na experiência de campo

A experiência de campo é única para cada pesquisador/a e apresenta desafios que são inerentes ao problema de cada pesquisa. Desde o início eu estava ciente dos desafios que poderia enfrentar no campo, na busca pelas interlocutoras, que nesse caso seriam mulheres que atuavam na docência em teologia; do tempo que estas poderiam ou não dispor; das formas de interação que eu poderia estabelecer com elas, já que nem todas eram conhecidas e, além do mais, residiam em cidades diferentes. Lembrei-me de tantas experiências de pesquisa registradas nos textos estudados durante a disciplina de métodos de pesquisa, no primeiro semestre do mestrado em sociologia, cujos textos já acenavam para os desafios que cada objeto de pesquisa apresenta na realização do campo.

O fato de já ter lido artigos de algumas das professoras e teólogas, que pretendia entrevistar, e de conhecer pessoas ligadas à teologia foi importante para a aproximação e interação com as docentes. É claro que eu já conhecia algumas delas, porque participavam de eventos promovidos pela Conferência dos Religiosos do Brasil, onde tive vínculo de trabalho durante quatro anos. Contudo, não considero que isso tenha influenciado o fato de que quase todas se dispuseram a colaborar desde o primeiro momento em que expus os objetivos da pesquisa. Algumas foram logo indicando outras colegas e oferecendo bibliografias. Outras chegaram a perguntar-me se de fato eu necessitava da fala delas, já que existiam outras professoras que poderiam ser entrevistadas. Nesse caso, eu explicava o porquê da escolha por docentes daquelas instituições e elas, em um segundo momento, aceitaram integrar o grupo de minhas interlocutoras.

Durante as entrevistas, o relato de algumas mulheres alongava-se e trazia detalhes interessantes de suas experiências em um universo masculino, cujas experiências despertavam em mim o desejo de interagir, já que em muitos momentos eu sentia que compartilhava dessas mesmas experiências, ainda que em um contexto distinto. Tive de conter o desejo de tecer algum comentário ou dizer que tinha tido experiências parecidas. Assumir a posição de pesquisadora exigiu de mim o aprendizado da escuta e da não interferência enquanto elas construíam as suas narrativas. Em todas as entrevistas, sentia-me à vontade com as docentes e percebia que esta relação era compartilhada também por elas. Procurei tratá-las não meramente como informantes, mas como sujeitos-agentes das memórias de suas experiências, resistências e ações no universo de saber teológico, lembrando que o ato narrativo permite a objetivação do sujeito em suas próprias experiências e ações concretas no campo, como bem mencionou Minayo (2003)MINAYO, Maria Cecília de Souza. Hermenêutica-dialética como caminho do pensamento social. In: MINAYO, Maria Cecília de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira (Orgs.). Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003. p. 83-107..

O campo foi um grande aprendizado. As narrativas a respeito da trajetória e a experiência de vida das mulheres, na função de docentes de teologia, foram distintas e significativas. O relato dessas professoras, muitas vezes, fez reportar-me para a minha própria experiência de vida como mulher e para as estratégias necessárias para ocupar ou construir espaços e propor relações igualitárias, em uma cultura que, ainda, reproduz dinâmicas de poder sexistas. Sentia, em diferentes momentos, que compartilhava da mesma experiência subjetiva e estrutural, mesmo que em contextos diferentes. Vi confirmar-se em mim, como pesquisadora, o que Gaskell (2003)GASKELL, George. Entrevistas individuais e grupais. In: BAUER, Martin W; GASKELL, George (Eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 64-89. e Neto (1997) haviam mencionado em relação à técnica da entrevista em profundidade, como uma técnica que permite a interação de ideias e de significados entre entrevistador e entrevistado, nas diferentes percepções a serem exploradas em entrevista.

Considerações finais

A perspectiva hermenêutica como metodologia foi um achado, no sentido de validar a intersubjetividade, isto é, a posição relacional entre sujeitos – pesquisadora e docentes – no ato de produzir conhecimento acadêmico. Assim, pude estar consciente de que o resultado de minha pesquisa foi uma compreensão, entre tantas possíveis, justamente, porque essa produção se realizou a partir do meu lugar hermenêutico, como pesquisadora. Isto é, foi desde um lugar sociocultural e teórico que tornou possível uma determinada compreensão e interpretação da realidade. Por isso, estou consciente de que o conhecimento produzido é parcial e situado, e não se fecha em si mesmo, já que os dados podem ser passíveis de questionamentos, porque a hermenêutica permite novas interpretações possíveis, por meio de outros olhares, de outras perguntas, ou mesmo, pela utilização de outros referenciais teórico-analíticos.

Evidentemente, pela perspectiva hermenêutica, pude fazer a experiência da interação com os sujeitos da pesquisa, de modo que ao problematizar e analisar as narrativas das interlocutoras, por meio dos referenciais teórico-analíticos elegidos para o processo de produção do conhecimento, também foi possível compreender-me, como um sujeito generizado. Ou seja, as ações que realizo, a minha conduta de liberdade, de reflexividade e de resistência diante das convenções sociais e normativas que me produziram e os processos de agenciamento que consigo construir em um contexto distinto.

A pesquisa também teve seu papel de produzir um autoconhecimento, no sentido de me produzir sujeito de saber sociológico, usando de uma proposta metodológica que rompe com a dicotomia sujeito/objeto, tão cara para a ciência moderna. Assim, o estudo de tese a respeito da construção da docência feminina em instituições católicas de ensino teológico, com base analítica nas teorias de gênero e do feminismo, é parte de tantos outros estudos que mostram ser possível, sim, produzir conhecimento, desde uma posição relacional entre sujeitos. Isso porque hoje já se aceita o pressuposto de que não existe conhecimento que seja puramente objetivo, uma vez que as escolhas dos objetos de pesquisa, em geral, estão ligadas direta ou indiretamente às trajetórias profissionais e experiências subjetivas dos próprios pesquisadores. E, nesse sentido, pode-se dar relevância, também, às teorias feministas, que muito contribuíram com a desmistificação da pura objetividade e universalidade do conhecimento, mostrando que ele é sempre situado e subjetivo.

Nesse sentido, conseguir manter um distanciamento reflexivo e crítico e, ao mesmo tempo, praticar a sociologia das ausências, dando emergência ao tema abordado, na pesquisa de doutorado, constituiu-se em um desafio permanente, devido a minha proximidade com o objeto de pesquisa e por priorizar a intersubjetividade como uma maneira de produzir conhecimento. Contudo, a cientificidade do trabalho foi garantida pelo olhar de estranhamento e pela postura crítica que se ancorou nas categorias teórico-analíticas assumidas no processo da análise interpretativa. Para além dos desafios enfrentados, a proximidade com objeto de pesquisa também tornou possível trazer à tona um tema pouco estudado no universo da sociologia e, de certa maneira, contribuir com os estudos feministas sobre ciência e gênero e carreiras profissionais majoritariamente masculinas.

Ao dar ênfase ao sujeito, neste caso as mulheres docentes, que interpretam o sentido de suas ações e experiências, que produzem estratégias para ressignificar a subjetividade feminina, mesmo que perpassadas por contradições, fez-me compreender que eu estava diante de um sujeito que não era somente produto das instituições sociais e das relações de poder, mas que também se constituía como um sujeito reflexivo, capaz de conhecer-se e de transformar-se subjetivamente e, consequentemente, provocar mudanças ou processos de ressignificação nos discursos, nas relações e práticas sociais, mesmo que não cheguem a mudar as estruturas androcêntricas do campo do saber teológico.

Neste estudo, as mulheres não foram vistas como vítimas ou como resultado passivo dos códigos normativos e dos discursos simbólicos, mas sujeitos que, embora cúmplices com o poder, construíam as suas possibilidades para um agenciamento de si, produzindo novos significados que, consequentemente, desestabilizavam o sistema simbólico de gênero, da ordem social masculina. Para tanto, no estudo de tese dei ênfase às concepções das teorias foucaultiana e feminista na perspectiva pós-estruturalista, que sugerem a constituição do sujeito na relação com o poder, inscrito no universo simbólico (representações, símbolos, discursos e práticas institucionais) e em contextos socioculturais específicos, atravessados por dinâmicas de gênero, de classe, etnia/raça e orientação sexual.

Trata-se, especificamente, de teorias que permitiam pensar os processos de resistência política dos sujeitos, no interior de contextos normatizados por convenções sociais hegemônicas, o que representa uma ruptura com a visão de um sujeito totalmente construído e determinado. Trata-se de uma concepção de sujeito que não resulta de uma construção totalmente livre e soberana e, nem de uma determinação fixa, mas que está sempre se constituindo, em devir, numa espécie de nomadismo, no sentido da teoria de Rosi Braidotti (2004)BRAIDOTTI, Rosi. Feminismo, diferencia sexual y subjetividad nómade. Barcelona:Gedisa, 2004., cujo processo não se realiza separado ou independente das contingências sociais. Ao contrário, ocorre por meio da interação com essas estruturas, que tanto podem limitar como possibilitar estratégias de ação subversivas ou ressignificadoras. Tais ações podem ocorrer tanto numa dimensão individual como coletiva, sobretudo quando existe uma consciência comum de processos discriminatórios e um desejo compartilhado por políticas de reconhecimento identitário, por distribuição justa de poder e pelo devir sujeito de saber, como evidenciei no estudo de tese.

Para concluir, gostaria de acenar que a luta situada e contextual das mulheres docentes entrevistadas, no processo de se constituírem sujeitos femininos de saber teológico, evidentemente, embora específico e distinto, pode reportar-se também a outros campos considerados, ao longo da história, como masculinos, uma vez que apesar das grandes mudanças socioculturais ainda convivemos em um sistema com fortes resquícios da cultura patriarcal, a qual parece continuar necessitando da desigualdade, da hierarquia e da violência simbólica para subsistir. Um sistema que produz mecanismos de poder e de gênero, que parece se perpetuar também para dentro das instituições teológicas. Talvez, a luta dessas mulheres pelo agenciamento ético de si, no sentido de uma afirmação positiva da subjetividade feminina, pelo reconhecimento profissional e pela produção de novas simbologias e significados, como uma maneira de modificar o imaginário coletivo, faça-nos acreditar que:

[...] a transformação do mundo começa com a transformação de nossas mentes e a renovação de nossas mentes começa com a transformação das imagens que introduzimos nela, isto é, as imagens que penduramos em nossas paredes e as que levamos em nosso coração (KAISER)15 15 - Este pensamento me acompanha há tanto tempo que, quando o citei, não consegui mais encontrar a referência completa. No entanto, eu acredito que é importante referir-me a ele, a fim de enfatizar a ideia desenvolvida na conclusão. .

References

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  • WEBER, Max. Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva. In: WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez: Unicamp, 1992. p. 313-348.
  • 1
    - Neste artigo, assumo a redação em primeira pessoa, tendo em vista que uma das contribuições das epistemologias feministas foi a introdução de um novo estilo de fazer ciência social que dá voz à subjetividade reflexiva do sujeito social. Isto é, sem deslocar o estilo mais objetivo de uma escrita sem sujeito ou do nós, se produziu uma outra forma de escrever ciência em que o sujeito se coloca e assume sua construção científica.
  • 2
    - Denominação dada às lideranças de comunidades que coordenam e dinamizam as pastorais sociais e eclesiais.
  • 3
    - A expressão leigo, no contexto eclesial, significa a pessoa que exerce liderança no âmbito eclesial, sem uma pertença à vida religiosa consagrada ou à hierarquia do serviço ordenado. A ordenação, na Igreja Católica, é conferida somente para o sexo masculino, por meio de um ritual específico.
  • 4
    - No curso de teologia de férias havia somente duas mulheres e um homem leigo no quadro dos professores. Esses ministravam as disciplinas de: introdução à sociologia, fundamentos litúrgicos e introdução à filosofia, disciplinas periféricas, na relação com as que são centrais em um curso teológico.
  • 5
    - Monografia orientada pela professora Ângela Duarte Damasceno e defendida em março de 2003.
  • 6
    - Considerando isso, neste artigo assumo a escrita em primeira pessoa.
  • 7
    - O termo generizado/a é usado pela feminista Londa Schienbinger (2001SCHIENBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Bauru: Edusc, 2001., p. 145) para se referir aos comportamentos, interesses, ou valores culturais tipicamente masculinos ou femininos, cujas características não são concebidas inatas e nem arbitrárias, mas como realidades construídas por circunstâncias históricas que, por isso mesmo, podem mudar por outras circunstâncias históricas. Ao usar esse mesmo termo, estarei referindo-me às mesmas questões assinaladas pela autora.
  • 8
    - Hans-Georg Gadamer é um dos maiores estudiosos da hermenêutica. Sua metodologia inclui a experiência humana de mundo e da práxis da vida.
  • 9
    - Ano de 2008.
  • 10
    - Essa última categoria refere-se às instituições em que o curso superior de teologia ainda não era legalizado junto ao Ministério da Educação.
  • 11
    - Os indicativos selecionados foram: tipo de instituição; tempo de funcionamento do curso de teologia; situação atual no MEC; número de discentes e docentes, por sexo; faixa etária dos/as docentes; nível de formação e local de formação dos/as docentes; critérios de contratação.
  • 12
    - Isso porque nas pontifícias universidades católicas existem docentes da área de teologia que ministram disciplinas de cultura religiosa, em diferentes cursos acadêmicos.
  • 13
    - Acredita-se que a pessoa que teve contato ou produz com essa perspectiva de conhecimento consegue perceber e problematizar melhor as dinâmicas de gênero que circulam no cotidiano das práticas sociais e isso se tornou um critério importante, diante da proposta desta pesquisa.
  • 14
    - Isso não significa que em outras regiões não existem teólogas que produzam nessa perspectiva. No entanto, as publicações de teólogas, que se autodenominam feministas, visibilizam a sua concentração nas regiões sudeste e sul.
  • 15
    - Este pensamento me acompanha há tanto tempo que, quando o citei, não consegui mais encontrar a referência completa. No entanto, eu acredito que é importante referir-me a ele, a fim de enfatizar a ideia desenvolvida na conclusão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2015
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2014
  • Aceito
    23 Set 2014
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